1996

Dos libertinos aos estoicos, ou seja, de um erotismo ao outro

por Jorge Coli

Resumo

Boucher, retratando as deusas gregas sedutoras e voluptuosas e os “derrières” das favoritas do corte de Luis XV; Lepicié retratando a intimidade feminina surpreendida; e Fragonard, com sua técnica fulminante e obras eróticas brilhantes, fizeram do século XVIII, na França, um século pródigo em imagens carregadas de erotismo e de celebração do corpo feminino.

Também na Espanha, no final do século, Goya se dedica a pinturas de mulheres extremante sensuais e a desenhos eróticos. Mas tal arte era, para a propaganda revolucionária, o símbolo de uma aristocracia decadente e imoral.

Contra a arte obscena de Fragonard, Greuze. Com uma grande qualidade pictural, Greuze retrata a virtude recompensada, o vício punido, a família exaltada, os bons sentimentos paternos, maternos ou filiais.

Mas será David que retratará as imagens heroicas, com suas virtudes cívicas e domésticas tão necessárias à Revolução. Curiosamente, no resultado final o heroísmo cívico, patriótico, vem acompanhado por uma espantosa eclosão homoerótica. Os homens, antes excluídos ou presentes apenas para exaltar a presença sexual das mulheres, tinham agora seus traseiros e bíceps exibidos num elenco de nus masculinos. O corpo masculino é retomado em sua nudez.

O caráter involuntário dos exercícios do desenho anatômico, expandindo-se pelas telas e pela cultura visual da época, caminha ao lado da consciência das práticas homossexuais da Antiguidade, fazendo da antiguidade um modelo supremo — não apenas teórico ou cultural, mas comportamental.

Winckelmann, grande teórico da restauração neoclássica, celebrava a beleza dos efebos e isso criará um gênero específico no interior do movimento neoclássico. Práticas sexuais e cultura se mesclam. De maneira muito pouco velada, surge uma moda homoerótica, uma presença do homoerotismo no interior do universo neoclássico.

Nos anos de 1790, surge um movimento arcaizante: o dos “Primitivos”, uma dissidência do neoclassicismo ortodoxo voltado para um desenho idealizado e simplificado, a partir dos vasos gregos. Os “primitivos” cultuam a linearidade dos artistas que precederam Rafael, desdenham o realismo de David, concebem leis próprias às sinuosidades dos contornos, apresentando superfícies unidas e simplificadas. É nesse meio que se encontram as obras que ilustram, mais significativamente, o erotismo homossexual.

E a presença das mulheres no interior da pintura neoclássica? A elas cabe um papel secundário. Nas representações eróticas do neoclassicismo, as mulheres são vestidas, encarregadas somente de fazer sobressair a beleza dos corpos nus masculinos.

O neoclassicismo heróico, estóico, moral, viril, quis expulsar o erotismo feminino. Na idealização estética, ética e cívica do neoclassicismo a sexualidade entre homens é suscitada através de uma cultura da virilidade.


O século XVIII deixou-nos imagens carregadas de um paroxismo erótico que celebrou, de maneira prodigiosamente sensual, as carnes femininas. Essas imagens invadem mundos diversos. Boucher, principalmente, fê-las surgirem e afirmarem-se. Tanto pela técnica quanto pelos temas, ele criou um universo que, de Fragonard a Goya, conservaria leis e coerência. Mestre supremo do erotismo nos tempos de Luís XV, ele tornou-se, por excelência, o pintor de deusas infernalmente sedutoras. Seu Triunfo de Vênus, datado de 1740, é, para o raciocínio que propomos, uma obra expressiva.

Figura 1 - François Boucher, O triunfo de vênus
Figura 1 – François Boucher, O triunfo de vênus

A tela faz surgirem sobre o mar seres desgarrados de um olimpo: sobre o mar, coxas, ancas, seios nacarados misturam-se com as nuvens e as ondas, com os brilhos e reflexos dos veludos e das sedas. São texturas voluptuosas, feitas de prazeres.

Como do Olimpo dos deuses ao Olimpo dos homens o passo é simples, Boucher retratará também os prazeres da corte. Entre vários exemplos, exporá algumas vezes alguns encantos calipígios de certas favoritas na corte de Luís XV.[1]

Figura 2 - François Boucher, Odalisca do cabelo escuro
Figura 2 – François Boucher, Odalisca do cabelo escuro

Ele não hesita em centrar, como tema principal, o posterior da jovem: toda idéia de pudor se esvai diante do prazer carnal, imediato e concentrado. Objeto do gozo aristocrático, as seduções expostas nos quadros de Boucher carregam-se dos desejos daqueles que os contemplam — o erotismo circula nos caminhos exasperados do intangível, fazendo do espectador comum o voyeur do inacesso.

Do Olimpo e dos palácios reais para uma esfera doméstica mais próxima, a pintura licenciosa do Antigo Regime oferece estímulos no cotidiano. Nicolas-Bernard Lépicié, em 1773, retrata, nessa configuração, Le lever de Fanchon. É a imagem de uma criada que acorda e que se veste para o trabalho. A sensualidade não parte da nudez, mas da intimidade surpreendida, que carrega de enlevos a ação de vestir-se, a cama desfeita, o cabelo despenteado e mesmo o lânguido espreguiçar-se do gato, roçando na perna da moça. Fanchon é uma jovem de aparência sólida e agradável, com indiscutíveis encantos, que poderia ser doméstica em qualquer boa casa. Ao contrário do que ocorre no quadro precedente, o imaginário voluptuoso fica excitado aqui pelo caráter virtualmente acessível da situação. Adentrar no quarto de Fanchon quando ela se veste encontra-se na ordem do possível para o público a quem o quadro é endereçado. Se no caso das favoritas aristocráticas ou reais, graças a uma evidente condescendência exibicionista, o erotismo alimentava-se da inveja e da distância intransponível, no dos amores ancilares é a situação em potência que produz os estímulos lascivos.

Fragonard foi o último dos grandes artistas franceses a criar um admirável conjunto de quadros licenciosos. Ele o fazia através de uma técnica fulminante. As cores fúlgidas de sua paleta e a vivacidade vertiginosa da pincelada, portadora de luz, de tons, cuja marca se evidencia sobre a tela, revelam uma exacerbação da virtuosidade pictural própria ao seu tempo. O far presto barroco transformou-se aqui num prestissimo, que é motivo de orgulho — uma inscrição, no verso de um de seus célebres retratos, proclamava: “Retrato do sr. abade de St.-Non, pintado por Fragonard em 1769, em uma hora de tempo”. A celeridade do pincel deixa seu rastro cromático e material, imprimindo nas superfícies o dinamismo do percurso colorido.

As banhistas, que Fragonard pinta possivelmente em 1770, expressam a certeza desenvolta dessa mão que sabe flagrar uma contínua mobilidade — da vegetação, das nuvens, das águas, das mulheres, mas também das próprias pinceladas, reveladas sem disfarce — e sabe pôr em evidência setores estratégicos dos corpos a serem exibidos, ora evidenciados pela luz, ora velados pela penumbra.

Fragonard é autor de algumas obras eróticas brilhantes. Tomemos uma delas. Ignora-se para quem o pintor teria criado esta imagem, mas o formato e as dimensões sugerem claramente uma decoração de boudoir, lugar para o qual o tema do estímulo sexual é adequado. O título — Fogo na pólvora — joga com um equívoco de gosto duvidoso: o desejo que toma conta do corpo de uma jovem deitada é simbolizado por pequenos amores com tochas. Um deles estende a chama até o sexo da moça, chama que recobre o púbis: o símbolo se torna metáfora, poética e visual, jogando com a ambivalência entre as chamas e os pêlos. É bem verdade que existe nesse quadro uma qualidade pictural tão alta, uma tal elegância desprovida de culpa, que a vulgaridade desaparece. Os irmãos Goncourt escreviam: “La legèreté est sa décence” — a leviandade é sua decência. E mais: “A impureza […] não possui nem orgulho, nem nojo, nem vergonha […] O quadro permanece uma inspiração luminosa”.[2] Inspiração luminosa, sem dúvida, mas a serviço de uma lubricidade maliciosa e estimulante.

