1992

As minas iluminadas: a ilustração e a Inconfidência

por Sergio Paulo Rouanet

Resumo

No tocante à Inconfidência Mineira são as ideias e não os fatos, sua substância viva. Mais precisamente as ideias do Iluminismo franco-americano.

Na Revolução Francesa pode-se buscar a influência das ideias iluministas em dois níveis: no nível da língua, em que os princípios da Ilustração tais como a autonomia e a universalidade da razão, o poder da educação para arrancar os homens da treva, a perfectibilidade do homem, a onipotência da política, e a fé na dignidade e liberdade do homem constituíam um código, no qual os revolucionários diziam o mundo e se diziam; e no nível da palavra, livre, onde certas facções iam buscar certos temas, deixando outros na sombra, enquanto outras facções estavam interessadas exatamente nos temas omitidos e silenciados por seus adversários. A Ilustração funcionava agora como um acervo semântico, e não mais como sintaxe.

Em que medida as ideias da Ilustração estão presentes nos textos da época da Inconfidência? O discurso inconfidente é estruturado no código linguístico da Ilustração, e, semanticamente, os inconfidentes recorriam a determinados tropos do estoque temático da Ilustração, para articular sua própria prática.

A língua ilustrada incluía entre suas figuras obrigatórias a razão e a natureza. No discurso Inconfidente, encontramos essas figuras em toda parte. Mas o grande tropos da língua iluminista é a batalha da luz contra as trevas. A metáfora da luz está presente, sem nenhuma exceção, em todos os vocábulos que designam o movimento enciclopedista: Ilustração, Iluminismo, Esclarecimento, Aufklärung, Lumières, Enlightenment. Encontramos essa mesma metáfora-síntese em todos os temas do discurso inconfidente: a fé e a esperança num mundo novo em que as trevas do colonialismo, do despotismo, da guerra, da escravidão e do privilégio seriam varridos pelos raios do sol. Porém, os inconfidentes foram bastante seletivos e escolheram, do acervo semântico da Ilustração, aqueles temas que fossem conciliáveis com sua prática.

Através de temas em comum como o anticolonialismo, o antidespotismo, o anticlericalismo, o antiescravagismo e o antimilitarismo pode-se distinguir os pontos de articulação semântica entre o discurso ilustrado e o discurso inconfidente.

A Ilustração foi um movimento essencialmente burguês, antiaristocrático em sua essência, baseado no princípio da igualdade de direitos de todos os homens. No entanto, não se pode dizer que a Ilustração tenha exaltado o povo. Na Inconfidência, com exceção de Joaquim José da Silva Xavier e de José Joaquim da Maia, os inconfidentes foram em geral proprietários e exprimiam interesses e preocupações de proprietários (e não do povo).

O pensamento inconfidente foi parte do pensamento ilustrado, e nesse sentido, apesar de todas as suas limitações sociais e políticas, parte do Iluminismo.


INTRODUÇÃO

A questão da interação entre ideias e práticas políticas costuma ser abordada de uma ou outra maneira conforme a perspectiva teórica dos debatedores: dependendo do ponto de vista, as ideias ou terão um papel determinante na história ou serão vistas como simples epifenômenos de práticas políticas e interesses econômicos.

No entanto, mesmo os materialistas duros e puros poderão sustentar a primeira posição, sem serem chamados de idealistas. Afinal, foi Marx quem disse que “as ideias se transformam em força material quando se apoderam das massas”. Em todo caso, pelo menos no que se refere ao século XVIII, negar a eficácia histórica das ideias seria comportar-se como aquele homem prático, de que fala Thackeray, que só acreditava em fatos e desprezava as ideias. Thackeray objetou amavelmente que num certo momento um filósofo chamado Rousseau escreveu um livro, o Contrato social, composto unicamente de ideias. Os homens práticos do seu tempo riram muito. A segunda edição desse livro foi encadernada com a pele dos que tinham rido da primeira edição.

No tocante à Inconfidência Mineira, de qualquer maneira, não há quem negue a influência das ideias. Para alguns autores, inclusive, elas foram tudo — os fatos é que foram marginais.

É a posição de Afonso Arinos. Para ele, do ponto de vista da justiça régia, os fatos não tinham existência penal. Tratava-se das visitas que alguns sujeitos se faziam, para conversar e jogar gamão. As conversas, coisa imaterial, é que tinham vida. Os autos da devassa só dão notícia de conversas. A devassa se fazia com o sentido de apurar delitos de intenções, crimes de ideias.

Foi o que disse o defensor José de Oliveira Fagundes: “Tudo não passava de um criminoso excesso de loquacidade e entretenimento de quiméricas ideias, que se desvaneciam logo que esses réus se separavam”. Os fatos são a matéria morta da Inconfidência, as ideias — as do Iluminismo franco-americano — sua substância viva.

Mesmo que se rejeite esse papel exclusivo atribuído às ideias durante a Inconfidência, podemos dar-lhes peso pelo menos igual ao de outros fatores. Como em Cecília Meirelles, no Romanceiro da Inconfidência:

Uns poucos de americanos

Por umas praias desertas

Já libertaram seu povo

Da prepotente Inglaterra

Washington, Jefferson, Franklin

Palpita a noite repleta

De fantasmas, de presságios

E as ideias.

Mas como fixar a presença dessas ideias? Podemos inferi-las e podemos tentar observá-las diretamente.

A inferência pode ser feita a partir do exame das bibliotecas dos inconfidentes: se eles possuíam obras dos autores franceses e americanos, podemos deduzir que as ideias correspondentes circulavam na capitania.

