2005

Cena e violência

por Mario Perniola

Resumo

Qual a relação entre a cena e a violência, entre o espetáculo social e a morte, entre a realidade política e o terrorismo? Na realidade parece que a violência tende a se organizar na cena e que – como foi observado por Roland Barthes – as condutas mais violentas (como eliminar, matar, ferir, dar xeque-mate) são também as mais teatrais: em cada violência é possível perceber um núcleo retórico. Qual a relação que existe entre este fenômeno e a civilidade política moderna? Qual é a credibilidade da “sociedade de espetáculo” que caracteriza a nossa época? Como libertar-se dos mitos econômicos, políticos e culturais que levaram ao retorno da guerra? Por fim, será contraposta à “sociedade do espetáculo” uma sociedade ritual que busca o sentido da vida não em eventos espetaculares, mas no desenvolvimento pacífico do cotidiano.


  1. Teatralidade e violência como paradigmas da política da Idade Moderna — Começarei contando-lhes uma coincidência singular. No mesmo dia em que comuniquei aos organizadores o título desta conferência, tive a oportunidade de ver o filme Confissões de uma mente perigosa, de George Clooney. Neste filme conta-se a dupla vida de Chuck Barris, que unia na mesma pessoa os papéis opostos de apresentador, na televisão, desses jogos que distribuem prêmios, e de implacável agente da CIA. Na existência desse personagem, portanto, a cena e a violência, isto é, o uso da televisão para transmitir espetáculos pueris de variedades e o assassinato de 33 pessoas, conciliam-se perfeitamente.

Na realidade, a aproximação entre cena e violência pertence à cultura ocidental, na qual a cena e a morte, o pensamento e o sangue estão estreitamente ligados. A ação histórica precisa ser cênica para ter um sentido e ser ação violenta para ser real. Precisa ser cênica, isto é, repetir um modelo, ritualizar um mito, recitar um texto, porque deve criar acima da sociedade natural uma sociedade “racional”. Por exemplo, como observa Marx, a Revolução Francesa de 1789 é a representação de um roteiro extraído da história da Antiga Roma. Mas ela precisa também ser violenta, porque não pode apresentar-se simplesmente como espetáculo sem cair na farsa. Por isso é obrigada a manter a seriedade da representação com a morte, e, nos casos extremos, com o terror. Sob esse aspecto, o Terror da Revolução Francesa deve ser considerado consequência lógica de suas premissas teatrais.

Segundo Roland Barthes, há uma estreita conexão entre cena e violência, entre o espetáculo social e a morte, entre a teatralidade política e o terrorismo. A violência tende a organizar-se em cena, as condutas mais violentas (como ferir, eliminar, matar, derrotar) são também as mais teatrais. Em toda violência é possível perceber um núcleo literário.

Dar efetividade à ideologia, transformá-la em algo de real implica por isso, frequentemente, o exercício do negativo e da morte. Conta-se que o grande estudioso de Hegel, Alexander Kojève, teria dito respeito de Maio de 1968: “Le sang n’a pas coulé, il ne s’est rien donc passé” [Não correu sangue, logo nada aconteceu.” (N. do T.)]. De fato, segundo a perspectiva dramatúrgica da história, inaugurada com a Revolução Francesa, a ideologia conseguirá provar a própria realidade somente quando estiver preparada para pôr em cena uma representação que verta sangue. Nesta, a ação política é imitação de uma ação considerada prototípica, plena de significado (como os feitos dos antigos romanos para os protagonistas da Revolução), que funda a própria seriedade sobre o fato de que dispensa a morte e se expõe ao risco de morte. Na cena política dos últimos dois séculos, parece essencial pelo menos ter corrido o risco de ter sido morto.