Outra tela, Jovem fazendo dançar seu cão na cama, da Alte Pinakotheke de Munique, brinca com a pseudo-inocência e o estímulo tátil provocado pela cauda do cachorro entre as pernas da moça, erguidas para o alto, incluindo ainda um efeito provocante de exibição e ocultação. Corpo, brinquedo e prazer misturados, sem peso e sem pejo.

Figura 3 - Jean Honoré Fragonard, Jovem fazendo dançar seu cão na cama
Figura 3 – Jean Honoré Fragonard, Jovem fazendo dançar seu cão na cama

Essa exaltação das formas femininas, engendradas nas artes do século encontra, dentro da obra de Goya, uma última e soberba transformação, que a conduz a um apogeu. Muito claramente, o artista não disfarça a questão erótica, mas não entra pelos meandros escabrosos, traçados na França de Luís XV. Trata-se de um enfoque direto, quase brutal.

Goya pintara mulheres de radiosa sensualidade, como as Majas no balcão, e fizera também muitos desenhos licenciosos, sobretudo nos últimos anos do século XVIII, momento que corresponde à sua ligação com a duquesa de Alba. Mas o clímax desse erotismo encontra-se nas duas Majas deitadas, por volta de 1800. As razões dos dois quadros permanecem desconhecidas, e nenhuma hipótese plenamente satisfatória foi avançada para explicar as suas origens.

Há um episódio curioso que revela bastante a respeito da natureza de ambas as obras. Sabemos que a censura inquisitorial proibia os nus — até então, a pintura espanhola conhecera do gênero apenas a Vênus no espelho, de Velásquez, apresentada de costas e sublimemente idealizada. Por sinal, a Maja nua, de Goya, embora se encontrasse desde a segunda década do século XIX na coleção da Academia de San Fernando, em Madri, foi exposta ao público apenas em 1900, ao ser transferida para o Prado. Sabe-se também que, em 1814, com a restauração de Ferdinando VII e consequentes depurações políticas, o pintor é acusado perante o tribunal da Inquisição da autoria de duas pinturas obscenas: “una mujer desnuda sobre una cama y una mujer vestida sobre una cama”.

O ato de acusação estava muito certo: é preciso considerar esses dois quadros em sua mútua relação erótica. A Maja nua oferece seu corpo ao olhar, sem constrangimento, sem pudores ou perversões, num estado de graça em que todos os pecados e todas as culpas se foram. Goya celebra as carnações finíssimas e transparentes, os ritmos curvilíneos, o púbis delicadamente escurecido. Mas, além de tudo isso, o pintor afasta qualquer veleidade idealizadora. Não se trata de uma Vênus da mitologia, não se trata sequer de um “nu artístico”. Trata-se de certa maja madrilena, não nua, mas despida, pois a vemos com roupas, tomando a mesma atitude em outra tela. Neste ser duplamente apresentado o erotismo se atualiza, e o caso único das duas obras aponta para as soluções que a arte de veia realista encontrará na segunda metade do século. Ele evidencia também um traço muito nítido do artista. Goya ama profundamente a beleza e a juventude das mulheres. Este é o lado luminoso de suas telas, recorrente até o fim de sua vida.

Assim, a pintura do Antigo Regime concluiu-se carregada de um sensualismo centrado na exposição do corpo feminino. As telas que evocamos até agora excluíam os homens. Quando eles aparecem, servem para exaltar a presença sexual das mulheres. É Fragonard ainda que nos oferece bons exemplos.

Em O instante desejado, o amante, vestido, oculta-se para que se evidencie melhor os atributos da amada, ou, em A inútil resistência, esconde-se discretamente para cometer a indiscrição que revelará o corpo feminino. Neste último caso, o desejo é veiculado também pelas roupas, por meio de um caráter voyeur, que se acentua na célebre Escarpolette [Balanço], de 1766. Ali, percebemos muito pouco das intimidades físicas da jovem, mas o rapaz escondido entre as folhas espia por nós aquilo que a saia agitada permite entrever, num voyeurismo por procuração — enquanto o velho, no fundo, involuntariamente provoca o jogo voluptuoso entre os dois moços.

Um desenho, A sessão particular de pose, pressupõe o artista, que desenha outro artista, que desenha um modelo — e de um modo emblemático indica o gozo visual do desenhista transferido para os olhos do público. A arte se atribui a missão de exibir os poderes sexuais das formas femininas, e o artista, como, aliás, qualquer homem que participe da cena enquanto personagem, ou enquanto espectador, é o médium, invisível ou quase, desse erotismo que ele dispõe para seu próprio prazer. Ou, mais simplesmente, a mulher é o evidente objeto erótico, e o homem, o sujeito oculto.

O caráter licencioso dessa arte feria as intenções reformadoras das Luzes. Ele logo ficou sendo, para os filósofos, a marca de uma aristocracia decadente que era necessário reformar. Como se sabe, a propaganda revolucionária não hesitaria em insistir sobre a imoralidade do comportamento dos nobres, enquanto sinal visível de um corpo social corrompido. Diderot milita por uma arte regenerada e a burguesia toma para si o exemplo das virtudes, em oposição aos inimigos sociais que se entregam ao vício.

Greuze foi o pintor que melhor exprimiu essa pintura moralizante. Grande artista sem dúvida, ele fez sucesso perante um público que execrava a arte brejeira, ou por vezes francamente obscena, de um Fragonard. Com uma qualidade pictural muito elevada, pedagogicamente demonstrava a virtude recompensada, o vício punido, a família exaltada, os bons sentimentos paternos, maternos ou filiais. Por exemplo, em O paralítico, ou Os frutos da boa educação, o pai, que soube incutir o amor filial, é recompensado em seu fim doloroso de vida pela assistência dedicada da família. Não é muito difícil perceber que o amor filial foi transformado numa moeda que rende juros a termo: seja bom pai para ter o retorno na velhice… Os maus filhos são estigmatizados em outros quadros, assim como os bêbados, e todos os vícios, agentes destrutores das famílias, que sem eles poderiam ser prósperas e ditosas.

Os temas familiares, regidos por uma escolha moral, possuem um sério limite: eles são pouco numerosos e parecidos entre si. Não é possível multiplicar indefinidamente lares felizes ou infelizes — as causas e os efeitos se repetem. Falta a eles a variação do episódico, do lendário, do histórico. Acrescente-se ainda que a pintura de Greuze é por demais rica de graças para opor-se de modo definitivo às seduções de um Fragonard e de um Boucher. Mesmo com explícitas intenções piedosas, certas obras, como A prece matinal, faz despontar a sensualidade e a beleza carnal das mulheres através de pretextos ambíguos: a oração ao acordar permite a exposição das inocentes intimidades de uma adolescente em seu quarto.

A pintura de Greuze não tinha a força necessária para tornar-se a verdadeira e definitiva barragem contra a vaga libertina que invadira as artes do Antigo Regime. Será David, com um vigor plástico inesperado, a aliar o poder da forma às ambições iconográficas da grandeza histórica, que oferecerá à Revolução as imagens heróicas de que ela necessitava.

