1994

Eisenstein: a construção do pensamento por imagens

por Ismail Xavier

Resumo

O trabalho de Eisenstein está profundamente associado ao princípio da montagem como justaposição de elementos que se mantêm separados, claramente visíveis embora integrados na composição. Justaposição, descontinuidade, fragmentação do espaço-tempo, tomadas em oposição ao encadeamento linear e ao princípio de continuidade, são marcas que aproximam futurismo, cubismo, construtivismo e outras propostas do início do século.

Eisenstein trouxe da sua experiência de diretor teatral sua teoria da montagem. Como encenador do Proletkult, expõe uma concepção de espetáculo afinada ao espírito da Revolução tomando como referência as formas já vigentes no espetáculo de variedades, no show de cabaré, no music-hall e no cinema burlesco.

A incorporação do velho no novo, a ideia de mobilizar o melhor da tradição pictórica, teatral, literária para a condução da cultura a novo patamar é o traço eisensteiniano por excelência.

Em seu texto “Uma aproximação dialética à forma cinematográfica”, também conhecido como “A dramaturgia do filme”, ele tenta conciliar um vocabulário inspirado na dialética marxista com a chave tecnofuncional advinda da militância construtivista que garante uma atenção especial à película cinematográfica, à sucessão de fotogramas, ao corte e emenda de fragmentos como operação central.

Eisenstein reconhece que o essencial no cinema estaria no que se passa entre os planos e na sua interação. Vertov, criador da elaborada “teoria do intervalo”, entende que o movimento cinematográfico por excelência está na passagem, neste salto que, pela montagem, cobre a distância — temporal, espacial, plástica, temática — entre duas 
imagens e gera sentido.

Porém, os dois cineastas divergem num ponto central; Vertov, mais construtivista, trabalha os documentos de seu tempo, suas imagens são contaminadas pelo presente. Eisenstein, não limitado pela atualidade,  inclui em seu imaginário um elenco mais heterogêneo de materiais e objetos que, inseridos na encenação que a montagem reordena, entram em novas relações sem se liberar de uma carga simbólica que a própria história acumulou e que nos remete a outras épocas outras formas de vida social.

De modo geral, pode-se dizer que o movimento de Eisenstein é de conciliar uma visão da história em sintonia com a reconstrução social e um experimentalismo moderno.

O estilo de Eisenstein, a par da afinidade com Walter Benjamin, entre outros, no privilégio à citação, não se desdobra numa prática radical da colagem, justaposição de aforismos. É, uma pedagogia que requer argumentação, espírito de sistema. Se há uma fragmentação como princípio construtivo, permanece com toda a força a procura de uma síntese.


O PRINCÍPIO DA MONTAGEM: DO TEATRO AO CINEMA

Mesmo quem está pouco familiarizado com o trabalho de Eisenstein já aprendeu a associar o seu nome ao princípio da montagem e a encará-lo como figura ímpar no elenco dos cineastas voltados para a teoria. É, sem dúvida, notável o seu trajeto entre 1923 e 1948, resumo de toda uma fase da problemática da representação no cinema. As noções que criou se redefinem ao longo de uma obra imensa, em parte ainda desconhecida, estação obrigatória dos balanços críticos e das revisões teóricas, tal como atestaram os escritos de André Bazin (anos 40), Christian Metz (anos 60) e Gilles Deleuze (anos 80).

Em termos da inserção do artista no seu tempo, a posição de Eisenstein se afigurou, desde o início, estratégica — em tudo associada ao que se definia nos anos 20-30 como traço por excelência do moderno. Fazia cinema, esta arte celebrada por todos como filha do tempo e da máquina. Apresentava-se no cenário internacional como o realizador do filme-impacto, O encouraçado Potemkin (1926), e como porta-voz do novo — a Revolução de 17. Ponto decisivo, conduzia uma prática em que, efetivamente, a montagem — como justaposição de elementos que se mantêm separados, claramente visíveis embora integrados na composição — era um procedimento central. Estes são traços que definiram o seu prestígio, feito da conjugação entre a força das imagens que produziu e o papel que assumiu na consolidação da nova arte: era alguém capaz de explicá-la, enunciar os seus princípios construtivos.

Na mesma época, Jean Epstein, na França, e outros estetas em diferentes países deram ênfase à montagem no cinema, em consonância com suas observações sobre os princípios formadores da poesia ou das artes plásticas no mundo moderno. Justaposição, descontinuidade, fragmentação do espaço-tempo, tomadas em oposição ao encadeamento linear e ao princípio de continuidade, são marcas que aproximam futurismo, cubismo, construtivismo e outras propostas do início do século em sua resposta ao mundo técnico das invenções, aos desafios da vida “simultaneísta” da cidade. Mas foi sem dúvida a tradição do cineasta-teórico Lev Kulechov, seus discípulos e principalmente seu maior dissidente, Eisenstein, que adensou a teoria do cinema nos anos 20 e ofereceu a poetas, pintores e modernistas em geral os instrumentos para consolidar a posição do cinema como emblema do princípio da montagem e como baliza para aferição de estilos modernos. Sabemos, no entanto, que a teoria da montagem em Eisenstein se construiu a partir de sua prática de diretor teatral, encenador do Proletkult, quando expõe a concepção de espetáculo que considera afinada ao espírito da Revolução. Tal emergência da questão da montagem, em 1923, na proposta de cenógrafo e encenador confirma um movimento pelo qual aspectos centrais das estéticas da modernidade se formularam dentro do conflito de poéticas na esfera das artes plásticas, do teatro e da literatura, somente depois se desdobrando em uma teoria do cinema. Este novo espetáculo, tal como outras formas da cultura popular urbana, sinalizou uma nova sensibilidade, um novo ritual cotidiano mediado pela técnica, um modelo de experiência visual e formas capazes de inspirar o artista erudito sem, no entanto, constituir em seu próprio terreno a reflexão estética capaz de inaugurar uma teoria da montagem com as implicações hoje conhecidas. Eisenstein, na busca de um estilo teatral à altura dos novos tempos, tomou como referência as formas já vigentes no espetáculo de variedades, no show de cabaré, no music-hall e no cinema burlesco, este cinema do início do século empenhado na exibição dos efeitos da nova técnica, ousado no ritmo, nos truques e na agitação física.[1]