Pergunto-me, todavia, se esse paradigma é válido ainda hoje para explicar a situação política mundial, e mais especificamente a guinada militarista dos Estados Unidos. Daqui provêm as perguntas que me tenho posto nos últimos meses: as sociedades ocidentais sofreram realmente uma brusca inversão de tendência, passando do pacifismo pós-histórico ao militarismo estatal? O grupo dos Estados pacifistas (Alemanha, França e Rússia, sobretudo) seria de fato um conjunto de países atrasados destinados ao declínio? Em que direção vai “a força das coisas”, sobre a qual os homens têm tão pouca influência? O despotismo oriental teria atingido também o Ocidente, transformando nossas democracias em autocracias plebiscitárias? A retórica apologética da comunicação global, sobre a qual se sustenta tanta utopia de boa vontade, seria simplesmente vulgar propaganda política, igual àquela desenvolvida no passado pelos totalitarismos? Em outras palavras, a guinada militarista conduz-nos drasticamente a uma lógica realística segundo a qual o que conta é apenas a força militar?

Mesmo tendo participado das manifestações pacifistas, não escondo ter nutrido muitas perplexidades acerca do fenômeno que eu contestava. Pareceu-me, na verdade, impossível que aquelas pessoas céticas e desencantadas que são meus contemporâneos ocidentais pudessem, de repente, transformar-se em potenciais heróis, dispostos a morrer pelos interesses dos Estados Unidos, ou pela causa do Ocidente, ou por qualquer outra causa (até mesmo aquela da paz!).

Em outras palavras, há algo de falso, tanto no militarismo como no pacifismo, que requer um tipo de explicação diferente daquela tradicionalmente articulada sobre os binômios guerra/paz, violência/guerra, espetáculo/variedade.

Minha proposta teórica consiste em procurar em outro lugar uma chave interpretativa para compreender a situação político-social de hoje. E onde? Na comunicação.

  1. Três historinhas sobre a comunicação midiática — Tentarei introduzir o tema da comunicação de modo empírico, contando três historinhas que me parecem exemplares.

A primeira diz respeito a um seminário sobre novas tecnologias. Depois de quatro horas de intensa discussão, da qual participaram mais ou menos vinte operadores culturais de várias profissões e competências, um deles, provocando um breve embaraço entre os presentes, exclamou: “Mas do que estamos falando?”. A pergunta não teve resposta, todos a consideraram irrelevante, e a discussão continuou por mais quatro horas. Gravado integralmente com uma câmara de vídeo, o seminário tornou-se parte de um curso de new media vendido caro em DVD.

A segunda historinha trata da performance de um líder de certo partido. Ele fez uma afirmação pública provocatória e agressiva em relação a todo um grupo socioprofissional, o que suscitou em muitos escândalo e indignação. Depois de poucas horas, voltou ao tema retratando parcialmente sua declaração. No dia seguinte, sustentou que a frase incriminada era uma brincadeira e absolutamente sem intenções ofensivas. À noite do mesmo dia afirmou que ela continha, em todo caso, uma parcela de verdade. No terceiro dia disse que tinha sido mal interpretado. À tarde do mesmo dia, por fim, acrescentou que tinha sido apenas o porta-voz de uma opinião muito difusa da qual não compartilhava. E, assim, por três dias esteve no centro das atenções da mídia.

A terceira historinha é sobre um tycoon da arte contemporânea, que conseguiu finalmente abrir no lugar mais prestigioso da capital sua nova galeria permanente, acompanhando o evento com uma campanha publicitária sem precedentes. Movido pelo interesse de tornar verdadeiramente popular a arte contemporânea, recolheu em luxuosíssimas salas obras de artistas de tendências e orientações bastante diferentes e até opostas, que tinham em comum entre eles a característica de não exigirem nenhuma intervenção interpretativa: em sua estratégia, de fato, a nova arte devia atingir o espectador por seu caráter direto e realista. Os visitantes de sua galeria, na qual se entrava mediante o pagamento de um ingresso, cujo preço era consideravelmente elevado, atingiam assim o duplo resultado de divertir-se como em um parque de diversões e participar de um ritual elitista.