Diderot proclamava: “Il faut peindre comme on parlait à Sparte” — é preciso pintar como se falava em Esparta. Em 1784, O juramento dos Horácios, de David, foi essa pintura lacônica. A tela causou imenso efeito. Os contemporâneos a sentiram como inaugural e foram subjugados pela sua força. Do ponto de vista do desenho, das cores, da composição, tudo era novo, e nenhum dos elementos que constituíam a tradição rococó podiam sobreviver às novidades poderosas que surgiam ali. Os Horácios significavam o abandono de uma virtuosidade brilhante e rápida por um fazer pensado, refletido, no qual a razão intervém em cada etapa da fabricação do quadro. Ao colorismo constitutivo e indissociável das pinceladas que Fragonard apresentava opõe-se o desenho dos contornos que se aprendia aplicadamente a partir dos relevos da Antiguidade. Aos glacis, às transparências sem número que teciam, na pintura do Antigo Regime, a multiplicidade cromática da natureza, da atmosfera, dos corpos, opõem-se volumes nítidos, superfícies unidas por um só tom, que se organizam em claros e violentos efeitos de contraste. O movimento é abolido, o efêmero é abolido: ficam as tensões de seres cristalizados num mundo sólido e fora do tempo.

Vão-se os velhos temas, amáveis, galantes, eróticos. Ficam as virtudes cívicas, os seres sacrificados pelas causas superiores, a glória heróica e guerreira. Vão-se as perucas empoadas, as maquilagens extravagantes e as roupagens vivas, ficam os cabelos curtos, “à romana”, as togas antigas e severas ou sobrecasacas modernas e discretas. Vão-se as sinuosidades, ficam as linhas retas e rigorosas, herdadas da Antiguidade. Nenhuma lubricidade, nenhum apelo forte aos sentidos, Vênus deixou de triunfar: nunca mais os seios admiráveis das deusas do Olimpo e as nádegas sublimes das amantes de Luís XV, que Boucher pintara, nunca mais as intimidades fesceninas de Fragonard, as deliciosas obscenidades de seu Fogo na pólvora e tantos outros quadros de alcova, nunca mais essa natureza, essas mulheres, esses tecidos, apreendidos no relance de uma temporalidade efêmera, mas só feita de prazer. A austeridade viril de David afasta definitivamente a celebração do corpo feminino, que culminara durante os estertores do Antigo Regime.

Nos Horácios, tudo se funda na construção paulatina que desenha o espaço — eis por que a regularidade da arquitetura é preferida à desordem orgânica da natureza —; que desenha cada elemento dos seres e os reconstitui a partir de sérios conhecimentos anatômicos; que desenha cuidadosamente panejamentos e objetos para articulá-los num conjunto firme e contrastado; que faz desaparecer o traço da pincelada sob a superfície lisa dos volumes. O resultado é uma prodigiosa e límpida força visual. O espaço é geometrizado de modo a receber claramente os personagens — o chão quadriculado e os três arcos no fundo definem o lugar dos irmãos, do velho Horácio e das mulheres. Os homens, de pernas afastadas, inscrevem-se em triangulações retesadas; às mulheres, ao contrário, as energias abandonam e elas deixam cair os braços, apóiam as cabeças. O próprio desenho dos panejamentos, as próprias cores, obedecem a essas leis de oposição: vivacidade das dobras masculinas, peso dos tecidos femininos; brilhos e vermelhos violentos para os homens, tons baixos para as mulheres. Impactos essenciais através de contrastes nítidos, eis o que conta. Eles devem revelar a virtude cívica, a contenção enérgica, a presença familiar. Numa partilha binária, eles devem situar o papel ativo dos homens, senhores da guerra heróica, e o abandono sofrido das mulheres, vítimas de conjunções que as ultrapassam.

As virtudes cívicas e domésticas estão aqui reunidas. O heroísmo é maior porque pressupõe o refletido sacrifício no âmbito familiar. A moral pública e a privada viram-se proclamadas num poderoso manifesto visual. Elas ressurgiam, sucedendo aos moles prazeres aristocráticos e sensuais. E, naturalmente, todo antigo erotismo foi banido.

Não há sequer o luxo de ornamentos, de tecidos ou acessórios. As roupas cobrem modesta e pudicamente os corpos, colaborando para sublinhar a austeridade heróica. David encontrara seu tom.

O quadro dos Horácios data de 1784. Em 1814, depois de uma longa gênese de catorze anos, David conclui outra pintura, a última de suas obras-primas. Trata-se de uma enorme tela — 4 x 5,30 m aproximadamente — que representa o feito heróico de Leônidas, rei de Esparta, e seus soldados.

Figura 4 - Jacques-Louis David, Leônidas nas Termópilas
Figura 4 – Jacques-Louis David, Leônidas nas Termópilas

Encarregado de defender o desfiladeiro das Termópilas, o pequeno contingente grego enfrentou o gigantesco exército persa de Xerxes em 480 a. C., opondo a ele uma resistência feroz. Diante da superioridade esmagadora do inimigo, Leônidas dispensou a maior parte de suas tropas e se sacrificou com trezentos hoplitas espartanos, causando perdas consideráveis aos persas. David descreve suas intenções, num texto datado do ano de 1800:

Quero dar a esta cena alguma coisa de mais grave, de mais refletido, de mais religioso. Quero pintar um general e seus soldados preparando-se para o combate como verdadeiros lacedemônios, sabendo perfeitamente que não sobreviverão; alguns absolutamente calmos, outros fazendo guirlandas para assistir ao banquete no reino de Plutão. Não quero nem movimento nem expressões apaixonadas, com exceção das figuras acompanhando o personagem que inscreve na rocha: “Passante, vá dizer para Esparta que seus filhos morreram por ela”. Quero caracterizar esse sentimento profundo, grande e religioso que inspira o amor pela pátria. Conseqüentemente devo banir todas as paixões que não somente são estranhas a ele, mas que ainda lhe alterariam sua santidade […] Meu Leônidas será calmo, pensará com doce alegria na morte gloriosa que o espera e a seus companheiros de armas.[3]

Entretanto, no resultado final o heroísmo cívico, patriótico, vem acompanhado por uma espantosa eclosão homoerótica, onde traseiros e bíceps são exibidos num elenco de nus masculinos que passam do efebo ao atleta e ao homem maduro. Nas posições mais variadas, os corpos se tocam, se enlaçam como os de afetuosos bailarinos: há aqui alguma coisa próxima de uma apoteose de teatro. David centra a composição na beleza viril, frontal, de Leônidas, cuja bainha da espada tenta disfarçar o sexo, e enumera as ações à sua volta — o soldado cego, na extrema esquerda, que volta para o combate, aquele que inscreve na pedra com o punho da espada, o jovem que amarra suas sandálias, cuja pureza dos contornos evoca a linearidade dos vasos gregos. À esquerda de Leônidas, um adolescente despido e coroado de flores beija um homem maduro que o acaricia ternamente sobre o peito. Análises modernas e pudicas interpretaram essa dupla como um pai se despedindo de seu filho, mas ela é, antes, o avatar de imagens recorrentes na Antiguidade, frequentemente encontradas na iconografia dos vasos gregos, representando o paradigma sexual do erastes e do eromenos .[4]

Figura 5 - Homem cortejando rapaz (final do século VI a.C), Grécia
Figura 5 – Homem cortejando rapaz (final do século VI a.C), Grécia

É muito evidente que, do harém de Fragonard e Boucher para os guerreiros de David, uma reviravolta erótica se operou. Cabe perguntar o que teria acontecido, dos Horácios, de 1784, ao Leônidas, de 1814, para que tal guinada se desse.

Poderíamos começar assinalando que o heroísmo neoclássico baseava-se numa reforma da pintura moralizada pelo desenho, e que esse desenho, preciso e analítico, encontrava sua coerência na anatomia, no estudo aprofundado do corpo humano. Mesmo vestidos, era necessário desenhar primeiro os personagens nus, para que o rigor anatômico não fraquejasse. Essa prática não era decerto nova — foi utilizada desde o Renascimento. Mas o neoclassicismo conferiu-lhe um caráter sistemático, obsessivo e obrigatório. E com isso engendrou um corolário de efeito cultural: nesse clima heróico, onde os homens, agentes, ativos, predominam, o corpo masculino é retomado insistentemente em sua nudez — inclusive por razões de método pedagógico e de técnica da composição —, passando a invadir o terreno das representações neoclássicas, trazendo consigo a força, naturalmente involuntária, de seu específico erotismo.