O manifesto “Montagem de atrações” (1923), escrito a partir da encenação de uma peça de Ostrovski, é a matriz de sua primeira teoria da montagem. Seu mote é a recusa do teatro psicológico, da mise-en-scène apoiada na continuidade de ação. Eisenstein quer um espetáculo que se aproxime do circo, na sucessão descontínua e na “fisicalidade” das atrações, que retire a palavra do centro e nivele o texto com outras linguagens que se impõem pela agressividade da montagem feita de precisão, geometria, corpo humano em constante movimento. Na sua proposta, afinada com outras experiências de minimização do texto na performance teatral, a palavra se põe como estímulo de mesmo valor que outros originados na cenografia, nos objetos, na gestualidade dos atores e ginastas, nos sons e nas luzes, num conjunto de equivalências em que a cor de uma camisa dialoga de forma ostensiva com uma frase, um gesto de acrobacia traduz uma emoção, um dispositivo mecânico impõe uma cadência logo suplantada por qualquer outro princípio motor que passa a conduzir a cena. O teatro de atrações de Eisenstein tem um lado agit-prop, é pedagogia militante que procura um controle de seus efeitos (o espectador deve caminhar na direção ideológica desejada); quer, no entanto, alcançar eficiência e sentido claro a partir de uma experiência estética que confia em certa afinidade entre seu tear agressivamente moderno e a estrutura psíquica da platéia. Para falar de tal estrutura, há, no entanto, somente a citação sumária de Pavlov, e a evocação dos reflexos condicionados não chega a fazer de sua teoria da recepção um ponto forte do manifesto. Deste, o ponto de interesse é a exposição do programa do artista, sua opção pela experiência do teatro popular contra o que considera teatro burguês, seu primado do gesto estilizado como peça de um discurso em que corpo humano e objetos da cultura material de um tempo se igualam como atrações, unidades do espetáculo. A ordem de sucessão das atrações é a chave da leitura, mas a tônica da montagem é realçá-las todas, marcar a descontinuidade que as separa, bem como a qualidade sensorial responsável por seu impacto.[2]

Esta proposta apresenta, na forma provocativa e sumária do manifesto, a concepção da prática artística como uma espécie de engenharia social. Os materiais se expõem com clareza, e a montagem se pauta pela idéia de ajuste de peças, eficiência, controle. Na produção do espetáculo, é a luta da operação formativa do artista contra a inércia dos materiais; na recepção do espetáculo, é a avalanche de estímulos trabalhando o psiquismo do espectador “como um arado”.

A inspiração construtivista deixa aqui a sua marca, o que não surpreende, dada a importância desta tendência no contexto soviético dos anos 20, enquanto desdobramento da vanguarda num país marcado pela aposta radical no avanço técnico como alavanca para a construção de uma nova ordem social. Tal inspiração tende a permanecer nas versões subsequentes da teoria da montagem, quando Eisenstein passa ao cinema, pois esta tônica de precisão e controle na transformação técnica de um material ganha um contorno mais definido na montagem cinematográfica. A demanda pela “fisicalidade” e pela mobilização direta dos objetas encontra na nova arte um arranjo que ele considera mais ajustado entre ator e locações reais (a imagem impressa na película homogeneíza os elementos da mise-en-scène numa composição plástica única). No cinema, a montagem chega ao paroxismo de seus poderes, pois a imagem “captada” — já segundo ângulo, luz e escala calculados — é matéria-prima mais ajustada para o trabalho de transformação. Nestes termos, a passagem do teatro ao cinema é vista como sinal de progresso.[3]

Nova técnica, nova arte, novos métodos. Avançar sempre.

No momento de sua estréia no cinema, Eisenstein abraça tal teleologia. Encara seu novo métier como algo que teria vindo para coroar uma evolução, apoiado na máquina e nas linhas de força centrais da modernidade e do socialismo. Nos anos 30, ele vai negar tal posição, mas não é preciso esperar até lá para observar a diferença entre as suas idéias e a dos intelectuais e artistas que, a partir da deflagração futurista, transplantaram para a esfera da cultura uma noção de progresso que exigia a redução do passado a tábula rasa. Dentro do clima de debates acirrados dos anos 20, o realizador de Outubro trocou farpas com figuras de destaque na vanguarda do seu meio, seja com Maiakovski ou com o ideólogo do construtivismo Aleksei Gan. E sua polêmica com um construtivismo radical teve sua versão mais sistemática no confronto com Dziga Vertov.