Há para isso uma fonte de informações insubstituível, os autos de sequestro dos bens dos conjurados. As bibliotecas de Cláudio Manuel da Costa, Alvarenga Peixoto, José de Rezende Costa e sobretudo do cônego Luís Vieira, o mais culto dos inconfidentes, estavam repletas de autores da Ilustração. Todas elas continham as obras de Voltaire. A biblioteca de Luís Vieira, com mais de oitocentos volumes, incluía, além disso, Montesquieu, Marmontel, Mably e até dois tomos do mais sulfuroso desses livros subversivos, a Encyclopédie.

Mas há limites para esse método. Com perdão da obviedade, ter livros não é a mesma coisa que lê-los. Além disso, nem todas as bibliotecas são tão sugestivas quanto as do cônego Luís Vieira. Por culpa da preguiça do meirinho que sequestrou os livros de Gonzaga, ficamos sem conhecer seus livros: o miserável, que os bons historiadores execrarão para sempre, diz apenas que o namorado de Marilia possuía 83 livros. E Cláudio? Quase só há livros de direito e dicionários.

Ora, sabe-se que seus interesses eram bem mais abrangentes, e ao que se diz teria sido inclusive tradutor e comentarista de Adam Smith. É altamente improvável que a lista oficial refletisse a realidade. Avisados de que a conspiração fracassara, os conjurados tiveram tempo para destruir as obras mais comprometedoras e muitos devem tê-lo feito efetivamente, como ocorreu no Brasil em 1964.

Por isso, a via da observação direta parece mais promissora: verificar em que medida as ideias da Ilustração estão presentes nos principais textos da época da Inconfidência.

Como proceder? Suponhamos que quiséssemos captar as influências do pensamento ilustrado sobre a Revolução Francesa.

Essa influência poderia ser buscada em dois registros: no nível da língua e no da palavra.

As ideias da Ilustração funcionaram como a grade intelectual dentro da qual os revolucionários viam e pensavam sua realidade. O mundo era percebido segundo categorias descritivas extraídas do direito natural e do empirismo, sobre um fundo normativo que incluía pressupostos subjacentes e não questionados, como a autonomia e a universalidade da razão, o poder da educação para arrancar os homens da treva, a perfectibilidade do homem, a onipotência da política, e a fé na dignidade e liberdade do homem.

Todos esses princípios e pressupostos constituíam uma língua, no sentido de Saussure, um código, no qual os revolucionários diziam o mundo e se diziam. Era uma epistéme, se se quiser, que os atores da Revolução não eram livres de não usar, porque ela era a condição de enunciabilidade da palavra revolucionária.

Mas se a língua era determinista, a palavra era livre. Sobre esse fundo comum, certas facções iam buscar certos temas, deixando outros na sombra, enquanto outras facções estavam interessadas exatamente nos temas omitidos e silenciados por seus adversários. A Ilustração funcionava agora como um acervo semântico, e não mais como sintaxe. Assim, uns iam buscar em Montesquieu sobretudo sua condenação da tirania, enquanto outros estavam mais interessados em sua teoria da separação dos poderes. Uns iam se abastecer em Voltaire de temas relativos aos direitos humanos, outros em temas relativos à campanha anti-religiosa. Uns procuravam em Rousseau sua teoria da educação e outros sua teoria da vontade geral.

Podemos dizer, assim, que havia uma dupla articulação entre o discurso ilustrado e o revolucionário: através do registro da língua — da sintaxe, se se preferir — universal e determinista, e através do registro da palavra — o estoque semântico — livre e seletivo.

Penso que poderíamos fazer algo de semelhante para estudar o vínculo da Ilustração, não com a Revolução Francesa, mas com a Inconfidência Mineira. É claro que o segundo estudo seria mais incerto e mais conjectural que o primeiro, porque o discurso revolucionário, correspondente a uma revolução que de fato ocorreu, admitia como fonte e citava expressamente o discurso ilustrado, o que obviamente não aconteceu no discurso inconfidente, correspondente a uma revolução abortada, e cujos protagonistas, sujeitos à censura régia, tinham de silenciar filiações explícitas a autores subversivos.

Não obstante, nada nos impede de cruzar o discurso ilustrado e o inconfidente, entendido este como o corpus dos textos e depoimentos dos conjurados, ainda que sem alusões ostensivas a autores da Ilustração.

Também aqui o cruzamento se daria em dois registros, o da língua e o da palavra. Por um lado, se trataria de mostrar que o discurso inconfidente era inteiramente estruturado no código linguístico da Ilustração, sem o que ele não seria inteligível para os contemporâneos. Por outro, seria preciso mostrar, no nível semântico, como os inconfidentes recorriam, seletivamente, a determina dos topoi do estoque temático da Ilustração, para articular sua própria prática.

Apresso-me a dizer que não tenho nem o tempo nem a competência para fazer sistematicamente essa demonstração, mas poderei indicar algumas linhas que me parecem promissoras.

A GRADE LINGUÍSTICA

A hipótese é que como todos os homens cultos da Europa, os intelectuais da Inconfidência articulavam sua expressão escrita através do que estou chamando a língua da Ilustração: conjunto de tropos, metáforas, certezas não problemáticas, evidências axiomáticas, que constituíam a grade epistêmica através da qual o mundo era percebido e verbalizado.

