A paixão da Clarice Lispector
por Benedito Nunes
Resumo
A paixão segundo G. H. de Clarice Lispector é um mergulho em camadas soterradas da sensibilidade humana e no próprio sentido da paixão, isto é, naquele pathos originário que os gregos primitivos viam como “loucura divina”, e que Platão e Aristóteles admitiram poder ser um caminho para o conhecimento. O tema será tratado de diferentes maneiras pelos estoicos (paixão superada num ânimo imperturbável), pelos cristãos (êxtase místico e unitivo com Deus), por Espinosa (integração das paixões à Natureza), até a reabilitação social das paixões no século XVIII e o surgimento do romantismo, que expõe o jogo das forças afetivas contrárias. O romance de Clarice situa-se na órbita da narração moderna concentrada na experiência interior, mas com a peculiaridade de ser um relato confessional que explora um único fato do cotidiano, o sentimento de estranheza ao defrontar-se com uma barata morta. “O que eu via era a vida me olhando”, ela escreve. Descrição de um afeto que vai do nojo ao amor diante do Outro não humano com quem a união se consuma: G. H. põe a barata na boca, comungando-a. Transgressão, descoberta do puro existir como fonte das paixões (“A dor não é alguma coisa que nos acontece, mas o que somos […] A condição humana é a Paixão de Cristo”). Suspensão, também, da identidade mesma da narrativa, absorta no pathos solitário de escrever como gozoso padecimento de sujeição ao sagrado. Esse sentimento vai reaparecer mais tarde na identificação da narradora com Macabéa em A hora da estrela, quando a paixão de Clarice se torna compaixão.
O romance é a principal fonte para uma história das paixões no gênero dos microestudos da conduta humana que servem de contraponto existencial à ciência histórica. Mas pode haver também, como sugere Roland Barthes, uma história patética do próprio romance reunindo, de diferentes obras, por efeito de uma leitura viva, aquelas cristas emotivas que delas subsistem, independentemente do todo de que fazem parte, como “momentos de verdade” da literatura. Arrancados de um universo romanesco, esses “momentos de verdade”, pontos “de mais valia” da anedota ou fábula, implicam o reconhecimento da paixão como força de leitura.[1]
Ousaria acrescentar a essa provocante reflexão do grande crítico-escritor que a paixão pode ser igualmente força da escrita. E não há melhor exemplo disso do que A paixão segundo G. H. de Clarice Lispector, texto singular e incomparável, que constitui um capítulo inédito da história patética do romance. Passional e apaixonante, esse texto de nossa autora mergulha em veios arqueológicos, em camadas afetivas culturalmente soterradas da sensibilidade humana. Antes de apreciá-lo desse ponto de vista, faremos duas digressões preliminares, a primeira acerca das vicissitudes históricas e culturais da paixão, a segunda acerca da obra de Clarice Lispector em geral.
I
O curso histórico da palavra “paixão” atesta a perda da riqueza cumulativa dos significados distintos e correlatos que se constelaram no termo grego pathos, do qual se originou. Filosoficamente, a avaliação do conceito respectivo — passividade do sujeito, experiência infligida, sofrida, dominadora, irracional — por oposição a logos ou a phronesis, que significam pensamento lúcido e conduta esclarecida; variou da posição problematizante dos filósofos gregos da época clássica — Sócrates, Platão e Aristóteles — à posição negativa dos filósofos estoicos e de seus descendentes no início da época moderna, Descartes e Espinosa.
“O grego sempre viu”, afirma Dodds, “na experiência de uma paixão, algo de misterioso e assustador, a experiência de uma força que está dentro dele, que o possui em lugar de ser por ele possuída. A própria palavra pathos o testemunha; do mesmo modo que seu equivalente latino passio, significa aquilo que acontece a “um homem, aquilo de que ele é a vítima passiva”.[2]
Entretanto, o entendimento desse estado se diversificou entre os gregos conforme a procedência da força experimentada, nem sempre completamente dominadora e nem sempre desfavorável ao indivíduo. A causa totalmente incontrolável, admitida ainda na fase da cultura grega arcaica, é a loucura divina (até), perturbadora da consciência normal e que se atribuiu “a um agente demoníaco exterior”. Ethos anthropoi daimon (o demônio do homem é o seu caráter), registraria um fragmento de Heráclito, do século VI a.C, anunciando, como resposta da filosofia à religião primitiva, a interiorização do elemento passional.