Nesta frente do debate, um dos polos centrais de atrito foi exatamente o estatuto do teatro. Vertov o assume como uma espécie de encarnação dos males e das mentiras da cultura burguesa, forma decadente de espetáculo que resume as questões sociais ao triângulo amoroso e ao escândalo do adultério, instância de convenções desgastadas que é preciso abolir na construção do novo mundo.[4] Vertov tinha aqui como referência o teatro naturalista e, mais do que tudo, o estigma do melodrama cujo código moral se construía a partir da encenação de dramas domésticos e mazelas da vida privada encenadas como que numa estufa, desligados das articulações sociais e da esfera do trabalho. Eisenstein, no seu primeiro manifesto, já deixa claro que seu problema não é o teatro popular per se. Ao contrário, assume a tradição de visualidade e atrações fortes deste teatro, sabe que o espetáculo, enquanto “diz” sua mensagem, se dirige à sensualidade do espectador, tem um poder de sedução e de impacto que depende do trabalho sobre as emoções advindo de sua “fisicalidade”. O que o autor de Outubro procura, neste particular, é uma proposta de ação sobre o pensamento que se apóie também no aspecto sensório do espetáculo, uma vez que nunca tentou desligar a idéia de “passar conceitos” daquela força das emoções provocadas num espectador que adere ao que vê, se identifica a ponto de “sair de si mesmo” na reação ao que de injusto se desenha na ação ficcional organizada pela montagem.[5] As lutas corporais entre operários e repressão em A greve, a constelação de atrações na sequência da escadaria de Odessa em Potemkin, a sequência da procissão e a da chegada da desnatadeira para os camponeses de O velho e o novo são exemplos de sua estratégia apoiada na emoção. Ele não recusa os recursos de dramatização e manipulação dos sentimentos que a cultura burguesa a partir do século XVIII colocou à disposição do espetáculo dirigido a um público plebeu, se não operário (a partir do século XIX). Sua diferença está no grau de formalização do processo, na maneira como articula uma cultura visual clássica, geometrizante, com os dispositivos do teatro moderno pós Diderot. Sua concepção do tableau vem do teatro burguês, mas, original, busca uma nova conexão entre imagem e conceito. Em suma, sua tônica é a incorporação das experiências do teatro e a elaboração de uma teoria do espetáculo que procura a ponte entre o velho e o novo, a passagem da tradição burguesa para uma cultura democrática compatível com a sociedade a construir.

A incorporação do velho no novo, a idéia de mobilizar o melhor da tradição pictórica, teatral, literária para a condução da cultura a novo patamar é o traço eisensteiniano por excelência, define a peculiaridade da sua intervenção no debate cultural e político. Seu esforço foi sempre o de compatibilizar suas experiências, impulsionadas por um modernismo em diálogo com a tradição, e uma demanda social e política que aceitou tanto quanto o fizeram figuras como Meyerhold, Maiakovski, Vertov e Tretiakov, entre outros. Seu gesto e o de seus interlocutores, como bem explicou François Albera, não se fez enquanto resposta direta aos homens do poder na União Soviética de 20, mas enquanto adesão a um “comando social” que não se confunde com os organismos do Estado ou instituições formais. Naquele momento, a tônica da experimentação na arte é suposta em sintonia com as tarefas da reconstrução social, criação de um novo “modo de vida” e de percepção do mundo. Ao lado da demanda de utilidade social, o debate dos intelectuais russos naquele momento requer uma independência em face do Partido e da burocracia que ficou, a partir de 1929-30, cada vez mais difícil até o fechamento stalinista e o dogma do realismo socialista a partir de 1934.[6]

Embora sempre em atrito, o pensamento de Eisenstein e o de Vertov convergiram na defesa da experimentação e na busca de um cinema militante cuja pedagogia procurava se apoiar numa linguagem distante do cinema clássico americano — preferido pelas lides do poder — e do que se consolidou como cinema heróico de propaganda nos anos 30. A construção do novo mundo tomou rumos que tornaram tanto um quanto outro cineasta figuras dissidentes, artistas vigiados que encontraram o destino comum de repressão pelo stalinismo quando a proclamação de uma estética oficial eliminou o debate em que se empenharam por toda uma década. Um estranhado pelo regime porque, membro da nova esquerda”, coletivista demais; outro olhado com desconfianca porque intelectual hermético, individualista demais, cioso da erudição, em descompasso com um clima ideológico de adesão ao mundo da máquina e da ordem burocrática como panacéia.

O ESTILO EISENSTEIN: O PROJETO CONSTRUTIVO INCORPORA A TRADIÇÃO

O construtivismo e sua figura central no cinema, Dziga Vertov, permanecem aqui como baliza que ajuda a esclarecer a posição peculiar de Eisenstein no contexto das vanguardas russas. A formação deste jovem desenhista e cenógrafo se fez dentro de um contexto onde, em torno de 1920, soavam forte nomes como Vladimir Tatlin, Naum Gabo, Alexander Rodchenko e Vladimir Maiakovski, onde artistas como Stepanova e Popova criavam cenários para peças de Meyerhold, antes que Eisenstein o fizesse, e onde havia uma tendência dos construtivistas a canalizar seu trabalho para a cenografia dos espetáculos: o terreno da arquitetura apresentava resistências, tensões entre sua utopia industrialista e as condições concretas de trabalho, limites impostos pela força política de seus opositores. O teatro e as artes gráficas se tornam os campos maiores da fatura construtivista, seja pelos cenários, seja pela confecção de livros e cartazes (lembrar a prática poética de Maiakovski, as fotomontagens de Rodchenko). Por outro lado, a atenção ao ambiente e às condições da vida cotidiana favorece o entendimento da arte como design, construção de objetos socialmente úteis que deve dissolver a concepção burguesa do mundo estético como esfera autônoma da cultura, abolir a instituição-arte e seu mito do artista-gênio-demiurgo. Emerge o artista-operário ou o artista-engenheiro, agentes de uma arte que quer se inserir na atividade produtiva, e o encenador ou cineasta-pedagogo, embora não possa se atribuir função prática dentro da produção material, procura ser objetivo, um engenheiro de almas. O manifesto de Eisenstein comentado acima traduz muito bem este clima e situa, de início, seu pensamento e sua prática dentro deste paradigma da arte como produção.