Não apenas os personagens do passado, mas os contemporâneos, como o príncipe Eugène de Beauharnais, destinado ao quadro A distribuição das águias, de David, datado de 1810, exigiam estudos anatômicos, que partiam de modelos, aos quais eram acrescentadas as feições do retratado.

Figura 6 - Jacques-Louis David, desenho preparatório para A distribuição das águias
Figura 6 – Jacques-Louis David, desenho preparatório para A distribuição das águias

Esse cuidadoso desenho de nu, traçado pelo contorno, é transposto para a tela definitiva por meio do quadriculado. Na tela, as anatomias desenhadas aguardavam o complemento das roupas — elas também objeto de estudo cuidadoso, panejamento por panejamento, tecido por tecido. Destarte, todo quadro neoclássico pressupõe, por trás de homens vestidos, uma alma anatômica nua, feita de contornos — aliás não muito distantes dos que encontramos nos vasos gregos.

As práticas de escola levavam também os pintores ao desenvolvimento do exercício de desenho anatômico na direção da pintura. Trabalho obrigatório, a bela anatomia masculina era executada a óleo, testemunhando em favor das capacidades, próprias ao artista, de construir com vigor e harmonia um corpo. David, ainda uma vez, nos oferece um altíssimo testemunho desse gênero com sua Academia de homem, de 1780.

Esses exercícios de escola, que se iniciam no desenho e terminam por se tornarem óleos, podem elevar-se ainda e adquirem facilmente dignidade cultural graças a alguns poucos acessórios. Subleyras, pintor de grandes qualidades, que prolonga a nobreza histórica de seu mestre Rivalz — isto é, a grande tradição clássica do século XVII — e anuncia o neoclassicismo como precursor muito precoce, demonstra, com seu Caronte passando as sombras, de 1734, de que maneira um evidente estudo de modelo metamorfoseia-se facilmente numa figura mitológica.

Figura 7 - Pierre Soubleyras, Caronte passando as sombras
Figura 7 – Pierre Soubleyras, Caronte passando as sombras

Visto de costas, apoiado num bastão, numa postura que faz parte dos repertórios de ateliê, o nu masculino de soberbas qualidades picturais vê-se acrescentado essencialmente, de cada lado, no primeiro plano, de dois montes de tecidos que figuram as almas. Um fundo rubro para evocar as labaredas do inferno, e temos, engrandecido, o estudo primitivo, cujas formas masculinas sobressaem ainda mais evidenciadas e exaltadas.

Ao conceber seu Filocteto, Abildgaard, em 1774-5, utilizará os limites da tela para constringir a poderosa massa corpórea de seu personagem, acentuando a força expressiva da crispação dolorosa, provocada pelo ferimento no pé. Aqui, nem sequer os acessórios tornam-se necessários: basta a forma contorcida, comprimida no tornilho da mise-en-page. Os efeitos de contradição sublinham a energia embaraçada do corpo em desespero, e colorem a imagem em sofrimento de um tom sádico.

Figura 8 - Nicolai Abildgaard, Filocteto
Figura 8 – Nicolai Abildgaard, Filocteto

Num registro necrofílico, Fabre pintará A morte de Abel. Isto em 1791, no mesmo ano em que seu rival Girodet realiza o Endimião, cujo papel, nessa década, para a afirmação do topos do efebo, será crucial. Nos dois quadros, os jovens encontram-se deitados. Fabre procurará evocar a beleza clássica no rosto comovente, mas tratará a anatomia de modo realista, evitando toda abstração, exibindo a beleza das formas através da lisura muito branca da epiderme, fazendo tocar o púbis escurecido uma peliça de animal que sugere maciez de contatos.

Figura 9 - François-Xavier Fabre, Morte de Abel
Figura 9 – François-Xavier Fabre, Morte de Abel
Figura 10 - Anne-Louis Girodet. O sono de Endimião
Figura 10 – Anne-Louis Girodet. O sono de Endimião

Na Inglaterra, o próprio Blake, malgrado sua postura antiiluminista, centrará alguns de seus desenhos nas qualidades anatômicas masculinas, através de um traço sem dúvida fortemente pessoal, mas que não escapa à moda do arcaísmo dos vasos gregos. Sobejamente conhecido é seu Glad day, onde a posição do corpo — sem dúvida inspirada no famoso desenho de Leonardo — é celebrada por uma irradiação cromática e luminosa, que parece surgir da própria força juvenil que o habita. Seu Anteu deposita Dante e Virgílio no último círculo do inferno, de 1796, mostra, pela escala, pelo desenvolvimento contorcido do corpo — que não deixa de evocar o Filocteto, de Abildgaard —, a presença dominante da nudez masculina.

Figure 11 - William Blake, Anteu deposita Dante e Virgílio no último círculo do inferno
Figure 11 – William Blake, Anteu deposita Dante e Virgílio no último círculo do inferno

Desse modo, a prática da anatomia heróica propicia uma frequentação que faz emergir, nas telas, a beleza da nudez masculina. Trata-se de um surgimento, por assim dizer, insensível e involuntário. Entretanto, ele é corroborado e ampliado pela consciência indisfarçável que se tinha, no final do século XVIII, das práticas homossexuais[5] na Antiguidade. Isso nos é revelado pelos quadros mais complexos.

Um texto recente de Carol Ockman,[6] de grande interesse, assinala que o tradutor e especialista em Homero do final do século XVIII, Jean-Marie Bitaubé,[7] considerava que os amores entre homens era corrente e normal nos tempos da Grécia heróica. Isto assinala um aspecto novo, que se acrescenta às práticas das representações do corpo masculino acima evocadas. Quero dizer que esse caráter involuntário dos exercícios do desenho anatômico, expandindo-se pelas telas e pela cultura visual da época, caminha ao lado da consciência das práticas homossexuais da Antiguidade, e essas práticas enobrecem-se porque a Antiguidade tornou-se o modelo supremo — não apenas teórico ou cultural, mas comportamental.

Winckelmann foi o grande teórico da restauração neoclássica. Ele exerceu uma influência imensa sobre as artes e a filosofia de seu tempo, particularmente através de dois textos que escreveu: As reflexões sobre a imitação das obras gregas em pintura e escultura, de 1755, e sua História da arte entre os antigos, de 1764. Leônidas, de David, herda certamente a idéia de calma estóica que Winckelmann descobria como característica das grandes obras clássicas. Mas Winckelmann celebrava também a beleza dos efebos, o corpo liso, quase abstrato, dos jovens — e isso, como veremos, engendrará um verdadeiro gênero específico no interior do movimento neoclássico.

É interessante, entretanto, notar que, em Winckelmann, essa beleza abstrata não se esvazia de sexualidade. Steffi Roettgen, num estudo sobre as relações entre Winckelmann e Mengs,[8] chama a atenção para uma passagem das Memórias, de Casanova, passagem excluída das habituais edições expurgadas. Retomo aqui o resumo de Roettgen:

Casanova conta que, ao entrar um dia na sala de trabalho de Winckelmann — provavelmente na casa de Mengs —, viu fugir um jovem vestindo precipitadamente as calças. Sem embaraço por ter sido colhido assim em flagrante, Winckelmann lhe deu, de espontânea vontade, uma justificação para seu comportamento: inspirado por sua admiração pela Antiguidade, tinha descoberto que todos os seus heróis praticavam a pederastia e viam mesmo nela um meio para escapar à culpa do adultério. Então, ter-se-ia sentido inferior a eles se não os tivesse imitado e não podendo vir ao cabo “com a teoria”, tinha começado havia uns três ou quatro anos, a procurar-se experiências práticas com todos os mais belos rapazes romanos.[9]

É conhecido o episódio no qual Mengs, para enganar seu amigo Winckelmann, erudito e arqueólogo, pinta, no final da década de 1750, uma contrafação de uma pintura da Antiguidade romana.