Essas três historinhas pertencem a contextos diferentes: a primeira, àquele do saber e do conhecimento; a segunda, àquele da ação política; e, por fim, a terceira, àquele da cultura. Têm, todavia, um ponto em comum: elas mostram como é possível introduzir nas atividades tradicionais da ciência, da política e da arte um desvio aberrante que consiste em dirigir-se diretamente ao público, saltando e ridicularizando as mediações reconhecidas do método científico, do jornalismo e da crítica. O aspecto inquietante e subreptício de tais operações consiste no fato de que não podem ser simplesmente liquidadas como charlatanice, impostura ou falsidade. No decorrer do longuíssimo seminário sobre as novas tecnologias foram ditas muitas coisas não somente plausíveis, mas também, às vezes, inteligentes. As declarações do líder do partido tinham indubitavelmente um conteúdo político e exprimiam necessidades e interesses concretos. Muitos dos artistas das obras de arte do tycoon podiam, em outro contexto, assumir um valor artístico intrínseco. Apesar disso tudo, a absoluta falta de ordem e de método do seminário tornou-o cientificamente nulo. O caráter contraditório e cheio de desmentidos e retificações da atuação do líder do partido faziam-na aparecer insensata. A organização promocional e totalmente acrítica da exposição retirava-lhe qualquer valor estético. Não é, todavia, com base em tais critérios que essas três iniciativas pretendiam ser consideradas. Elas se punham em outra dimensão, que não aquela da ciência, nem da política, nem da arte; mas aquela da comunicação midiática. Esta é a varinha mágica que transforma a inconcludência, a retratação e a confusão, de fatores de fraqueza, em provas de força, e que substitui a educação e a instrução pelo edutainment [termo formado de education + entertainment. (N. do T.)] a política e a informação pelo infotainment (termo formado de information + entertainment. [N. do T.)] e a cultura pelo entertainment [Divertimento, diversão. (N. do T.)]. Ao dirigir-se diretamente ao povo, tudo tem um aspecto muito democrático: não é por acaso que para designar esse fenômeno foi cunhado o termo democratainment.[ Termo formado de democracy + entertainment. (N. do T.)].

  1. A comunicação é uma ideologia? — Contei essas historinhas pondo o verbo no passado não porque não possam acontecer também hoje, mas porque a época da comunicação chegou a seu ápice. Foi como uma doença em relação à qual as sociedades mais cultas e de maior tradição democrática estão desenvolvendo os anticorpos. Depois de ter-se manifestado completamente em todos os âmbitos sociais com seus efeitos deletérios e arruinadores, a comunicação consente-nos finalmente subtrairmo-nos à intimidação chantagista com a qual, pouco a pouco, impôs-se na última década do século XX, que foi um período de extraordinária e tumultuosa inovação tecnológica. Confundindo-se com esta última, foi fácil para a comunicação tachar de conservador e retrógrado todo aquele que se opusesse a seu avanço. De todas as mistificações, indubitavelmente, a maior é aquela de apresentar-se sob o aspecto do progressismo democrático, quando, na verdade, constitui a configuração mais completa do obscurantismo populista.

O economista francês Jean-Paul Fitoussi, opondo a comunicação à informação, considera aquela como o meio privilegiado das ideologias, as quais constituem um conjunto de opiniões e doutrinas já prontas que é assumido de modo acrítico como sustentação da ação política.[1] Nosso período não seria assim absolutamente caracterizado pelo ocaso das ideologias (isto é, os assim chamados “grandes contos”, que, como o comunismo, o liberalismo, o fascismo, pretendem fornecer uma explicação total do mundo), mas seria sim caracterizado por uma simplificação e uma banalização extremas das ideologias, o que faz com que o aspecto conceitual sucumba em favor da emocionalidade. A publicidade comercial observa Fitoussi — tem sua verificação objetiva na mercadoria que promove, a qual tem por isso a possibilidade de desmenti-la. Já a nova comunicação ideológica seria completamente livre da possibilidade de verificação. De fato, não se vê como se possam submeter a uma análise racional os argumentos de quem se diz campeão de uma guerra infinita do “bem” contra o “mal”!