A atenção especial aos objetos e à matéria específica de cada arte predomina quando Eisenstein elabora sua teoria do cinema. Seu texto mais importante dos anos 20 — “Uma aproximação dialética à forma cinematográfica”(1929), também conhecido como “A dramaturgia do filme” —
deixa clara a tentativa de conciliar um vocabulário inspirado na dialética marxista com esta chave tecnofuncional advinda da militância construtivista. Tal chave garante uma atenção especial à película cinematográfica, à sucessão de fotogramas, ao corte e emenda de fragmentos como operação central. E desta atenção deriva um movimento dedutivo que sabe extrair um saber das constatações mais elementares: o fato de duas imagens não se fundirem uma na outra, tal como o fazem as cores do pintor ou as notas de um acorde musical, faz do cinema a produção de um todo que mantém visíveis suas partes, que se revela a seu espectador desde sempre como montagem do que não se dissolve. Se o pintor ou qualquer artista, seja qual for o seu suporte, trabalha segundo um princípio de montagem, arranjo das partes, o cinema torna tal princípio mais visível, ressalta a importância deste hiato entre os elementos dados a ver, levando a questão da montagem a uma nova qualidade. Não específico ao cinema, o princípio da montagem nele se adensa, permitindo inclusive uma visão retrospectiva das artes a partir deste ponto de vista, tarefa a que Eisenstein vai se entregar nos textos escritos nos anos 30-40, uma vez que seu esforço maior na fase madura foi consolidar a ponte entre o cinema e a tradição, menos preocupado com o específico e mais atento ao que une cinema, teatro, pintura e literatura.

Em 1929, o impulso pedagógico e as exigências do debate concentram o empenho na construção do edifício teórico específico, no processo dedutivo, sem maior ênfase ao papel da tradição na cultura visual do cineasta. A teoria da montagem ganha força como aplicação de um principio geral de conflito entre Indústria e Natureza ou entre a atividade formadora do artista e a inércia dos materiais. Conflito que a matéria do cinema radicaliza porque a montagem encontra resistência ao manipular as imagens “captadas”, a matéria-prima do filme. O grau de resistência é variado conforme a estrutura de cada plano, não havendo de qualquer forma a flexibilidade própria aos materiais de outras artes. Resta o desafio, e cabe ao cineasta criar métodos de justaposição que viabilizem os efeitos que deseja. Não surpreende que a vontade de sistema de Eisenstein se canalize, no período 1928-30, para a reflexão sobre os métodos de montagem, tendo no horizonte o acoplamento de imagens capaz de produzir conceitos.

Neste ponto do trajeto, sua moldura dialética guarda os limites de época e meio; apoia-se no eixo Engels—Lenin e obras de divulgação publicadas na Rússia, ficando marcada pelo uso excessivo, pouco específico, da idéia de “conflito” que acaba por recobrir todas as formas de copresença de dois ou mais elementos visuais de uma composição, fazendo-se valer em toda e qualquer relação produtora de significados. O seu argumento essencial é que estes não se constituem antes de haver multiplicidade e sobreposição de estímulos particulares cuja interação “conflitiva” produz um efeito de sentido. Assim, a intuição do essencial nunca pode ser instantânea, produto da relação imediata do espectador com um dado singular, mas resulta da acumulação produtora de uma resultante — do que se dá de forma descontínua, como partes exteriores uma à outra de um conjunto discreto. Isto vale para uma emoção: a reação de um ser humano não se expressa na sua imagem continua na tela, mas na montagem dos fragmentos que dão conta de detalhes diversos de sua fisionomia e gestos, numa acumulação rápida de imagens cujo ritmo “diz” a emoção e seu sentido. Um fato social de grande envergadura não se representa na continuidade de seu desenrolar apoiado num fluxo único de ação; sua essência ganha expressão gráfica na justaposição de episódios simultâneos, flashes de experiências particulares diversas, porém conectadas, que a montagem ordena e sintetiza, construindo uma opinião sobre o fato.

Em tudo, Eisenstein quer encontrar o “terceiro elemento” síntese abstrata, conceito — que resulta da sobreposição de duas figuras dadas aos sentidos. Nos textos dos anos 20, a referência ao ideograma serve como demonstração do potencial que teria a sobreposição de imagens para a formação de conceitos. A forma como Eisenstein lê os ideogramas não está isenta de polêmica e, mais tarde no texto “Montagem 1938”, Eisenstein vai reformular a idéia já sem referência à escrita chinesa, apoiando-se mais diretamente em sua experiência de cineasta: a produção de sentido se dá como resultado de uma coleção de representações (ou figuras) que, na acumulação, formam a Imagem-Conceito. Não se trata mais da postulação do “terceiro elemento” conceitual a partir do conflito de duas representações sensíveis; agora se trata de uma série de n figuras que produzem o elemento n + 1: o conceito. Assim, será a série de imagens de estatuetas e máscaras de divindades de culturas distintas que servirá de apoio para a deconstrução da idéia do Deus único, criação pela montagem de um vazio destinado a desqualificar o valor invocado pelo general Kornilov quando põe o exército em marcha em nome de Deus e da Pátria (a noção de Pátria também sofre uma deconstrução a partir da justaposição de uma série de medalhas, fardas engalanadas, emblemas militares). Do mesmo modo, a sequência do massacre na ponte de Petersburgo — tal como já havia acontecido na escadaria de Odessa — se compõe como justaposição de uma constelação de experiências, cenas que trazem dramas localizados, tensões paralelas em torno da fenda que se abre com a abertura da ponte para separar os bairros operários do centro: a idéia de ruptura do processo, a fenda na marcha da Revolução se representa aqui como noção que resulta de n atrações sensíveis. No final de Outubro, a idéia de que a vitória bolchevique é fato universal, o conceito da Revolução como telos da humanidade se produz no filme a partir da apresentação de uma coleção de relógios que marcam a hora em diferentes capitais do mundo.