Figura 12 - Anton Raphael Mengs, Júpiter acaricia Ganimedes
Figura 12 – Anton Raphael Mengs, Júpiter acaricia Ganimedes

Winckelmann caiu na esparrela, entusiasmou-se pela obra, que elogiou por escrito, incluindo-a mesmo na sua História das artes. A obra representa Júpiter num trono, recebendo uma taça de Ganimedes, ao mesmo tempo que acaricia e procura beijar o jovem. Tratava-se, evidentemente, do mito que encarna, por excelência, as relações entre o erastes e o eromenos. Como nota Roettgen, o tema foi escolhido com cuidado, de modo a encantar particularmente Winckelmann através de sua sexualidade.[10] Práticas sexuais e cultura se mesclam dentro de um comportamento que não se engana a si próprio.

Existiu, de maneira muito pouco velada, uma presença do homoerotismo no interior do universo neoclássico. Creio que podemos falar mesmo numa moda homoerótica com poucos disfarces. Os jovens efebos que Winckelmann exaltava em seus textos teóricos como modelos de beleza fazem entrada na pintura com estrépito através do Endimião, de Girodet (1791).

A tela, pintada em Roma e apresentada no Salão de 1793, ano do Terror jacobino, obteve imediato sucesso. Conscientemente, Girodet quis afastar-se do mestre David — o David supremamente estóico dos primórdios: “Tento distanciar-me de seu gênero [o de David] o mais possível, e não poupo nem esforço, nem estudos, nem modelos, nem gessos. Se terminar por fazer algo de ruim […] será de minha falta”.[11] E ainda: “Quero evitar os plágios”.[12] Girodet rompe com as academias dos Horácios, concebendo o corpo masculino segundo sinuosidades gráceis, disfarçando músculos e quaisquer relevos internos sob a epiderme lisa — isto é, as formas do efebo são tratadas como se fossem femininas.

Girodet retoma, incessantemente e de modos diversos, as relações da luz sobre a matéria, em soluções surpreendentemente novas. Podemos supor que, ao substituir a figuração de Diana, a deusa da lua, que vem se deitar ao lado do jovem, pela luz que banha o corpo adormecido, ele tenha sido levado por essa obsessão luminosa. De resto, o pintor tinha conciência da novidade.

Quase copiei mesmo o Endimião antigo; mas acreditei que não devia representar a figura de Diana. Pareceu-me inconveniente pintar, no próprio momento de uma simples contemplação amorosa, uma deusa célebre por sua castidade. A ideia do raio de luar pareceu-me mais delicada e mais poética, além do fato de que ela era nova, então.[13]

Como assinala Bernier,[14] uma vez que Diana foi suprimida e que o deus do amor afasta a vegetação para que os raios possam banhar o corpo do belo pastor, restam, um diante do outro, dois jovens nus, numa clareira onírica. Isto é, a efetiva ausência feminina, frágil álibi apenas no título, permite que surja, sem fingimento, um “deleite homossexual”, para empregarmos a expressão daquele autor.

O impacto desse quadro inesperado vai afetar a evolução do neoclassicismo, e mesmo da arte do mestre David. Seus alunos criaram uma atmosfera à qual ele não será insensível, e envolverá a produção pictural do fim do século.

A reação de David, por sinal, não se faz tardar. Ela vem um ano depois da exposição do efebo de Girodet, com A morte de Bara, de 1794.

Figura 13 - Jacques-Louis David, A morte do jovem Bara
Figura 13 – Jacques-Louis David, A morte do jovem Bara

Não é necessário enumerar todos os nomes ilustres da história das artes e da cultura que, de Friedlander a Starobinski, assinalaram as formas femininas, ambíguas, a pose não muito distante daquela que a estatuária da Antiguidade clássica conferia aos hermafroditas, presentes na obra. A tela do jovem Bara,[15] mito de mártir fabulado pela propaganda revolucionária, permaneceu inconclusa. David porém conduziu-o aos extremos de uma força poética intensa, espraiando o jovem corpo num fundo abstrato, onde o frottis permite uma dinâmica em fluxos feitos de densidades diversas dentro dos mesmos tons. O desenho, sem perder de sua força, integra-se na fina e calorosa luminosidade.

Com Endimião e com Bara o tema do grácil adolescente, celebrado e teorizado por Winckelmann, afirmou-se em visualidade icástica. Perceba-se, entretanto, a nova inflexão, operada na arte de David, a partir da obra do discípulo. É que o mestre, muitas vezes inconfessadamente, não é insensível às novidades despontadas dentro de seu próprio ateliê. Ali, nesses anos de 1790, surge um movimento arcaizante: o dos “Primitivos”, chamado ainda de “Barbudos” ou “Pensadores”. Dissidência do neoclassicismo ortodoxo, eles voltam-se para a força de um desenho idealizado e simplificado, a partir dos vasos gregos, revistos pela pureza do traço de Flaxman. Pré-rafaelitas avant la lettre, cultuam a linearidade dos artistas que precederam o gênio de Urbino, desdenhosos do realismo próprio a David, concebendo leis próprias às sinuosidades dos contornos, suprimindo os modelados e apresentando superfícies unidas e simplificadas. É nesse meio, e na pintura de algum modo atingida por suas convicções, que encontramos as obras que ilustram, mais significativa e diretamente, o erotismo homossexual.

Dentro desse campo inclui-se Dédalo e Ícaro, painel de Charles-Paul Landon, datado de 1799.

Figura 14 - Charles-Paul Landon, Dédalo e Ícaro
Figura 14 – Charles-Paul Landon, Dédalo e Ícaro

Regis Michel[16] traçou uma justa análise da obra, preciso exemplo do que era possível conceber como tradução moderna da pintura helênica, sem relevo e sem profundidade, onde o espaço se reduz a uma geometria quase abstrata, onde o traço destaca, isola e encerra os personagens, rigorosamente tratados de perfil. Faltou, no entanto, lembrar a relação próxima dos dois personagens masculinos, da proximidade tátil dos corpos, dos braços lançados à frente, em efeitos que evocam apelo e fuga. Se a relação pai e filho é o álibi da representação, a nudez e a figuração do binômio homem maduro/adolescente nos trazem de volta o par do erastes e do eromenos. Binômio equivalente, e com o álibi muito mais atenuado, impõe-se com o admirável desenho de Girodet — A educação de Aquiles.

Figura 15 - Anne-Louis Girodet, A educação de Aquiles
Figura 15 – Anne-Louis Girodet, A educação de Aquiles

A morte de Jacinto, de Broc, do Salão de 1801, apresenta um dos exemplos mais extremos das convicções dos Primitivos, pela espantosa simplificação dos meios empregados, pela poderosa autonomia dos contornos — razões pelas quais ele nos parece tão moderno. Mas a obra tem um outro caráter evidente.

Figura 16 - Jean Broc, A morte de Jacinto
Figura 16 – Jean Broc, A morte de Jacinto

O tema é extraído das Metamorfoses de Ovídio, que contam os amores infelizes de Jacinto e de Apoio. Ciumento, ao se ver preterido por Jacinto, Zéfiro, o vento, desvia o disco lançado durante um exercício praticado pelos dois amantes, fazendo-o atingir mortalmente o jovem que lhe desdenha o afeto. Tomado de infinita tristeza, Apoio transformará o amado que morre em seus braços na planta perfumada, o jacinto. “O episódio é carregado de um poderoso erotismo, cuja homossexualidade, devidamente assinalada pelo historiador moderno, é indubitável: o artista pintou um hino ao amor grego.”[17] A nudez límpida dos dois discóbolos, quase infantilizados pela representação dos sexos, o enlaçamento dos corpos, a ternura dos gestos, concebidos na abstração poderosamente sintética da tela, proclama um erotismo que ultrapassa as motivações individuais para integrar, sem máscara, uma concepção mais ampla, ou, se se quiser, uma moda. Vinte anos depois, e com outros meios, Claude Marie Dubufe dará outra versão dos amores masculinos do mesmo deus, com Apoio e Ciparisso, cujo tratamento precioso das superfícies, das matérias, contrasta com a secura de Broc, mas que traz o testemunho de uma sofisticada e tardia manifestação dessa estética dos amores entre homens.