Eu já pertenço àquela geração para a qual o discurso belicista de Bush soou como algo inaudito. Mas, ao mesmo tempo, pertenço ainda àquela geração que continua sabendo o que é uma ideologia (ou uma sensologia) belicista. Esta implica, por exemplo, o alistamento obrigatório e a militarização da sociedade, coisa que a sociedade da comunicação não estaria em condições de suportar. Por isso o belicismo comunicativo esvazia o significado da palavra “guerra”, não menos do que o pacifismo comunicativo, por outro lado, esvazia o significado da palavra “paz”. Não é por acaso que se enviam juntamente tropas ofensivas e ajuda humanitária. Um discurso análogo vale para todas as questões tratadas de modo comunicativo. Os opostos misturam-se e confundem-se, e, quanto mais extrema, intransigente e radical é uma afirmação, tanto mais ela solicita e reclama a afirmação oposta; porque elas estão em um contexto que anula sua oposição.

A diferença profunda entre a ideologia, de um lado, e a comunicação, de outro, consiste no fato de que a primeira é ainda identitária, isto é, visa a conferir uma determinação. Por mais que as identidades fornecidas pelas ideologias e pelas sensologias sejam artificiosas e já falsificadas (e certamente não são destinos), conservam, todavia, alguma persistência. A ideologia (e, com maior razão, a sensologia) é semelhante à moda: ela dura algumas estações e não tem a constância do “espírito do tempo” (do qual fala a filosofia da história idealista), mas por determinado lapso de tempo ela é (ou melhor, pretende ser) algo determinado.

A comunicação, ao contrário, subtrai-se a toda determinação, como se esta fosse uma peste. Ela aspira a ser simultaneamente uma coisa, seu contrário e tudo o que estiver entre os dois opostos. É, portanto, muito mais totalitária do que o totalitarismo político tradicional, porque compreende também e, sobretudo, o antitotalitarismo. Ela é global no sentido de que inclui também aquilo que nega a globalidade.

  1. Comunicação e vitalismo — Segundo Umberto Eco, as origens remotas dessa patologia (por ele definida como a semiose hermética) perdem-se na Antiguidade.[2] Nos últimos dois séculos ela se enxertou em um modo de pensar que teve uma enorme difusão, o vitalismo. A ideia central do vitalismo é a demolição de todo tipo de lógica e de racionalidade em nome do imediatismo, da espontaneidade, da criação a partir do nada. A percepção dos opostos é vista como uma jaula da qual se deve subtrair-se, como uma prisão que impede o espírito criativo de exprimir-se livremente, como um obstáculo a ser derrubado na marra. Daí deriva a exaltação da força e a irrisão para o que aparece como meramente formal, mecânico, repetitivo, mediato, lentamente progressivo, ritual, ou também apenas dotado de uma identidade precisa. A vida é de fato isto e aquilo, sem exclusões ou impedimentos. Ela é imprevisível, contraditória, irracional, arrebata todas as barreiras e não deve prestar contas a ninguém de seu curso tumultuoso e veemente.

Entre os séculos XIX e XX o vitalismo influencia enormemente a cultura, a literatura, a política e permeia o modo de sentir de algumas gerações. Não consegue, contudo, tornar-se hegemônico, porque deve prestar contas à burocracia, da qual dependem a ordem da sociedade e a efetividade das ações. É somente na segunda metade do século XX, e especialmente a partir dos anos 1960, que o vitalismo se torna o trunfo da reação à sociedade cognitiva. É de fato naquela época que horizontes efetivos, totalmente inimagináveis e inéditos, se abrem à cultura e ao saber. O ano de 1968 foi de fato interpretado como uma profunda transformação da relação entre o real e o imaginário, que confere à cultura um novo poder. Em 1968, no entanto, não havia uma percepção clara do fato de que a revolução cognitiva e o espontaneísmo vitalista representassem escolhas opostas e inconciliáveis. Muito poucos perceberam que o vitalismo desenfreado da contestação era (e é) retrógrado e reacionário em relação ao próprio movimento, e que ele constituía um modo de bloquear de dentro para fora a revolução intelectual. E seria ainda pior nos anos sucessivos, sobretudo, em países, como a Itália, nos quais o vitalismo se uniu ao antiintelectualismo e ao populismo. Transformando, todavia, os contestadores de 1968 em professores e os contestadores de 1977 em jornalistas, a revolução cognitiva é reconduzida ao âmbito da burocracia e das instituições tradicionais. O vitalismo é abandonado a uma deriva suicida.