A língua ilustrada incluía entre suas figuras obrigatórias duas entidades onipresentes, a razão e a natureza. No discurso inconfidente, encontramos essas figuras em toda parte, desde o Tratado de direito natural, de Tomás Antônio Gonzaga, que sistematiza as leis que nos são “naturalmente intimadas por meio do discurso e da razão” até a poesia lírica. Um exemplo entre vários: numa das liras de Gonzaga, Dirceu reclama da indiferença de Marília, censurando-a por querer furtar-se à lei da natureza:

Todos amam: só Marília

Desta lei da Natureza


Queria ter isenção?

Mas o grande topos da língua iluminista é a batalha da luz contra as trevas. Metáfora de origem cristã, simbolizando a luta de Deus contra o demônio, de Cristo contra o anti-Cristo, ela se aplica depois à monarquia absoluta — Luís XIV como o Rei-Sol — e depois à luta contra o próprio absolutismo. A metáfora da luz está presente, sem nenhuma exceção, em todos os vocábulos que designam o movimento enciclopedista: Ilustração, Iluminismo, Esclarecimento, Aufklärung, Lumières, Enlightenment. De fato, a Ilustração queria iluminar o mundo, expulsar o poder ilegítimo do covil tenebroso em que ele se escondia, livrar o homem do préjugé, escuridão da inteligência, e para isso martelava incessantemente o grande simbolismo da luz e da treva. Para Holbach, por exemplo,

a superstição e a tirania invadiram o mundo, fazendo dele um cárcere tenebroso, cujo silêncio só é perturbado pelos clamores da mentira, ou pelos soluços que a opressão arranca dos cativos que aprisiona. Sempre vigilantes, essas duas fúrias impedem a luz de abrir passagem em sua morada escura.

E ainda:

Afasta pois, ó ser inteligente, a venda que cobre tuas pálpebras; abre teus olhos à luz; serve-te do archote que a natureza te apresenta.

É o grande simbolismo maçônico de Mozart, na Flauta mágica, o combate de Sarastro contra a Rainha da Noite: “Die Strahlen der Sonne vertreiben die Nacht”.

Em seu ensaio “Aspectos irracionais do Iluminismo”, publicado na Revista do Brasil (out. 1989), Nicolau Sevcenko estuda algumas ocorrências entre os inconfidentes desse simbolismo da luz.

Na linguagem arcádica, a luz é encarnada pela figura solar de Apolo e seu sacerdote, o poeta Orfeu, tendo como objeto uma Eurídice inacessível. Nas condições políticas do Brasil, o objeto de desejo é a mulher amada, e não diretamente a liberdade. É o que se verifica no soneto inicial de Cláudio Manuel da Costa, invocação da luz, através de Orfeu o trácio:

Para cantar de amor tenros cuidados


Tomo entre vós, ó montes, o instrumento;


Ouvi pois o meu fúnebre lamento;


Se é que de compaixão sois animados.

Já vós vistes, que aos ecos magoados


Do trácio Orfeu parava o mesmo vento;

Da lira de Anfião ao doce acento

Se viram os rochedos abalados.

Bem sei, que de outros gênios o Destino


Para cingir de Apolo a verde rama


Lhes influiu na lira estro dvino:

O canto, pois, que a minha voz derrama


Porque ao menos o entoa um peregrino


Se faz digno entre vós também de fama.

Mas o simbolismo da luz não se limita ao paganismo, ocorre também em poemas de inspiração cristã, como na cantara O pastor divino. É um verdadeiro chamamento à luz, ao advento do Sol. Num diálogo alegórico entre a Fé e a Esperança, diz a Fé:

Eu vejo que rompendo

Da noite o manto escuro

Vem cintilando a chama

Que sobre o mundo todo a luz derrama.

Ao que retruca a Esperança:

Eu vejo que do Oriente

A luminosa estrela

Que os passos encaminha

Quase a buscar a terra se avizinha.

O coro responde:

Chegai, pastores,


Vinde contentes;


Que o novo sol


Já resplandece.


Oh que glória, que dita, que gosto

Nestes campos se vê respirar!

Também em Gonzaga ocorre o topos:

Qual, Marília, a estrela d’alva,

Que a negra noite afugenta;


Qual o sol, que a névoa espalha

Apenas a terra aguenta;

Ou qual Íris, que o Céu limpa,

Quando se vê na tormenta:


Assim Marília, desterro


Triste ilusão, e demência


Faz de novo o teu ofício


A razão e a prudência.

Esse elemento da língua iluminista se atualizou sobretudo no discurso amoroso, dadas as condições específicas da Colônia e da Ilustração ibérica, mas podemos ver nessa figura da luz a metáfora-síntese que condensa todos os temas do discurso inconfidente, a fé e a esperança num mundo novo, em que as trevas do colonialismo, do despotismo, da guerra, da escravidão e do privilégio sejam varridos pelos raios do sol.

São esses exatamente os temas que veremos a seguir, e em que poderemos distinguir os pontos de articulação semântica entre o discurso ilustrado e o discurso inconfidente.

ANTICOLONIALISMO

O anticolonialismo foi um dos temas mais característicos da Ilustração. É conhecido o desprezo de Voltaire, no Candide, pelos “quelques arpents de nei-ge“, que os franceses tinham adquirido no Canadá. Montesquieu chama a conquista espanhola na América “la dévastation de l’Amérique“. Nas Cartas persas, diz que

desesperando de reter na fidelidade as nações vencidas, os espanhóis decidiram exterminá-las e enviar da Espanha os povos fiéis. Jamais projeto tão horrível foi mais pontualmente executado. Viu-se um povo tão numeroso quanto todos os da Europa desaparecer da terra com a chegada desses bárbaros.