Figura 17 - Claude Marie Dubufe, Apolo e Ciparisso
Figura 17 – Claude Marie Dubufe, Apolo e Ciparisso

Carol Ockman expõe uma das reflexões do homerista Bitaubé, a quem nos referimos mais acima, no que concerne aos “excessos” da sociedade grega nos tempos de Homero. Ele diz o seguinte: “É no estado de uma sociedade semicivilizada que as paixões e os sentimentos se desdobram com mais energia, e não houve povo mais sensível do que os gregos”.[18] Esses poderes das paixões, meio descontrolados numa “sociedade semi-civilizada”, podem levar-nos a uma obra muito forte de Girodet — A revolta do Cairo, datada de 1810.

Figure 18 - Anne-Louis Girodet, A revolta de Cairo
Figure 18 – Anne-Louis Girodet, A revolta de Cairo

Girodet explora o aspecto físico de raças não européias: enquanto pintava, “encontrava-se cercado por mamelucos que estavam morando, por assim dizer, em sua casa, e cuja beleza o eletrizava”, no dizer de seu biógrafo Coupin.[19] À direita, o grupo principal: enquanto se defende de um militar francês, um árabe sustenta, afetuosamente, o corpo inerte de um guerreiro oriental, vestido de modo suntuoso. O árabe em questão, como para lutar melhor, ergueu sua djela-bah até o pescoço exibindo sua vigorosa constituição física. A mitologia e o Oriente são os lugares da homossexualidade possível. Acrescente-se que, para essa dupla, Girodet inspira-se evidentemente no célebre grupo, conhecido como Suicídio de Galata, cópia romana em mármore de um original em bronze, helenístico, de 230 a. C.

Figure 19 - Suicídio de Gálata, arte de Pérgamo
Figure 19 – Suicídio de Gálata, arte de Pérgamo

O árabe de Girodet tem exatamente a postura do guerreiro em mármore que se mata. Uma diferença significativa, entretanto: o gálata segura, com a mão esquerda, sua esposa sem vida; na Revolta do Cairo, a mulher é substituída pelo jovem e belo guerreiro morto. O primitivo casal transforma-se num par do mesmo sexo, onde mantém-se a mesma união diante da morte.

Já nos referimos, algumas vezes, ao estudo aprofundado que Carol Ockman consagrou ao quadro de Ingres Aquiles recebendo os embaixadores de Agamenon.

Figure 20 - Jean-Dominique Ingres, Aquiles recebendo os embaixadores
Figure 20 – Jean-Dominique Ingres, Aquiles recebendo os embaixadores

A multiplicidade dos diferentes nus masculinos, a forma serpentina do corpo de Pátroclo, até mesmo a proximidade visual entre a mão esquerda de Aquiles, segurando a lira, e o sexo de seu amigo, foi assinalada pelo autor. Aquilo que nos interessa por ora é, por um lado, o “primitivismo” da concepção, que aproxima muito a obra da sensibilidade pictural desenvolvida pelos Barbudos e, por outro, o evidente caráter homoerótico do conjunto, associados a um quadro que possui uma natureza “acadêmica” por excelência, baseada num gosto oficial, pois foi com ele que Ingres triunfou no concurso do Prix de Rome. Isso nos revela o quanto, com essa obra que data de 1801, o mesmo ano do Jacinto de Broc, as escolhas “primitivistas” e as inflexões homossexuais haviam impregnado os critérios coletivos e aceitos. Acrescente-se que, no século XIX, ninguém como Ingres, ninguém mais insistentemente do que ele, celebrou o corpo das mulheres, criando uma incomparável e numerosíssima galeria de corpos femininos. Ele nunca mais utilizaria a linha serpentina num corpo masculino, como o fizera com Pátroclo. Isso nos conduz a interpretar — numa direção um pouco diversa da de Ockman[20] — o caráter obsessivo, recorrente, dos nus femininos na pintura de Ingres como o topos que o pintor buscou explorar e aprofundar durante toda sua carreira. Assim, o Aquiles configura-se enquanto exceção, levado exatamente por uma moda, ou por uma sensibilidade coletiva, como se quiser, que dominava nos meios picturais onde Ingres se encontrava imerso, sem que o homoerotismo, para ele, traduzisse o mesmo imperioso e insistente impulso que o levou a explorar visualmente as formas femininas.

Se nos interrogarmos sobre o papel dos homens na pintura do Antigo Regime, cabe perguntar também sobre a presença das mulheres no interior da pintura neoclássica. O primeiro aspecto, e o mais evidente, é que, quando surgem nessas representações eróticas do neoclassicismo, são as mulheres, vestidas, as encarregadas de fazerem sobressair a beleza dos corpos nus dos homens — exatamente ao contrário das obras licenciosas do Antigo Regime. É assim com o admirável e precoce Os amores de Páris e Helena, de David, pintado em 1788; com o Amor e Psique, de Gérard, obra muito marcada pelos princípios dos Primitivos e grande sucesso no Salão de 1797. Íris e Morfeu, de Guérin, tela fascinante de 1811, põe em concorrência os dois nus, masculino e feminino, concebidos, entretanto, com a mesma natureza de formas e superfícies. É certo, porém, que o corpo despido das mulheres é bastante raro, nesse universo, e um caso, pelo menos, o revela como indesejável.

Figura 21 - Pierre Narcisse Guérin, Íris e Morfeu
Figura 21 – Pierre Narcisse Guérin, Íris e Morfeu

Trata-se de uma obra de Girodet. São pouquíssimos os seus nus femininos. Entre eles destaca-se um quadro alegórico de espantosa violência contra as mulheres: Mlle. Lange como Dânae.

Figura 22 - Anne-Louis Girodet, Mlle. Lange como Dânae
Figura 22 – Anne-Louis Girodet, Mlle. Lange como Dânae

Mlle. Lange era uma atriz célebre, casada com um homem muito rico, que pediu a Girodet para lhe fazer o retrato. Por sua vez, Girodet era jovem e muito bonito. Mlle. Lange esperava que as sessões de pose pudessem ser divertidas, mas Girodet mostrou-se indiferente aos seus encantos. Quando o quadro foi exposto no Salão de 1799, Mlle. Lange enviou ao pintor o seguinte bilhete: “Queira, senhor, fazer-me o favor de retirar da exposição o retrato que, dizem, nada pode por sua glória e comprometeria minha reputação de beleza. Meu marido e eu suplicamos-lhe que faça com que ele não permaneça ali mais 24 horas”.[21] Hubert Robert, célebre paisagista, encarregou-se, suplementarmente, de levar ao ouvido de Girodet mexericos maldosos. O autor do Endimião retira o quadro do Salão, rasga-o e o envia em pedaços ao seu modelo. E pinta então Mlle. Lange como Dânae.[22]

O próprio tema já é insultante: Dânae, penetrada por Júpiter que se transformou numa chuva de ouro, é, por excelência, o símbolo do amor venal. Georges Lévitine trouxe elementos para a decifração da alegoria satírica.[23] O modelo está nu. Sob a cama, uma cabeça de sátiro com uma moeda de ouro enfiada num olho — é um dos amantes a quem Mlle. Lange havia custado muito caro; aos pés do modelo, o texto do Asinário, de Plauto, onde se conta a história de uma cortesã que vende seus favores a um pai e a um filho; o peru possuiria uma grande semelhança com o marido rico, ele é depenado por um puto; o cupido, auxiliando Dânae a recolher as moedas caídas do céu, teria os traços da filha de Mlle. Lange, que, muito precoce, principiara a seguir os passos da mãe. No fundo, uma lamparina atrai mariposas que ali queimam suas asas.