As opções que Eisenstein põe em prática definem o enorme potencial das soluções plásticas do cinema, mas ele não retira de pauta a questão da “resistência do plano”, terreno no qual sua polêmica com Vertov se acirra. Para ele, o documentarismo do autor de Cine-Olho, embora garanta a presença na tela de fragmentos extraídos da atualidade, trabalha sobre um material pouco elaborado, instantâneos afinados a uma visão “impressionista” que nem sempre se ajustam ao cinema conceitual desejado. A par da correção ou não desta estocada contra Vertov  lance da polêmica, mais do que observação rigorosa — o relevante aqui é observar a defesa que Eisenstein faz do cinema ficcional como parte de sua postura de designer. A reconstrução que origina a imagem torna indispensável o trabalho metódico da mise-en-scène: a encenação é a estratégia de composição rigorosa dos fragmentos e o ator está lá para compor, graficamente, a máscara capaz de interagir com os outros elementos; deve construir um tipo que é ideia geral, resulta de uma conceituação. Ao contrário do que diz a teoria dominante na época, o poder analítico da imagem cinematográfica, notadamente o do primeiro plano de um rosto, não advém, para ele, da expressividade natural, da verdade espontânea de uma fisionomia, mas da composição mediada pela ideia. Vale, portanto, o artifício, o rosto-artefato, pois em tudo a imagem do cinema deve afirmar o seu aspecto gráfico, transformando seu corpo em linguagem (em Ivã, o Terrível nos anos 40, a máscara composta no rosto de Tcherkassov chega à condição de emblema).

De que valeria a autenticidade de um plano segundo a natureza ou a atualidade social se a prerrogativa da montagem é criar o fato inexistente na tela? O essencial no cinema estaria no que se passa entre os planos e na sua interação, como reconhecem Eisenstein e o próprio Vertov, criador da elaborada “teoria do intervalo”. Esta entende que o movimento cinematográfico por excelência não está na imagem contínua obtida num registro de câmara, mas na passagem, neste salto que, pela montagem, cobre a distância — temporal, espacial, plástica, temática — entre duas
imagens e gera sentido. Concordes quanto à importância do intervalo, os dois cineastas convergem num ponto central: a defesa de um cinema da descontinuidade, feito de justaposições aptas a afirmar um sentido que transcende o teor das imagens. O essencial é destacar um princípio de organização que ajusta os fragmentos do mundo visível, retirados do espaço e do tempo, para que eles se tornem peças de um discurso, elos de uma sequência lógico-dedutiva, sobreposições cuja leitura em verdade exige mediações e que se põem, para o espectador atento, como alegoria a decifrar. Se há, portanto, a reconhecida grafia eisensteiniana das atrações em que sobreposições ou sucessões rápidas geram o senso da leitura do hieróglifo, o desafio não é menor no caso de Vertov cuja montagem é clara instância de cinema intelectual, malgré Eisenstein, como evidencia O homem com a câmara (1929). Paradigma do metacinema, manifesto construtivista que não deixa de lado nenhum dos tópicos caros ao movimento, este filme sobre o próprio cinema coloca em prática, já em 1929, o que na obra de Eisenstein são anotações, esboços de um cinema expositor de conceitos.[7]

Nem sempre é fácil encontrar o princípio de unidade que governa certas sequências de Vertov, e seu conflito com o autor de Outubro, longe de opor clareza documental e linguagem figurada, opõe dois cinemas da opacidade embora distintos na matéria-prima da montagem: Vertov, mais construtivista, trabalha os documentos de seu tempo; as imagens que recorta trazem a contaminação pelo presente, e a função da montagem é evidenciar um certo sistema dos objetos, um certo estágio da produção material e das relações sociais de trabalho. Não limitado pela atualidade, Eisenstein inclui em seu imaginário um elenco mais heterogêneo de materiais e objetos que, inseridos na encenação que a montagem reordena, entram em novas relações mas sem se despir totalmente de uma carga simbólica que a própria história acumulou e que nos remete a outras épocas outras formas de vida social. Estas formas incluem outros regimes de leitura da configuração material do mundo, e Eisenstein não deixa de se interessar pela lógica que preside tais leituras, principalmente quando as ligações entre arte, religião e poder se cristalizam num objeto particular. Sua montagem se detém — diriam seus adversários: “se deleita” — em coleções de objetos comprometidos com outra ordem de valores numa interpretação do passado e de processos históricos que, dado o zelo bolchevique, sempre gerou polêmica. Sua forma de incorporar a história depositada nos objetos e lhes sobredeterminar — para além da questão da utilidade no circuito da produção social — é às vezes entendida como concessão a ressonâncias metafísicas. De um lado, os construtivistas, com sua ênfase para o mundo das máquinas e do trabalho produtivo, têm restrições ao vocabulário de Eisenstein e seus “resíduos simbolistas” no trato dos objetos e da arquitetura; de outro, um corpo burocrático mais preso aos dogmas do Partido, se irrita com o hermetismo das justaposições, principalmente de Outubro, julgando a montagem dispersiva, descentrada, em sua inquirição dos detalhes de um mundo morto e derrotado, sem ir direto aos capítulos da lição para as massas. Nos anos 20, colocou-se em pauta a relação de Eisenstein com a tradição simbolista russa do século XIX, dado que permaneceu à sombra na fortuna crítica e volta agora ao debate.[8]

FRAGMENTO E UNIDADE: AS TENSÕES DO ESTILO EISENSTEIN

Outubro gerou a discussão sobre o simbolismo em Eisenstein. Sua atenção ao patrimônio cultural do antigo regime trouxe para o centro da mise-en-scène as coleções de objetos e a arquitetura do palácio do Inverno, bem como a cidade de Petersburgo, retirando da ação humana seus privilégios na tessitura do drama. Minimizados os heróis, a representação dos episódios que resultaram na vitória bolchevique envolveu esboços de “montagem intellectual”, este pensar por imagens que justapõe figuras e, na sucessão, termina por produzir a Imagem-Conceito. Em Outubro, tal procedimento se faz presente num conjunto bem diferenciado de situações.