Foi inteiramente dentro desse espírito anticolonialista das Luzes que toda a França pensante saudou a Guerra de Independência americana, que na verdade pode ser considerada a mais perfeita realização do ideal de emancipação dos povos, pregado pelas Luzes.

A idealização dos indígenas no Brasil já havia começado com poemas como Uraguai e Caramuru. Mas foi um texto exemplar do espírito inconfidente — as Cartas chilenas — que exprimiu a indignação ilustrada com o genocídio praticado contra os indígenas pelo colonizador:

[…] Estes campos

Estão cobertos de insepultos ossos

De inumeráveis homens que mataram.

Aqui os europeus se divertiam

Em andarem à caça dos gentios,

Como à caça de feras, pelos matos.

Havia tal que dava aos seus cachorros

Por diário sustento, humana carne,

Querendo desculpar tão grave culpa

Com dizer que os gentios, bem que tinham


A nossa semelhança quanto aos corpos,


Não eram como nós enquanto às almas.


Que muito, pois, que Deus levante o braço


E puna os descendentes de uns tiranos

Que sem razão alguma, por capricho,


Espalharam na terra tanto sangue!

Mas em geral o anticolonialismo inconfidente assumia a forma de uma crítica aos descendentes de portugueses nascidos no Brasil, combinada com a exaltação nativista. Característico, nessa linha, é o canto genetlíaco, de Alvarenga Peixoto, dedicado ao filho do governador Rodrigo de Menezes, e que todos os inconfidentes sabiam de cor:

O vosso sangue, que esta terra ensopa


Já produz frutos do melhor da Europa.

No repúdio ao colonialismo europeu, a influência americana foi decisiva. Os inconfidentes se nutriam de teorias francesas, mas o exemplo prático vinha dos americanos. A fascinação dos mineiros pelos Estados Unidos vinha de longe, como demonstram os contatos entre José Joaquim da Maia e Jefferson. José Álvares Maciel foi o grande divulgador no Brasil das constituições americanas. O livro francês que as coligia foi o grande best seller da época. Tiradentes andava com o livro a tiracolo e pedia a todos que o traduzissem. Isto aparece nos depoimentos da devassa. Os inquisidores queriam sempre saber era se era ou não verdade que fulano ou sicrano teria dito que o Brasil deveria sublevar-se, seguindo o exemplo da América inglesa, se era ou não verdade que o povo seria mais feliz se o país fosse independente etc. Certa vez, o visconde de Barbacena hospedou Maciel em sua casa e por duas vezes entrou no quarto do hóspede, sem aviso prévio: das duas vezes, o imprudente estava mergulhado na leitura das constituições americanas.

O maior libelo produzido pela Ilustração europeia contra o colonialismo foi a História filosófica das duas Índias, do abade Raynal. Considerando a qualidade discutível do livro (para os padrões de hoje), seu prestígio na Europa foi quase incompreensível. Entre 1770 e 1789, sucederam-se trinta edições autorizadas e quarenta piratas. Foi tão vendido quanto os maiores sucessos da época, Candide e a Nova Heloísa. Para Grimm, o amigo dos filósofos, desde o Espírito das leis nenhuma obra era mais digna de passar à posteridade mais remota.

Uma das coisas que fascinaram os europeus nesse livro, que hoje considerávamos retórico e desigual, foi justamente o anticolonialismo. Para ele, os europeus só se interessavam pela pilhagem e pelo assassinato, a pretexto de religião. “Chegastes ao país dos nativos para o espoliar. Vós vos aproximastes de sua cabana para expulsá-los dela, para embrutecê-los, para satisfazer vossa cupidez.” Raynal prega uma verdadeira guerra de libertação. Dirigindo-se aos nativos ele os exorta: “Tomai vossos machados, retesai vossos arcos, fazei chover flechas envenenadas sobre esses estrangeiros […] Quando eles se curvarem de modo suplicante e pérfido, feri o peito deles”. Ele é contra todos os colonizadores, inclusive os do país que ele mais admira, a Inglaterra, mas reserva todo seu ódio e seu desprezo para os portugueses, na Ásia e na América.

Ora, os conspiradores admiravam intensamente Raynal. Seu livro teria sido trazido para o Brasil pela primeira vez na bagagem de Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos. Os que não tinham em sua biblioteca a Viagem filosófica liam o livro emprestado.

Em seu depoimento na devassa, Francisco Antonio de Oliveira Lopes disse ter conversado com Domingos Vidal de Barbosa sobre “as grandes comodidades e riquezas deste país, referindo quanto ele seria delicioso se fora livre”. Numa dessas conversas, Vidal de Barbosa “lhe contou muitas coisas de que tratava um livro do abade Raynal, tanto assim que sabia de cor algumas passagens do mesmo livro”.

No interrogatório de Carlos Correia de Toledo e Melo, o depoente afirma que “havia um livro de um autor francês que estava nas mãos de um doutor da cidade de Mariana o qual no fim trazia o modo de se fazerem os levantes, o que era cortando a cabeça ao governador e fazendo uma fala ao povo […] e que esse livro tinha sido mandado queimar por sua Majestade”.

Menos fantasista é o depoimento de Francisco de Paula Freire de Andrade: segundo lhe haviam dito, “o abade Raynal tinha sido um escritor de grandes vistas, porque prognosticou o levantamento da América setentrional”.