A pintura é esplêndida, e Girodet desdobra seu talento em tratar os efeitos de luz, de natureza diversa, reagindo sobre matérias diferentes. Mas o quadro é de cruel e violenta misoginia — o nu, espantosamente belo, está ali presente para ser insultado.

Tal episódio ajuda a bem delinear certos aspectos da natureza especifica desse erotismo que a reforma neoclássica terminou por engendrar. Estamos num universo essencialmente masculino, dominado pela ação. Ockman assinala a dualidade no Aquiles de Ingres entre otium e negotium. Os embaixadores fazem um apelo para que o guerreiro retorne às batalhas; ele é encontrado no seu lazer, ao lado do amado Pátroclo, cantando, acompanhado por sua lira, a glória dos heróis. Este é o otium do guerreiro, lazer viril. A cena do quadro é inteiramente tomada pelos homens, seus interesses, suas atividades e, mesmo, seus amores. Em frisa, no primeiro plano, os heróis, musculosos como Ajax, sinuosos como Pátroclo, ágeis como Aquiles. No fundo, outros guerreiros exercitam-se nus no lançamento de discos. Uma figura feminina, entretanto, isolada desse terreno público, ao ar livre, dos machos, encontra-se mergulhada na penumbra, dentro da tenda. Ela está fora da cena, limitada ao âmbito do doméstico, condenada à passividade e à sujeição, algo entre a escrava e o objeto: lembremos que o motivo do conflito que preside o quadro é a devolução de Briseida, acompanhada por vários presentes de Agamenon: sete outras mulheres de Lesbos, belas e ótimas para o serviço doméstico, sete tripés, vinte caldeirões, doze cavalos… Os quadros de David, aliás, já mostravam as mulheres tomadas de um sofrimento impotente, nos Horácios, no Brutus. Em A morte de Sócrates, Xantipa é conduzida para fora da cela, porque o filósofo não suporta as lamúrias da esposa: são os homens que tomam a dianteira da imagem para, seriamente, meditarem sobre a morte.

Há também o caso das Sabinas, de 1799, obra ambiciosa, grande, de 4 x 5 m, representando não o rapto, mas o momento no qual, três anos mais tarde, as mulheres separam os romanos dos sabinos, que tinham vindo vingar-se e levá-las de volta.

Figura 23 - Jacques-Louis David, As sabinas
Figura 23 – Jacques-Louis David, As sabinas

Elas haviam se tornado mães, constituído família com os romanos, e em nome desse papel agem para interromper a ação, impedir o combate, fazer com que não atuem os valores masculinos agressivos, mas que prevaleça a paz do gineceu. Resta ainda que, com esse quadro, David decide radicalizar o arqueologismo que presidia suas composições inspiradas na Antiguidade. O quadro, diz o pintor, será “grego”, e não romano — isto é, marcado pelas simplificações dos vasos helênicos, pelas ilustrações homéricas de Flaxman ou, melhor, David é em verdade levado pela corrente criada dentro de seu próprio ateliê, por obra dos dissidentes: os Primitivos, que, aliás, não se declaram convencidos e consideraram o quadro muito tímido no seu projeto de arcaísmo. Em todo caso, é em nome desse rigor arqueológico e dentro da sensibilidade nova criada por essa vanguarda que ele vai apresentar despidos os guerreiros da imensa pintura.

O fato causou sensação: versos maliciosos, trocadilhos (David é chamado de “o Rafael dos sans-culotte”), mesmo um vaudeville satírico fazendo referência à tela é montado em Paris. Os críticos sentiram-se incomodados pela obra. É evidente que os dois guerreiros nus, em meio às mulheres vestidas, exibindo suas formas de frente e de costas, fizeram com que o erotismo homossexual emergisse. O idealismo das formas era o pretexto, mas um debate no Institut de France, provocado pelo quadro, põe o dedo na ferida ao mencionar: “Aquilo [ou seja, o nu] que é permitido na escultura o seria também em pintura, onde os objetos que podem ferir a decência são apresentados com as formas e as cores da natureza, atingindo um intolerável grau de verdade?”.[24]

O Otium e o negotium são, e devem ser, próprios ao homem. A cultura visual do tempo insiste nesse aspecto, deixando às mulheres um papel secundário e nitidamente distinto do mundo masculino, que possui suas regras, e seus prazeres, internos. O texto de Bitaubé sobre o mundo homérico contém ainda uma passagem muito ao gosto antropológico do século XVIII: “O desprezo pelas mulheres é a marca característica dos selvagens em todas as partes do globo. O homem que faz concentrar todo seu mérito na sua força e na sua coragem olha para sua mulher como uma criatura indigna, e trata-a com desdém”. De acordo com Bitaubé, Aquiles deve ter pensado: “Nous n’avons qu’un ami, il est tant de mattresses”.[25]

Esse desprezo pode supor, em verdade, a mulher como um perigo e um inimigo, a ser mantida no âmbito doméstico e privado — e sobretudo a ser mantida fora dos prazeres físicos. Um tema-chave para essa compreensão, retomado no período por Vincent, por Peyron e por Régnault,[26] é Sócrates arrancando Alcibíades do seio da volúpia.[27]

Figura 24 - Jean-Baptiste Régnault, Sócrates arrancando Alcibíades do seio da volúpia
Figura 24 – Jean-Baptiste Régnault, Sócrates arrancando Alcibíades do seio da volúpia

Régnault nos mostra um Alcibíades saindo com dificuldade e mau humor do colchão macio, dos lençóis acolhedores, e da companhia de três jovens voluptuosas — alguma coisa bem próxima daquelas imagens aconchegantes da pintura aristocrática do Antigo Regime. Alcibíades, como se sabe, além da beleza, da força e da coragem, não resistia aos prazeres e à sensualidade. Lembra Régis Michel: o episódio retoma o apólogo de Hércules na encruzilhada, entre o bom caminho da virtude, áspero e duro, e o mau caminho do vício, fácil e convidativo. Mas a representação de Régnault não possui nada da escolha abstrata e conceptual — Sócrates propriamente arranca o discípulo de uma cama cheia de seduções. Em verdade, a cena evoca as representações dos bordéis, já estabelecidas havia tempos, particularmente abundantes na pintura holandesa do século XVII, onde jovens se perdem com delícias entre mulheres e bebedeiras — espécie de Alcibíades sem Sócrates encontra-se, por exemplo, no excepcional quadro de Nicolaus Knüpfer, do Rijksmuseum de Amsterdã.

Alcibíades provocava seus concidadãos desde o uso de certas indumentárias muito luxuosas — ficou célebre sua túnica púrpura, própria aos efeminados, que ele arrastava na poeira.[28] Mas a palavra efeminado não possui aqui exatamente o mesmo sentido que para nós, hoje. Trata-se do homem que gosta da companhia das mulheres, que se deixa contaminar pela volúpia deliquescente, aquela que destrói as virtudes da coragem, do vigor, da austeridade. Nesse sentido, o quadro de David, Páris e Helena, representa um mundo efeminado, como é efeminado o bordel de Alcibíades. Como Aquiles, Páris possui sua lira mas, nota Mme. Dacier, a tradutora de Homero no século XVIII:

Aquiles não canta os amores como um Páris, cuja lira foi chamada por Horácio de “efeminada”, “pouco guerreira”, “imbelli citharà”, mas ele canta as proezas dos grandes capitães; pois, se há uma música mole e efeminada, há uma nobre e guerreira, que é digna dos herois. Eis por que Homero faz aqui Aquiles divertir-se em cantar e tocar a lira: seu ressentimento fez com que ele renunciasse aos combates; não lhe resta portanto outra consolação além de cantar as grandes ações dos heróis, para oferecer sempre, desse modo, repasto à sua coragem.[29]

O quadro de Régnault nos diz que Sócrates está arrancando Alcibíades do vício, da volúpia. É claro que o está levando para a virtude. Mas a virtude encontra-se no campo dos homens. Sócrates retira Alcibíades do mau otium, aquele que desfibra o valor viril, o otium não másculo, feito de prazeres trazidos pelas mulheres, para levá-lo ao negotium masculino, que possui também seu digno contrário. No quadro de Ingres, tudo acontece no mundo dos homens — Aquiles encontra-se num respeitável otium: não é sua lira a dos heróis? não é viril sua amizade por Pátroclo? A diferença das solicitações do quadro de Ingres e do quadro de Régnault — representadas pelos embaixadores num caso, e por Sócrates no outro — é que, no primeiro, otium e negotium estão no mesmo plano, elevado, dos valores dos homens, e, no segundo, o otium efeminado é indigno, e Alcibíades, por práticas deletérias, dissolve nele suas virtudes masculinas.