A par das coleções de objetos e dos feixes de atrações que constroem o conceito ajustado às situações já aqui referidas, o cineasta trabalha com a animação de estátuas ou monumentos. Na abertura do filme, a estátua do tzar parece simbolizar o regime, o que faz da técnica de animação que provoca seu desmembramento e queda a figuração, por imagens, de um fato histórico: a Revolução de fevereiro que instalou o governo provisório. Aqui, a leitura alegórica parece simples demais e destoante em comparação com as sequências em que a montagem deixa de expor uma ação dramática num certo espaço e tempo para encadear um raciocínio abstrato. E a questão do esquematismo e da pedagogia aflora toda vez que o leitor, habituado à interpretação que o próprio cineasta, em seus textos, apresentou de algumas destas seqüências de montagem intelectual, não vê nelas senão exemplos de um alegorismo já tradicional. Mas uma observação mais atenta do filme verifica que as direções de leitura são mais problemáticas. O princípio de unidade que é necessário supor para que tais coleções produzam a Imagem-Síntese postulada não é tão evidente e exige mediações, referências; mais particularmente, sua leitura depende do contexto narrativo em que se inserem: as imagens dos deuses, a animação em torno da estatueta de Napoleão, a coleção dos relógios, são todos feixes de imagens cuja leitura se apóia, a cada um dos episódios, na marcha dos eventos de 1917. Além disto, uma seqüência rebate na outra, adensando o jogo de relações internas, tal como demonstra o procedimento de animação da estátua do tzar.

Depois de acompanhar cerca de meia hora de filme, temos nova animação desta estátua, agora num movimento retroativo de recomposição. No início, havia a idéia de que estávamos diante da representação indireta de um fato: a animação da estátua evocaria uma queda efetiva do sistema de poder nela representado, e a justaposição de outras imagens enunciaria as condições deste “fato histórico”: as imagens de uma mobilização coletiva em torno da estátua funcionavam como explicitação do agente imediato da queda, ao lado de outras imagens que piscavam como flashes evocadores das forças sociais e da crise que estavam “por trás” da ruptura, causas mais estruturais (os fuzis do exército lembrando a questão da Primeira Guerra, as foices desfilando para lembrar a “questão agrária”). Quando vemos a nova animação no meio do filme, não podemos interpretar a recomposição como dizendo um “fato”, ou seja, o retorno efetivo do antigo regime; apenas se assinala aí o projeto restaurativo de Kornilov. Mas isto joga uma sombra sobre a primeira interpretação: afinal, entre uma animação e outra, o filme desenhou com lógica implacável a idéia de que a instalação do governo provisório foi uma revolução aparente, o que sugere a queda da estátua lá no início como caracterização daquela conjuntura como colapso do aparato exterior do regime, movimento tático de transformar os símbolos do poder em alvo maior da pressão das massas, adiamento de sua efetiva derrota. Esclarecer a lógica das imagens da abertura — o que afinal estes objetos animados “afirmam” — não é operação elementar. A primeira interpretação — queda efetiva de um esquema de dominação — se mostra ilusória, e a alegoria revela aspectos e determinações inesperadas que o desenvolvimento do filme evidencia. Tal como aqui, a discussão de outras seqüências pode ganhar desdobramentos, bastando nossa atenção se deter em outros detalhes da montagem e da mise-en-scène, como o fazem Ropars e Sorlin num debate que atesta bem a dificuldade em fechar o que os hiatos da montagem deixam em aberto.[9]

Ambíguos em suas sugestões quanto à natureza do fato representado, os objetos-símbolos, por outro lado, marcam uma presença que assinala o quanto está em pauta, em Outubro, o seu próprio estatuto no processo social. O discurso de Eisenstein traz os objetos a primeiro plano para acentuar, entre outras coisas, seu peso enquanto cristalização de ideologia, dado cuja relevância vai além da “ilustração” de processos: o universo das representações se mostra aí com toda a clareza como um aspecto da vida material, face visível dos conflitos de interesses e valores. A escolha de vocabulário em Eisenstein corresponde ao princípio de que as formas, os emblemas da cultura, trazem uma história acumulada. Há um movimento de sobredeterminação que se torna evidente quando olhamos de perto as constelações que ele mobiliza. O leque das atrações não compõe alegorias de fácil leitura, permanecendo as perguntas: por que a tensão da ruptura entre o cavalo e a charrete na abertura da ponte em Outubro? Na mesma sequência, que estatuto tem a imagem da moça e o deslizamento tão destacado de seus cabelos pela fenda? Lembrando Potemkin, como dar conta das razões de Eisenstein na escolha das atrações da escadaria de Odessa?