Não obstante, um século depois, no período clássico, Sócrates e Platão conciliaram aquela tradição religiosa de uma época recuada com as exigências da racionalidade. Um dos diálogos platônicos, o Fedro, exalta os efeitos benéficos de quatro espécies de loucura (mania) consideradas dons divinos: a dos profetas e adivinhos, o entusiasmo inspirado pelas musas aos poetas, a possessão ritual dionisíaca e o transporte amoroso, obra de Eros, do qual se ocupou especialmente O banquete.[3]
Eros trabalha em conjunto com Afrodite; impulsivo, é tanto a fecundidade do corpo quanto a fecundidade do espírito; atraído pela beleza, intensifica-se, expande-se para além do objeto amado, numa ascensão aos mais altos conhecimentos e assegurando a imortalidade. Não há filosofia sem Eros; sem Eros a razão permaneceria inerme. O amor erótico incorporou ao pensamento os aspectos irracionais da conduta humana, aliviando a carga passiva e perturbadora dos estados afetivos.
Muito depois dessa avaliação da filosofia clássica, o passional, no sentido amplo de afetividade, merecerá do estoicismo — forma de sabedoria ascética, esquiva ao mundo — a negação mais extremada, por ser permanente causa da heteronomia da vontade. A plena conduta racional, possibilitada pela prática da virtude (areté), incluindo a disciplina intelectual de controle das representações ilusórias, culminaria, depois de anulado o efeito prejudicial dos sentimentos fortes, na conquista do apaté, do ânimo imperturbável, apático.
Muito distante desse rigorismo ascético, Platão, mostram-no ainda passagens capitais de A República acerca dos papéis distintos e harmônicos das partes não-racionais da alma, a epitumia (apetite, instinto) e o tymos (disposição afetiva), viu na força da paixão “uma fonte de energia que, como a libido freudiana, pode ser canalizada seja para uma atividade sensual seja para uma atividade intelectual”.[4] Em sua própria origem o pensamento racional está comprometido com o patético. Os homens não começam a filosofar senão quando deles se apossa o thaumazein, incomum estranhamento admirativo do mundo e das coisas, reconhecido pela tradição platônico-aristotélica. Condicionada afetivamente, e por esse motivo paixão do pensamento, a filosofia será também, na medida em que tenta compreender o irracional, pensamento da paixão.
Em Aristóteles, tanto quanto em Platão, essa tentativa é inseparável de uma teoria da alma, que foi transmitida aos escolásticos medievais, e segundo a qual as tendências, apetites e desejos movem a inteligência e a vontade. Contrários entre si, os apetites “ora resistem à autoridade da parte racional, ora escutam docilmente as suas admoestações e conselhos como os filhos ao pai”.[5]
Outrossim, Aristóteles destacou a função dinâmica das paixões específicas — “que introduzem mudanças em nossos juízos”[6] — não por acaso estudadas no Segundo livro da retórica — a arte de persuadir por meio do discurso —, com que o filósofo sublinhou o caráter situacional, prático, da afetividade, que depende do relacionamento mútuo dos indivíduos e do uso da palavra.
Não se pode esquecer o valor positivo que, divergindo de Platão, Aristóteles atribuiu à comoção trágica — a catarsis, purgação do ânimo do espectador por efeito do balanço entre os sentimentos opostos de comiseração (eleos) e terror (phobus), despertados pela representação das tragédias.[7]
Na Idade Média, Tomás de Aquino, intérprete de Aristó-te-les, contrariou o ponto de vista dos estoicos, afirmando na Suma teológica que nem todas as paixões são moralmente más.[8]
A disciplina salvacionista da Igreja, que polarizou a vida afetiva nesse período, discriminaria aquelas que favorecem o Bem, e abrem caminho para Deus, daquelas que incitam à transgressão das leis naturais e divinas, levando os iracundos, os indolentes, os invejosos, os soberbos, os luxuriosos, os cúpidos, os gulosos às penas e padecimentos do Inferno. A mesma exigência religiosa de salvação, indissociável da crença num Deus transcendente, pessoal e providencial, que ama os homens e se humaniza para resgatá-los do pecado, pela dor e pelo sofrimento da morte cruenta — a Paixão de Cristo —, legitimou o amor carnal dentro do matrimônio e ilegitimou o erótico. Agapé e charitas, amor a Deus e amor ao próximo, refratários ao espraiamento de Eros, à ilimitação do desejo impulsivo e à sua promessa de imortalidade para os pagãos, compatibilizavam-se apenas com o amor de união do êxtase místico. As espécies platônicas da mania, da loucura divina, tornavam-se efeitos de possessão diabólica, atos orgiásticos, práticos de feitiçaria, condenáveis e reprimidos.