Mas, depois de 1989, com a queda da mais forte burocracia mundial (a União Soviética), tudo volta ao jogo. Começa uma nova partida. O desenvolvimento tecnológico (computadores, internet, e-mail, globalização da informação) abre para o poder intelectual extraordinárias possibilidades de crescimento, de estudo, de conhecimento. A sociedade pós-industrial torna-se realidade, e a competência adquirida reveste-se de um valor econômico autônomo cada vez maior. Tudo isso não acontece mais como em 1968, em nome de uma ideologia anticapitalista, mas apresenta-se como uma nova forma de capital conscientemente antagonista em relação ao capital econômico tradicional. Este último é, por isso mesmo, obrigado a apelar para o vitalismo populista. Assim, contra a sociedade cognitiva, nasce o despotismo comunicativo, isto é, uma estratégia para subjugar qualquer tipo de mediação autônoma que se interponha entre os velhos poderes reciclados e o povo.

Entretanto, o despotismo comunicativo não pode prescindir de uma infinidade de competências profissionais, científicas e burocráticas atualizadas e de padrão elevado. E neste ponto se encontra em um impasse que lhe pode ser fatal: tais competências, de fato, nascem, desenvolvem-se e renovam-se somente com autonomia e liberdade. O vitalismo do populismo comunicativo é, por isso, muito diferente do vitalismo romântico e daquele da contestação. Ele é mais uma manifestação de falsa consciência. É a ilusão de que a contradição em que está enredado não tem nenhum efeito, de que os mediadores podem ser todos subjugados, de que o “povo” se torna cada vez mais ignorante e incapaz de ter espírito crítico, de que suas acrobacias e incongruências são recebidas como manifestações da força e da fecundidade criativa da vida!

  1. Comunicação e psicose — Muito do entusiasmo em relação à comunicação provém da visão utópica daqueles que gostariam de substituir o “princípio da realidade” pelo “princípio do prazer”. Estes são as primeiras vítimas da sociedade da comunicação e têm toda minha humana simpatia. Quando uma massa enorme de estudantes se acotovela diante das secretarias dos cursos de Comunicação, ela oferece um espetáculo que é indubitavelmente mais tranquilizador que as manifestações fascistas, porque não quer “crer, combater e vencer”, mas substituir o trabalho pelo jogo, Thanatos por Eros, a guerra pela paz universal. A minha simpatia, contudo, é cheia de melancolia, porque a recusa desses alunos a todo vínculo não nasce da consciência, mas do inconsciente (que, como diz Freud, nunca diz “não”).

No entanto, esse modo de entender a comunicação, que a imagina como o triunfo do princípio do prazer sobre a realidade, é muito ingênuo. Os fenômenos que descrevi pertencem àquela patologia social e individual muito mais grave que Jacques Lacan descreveu como psicose.[3] Em sua origem estaria não a afirmação primária e incondicionada, a Bejahung de que fala Freud, anterior ao juízo racional e articulado sobre a oposição entre sim e não, mas uma negação igualmente primária e incondicionada que Lacan chama forclusion (já traduzida pelos lacanianos brasileiros por “forclusão”, ou “foraclusão”, mas que, em português, pode ser entendida como rejeição, repúdio) [No original o autor usa preclusione, que, em italiano, além de seu sentido jurídico mencionado mais adiante no texto, significa impedimento interior. (N. do T.)].Tal palavra, que pertence em seu uso comum ao vocabulário legal (no qual indica a preclusão** ao exercício de certos direitos)[ Perda de determinada faculdade processual civil, ou pelo não exercício dela na ordem legal, ou por haver-se realizado uma atividade incompatível com esse exercício, ou, ainda, por ela já ter sido validamente exercitada. (N. do T.)], seria a tradução mais exata de Verweung, termo que foi usado só esporadicamente por Freud, sem, no entanto, adquirir uma verdadeira consistência teórica. Na origem da psicose, ou melhor, do modo de ser psicótico, que também pode existir sem nenhum sintoma evidente de loucura, há para Lacan uma preclusão, uma rejeição primordial e radical. Mas do quê?