Na época, a resposta foi detectar “excessos” no agenciamento simbólico do cineasta, pois seu repertório não parecia compor um sistema, ficando difícil pensar-se o princípio unificador de tais séries tão decisivas na constituição dos conceitos. O cineasta não queria reduzir seu filme a uma alegoria tradicional em que a moral se exibiria com clareza no fim; em que, após o momento sedutor do enlevo ficcional que não deixa enigmas, nossa tarefa seria concluir, assimilar o sentido das ações. Fosse isto, a montagem, tal como no filme clássico, daria total privilégio ao mundo das ações em sua evolução aparentemente autônoma. Ou seja, estaríamos no terreno que nos lembra a dianóia, ou o pensamento implícito quando se conclui a moral sem desrespeitar a consistência interna das ações, tal como o autor da Poética solicitava da tragédia. Eisenstein, ao interromper o fluxo, monta os excursos que rasgam o espaço-tempo para decompor momentos-chaves em figuras geradoras da imagem-conceito, intervenção do narrador que o aproxima do discurso épico.[10]

A montagem descontínua, com suas ambiguidades, dá ensejo para que o leitor avesso a tais procedimentos observe a presença dos objetos como gratuita, um modo de acentuar formas e matéria inerte que sempre incomodou críticos como Bela Balazs ou mesmo gente próxima de Eisenstein como KuIechov. Há nestes críticos o temor da recomposição de uma “aura” dos objetos que trairia a vocação antropomórfica da arte. Neste momento, vale na esquerda a convicção de que é necessário combater esta aura no processo da crítica do fetichismo, da fantasmagoria que se acumulou na relação com aquilo que parece se dar como Natureza mas é resultado da produção social, da práxis enquanto elemento motor da história. O “escândalo” de Eisenstein seria falar em nome da dialética, abraçar a filosofia da práxis e montar um sistema de representação que caminharia em sentido contrário, figurando os processos numa forma “intelectualista” — como produto de uma lógica abstrata que as imagens justapostas tornariam sensível, dispensando as mediações fundamentais que se ligam às ações de heróis (houve até a irritação de um Maiakovski quanto ao lado “estatuário” da figura de Lenin no filme). O princípio de unidade de sua montagem não se colocaria como algo imanente à ação, mas se desenharia como dado transcendente, posto que figurável a partir de coleções de objetos não dotadas de organicidade. Afinal, as coleções de n elementos sempre admitem a presença de um elemento adicional e, se estão lá para conceituar uma situação história específica, esta se mostra passível de uma decomposição infinita, sempre admitindo novos detalhes ou aspectos, levando enfim aos excessos e à ausência de demarcação que complica as lições do cineasta. Fica evidente a oposição de Eisenstein ao esforço de minimização, funcionalidade, próprio à idéia do Todo que faz o construtivismo, e também sua agressão ao senso comum do poder instituído, uma vez que o teor enigmático das imagens, sem chegar ao limite da sugestão de um código subterrâneo, apresenta uma influência simbolista, esta mesma também sugerida quando ele fala em sinestesia nos textos sobre o teatro japonês e o ideograma, ou depois em textos dos anos 40, quando fala em sincronização dos sentidos.

Tais incursões demonstram o lado eclético do cineasta, sua tendência a incorporar diferentes referenciais, mas a moldura narrativa que preside os feixes de imagens e as coleções demarca muito bem o terreno das possíveis interpretações. Outubro se configura, desde o seu início, como tradução de uma teleologia da história, não só proclamada mas assumida no movimento mais amplo de sucessão dos episódios. É a natureza e posição destes no conjunto que define o campo da conceituação, e as formas variadas da própria figuração sugerem o quanto a montagem de Eisenstein assume estruturas que se adaptam a cada constelação temática colocada em pauta: não por acaso, os dois massacres têm estruturas semelhantes, não por acaso, as coleções alteram seu movimento rumo ao sentido conforme o momento (ora a coleção quer que um conceito se preencha, ora que ele se esvazie, como acontece com a idéia de Deus). As diferentes estratégias definem uma produção de conceitos balizada no terreno da história política, e não em instâncias ocultas aptas a celebrar uma metafísica dos objetos. Na configuração geral do filme, o horizonte de totalização faz com que este se deter em cada episódio não “esqueça” o teor de cada experiência enquanto etapa de um processo. Se o alegorismo, com a montagem descontínua, se torna mais aberto e complexo, se a pedagogia sai dos trilhos e como que “perde” para a experimentação, é evidente que tal multiplicidade de estratégias marca o desejo de quem está voltado para o exame, digamos assim, de novos processos de significação pela imagem. Interessado no funcionamento da linguagem do cinema, o professor às vezes como que muda de tópico, mas seu trajeto traz o desejo de equilíbrio entre fragmentação e totalização, montagem intelectual e narrativa, tal como propõem suas notas para filmar O capital, escritas entre 1929 e 1930. A montagem condensa, expõe coleções, justapõe, mas em cada instância de montagem intelectual age também o contexto narrativo — o ensaio tem pauta demarcada.

De modo geral, pode-se dizer que o movimento de Eisenstein é de conciliar uma visão da história em sintonia com a reconstrução social e um experimentalismo moderno cujos princípios construtivos nunca deixou de fundamentar: o que julgam formalismo é, para ele, expressão de uma atitude e de uma opinião frente ao fato que se figura na tela. E a montagem no cinema traduziria com rigor certos movimentos mais fundos do nosso psiquismo, não sendo, portanto, arbitrária. Em textos dos anos 30, o cineasta vai expor em diferentes instâncias esta afinidade entre psicologia profunda e montagem, buscando fundamentação em Vigotski ou na antropologia que lhe era acessível.