A posição estoica revigorada na Idade Moderna separou os instintos, os desejos e paixões sensíveis da natureza essencial da alma, “como fenômenos de inibição e de perturbação, como perturbationes animi”.[9] Mais sutil do que Les passions de l’âme de Descartes, cujo dualismo substancialista impôs essa separação, a Ética de Espinosa, que integrou as paixões à ordem da natureza, nos diz da impossibilidade de reprimi-las diretamente e do proveito moral a extrair do conflito ou da guerra de umas contra as outras.
Mas somente o século XVIII reabilitou socialmente as paixões. Mesmo das moralmente más, como avareza e cobiça, poder-se-ia tirar proveito, desde que canalizadas para um fim de utilidade social. “A razão, fruto da experiência”, escrevia então D’Holbach, “é a arte de escolher as paixões que devemos seguir em benefício de nossa própria felicidade.”[10] O interesse, “como busca de vantagens materiais e econômicas”, seria o critério decisivo de escolha para a burguesia em ascensão. Era o princípio, engrenado à ética permissiva da acumulação capitalista, de uma economia passional dentro do ciclo da Economia Política triunfante no século XIX.
Em oposição a essa manobra do pensamento utilitarista, o Romantismo liberaria o fundo noturno, instintivo, da subjetividade; liberaria o entusiasmo poético e o arrebatamento amoroso. Emergiu com ele o novo pathos de uma sensibilidade conflitiva; por trás das paixões da alma como que se desvendaria a alma das paixões: a Sehnsucht dos românticos alemães, a aspiração do infinito, sentimento do sentimento e desejo do desejo — tônica passional da inquietude romântica, sofrida e insaciável, que Kierkegaard qualificou de “perpétuo esforço para apreender aquilo que se desvanece”.[11] Considerado sob esse ângulo, romântico é sinônimo de ilusão: a ilusão — apontada por René Girard — do desejo espontâneo e da subjetividade quase divina,[12] em sua autonomia, que a criação romanesca supera. Como forma de vida fictícia, possibilitando o confronto do Eu consigo mesmo e com os outros, o romance, além da dependência intersubjetiva e social do desejo, além da formação imaginativa das paixões, sobretudo da paixão amorosa, cristalizada pela imitação e pela vaidade, segundo Stendhal, e não imune à transferência dos interesses sociais, além da metamorfose das paixões, o romance exporia o jogo das forças afetivas contrárias, que vulneram a autonomia do sujeito centrada no Eu. A crítica da ilusão romântica — ilusão que não compromete a essência do romantismo — alerta-nos contra a postura ingênua que reclama da literatura o puro espelhamento das paixões. Qualquer que seja o grau de expressão literária por elas alcançado — o grito, o gesto arrebatado, o surto emocional —, a paixão expressa já é a paixão passada, arrefecida, recordada, medida, distanciada.
II
Da obra de ficção de Clarice Lispector pode ser dito, para fixarmos indispensável ponto de referência histórico-literário, que ela recai na órbita da narração moderna, concentrada na experiência interior, a que pertencem A la recherche du temps perdu de Marcel Proust, Ulisses de James Joyce e Mrs. Dalloway de Virgínia Woolf. Assim, nos romances e contos de nossa escritora, a verdadeira ação é interna, e nada ocorre independentemente da expressão subjetiva dos personagens. Essa expressão, seguindo o fio de um enredo esgarçado, tênue, que chega a desaparecer nos últimos textos de Clarice, como Água Viva e Um sopro de vida, é sempre também, conforme disse Antônio Cândido a propósito de Perto do coração selvagem, romance de estreia da autora, um instrumento de penetração “nos labirintos mais retorcidos da mente”.[13] Estamos diante de uma ficção que pensa, de uma ficção indagadora, reflexiva, a que não falta, como em toda grande literatura, um intuito de conhecimento. Precisamos não esquecê-lo quando consideramos o que essa obra tem de passional.