A resposta é verdadeiramente surpreendente para os seguidores de Reich e da ideologia da libertação comunicativa. O que é rejeitado, expulso, forcluso, é nada mais nada menos do que a ordem simbólica, isto é, a estrutura da sociedade. Diferentemente do que acontece na remoção, a ordem simbólica não pode voltar à consciência do psicótico, porque nunca esteve lá! Porque foi descartada, por assim dizer, ab origine.

Se Freud forneceu os instrumentos conceituais para explicar psicologicamente o fascismo, é, por outro lado, necessário recorrer a Lacan para entender isso que à primeira vista se apresenta como a insensatez generalizada da comunicação, a qual justamente se revela — por meio das noções elaboradas por Lacan — como tal no sentido específico da palavra. A comunicação é insensata porque é psicótica, não simplesmente neurótica (como o fascismo na interpretação de Wilhelm Reich).

A rejeição da ordem simbólica deixa uma lacuna, um buraco, que só pode ser preenchida mediante a reconstrução da ordem simbólica, que é caracterizada pela mediação, por uma estrutura triádica, pela existência de um terceiro termo (que Lacan define como o Outro, com letra maiúscula para distingui-lo do outro, com letra minúscula, que é simplesmente uma projeção do eu).

O modo de ser do psicótico constitui por isso uma catástrofe da significação. Nada do que é dito em um contexto psicótico pode ser objeto de interpretação. De fato não há — como na narração do sonho ou do sintoma neurótico — um afeto ou um pensamento inconsciente que se esconde por detrás da linguagem. Na psicose a linguagem torna-se autônoma em relação àquele que fala; ela o possui, prolifera de modo ilimitado, apropriando-se de todas as coisas e de seus contrários. O exemplo por excelência de um discurso psicótico está representado pelas Memórias de um doente dos nervos, de Daniel Paul Schreber, a quem Freud dedicou um ensaio e sobre cuja análise constrói-se a teoria lacaniana da psicose. Ora, nas quinhentas páginas delirantes de Schreber não há nada daquilo que o circunda, nada que ele não pretenda ser, justamente como acontece nos três fenômenos de que partimos: o seminário interminável sobre a mídia, o líder do partido que se desmente continuamente, e a mostra permanente do tycoon de arte contemporânea.

A sensação de desalento e de impotência que se experimenta em relação à comunicação é a mesma que o psicanalista prova em relação aos discursos do psicótico. Eles são inacessíveis, inertes, estagnantes, no que diz respeito a uma mobilização dialética e pós-dialética, porque o falante ignora a estrutura simbólica da própria língua que ele fala. Como o psicanalista diante de seus doentes, temos a impressão de que nos transformamos em descarga, esgoto, latrina de materiais sem nenhum interesse. Ao mesmo tempo, podem estar certos de que qualquer coisa que vocês digam é sugada pelo vórtice da linguagem que fala sozinha através da voz do psicótico ou do comunicador. É verdade que também a poesia é uma linguagem autônoma. Mas entre a poesia e a comunicação há esta diferença: a primeira cria uma nova ordem simbólica, enquanto a segunda, desde o início, impede a si mesma o acesso a qualquer ordem simbólica. E, se considerarmos que a palavra interesse significa literalmente o estar entre, isto é, a mediação, entenderemos também por que o imediatismo comunicativo, como aquele psicótico, é tão fastidioso e molesto.