A par do rigor ou não de sua fundamentação, a ordem-das-imagens de Eisenstein marca um estilo inconfundível, feito destas misturas, movimentos opostos, excessos, coleções, decomposição infinita, digressão, incorporação de tudo. Seu princípio da montagem vale no fragmento, na parte, mas não se põe como princípio geral da totalidade. O que faz da sua teoria da montagem uma afirmação radical da possibilidade de uma síntese a partir de um todo que se organiza como série, conjunto de elementos discretos em que sempre n pode dar lugar a n + 1, em que a lógica das coleções, em princípio incompatível com a idéia de corpo orgânico, parece não questionar um resultado geral totalizante que supõe um sentido na história, um movimento teleológico. Estas tensões no trabalho de Eisenstein estão presentes em todos os níveis. Se a armadura conceitual que mobiliza está sujeita ao debate, não há quem não reconheça a força deste estilo de reflexão que avança por feixes de argumentações, atenção às simultaneidades, mas quer encadear e atingir um fim. Um estilo de reflexão que se impõe não só na sua arte mas também na sua escrita.

Na introdução ao texto “Montagem 1937”, Eisenstein antecipa possíveis restrições à sua forma de expor as idéias, argumentar.[11] Citações em excesso tornariam sua escrita menos fluente e inflada de referências dispensáveis. Ele oferece duas razões para tal abundância: a variedade das disciplinas teóricas em que se move e o caráter “montagístico” de seu estilo cinematográfico. Em seguida, arremata:O que poderia ser mais objetivo do que basicamente justapor as observações dos diferentes autores que não têm nenhuma ligação com a linha geral do meu argumento nem com o meu tópico central — a montagem? Tal como nos planos do cinema, em que procuro usar posições de câmara e iluminação que destaquem os elementos que trabalham na direção que desejo, aqui também, no texto, devo minimizar minhas incursões na natureza dos fenômenos que estão fora de minha alçada, preferindo, sempre que possível, deixar os especialistas falarem por si mesmos. Nestes casos, devo me limitar ao trabalho de edição. Em seu domínio, este método deveria tornar mais convincente o quadro geral traçado.[12]

Eisenstein define aqui com clareza a coerência de fundo que marca seu empenho nas várias dimensões do trabalho intelectual, coerência que o torna figura emblemática na afirmação do princípio da montagem que sabemos ser a “pedra de toque” da modernidade para as vanguardas do início do século. No entanto, o seu estilo, a par da afinidade com Walter Benjamin, entre outros, no privilégio à citação, não se desdobra numa prática radical da colagem, justaposição de aforismos. Envolve, ao contrário, uma pedagogia que requer a argumentação cerrada, um espírito de sistema, apesar das “digressões”. Se há, portanto, a fragmentação como princípio construtivo e o mergulho na vertigem da decomposição infinita; em contraposição, permanece com toda a força a procura de síntese.

Notas

[1] Tom Gunning se inspirou nas noções de Eisenstein ao definir um gênero específico de espetáculo que recobre as várias tendências da primeira década do século, época anterior ao desenvolvimento e consolidação do cinema narrativo-dramático: “cinema de atrações” deriva da fórmula eisensteiniana — montagem de atrações — e resume, de forma sugestiva, as experiências oferecidas pelos variados usos da nova técnica. Ver a coletânea Screen. Frame. Narrative, Thomas Elsaesser (org.), BFI, 1990.

[2] Para exemplos de atrações no espetáculo de Eisenstein, ver o texto “Montagem de atrações” e suas ilustrações na antologia A experiência do cinema, Rio de Janeiro, Graal, 1983

[3] Ver o texto que Eisenstein escreveu no momento de sua passagem ao cinema, quando abandona o teatro do Proletkult: “Les deux crânes d’Alexandre le Grand”, em Au-delà des étoiles, Paris, Union Générale d’Éditions, 1974.

[4] Neste particular, Vertov oferece uma versão socialista da mesma oposição ao teatro como convenção mentirosa presente nos teóricos do cinema de vanguarda francês da mesma época.

[5] Arlindo Machado, em seu livro de introdução a Eisenstein — Sergei M. Eisenstein: geometria do êxtase, São Paulo, Brasiliense, 1982 –, enfatiza bem este aspecto da concepção do espetáculo no cineasta; Jacques Aumont, em seu livro Montage Eisenstein, Paris, Al-batros, 1979, discute em profundidade a questão (ver parte v, cap. 2).

[6] Para a discussão deste problema nos tempos do debate mais aberto e do apogeu do construtivismo russo, ver Eisenstein et le construtivisme russe de François Albera, Lausanne, L’Age d’Homme, 1990.

[7] Annette Michelson analisou em vários textos — entre eles, “From the magician to the epistemologist”, Artforum, mar. 1972, e a sua introdução aos escritos de Vertov traduzidos para o inglês — a questão do cinema intelectual neste cineasta.

[8] Sobre Eisenstein e o simbolismo, ver “Eisenstein and Russian symbolism culture — an unknown script of October”, de Yuri Tsivian, no livro Eisenstein rediscovered, Ian Christie e Richard Taylor (orgs.), Londres, Routledge, 1993.

[9] Ver o debate interno ao livro Octobre: écriture et idéologie, de Pierre Sorlin e Marie Claire Ropars, Paris, Albatros, 1976.

[10] Annette Michelson, no texto “Câmara lúcida/câmara obscura”, Artforum, jan. 1973, caracteriza este estilo épico de Eisenstein e sua relação com o teatro de Brecht.

[11] Estou apoiado aqui na nova série publicada pelo British Film Institute, a partir de 1988, quando saiu o volume 1 dos escritos, Eisenstein: writings 1922-1934, trad. e org. Richard Taylor. “Montage 1937” pertence ao volume 2, Towards a theory of montage, Londres, BFI, 1991, trad. Michael Glenny, Richard Taylor e Michael Glenny (orgs.).

[12] Ibidem, pp. 6-7.

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