Nela, a primeira marca do pathos encontra-se na recorrência de certos sentimentos fortes — cólera, ira, raiva, ódio, nojo, náusea, alternando-se com o amor e a alegria —, verdadeiros núcleos afetivos que motivam a história narrada ou constituem momentos culminantes da narrativa. Basta lembrar a ira do personagem de “O jantar”, despertada na narradora pelo espetáculo de um velho comendo à sua frente;[14] o ódio de Ana, do conto “Amor”, diante de um cego que masca chicletes;[15] a atitude de Lucrécia Neves, de A cidade sitiada, excitando sua própria ira.[16] Esses sentimentos transformam-se nos seus contrários; o amor traz uma “vontade de ódio” e o ódio, vontade de amor. “A minha cólera — que é ela senão reivindicação? — […] a minha cólera é o reverso do meu amor” […], exclama a personagem de Uma ira.[17]
Mutuamente conversíveis, tais sentimentos extremos denunciam ao mesmo tempo a fragilidade do caráter, a conduta moralmente ambígua e o relacionamento intersubjetivo antagonístico, ora agressivo, ora submisso, dos personagens de Clarice Lispector, influenciados pelos outros e pelas coisas, quase sempre mais pacientes do que agentes de uma experiência interior que não podem controlar.
A segunda marca do pathos é a sofreguidão do desejo, espécie de hybris, de insaciabilidade, que expõe ao risco do excesso e da desmesura, levando à transgressão da ordem estabelecida, seja do meio familiar, como em Perto do coração selvagem e O lustre, seja dos mores locais, como em A cidade sitiada, seja da lei ou do sistema social, como em A maçã no escuro. Mas esse desejo transgressor, que reflui interiormente como angústia da liberdade, mal se separa de uma inquietude espiritual, moral e intelectual, afã de expressão e realização individuais, e que arrebata principalmente as protagonistas dos romances anteriores a A paixão segundo G. H. Por outro lado, essa inquietude acompanha a introspecção em que vivem mergulhadas as personagens femininas, subjugando-as a uma constante acuidade reflexiva sobre os seus próprios desejos e intenções, o que as torna constantes espectadoras de si mesmas.
Estamos bem longe da ilusão romântica do desejo espontâneo, da aspiração imaculada e da autonomia do sujeito enquanto Eu. Essas personagens femininas são personalidades fraturadas, divididas — “um feixe de Eus disparatados”[18] —, que se surpreendem por estarem existindo e que não contam com o abrigo acolhedor da certeza de uma identidade. Buscam a si mesmas no que quer que busquem. Ou se desconhecem e se estranham, o Ego convertido em Alter, o circuito da consciência reflexiva interrompido por um momento de êxtase que lhes desorganiza a individualidade. Assim, em “Amor”, esse conto exemplar, Ana, uma tranquila dona de casa, sentindo a vertigem do Outro ao olhar para o cego que masca chiclete, desliga-se da realidade cotidiana, e depois, sob o impacto da náusea, cai num estado de alheamento que a esvazia por instantes de sua vida pessoal, a contemplar os troncos das árvores no Jardim Botânico: “Os troncos eram percorridos por parasitas folhudos, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo e era fascinante”.[19]
Essa fascinação pelo envultamento da náusea sobre o corpo alienando a alma tem a sua contrapartida na contemplação estática — descortino emocional de um mundo cru, não humano e silencioso, ao mesmo tempo limite da narrativa à beira do inenarrável.
III
A Paixão segundo G. H. é a história de uma fascinação desse tipo. Presumo que se conhece o incidente doméstico, trivial, motivador desse romance que tem estilo de um relato confessional. Nele, narradora e personagem se confundem, ligadas entre si pelas iniciais de indecifrado onomástico, G. H.: moradora de um apartamento de cobertura, e, como Ana do conto “Amor”, com uma vida plácida, arrumada, ela é tomada por um sentimento de estranheza ao entrar no quarto desocupado de empregada, onde, num ímpeto de medo e ódio, esmaga de encontro à porta de um guarda-roupa uma barata que a olhava. E olhando a sua vítima inerme, sob o fascínio do inseto que a repugna e a atrai, sobrevém-lhe, com o espasmo de uma náusea seca, o transe de que o romance é a confissão tumultuosa dirigida a uma segunda pessoa, a um interlocutor “fingido” que lhe segura as mãos:
“Toma o que eu vi: pois o que eu via com um constrangimento tão penoso e tão espantado e tão inocente, o que eu via era a vida me olhando. Como chamar de outro modo aquilo horrível e cru, matéria-prima e plasma seco, que ali estava, enquanto eu recuava para dentro de mim em náusea seca, eu caindo séculos e séculos dentro de uma lama e nem sequer lama já seca, mas lama ainda úmida e ainda viva, era uma lama onde se remexiam com lentidão insuportável as raízes de minha identidade.”[20]
Essa imagem de seu alheamento na contemplação estática da barata, como se possuída por um agente exterior, demoníaco, conduz ao desapossamento sacrifical da identidade da personagem narradora — à perda do Eu:
“É uma metamorfose em que eu perco tudo o que eu tinha, e o que eu tinha era eu — só tenho o que eu sou. E agora o que sou? Sou: estar de pé diante de um susto. Sou: o que vi.”[21]
Desmorona-se o sistema social, desorganiza-se a engrenagem psicológica, desfaz-se a inserção no cotidiano que lhe assegurava a estabilidade agregativa de um Eu como máscara postiça, reconhecida pelos Outros; a metamorfose equivale a uma volta às origens ancestrais, não-humanas de sua identidade.