Para onde mesmo Sócrates está levando Alcibíades? As mulheres, vestidas, envolvem-se na volúpia dos tecidos. Alcibíades, quase nu, parte para os rigores do heroísmo despojado, isto é, para esse heroísmo que inclui, no otium, no negotium, os amores homossexuais. Apolo e Jacinto no jogo do disco, Apolo e Ciparisso na caça, combatentes árabes despidos em atitudes afetuosas, guerreiros romanos e sabinos nus, diante das mulheres vestidas, Leônidas and his boys na luta e no afeto entre machos. O nu e os prazeres femininos não cabem aqui. É muito coerente com isso tudo que mlle. Lange tenha sido insultada pela admirável pintura de Girodet.

O neoclassicismo heróico, estóico, moral, viril, quis expulsar o erotismo feminino como fator deliqüescente. A idealização estética, ética e cívica do projeto neoclássico suscitou um demônio que não estava previsto. Definiu um campo eminentemente masculino, onde a sexualidade entre homens é suscitada através de uma cultura da virilidade. Abriu um terreno de exploração para certa sensibilidade erótica que, embora recorrente desde sempre nas artes, lutava com procedimentos de ocultação. Por alguns decênios, essa sensibilidade tornou-se de regra, num momento singular da cultura.[30]

  1. O quadro que apresentamos aqui é tradicionalmente identificado como representando Victoire O’Murphy. Essa identificação é abandonada por Alastair Laing (cf. catálogo da exposição François Boucher, The Metropolitan Museum of Art, Nova York, 1986) — entre outros argumentos, a jovem teria dez anos no momento da execução da tela, se o quadro data de 1743 —, o que também não é inteiramente certo. Outra tela, hoje batizada como A odalisca de cabelos claros, de 1752, não exclui a identificação com Louise O’Murphy, irmã de Victoire. O que nos importa, entretanto, é a exposição da nudez dessas jovens que gozavam de favores da nobreza e do monarca: “Taken together, the evidence does sugest that Louis XV enjoyed the favors of a nubile young girl who had posed for Boucher and other painters […]” (op. cit., p. 262); referindo-se ao segundo desses dois quadros, e ao papel alcoviteiro de alguns personagens presentes na corte do tempo: “Thus, if we no longer have a likeness of Louise O’Murphy, we may yet have a picture that was painted to pander to the king” (op. cit., p. 263).
  2. Apud Pierre Rosemberg, Fragonard, Paris, RMN, 1987, p. 163.
  3. Apud Antoine Schnapper, David témoin de son temps, Paris, Bibliothèque des Arts, 1980, p. 196.
  4. O erastes, na Antiguidade grega, era o parceiro ativo na relação amorosa, e geralmente um homem mais velho, um homem na força da idade. O eromenos, objeto passivo do amor, é figurado frequentemente como um jovem na adolescência.
  5. A palavra homossexual é recente, data do início do nosso século, e possui uma desagradável natureza de conceito científico classificatório. É também, evidentemente, uma palavra anacrônica, no que concerne ao período de que tratamos, bem como homoerático, neologismo importado do inglês que os nossos dicionários não registram. Elas parecem-me, no entanto, inevitáveis num texto moderno para substituir a perífrase “amores, ou erotismo, entre pessoas do mesmo sexo”.
  6. Carol Ockman, “Profiling homoeroticism: ingress Achilles receiving the ambassadors of Agamemnon”, Art Bulletin, jun. 1993.
  7. Bitaubé era uma das principais referências no que concerne à cultura homérica da época. “Despite his use of original greek sources, Ingress attitudes toward Antiquity were shaped largely by litterary and pictorial conventions of the late eighteenth century. The edition of the Iliad that he owned was edited by Paul-Jérémie Bitaubé, who considered homosexuality a normal feature of Greek society at the time of Homer.” Carol Ockman, op. cit., p. 267.
  8. Steffi Roettgen, “Winckelmann e Mengs”, in J. J. Winckelmann tra letteratura e archeologia, Veneza, Marcilio, 1993.
  9. Idem, ibidem, p. 159.
  10. “La scelta del soggetto tenne conto delle tendenze omossessuali di Winkelmann, che erano note ai suoi amici, anzi se nessuno di essi ne parlava apertamente.” In Steffi Roettgen, op. cit., p. 155.
  11. Jean Clay, Le romantisme, Paris, Hachette, 1980, p. 124.
  12. Carta ao dr. Trioson, apud P. A. Coupin, Notice historique sur la vie et les ouvrages de Girodet, s. d., p.
  13. Apud Georges Bernier, Anne Louis Girodet prix de Rome 1789, Paris/Bruxelas, Jacques Damase ed., 1975.
  14. Cf. idem, ibidem, p. 16. Cf. também Robert Rosemblum, Resenha da exposição Girodet, Revue de l’Art, nº 3, 1969.
  15. Sobre o quadro, cf. o notável conjunto de estudos que compõem o catálogo da exposição La mort de Ram, de l’événement au mythe, autour du tableau de Jacques-Louis David, Avignon, Ed. Fondation du Musée Calvet, 1989.
  16. Cf. Regis Michel, “Bara: du martyr à l’éphebe”, in La mort de Bara…, op. cit., p. 73.
  17. Idem, ibidem, p. 74.
  18. Apud Carol Ockman, op. cit., p. 267, nota 33.
  19. Cf. P. A. Coupin, op. cit., pp. XVIII.
  20. “After Achilles, Ingres never again used serpentine line to define the nude male body. In his late work, he confined his efforts at depicting sexual otherness to the bodies of women. For, as the nineteenth century progressed, the urge for stable gender identities only grew stronger. In short order, the serpentine line, which functioned as a vehicle for binary opposition in Achilles receiving the ambassadors of Agamemnon, gave way to the maniac and endlessly fascinating, if ultimately futile, project of attempting to enact stable gender identities on the female body.” Carol Ockman, op. cit., pp. 273-4.
  21. Apud Georges Bernier, op. cit., p. 37.
  22. Cf. P. A. Coupin, op. cit., pp. my e xv.
  23. Georges Lévitine, “Girodet’s new Danaê — the iconography of a scandal”, The Minneapolis Institute of Arts Bulletin, Lyn’, 1969.
  24. Apud Hugh Honour, Neo-classicism, Londres, Penguin, 1968.
  25. Carol Ockman, op. cit., p. 268, nota 34.
  26. A respeito do quadro de Régnault, ver Régi Michel, “L’art des salons”, in Aux armes & aux arts, Paris, Adam Biro, 1989, pp. 36-7. Assinalo que algumas das observações que concernem ao papel da mulher no otium masculino, eu as devo a Lúcio Schoenman do Nascimento.
  27. Salão de 1791.
  28. Sobre Alcibíades, cf. J. Hatzfeld, Alcibiade. Étude sur l’histoire d’Athènes à la fin du Ve siècle, Paris, 1951.
  29. L’Iliade d’Homère traduite en français avec des remarques par mme. Dacier, vol. II, Leiden, 1771. Trecho citado por Carol Ockman, op. cit., p. 264, nota 17.
  30. As citações do texto foram traduzidas por mim.

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