  1. Comunicação e agressividade — Não é necessário, todavia, acreditar que a comunicação esteja desprovida de agressividade. Ao contrário, a tendência agressiva constitui um aspecto fundamental da psicose, que — sem mediação simbólica — fica prisioneira de um fenômeno psíquico que Lacan definiu como o estágio do espelho. Tal estágio refere-se à experiência da criança entre os 6 e 18 meses de vida. Como se sabe, esse fenômeno origina-se do confronto entre a imagem de si mesma que a criança vê refletida no espelho e a experiência do próprio corpo real. Enquanto este último não tem ainda coordenação e unidade, a imagem especular exerce sobre a criança um poder de fascinação e sedução que a aprisiona em uma fixação que a invalida (captation). Para Lacan, o estágio do espelho constitui uma estrutura permanente da subjetividade, porque sobre ele constrói-se a identidade do eu, que é por isso mesmo marcado irremediavelmente por uma fratura que o impede de aceder a uma efetiva autoconsciência e o aliena em relação a si mesmo. Esse estágio é o paradigma do imaginário, que é justamente caracterizado por uma inseparável agressividade em relação ao outro (chamado pequeno outro, para distingui-lo do grande Outro do nível simbólico), mas que pode também levar a um resultado suicida. O eu, enquanto permanece prisioneiro do imaginário, nunca tem diante de si uma verdadeira alteridade, mas sempre, e somente, a própria imagem. A constituição do eu como rival de si mesmo impede-lhe o acesso a um “verdadeiro” conflito. De um lado, a agressividade e o conflito pertencem-lhe estruturalmente; de outro, entretanto, o outro que se lhe apresenta é sempre ele mesmo. Em outras palavras, o “tu”, com o qual se confronta o eu, nunca constitui uma verdadeira “alteridade”.

A análise de Lacan torna-se muito clara se pensarmos em certas relações privadas de caráter sentimental, nas quais os dois parceiros confrontam-se em intermináveis e inconcludentes diatribes cheias de acusações recíprocas e de recriminações. Parece evidente, para quem as presencia, que eles são incapazes de ir além de suas respectivas imagens especulares e permanecem prisioneiros de uma estrutura em que o outro é somente a imagem de seus respectivos eus. Naturalmente, também muitas outras relações duais, como aquelas entre o psicanalista e o paciente, o benfeitor e o beneficiado, o professor e o aluno, estão sujeitas à captação imaginária. Não é necessário, por isso, deixar-se enganar pela aspereza que às vezes tais conflitos assumem: essa aspereza depende da agressividade implícita no estágio do espelho; eles não são verdadeiros conflitos, porque lhes falta exatamente a experiência do oposto.

Se dos contextos comunicativos pessoais e privados passamos àqueles públicos, a substância das coisas não muda, aliás, agrava-se sensivelmente, porque é o próprio público (ao qual alguns ingênuos atribuem o papel de terceiro judicante) que é apanhado na captação imaginária. De fato, a comunicação pública, quando assume a forma de um contraditório, não é uma arena na qual dois contendores enfrentam-se, e muito menos a disputa entre dois mestres da universidade medieval. Ela se baseia em um pressuposto tácito e universalmente aceito: a intimidação dirigida ao público para que este se identifique com um ou outro dos antagonistas. Por isso, sob a aparência do conflito, reaparece o aspecto essencial da comunicação: sua incapacidade de pensar uma “verdadeira” oposição e de reger um “verdadeiro” conflito.

Concluindo, eu diria que no palco da comunicação não pode aparecer nenhum verdadeiro conflito, porque ela se baseia em um dispositivo psicótico (a forclusion) que impede a percepção dos opostos.

Tradução: Renato Ambrosio.

Notas

[1] Jean-Paul Fitoussi, “Le retour des temps idéologiques”, em Le Monde, Paris, 4-4-2003.

[2] Umberto Eco, I limiti dell’interpretazione (Milão: Bompiani, 1990).

[3] Jacques Lacan, Écrits (Paris: Seuil, 1966).

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