O relato desse transe, ao qual se entremeia a compreensão que G. H. vai tendo de si mesma, à medida que interpreta a sua experiência — uma experiência já passada e por isso narrável —, é como que uma transposição da via mística se não for a sua réplica parodística.
Refiro-me ao misticismo stricto sensu, diferente da piedade religiosa, que se desenvolveu em todas as culturas segundo padrões distintos e, às vezes, à margem da religião institucionalizada: o caminho individual de acesso, por meio de uma experiência prática de desprendimento da individualidade, ao todo, ao cerne do real ou à divindade. Acesso que é tanto conhecimento extraintelectual, contemplativo, quanto união e liberação. União amorosa para os cristãos, na base da crença de um deus pessoal, liberação bramânica da verdadeira natureza divina do homem e liberação budista da existência ilusória.
Em A paixão segundo G. H. a volta à origem concretiza-se como união com o Outro não humano, união ritualmente consumada: G. H. põe a barata na boca, comungando-a. A escala dos sentimentos contrários que acompanham o transe — amor e ódio, desespero e esperança, alegria e dor — nos é apresentada como uma trajetória espiritual através de figuras teológicas e religiosas: santidade e pecado, salvação e danação, pureza, inferno e paraíso. Repulsiva e atraente, ominosa e numinosa, a barata assume as proporções de uma teofania; é um numem, uma forma primitiva, interdita, do sagrado. “Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo.”[22]
A trajetória espiritual adere a esse fundo arcaico. O romance é uma descida ao subsolo ancestral dos sentimentos e paixões. Daí a singularidade de A paixão segundo G.H., que imprime a essa ficção um cunho de experiência vivida. Como bem observou Luís Costa Lima, a trajetória de G. H. recusa-se a ser encerrada no ficcional.[23] Nem podemos retirá-la da literatura sem integrá-la completamente nela. Mas também muito menos aceitável seria incluir esse romance no rol dos escritos propriamente místicos, isto é, entre as obras espirituais de finalidade edificante ou anagógica, com as quais, entretanto, apresenta estreito parentesco quanto a imagens, metáforas e figuras utilizadas para descrever e interpretar o transe.
De qualquer maneira, G. H. passa pelos estados contraditórios — o sofrimento gozoso, o “horrível mal-estar feliz”, o abrasamento consolador, a repulsa e a atração da união mística. Mas a sua experiência, menos cristã e mais pagã, espelha o caráter orgiástico de um misticismo primitivo:
Eu entrara na orgia do Sabah. Agora sei o que se faz no escuro das montanhas em noites de orgia. Eu sei com horror; gozam-se as coisas. Flui-se a coisa de que são feitas as coisas.[24]
Não é ao deus transcendente, cristão, a quem ela se une. Essa orgia como que recupera o substrato da mania, da loucura divina; no envolvimento do transe, reaparece, sob o aspecto de potência infernal, a ação expansiva, invasora, do eros reprimido:
O Inferno é o meu máximo. Eu estava em pleno seio de uma indiferença que é quieta e alerta. E no seio de um indiferente amor, de um indiferente sono acordado, de uma dor indiferente. De um Deus que, se eu amava, não compreendia o que ele queria de mim. Sei, Ele queria que eu fosse o seu igual, e que a Ele me igualasse por um amor de que eu não era capaz. […] Ele queria que eu fosse com ele o mundo. Ele queria minha divindade humana, e isso tivera que começar por um despojamento inicial do humano construído […]
O inferno pelo qual eu passara — como te dizer? — fora o inferno que vem do amor. Ah, as pessoas põem a ideia de pecado em sexo. Mas como é inocente e infantil esse pecado. O inferno mesmo é o do amor. Amor é experiência de um perigo de um pecado maior — é a experiência da lama e da degradação e da alegria pior. Sexo é o susto de uma criança.[25]
O amor erótico apaga as diferenças, ultrapassa as barreiras da individualidade:
Entendia eu que aquilo que eu experimentara, aquele núcleo de capacidade infernal, era o que se chama de amor? Mas — amor — neutro?