ANTIDESPOTISMO

O horror ao despotismo foi o traço de união de todos os filósofos da Ilustração. Voltaire combateu a tirania religiosa e a exercida pelo aparelho judicial arcaico dos parlamentos. Montesquieu pregou o princípio da divisão de poderes com a finalidade principal de evitar a tirania, que resultaria da supremacia de um dos poderes, e foi o mais veemente crítico, em geral, do despotismo, forma de governo cujo princípio é o medo, em contraste com a república, cujo princípio é a virtude, e a aristocracia, cujo princípio é a honra. Helvetius e o barão Holbach declamaram contra o despotismo. Enfim, Rousseau foi além de todos os outros filósofos, que tinham mais horror pela tirania que entusiasmo pela soberania popular, advogando uma democracia radical, forma de governo que em seu princípio mesmo exclui a tirania, pois o povo soberano não ia querer um governo que o oprimisse.

Também esse grande tema da Ilustração encontrou guarida entre os inconfidentes.

Em seu Tratado de direito natural, Gonzaga diz coisas bem pensantes e mesmo um tanto absolutistas, o que não é de estranhar, pois a obra foi escrita em pleno período pombalino. Mas, se nega ao povo o direito de depor os governantes, não hesita em perfilhar a teoria do contrato social, com todas as suas implicações igualitárias e subversivas: “No estado natural, não podiam haver estas outras leis, pois a natureza, que a todos fez iguais, não deu a uns o poder de mandarem, nem pôs nos mais a obrigação de obedecerem”. Depois de aparentemente advogar o poder absoluto, ele explica que

para ser o poder absoluto, não se requer que ele esteja em uma só pessoa física, mas basta que esteja em um tribunal, contanto que este não tenha sujeição. É mais de advertir que também não é necessário o despotismo, pois este, como consiste na laxidão de fazer o soberano quanto quiser e não quanto é justo, repugna ao fim da sociedade e portanto não se deve admitir.

A lei precisa ser justa:

A lei deve ser honesta […] O segundo requisito é que não ofenda pública utilidade. As leis têm por fim o bem dos povos […] Mas para a lei não ser má, basta que seja útil à maior parte da sociedade, posto que a outra seja nociva.

Nas entrelinhas: um soberano que imponha leis injustas e que viole os interesses da maioria é um tirano, o que não “se deve admitir”, pois “repugna ao fim da sociedade”.

As Cartas chilenas são do princípio ao fim um longo libelo contra o tirano, personificado na figura do Fanfarrão Minésio.

Ele só consegue se impor pela violência. Ora,

[…] o respeito

Por meio das virtudes se consegue


E nelas se sustenta.

Nunca nasce


Do susto e do temor.

O Fanfarrão quer construir a ferro e fogo edifícios monumentais. Mas

[…] um soberbo edifício,

Levantado sobre ossos de inocentes,


Construído com lágrimas dos pobres,


Nunca serve de glória ao seu autor

E sim de opróbrio […]

A crítica da justiça administrada pelo Fanfarrão lembra Voltaire criticando os tribunais do Antigo Regime:

Pois todo esse direito se pretere,

No pelourinho a escada já se assenta,

Já se ligam dos réus os pés e os braços

Já pegam dois verdugos nos zorragues,


Já descarregam golpes desumanos,


Uns gritam que são livres, outros clamam


Que as sábias leis do rei os julgam brancos

Não afrouxam os braços dos verdugos,

Mas antes, com tais queixas, se duplica

A raiva nos tiranos […]

Em suma, o Fanfarrão despreza as leis do Reino e as da justiça. Não dá aos réus direito de defesa. Discrimina contra os pobres e humildes, a favor dos ricos e poderosos. Implanta o regime do trabalho forçado. Manda seus esbirros cobrarem do povo impostos atrasados. É em tudo, um tirano, cuja definição clássica é a do homem que substitui sua vontade à razão e à lei: sit pro ratione voluntas.

De que serve fazer-se o que as leis mandam,

Na terra que governa um bruto chefe,

Que não tem outra lei mais que a vontade?

ANTICLERICALISMO

Como se sabe, a cruzada anti-religiosa foi a grande bandeira da Ilustração. Ela teve duas vertentes, uma deísta, com Voltaire e Rousseau, que pregava a religião natural, sem templos e sem cultos, e outra materialista, com Holbach e Diderot, que negava a existência de Deus. Ambas tinham em comum a condenação da Igreja — écrasez l’infâme — e a denúncia do clero, cúmplice da tirania, instigador do fanatismo, pela mentira e pela manipulação.

A crítica à religião é mais sensível no levante da Bahia, de 1798, que na Inconfidência Mineira. Como nos informa Carlos Guilherme Mota, no caderno do revolucionário Luís Gonzaga das Virgens há um trecho de Volney sobre a religião natural: “A ideia da divindade não foi nunca uma revelação miraculosa de entes invisíveis, mas uma produção natural do entendimento”. Outro revoltos se irrita com “o catolicismo fanático dos portugueses”. Para outro, “isso de religião é peta, devemos todos ser iguais e livres de subordinação”.

Esse radicalismo anti-religioso era compreensível num movimento, como baiano, que se filiava explicitamente à Revolução Francesa. A Inconfidência precedeu a queda da Bastilha e tinha como modelo a Revolução Americana, que nada tinha de anti-religiosa. Por isso, na maioria das vezes, o anticatolicismo dos inconfidentes limitou-se a um anticlericalismo mais ou menos compatível com absolutismo esclarecido.

Foi o caso de Gonzaga, cujo Tratado de direito natural recusa qualquer privilégio ao clero, inclusive o fiscal: os padres não devem ser isentos de impostos. Gonzaga estabelece uma diferença entre a Igreja como corpo místico e como corpo político. No primeiro caso, ela é independente do soberano. No segundo, ela é “sujeita e dependente da vontade do soberano […] A fé e religião não se poderá ensinar publicamente e pregar em qualquer reino sem consentimento do soberano”. A Igreja não pode tampouco proibir livros que contêm heresias com “proibição externa, qual é de os mandar queimar, pôr penas pecuniárias a quem os vender, e outras semelhantes. Esta proibição externa é somente da jurisdição do soberano”.

Nas Cartas chilenas, o anticlericalismo assume em geral a forma velada de uma sátira individual a padres grotescos, corruptos ou tartufos, e não de uma crítica genérica ao clero como instituição. Vejam-se, por exemplo, os versos seguintes:

Montado em nédia mula vem um padre


Que tem de capelão as justas honras.


Labregão no feitio e meio idoso


Em olhos encovados, barba tesa


Fechadas sobrancelhas, rosto fusco

Cangalhas no nariz.

Ah quem dissera

Que num corpo, que tem de nabo a forma,


Haviam pôr os céus tão grande caco!

Aquele, Doroteu, que não é santo,

Mas quer fingir-se santo aos outros homens,

Pratica muito mais do que pratica

Quem segue os sãos caminhos da verdade.

Mal se põe nas igrejas, de joelhos,

Abre os braços em cruz, a terra beija,

Entorta seu pescoço, fecha os olhos,

Faz que chora, suspira, fere o peito

E executa outras muito macaquices,

Estando em parte onde o mundo as veja.

Na mesma linha, o autor satiriza um bispo que dispensa dos banhos a ex-amante do governador, para que ela possa casar-se às pressas.

Mas há um trecho mais interessante, em perfeita sintonia com um dos argumentos clássicos do arsenal anti-religioso da Ilustração europeia, o de que os padres estimulam o fanatismo dos simples, para que eles se tornem dóceis à dominação dos tiranos:

[…] aqui se encontra

O ímpio, o libertino, que ultrajando

Tudo o que é sagrado, tem por timbre

Ao público mostrar que o santo culto

Que nos intima a religião somente

Aos pequenos obriga e que por arte

Os conserva a ilusão no fanatismo

Por que da obediência às leis se dobrem.

ANTIESCRAVISMO

Verdadeira ou não a acusação de que Voltaire tivesse aplicado capitais no tráfico negreiro, o certo é que não somente esse filósofo como todos os outros condenaram veementemente a escravidão. Alguns foram além da denúncia retórica. Montesquieu explicou as razões sociológicas pelas quais a burguesia de Bordeaux achava lucrativo ser abolicionista na América e manter escravos nas colônias. Raynal não explica nem exorta: ele prega a insurreição armada dos escravos, no gênero das guerras de libertação de Toussaint L’Ouverture e de Zumbi dos Palmares.

Onde está ele, esse grande homem? Ele aparecerá, erguendo o estandarte sagrado da liberdade. Todos os seus tiranos se tornarão presas do ferro e do fogo. Em toda parte se abençoará o nome desse herói, que terá restabelecido os direitos da espécie humana.

Como em outros temas, as Cartas chilenas são uma fonte importante para as opiniões dos inconfidentes no tocante à escravidão. Em geral, Critilo se limita a condenar as crueldades praticadas contra os negros, no melhor estilo do humanitarismo ilustrado. Mas em outras passagens o autor vai além e chega ao ponto de justificar a formação de quilombos, como única forma de resistência a “senhores desumanos”. Entre mil outros defeitos, o Fanfarrão Minésio

[…] passa a maltratar o triste povo

Com estas nunca usadas violências.

Quer cópias de forçados que trabalhem

Sem outro algum jornal mais que o sustento

E manda a um bom cabo que lhe traga

A quantos quilombolas se apanharem

Em duras gargalheiras […]

Não se contenta o cabo com trazer-lhe

Os negros que têm culpas, prende e manda

Também, nas grandes levas, os escravos

Que não têm mais delitos que fugirem

Às fomes e castigos que padecem

No poder de senhores desumanos.

De modo geral os inconfidentes eram favoráveis à abolição. Alguns, como Maciel, temiam que ela acarretasse o abandono das lavras e da agricultura, mas prevalecia o sentimento abolicionista, nem sempre por razões humanitárias. Alvarenga Peixoto, por exemplo, advogava a libertação dos escravos por temer a eclosão de uma luta racial em que os brancos, menos numerosos, estariam em desvantagem. Já o sargento Luís Vaz de Toledo achava que a alforria dos negros os faria lutar pela revolução.

ANTIMILITARISMO

O pacifismo foi um dos temas mais característicos das Luzes. Para o abade Prévost, a guerra degrada a razão e a humanidade. Diderot considera os soldados meros carniceiros, maîtres bouchers. Samuel Johnson pensa que generais como Xerxes, César e Alexandre deveriam ser relegados ao ódio e obscuridade dos homens. Fielding diz que os chamados grandes homens são meros saqueadores de cidades e províncias.

O tema já existe em Gonzaga desde o poema congratulatório com que ele saudou a aclamação de dona Maria I. O heroísmo não está na rapinagem guerreira, e sim, à Voltaire, no trabalho de

Um rei sábio, um rei justo, um rei prudente […]

Que a seus fiéis vassalos assegura

O sossego, as riquezas e a fartura.