Amor neutro. O neutro soprava. Eu estava atingindo o que havia procurado a vida toda: aquilo que é a identidade mais última e que eu havia chamado de inexpressivo.”[26]
Mas o sacrifício da individualidade, como no ritual pagão dionisíaco, é uma provação.
Provação: significa que a vida está me provando. Mas provação: significa também que eu estou provando. E provar pode se transformar numa sede cada vez mais insaciável.[27]
E a vida que ela prova e que a está provando é o que ela chama de o Deus — e não simplesmente Deus —, o Deus imanente à vida (em textos posteriores, Clarice Lispector mencionou-o como it, pronome neutro, tão impessoal quanto o id freudiano). Inverte-se o curso ascensional de eros, atraído pela beleza, tal como foi concebido por Platão; em vez de subir às esferas mais altas, o amor se dessublima para aquém da consciência.
“Ah, a violenta inconsciência amorosa do que existe ultrapassa a possibilidade de minha consciência. Tenho medo de tanta matéria — a matéria vibra de atenção, vibra de processo, vibra de atualidade inerente. O que existe bate em ondas fortes contra o grão inquebrantável que sou. […]”[28]
As paixões se desnudam numa só paixão: a via crucis do amor que leva ao sofrimento, o sofrimento que leva à alegria e de novo ao amor. Ao perder a sua identidade pessoal, ao ser despojada do Eu, G. H. descortina, por fim, o puro fato de existir como a fonte de todas as paixões:
“Só então minha natureza é aceita, aceita com o seu suplício espantado, onde a dor não é alguma coisa que nos acontece, mas o que somos. E é aceita a nossa condição como a única possível, já que ela é o que existe, e não outra. E já que vivê-la é a nossa paixão. A condição humana é a paixão de Cristo”.[29]
A narrativa, que se efetua como uma desindividualização da própria narradora, chega ao limite da criação romanesca; a sua falta de identidade põe em suspenso a identidade mesma da narrativa. É que o eros dominador também mobiliza a escrita da paixão, escrita corporal para o corpo da segunda pessoa, do interlocutor em que a narradora se ampara. E aí encontramos outra espécie de paixão que se contraverte na primeira — o pathos mesmo da escrita, surdindo, velado, do inconsciente, e que tende a exprimir o inexprimível. Pois que a trajetória mística de G. H. passa pela via crucis da linguagem, pelo gozoso padecimento de ter que buscar a forma para expressar o neutro, o cru, o não humano, a existência, o ser.
“A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas — volto — o indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.”[30] Eis o pathos da escrita como um padecimento de sujeição ao sagrado, ao inconsciente amor que atravessa a vida.
Do ponto de vista da paixão da escrita, pode ser esboçado um paralelo de A paixão segundo G. H. com uma obra que significa seu extremo oposto no universo literário: Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Os dois textos incidem no tema do erotismo; o de Guimarães Rosa combina-o porém com o amor no sentido do Agapé e da Charitas cristãos. A busca de Deus por Riobaldo realiza-se como aventura humana numa forma épica de narrativa; e o romanesco alimentado por um mito — o pacto com o Diabo — que se incorpora à ação, sobrepõe-se ao místico. Ali, em A paixão segundo G. H., o romanesco alimentado pela introspecção vertiginosa, pelo embate dos sentimentos opostos, se alia ao místico. Em Grande sertão: veredas, o sagrado se desvenda por diferentes amores em conflito — o amor de Riobaldo a Diadorim e a Otacília. No romance de Clarice Lispector um só amor conflitivo desvenda o sagrado.
De resto, a paixão de Riobaldo não é a de Guimarães Rosa, mas, sob a paixão de G. H., estremece, transfundida, a paixão de Clarice Lispector.