Muito diferente é a celebridade que se adquire na guerra, e que é obtida ao preço da desgraça dos súditos:

Não são, Lusos, não são as falsas glórias

Nascidas dos acasos das vitórias,

Os sucessos de Marte, contingentes,

Que fazem os impérios florescentes;

Nos deixam igualmente destruídos

Os povos vencedores e os vencidos;

As formosas campinas assoladas

Por ferozes ginetes, semeadas

De corpos e medonhos instrumentos;

Exaustos os tesouros opulentos,

Desertas as aldeias e as cidades;

Infames, atrevidas liberdades,

Estupros, roubos, opressões, delitos,

São certas consequências dos conflitos.

As Cartas chilenas são inesgotáveis na virulência antimilitarista. É o “atrevido soldado” que conduz os trabalhos forçados. “O mau soldado” dá-lhe um berro, “a mão levanta e nas costas o relho descarrega”. Ele é responsável por todos os males: “Não há, não há distúrbio nesta terra/ de que mão militar não seja autora”. Os soldados apunhalam sentinelas e em vez de serem punidos, o governador os perdoa. Mais ainda:

Alista o povo inteiro e dele forma


Inda mais de quarenta regimentos,


Mais faminto de ver galões e fardas


Que Midas de trocar em ouro puro


As cousas em que punha o torpe dedo.

Estranho costume, o que transforma cordeiros em “tigres bravos”. Estranho e absurdo, porque “um reino bem regido não se forma somente de soldados”.

O antimilitarismo aflora mesmo na poesia lírica. Gonzaga adverte Marília contra as falsas glórias de Alexandre:

Mas este bom soldado, cujo nome

Não há poder algum que não abata,

Foi, Marília, somente

Um ditoso pirata,

Um salteador valente.

O ser herói, Marília, não consiste

Em queimar os impérios: move a guerra,

Espalha o sangue humano

E despovoa a terra

Também o mau tirano.

Consiste o ser herói em viver justo:

E tanto pode ser herói o pobre

Como o maior Augusto.

ATITUDES SOCIAIS

A Ilustração foi um movimento essencialmente burguês, o que quer dizer duas coisas.

Apesar de contar um ou outro nobre desgarrado entre seus quadros (o barão Holbach) e da existência de alguns duques voltairianos e marqueses rousseauístas, a Ilustração foi antiaristocrática em sua essência, já que se baseava no princípio da igualdade de direitos de todos os homens. Era a negação do sistema de privilégios fundados na casta e no nascimento. “O que fizestes para gozar de vossa fortuna e honrarias?”, pergunta Fígaro ao conde de Almaviva. Ele mesmo responde: “Vous vous êtes donné la peine de naitre”.

Mas por outro lado, não se pode dizer que a Ilustração tenha exaltado o povo. Rousseau se interessava mais pelo povo soberano do Contrato social que pelos esfarrapados que partindo dos Halles iriam anos depois depor a monarquia. Os dramas de Diderot são todos construídos em torno de heróis e valores burgueses. Voltaire foi mais direto: desprezava a canaille e preferia, para não ser roubado, que sua filosofia anti-religiosa não atingisse a plebe.

Com exceção do semiproletário Joaquim José da Silva Xavier e do filho de artesão que foi José Joaquim da Maia, os inconfidentes foram em geral proprietários e exprimiram interesses e preocupações de proprietários. Para alguns a Inconfidência teria sido exatamente isso: uma conjuração em favor da propriedade. É por interesse pecuniário que Silvério dos Reis delata seus companheiros, é pensando numa ordem em que não fosse mais necessário transferir suas rendas ao fisco metropolitano que os conjurados conspiram. Quando Cláudio Manuel da Costa fala nos “interesses da capitania” está pensando obviamente nos interesses dos proprietários. O próprio Tiradentes fala em “homens de possibilidades”. Por isso o foco da crítica inconfidente é o colonialismo, e não a opulência, ao contrário dos conjurados baianos, compostos em sua maioria de classes baixas, e que diferentemente dos mineiros não tinham grande entusiasmo por essa revolução de proprietários que foi a Revolução Americana.

Em consequência, enquanto movimento burguês e na mesma linha da Ilustração europeia, a Inconfidência teve duas vertentes, uma crítica da aristocracia e uma crítica do povo.

A vertente antiaristocrática aparece com muita clareza nas Cartas chilenas:

De uma estéril, mortal genealogia

Que o mérito produz de seus maiores,

Eles, amigo, argumentar não devem

Propalados talentos. A virtude

Nem sempre aos netos por herança desce […]

Nem sempre as águias de outras águias nascem

Nem sempre de leões, leões se geram.

O autor se insurge contra a injustiça de confiar altas funções a um incapaz, somente por ser de origem nobre:

É filho do marquês, do conde é filho,

Vá das Índias reger o vasto império.

Nada mais contrário ao interesse coletivo que estimular uma nobreza parasitária:

Que império, Doroteu, que império pode

Um povo sustentar, que só se forma

De nobres sem ofícios?

A verdadeira nobreza não está no nascimento, e sim no mérito. Há nobres com alma de lacaio, há plebeus com alma nobre:

Por isso às vezes nascem os mochilas


Com brios de fidalgos, outras vezes


Os nobres com espíritos humildes,


Só dignos de animarem vis lacaios.

Mas o autor das Cartas chilenas está suficientemente impregnado pelo espírito burguês da Ilustração para desconfiar, também, da canaille. O que é o povo, afinal?

O povo, Doroteu, é como as moscas

Que correm ao lugar aonde sentem

O derramado mel; é semelhante

Aos corvos e aos abutres, que se ajuntam

Nos ermos, onde fede a carne podre.

Nada mais justo que o burguês se eleve às posições ocupadas pela nobreza, mas é inadmissível que as pessoas de baixa extração aspirem à ascensão social:

[…] Agora atende,

Verás que desta escória se levanta

De magistrados uma nova classe […]

Conheço finalmente a outros muitos

Que foram almocreves e tendeiros,

Que foram alfaiates e fizeram

Puxando a dente o couro, bem sapatos.

Agora doce amigo não te rias,

De veres que estes são aqueles grandes

Que em presença do chefe encostar podem

Os queixos nos bastões das finas canas.

A sátira não basta? Nesse caso, Critilo não hesita em dizer sem ironia seu pensamento, para que não reste dúvida no espírito de nenhum leitor: o bem comum exige que as pessoas de condição modesta permaneçam em seus lugares.

É também, Doroteu, contra a polícia

Franquearem-se as portas, a que subam


Aos distintos empregos as pessoas

Que vêm de humildes troncos.

IDEIAS FORA DO LUGAR?

Roberto Schwarz vem há muito defendendo a tese de que certas ideias europeias são deslocadas no Brasil. Bem entendido, não é o velho lugar-comum sobre o vezo imitativo das nossas elites. Não se trata de um novo surto dessa doença endêmica no Brasil, o cultural-chauvinismo. Tudo o que Roberto quer dizer é que essas ideias são deslocadas porque são universalistas, baseadas nos valores iluministas e liberais dos direitos humanos e da democracia, enquanto a realidade brasileira se funda nas estruturas particularistas da exploração e da dominação de classe. Não são as ideias que não prestam, é o sistema social brasileiro.

Aplicando essa tese ao século XIX, Schwarz afirma que a oligarquia escravocrata usava como emblema de modernidade uma ideologia que não lhe convinha: o liberalismo, incompatível com as estruturas econômicas e sociais do país. Ao mesmo tempo, essa ideologia era necessária, porque era dela que a classe dominante brasileira derivava sua auto-estima. Ela se legitimava com ideias deslocadas, que no entanto eram funcionais enquanto legitimações indispensáveis.

Mas no século XVIII, não havia nenhuma incongruência entre ideologias e práticas sociais.

No caso dos representantes da Coroa isso é evidente: o poder absoluto dos vice-reis e dos governadores se fundava numa ideologia absolutista. As ideias vinham de Lisboa mas se harmonizavam perfeitamente com os interesses do poder metropolitano.

Por outro lado, a visada revolucionária dos inconfidentes se fundava numa ideologia revolucionária, que se ajustava como uma luva à elite de proprietários que queria se emancipar do jugo colonial. Também aqui não havia deslocamento, por mais que as ideias viessem de Paris ou da Filadélfia.

Nossa teoria da dupla articulação pode esclarecer esse fenômeno. Como vimos, o discurso inconfidente se articulava com o discurso ilustrado na dupla dimensão da língua e da palavra.

Na dimensão da língua, não havia deslocamento, porque a língua ilustrada não era monopólio de nenhum país. Ao invocarem a razão e a natureza, os inconfidentes não estavam se apropriando de topoi europeus: estavam, simplesmente, usando o código universal da época, sem o qual mensagens específicas não poderiam ser nem formuladas nem compreendidas.

Na dimensão da palavra, os inconfidentes foram altamente seletivos. Escolheram, do acervo semântico da Ilustração, aqueles temas e somente aqueles que fossem conciliáveis com sua prática. Seu anticolonialismo visava a libertação dos descendentes de portugueses, não dos nativos, como preconizava o abade Raynal. Queriam abolir o despotismo, mas apesar das opiniões republicanas de muitos conjurados, não consta que eles estivessem interessados em implantar uma democracia radical à Rousseau. Sua campanha anti-religiosa seguiu o paradigma moderado da Ilustração ibérica e alemã, sem chegar ao anticristianismo dogmático da Inglaterra e da França. Seu antimilitarismo se limitava no fundo à denúncia dos abusos militares e não à denúncia da instituição militar. Muitos queriam abolir a escravidão, mas não recorriam, para isso, aos panfletos incendiários dos que na Europa pregavam a insurreição dos escravos. Suas atitudes sociais iam mais na linha do antiaristocratismo burguês, quer na linha pequeno-burguesa de Rousseau quer na coletivista de Mably e Morelly.

Em suma, não houve deslocamento nem no código, porque o discurso inconfidente usava uma lingua franca comum a todo o Ocidente, nem na palavra, porque o estoque temático da Ilustração não foi simplesmente importado, e sim usado conforme as conveniências da elite de proprietários que num momento dado decidiu insurgir-se contra a Metrópole portuguesa.

Essa é a marca da verdadeira universalidade. Um pensamento não é universal quando anula as particularidades locais, mas quando tem a força para integrá-las e quando graças a esse pensamento as particularidades encontram uma forma concreta e inteligível.

Foi o caso da Ilustração, realização setecentista do Iluminismo. Foi o caso do liberalismo e do socialismo, realizações do Iluminismo no século passado e no atual. E será o caso de novos avatares do espírito iluminista, que ainda não podemos prever, mas que terão necessariamente como vetores a razão e a crítica, a audácia de saber, como Fausto, e a paixão de negar, como Mefistófeles.

O pensamento inconfidente foi parte do pensamento ilustrado, e nesse sentido, apesar de todas as suas limitações sociais e políticas, parte do Iluminismo. O liberalismo foi também legitimação de classe, como disse Roberto Schwarz, e nesse sentido funcionou numa direção contra-iluminista, mas foi iluminista ao servir de lastro teórico para o movimento abolicionista. O socialismo democrático foi puramente iluminista em sua denúncia da exploração social. O combate continua. O Iluminismo também.

 

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