Os dois livros poderão ingressar, por diferentes caminhos, na história patética do romance, porque ambos proporcionam ao leitor, comovendo-o, “momentos de verdade”. Mas A paixão segundo G. H. nela entraria porque conseguiu revolver os mais remotos veios do pathos e uni-lo à sedução e ao fascínio da escrita, ao seu pouvoir aimant du amoureux — a expressão é de Roland Barthes[31] — poder amante, magnético, e amoroso, compassivo.
Pode-se acrescentar esse adjetivo — compassivo — porque A paixão de G. H. ultimar-se-á em “A hora da estrela” na identificação da narradora com Macabéa. “A hora da estrela” é o prolongamento daquele capítulo inédito da história do romance como retorno do místico ao ético. Nesse novo “momento de verdade”, a paixão de Clarice Lispector torna-se compaixão; o pathos solitário converte-se em simpatia como forma de padecimento comum, unindo até o extremo da morte, in extremis, a narradora com a moça nordestina anônima.
Notas
[1] Roland Banhes, “Longtemps… je me suis couché de bonne heure”, in Bruissement de la langue (Essais Critiques, IV), Paris, Seuil, 1984, p. 323.
[2] E. R. Dodds, “Rationalisme et réaction à l’époque classique”, in Les Grecs et l’Irrationnel, Paris, Flammarion, 1985, p. 185.
[3] Platão, Fedro, 244a-245b; O banquete, 206a-212b, Diálogos, volumes v e III-IV, Tradução de Carlos Alberto Nunes, Universidade Federal do Pará.
[4] E. R. Dodds, “Platon et l’âme irrationnelle”, in Les Grecs et l’Irrationnel, Paris, Flammarion, p. 211.
[5] Leon Robin, La Pensée grecque et les origines de la pensée scientifique, Paris, La Renaissance du Livre, 1928, p. 314.
[6] Aristóteles, Arte retórica/arte poética, livro II, cap. I, introdução e notas de Jean Volquin e Jean Capelle, trad. de Antonio Pinto de Carvalho, São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1964, p. 100.
[7] Idem, Poética, cap. VI, version directa, Introducción y notas por el dr. Juan David Garcia Bacca, Universidad Nacional Autonoma de Mexico, 1946, p. 9.
[8] Tomás de Aquino, La somme théologique, 1.a 2.a, Question XXIV, art. II, Paris, 1854, vol. IV, p. 383.
[9] Ernst Cassirer, La philosophie des lumières, Paris, Fayard, 1966, p. 159.
[10] Albert Hirschman, Les passions et l’interêt (Justifications politiques du capitalisme avant son apogée), Paris, Presses Universitaires de France, 1980, p. 29.
[11] Kierkegaard, cf. Jean Wahl, Études Kierkegaardiennes, Annexes, Extraits du Journal, Aubier, p. 581.
[12] René Girard, Mensonge romantique et vérité romanesque, Bernard Grasset, 1961, p. 43.
[13] Antonio Candido, “No raiar de Clarice Lispector”, in Vários escritos, São Paulo, Duas Cidades, 1970, p. 126.
[14] Clarice Lispector, Laços de família, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1960, p. 89.
[15] Idem, ibidem, p. 25.
[16] Idem, A cidade sitiada, 2a ed., Rio de Janeiro, José Álvaro Editor, 1964, p. 81.
[17] Idem, A legião estrangeira, Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1964, p. 196.
[18] Hermann Hesse, Le loup des Steppes, XII, XXII: Traité du Loup des Steppes.
[19] Clarice Lispector, Laços de família, pp. 28-9.
[20] Idem, A paixão segundo G. H., Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1964, p. 57.
[21] Idem, ibidem, p. 67.
[22] Idem, ibidem, p. 72.
[23] Luis Costa Lima, “A mística ao revés de Clarice Lispector”, in Por que literatura?, Petrópolis, Vozes, 1966, p. 123.
[24] Clarice Lispector, A paixão segundo G. H., p. 108.
[25] Idem, ibidem, p. 127.
[26] Idem, ibidem, pp. 133-4.
[27] Idem, ibidem, pp. 131-34.
[28] Idem, ibidem, pp. 139-40.
[29] Idem, ibidem, p. 177.
[30] Idem, ibidem, p. 178.
[31] Roland Barthes, Le bruissement de Ia langue, pp. 323-4.