2005

Valores e interesses na era das imagens

por Rodrigo A. P. Duarte

Resumo

Paul Valéry dizia, num trecho comentado mais tarde por Benjamin, que “tal como a água, o gás e a corrente elétrica vêm de longe para nossas casas, atender as nossas necessidades por meio de um esforço quase nulo, assim seremos alimentados de imagens visuais e auditivas, passíveis de surgir e desaparecer ao menor gesto, quase que a um sinal” (Pieces sur l’art, p. 105). A profecia do poeta se realizou de uma maneira que talvez o surpreendesse. Nossa época nos expõe a um tal bombardeio de imagens e de signos, vindos de todas as partes do globo, que a fronteira entre o que antes acreditávamos ser o real e as peças de ficção se esvai de maneira inelutável.

Mas a onipresença da imagem, a multiplicação dos conhecimentos transmitidos por via eletrônica, não representa necessariamente um alargamento de nosso universo simbólico. Convertidos em meros produtos de entretenimento, os signos podem deixar de apontar para um mundo de diferenças e de novas possibilidades, e criarem a simples vertigem da representação.

Se os homens sempre produziram imagens, se elas são parte inerente a todas as culturas e constituem uma parte fundamental da construção de nossa identidade enquanto seres sociais, elas nunca invadiram tanto nossas vidas, alteraram de forma tão radical padrões de comportamento quanto no último século. Pensar, no entanto, os problemas postos pela era das imagens, exige mais do que estabelecer regras para seu uso nos meios de comunicação. Se quisermos pensar os valores que surgem dessa nova realidade, seus desafios e seus riscos, teremos de lembrar que o fenômeno que nos interessa é ele mesmo muito mais complexo do que o de um simples alargamento de nossas possibilidades de atendimento de nossa demanda por produtos visuais.

Quais são os desafios que uma era das imagens coloca para os que desejam pensar uma ética compatível com nossa época? Qual a importância da alteração dos limites entre o público e o privado, e suas consequências para o mundo político?


Para discutir o dos valores e dos interesses nessa época dominada pelos modernos meios de comunicação, proponho que tomemos separadamente cada uma dessas noções, procurando relacioná-las com algo que não simplesmente apareça aos olhos de todos, mas que possa estar na base do fenômeno que se quer investigar.

Desse modo, os termos “valores” e “interesses”, que normalmente ostentam um significado ético, serão inicialmente considerados em seu significado econômico, para só depois disso terem sua dimensão ética devidamente revelada, e — como se verá — numa íntima conexão com o predomínio dos media.

Comecemos pelos “valores”. Era claro já para Aristóteles que os valores no sentido ético têm uma relação inextrincável com sua dimensão econômica. Já em seus tratados de Ética,[1] o autor reflete sobre o que haveria em comum entre as diversas coisas que as tornaria intercambiáveis entre si no comércio, numa passagem que despertou a admiração de Karl Marx no primeiro livro de O capital.[2] Nessa conhecida passagem, Marx observa que Aristóteles só não pôde chegar à conclusão a que os economistas políticos ingleses chegaram, de que o trabalho é a substância comum a todas as mercadorias e, portanto, o fundamento da possibilidade de suas trocas, porque a Grécia Antiga era uma sociedade escravocrata, para a qual a atividade humana não entrava nos custos de produção do mesmo modo que o trabalho assalariado no sistema capitalista desde seus primórdios.[3]

Essa referência de Marx à ética aristotélica deixa-nos à vontade para iniciar nossa discussão sobre os “valores” indagando exatamente sobre essa palavra no singular — valor —, que constitui uma categoria central no pensamento marxiano maduro. A ela associados estão os conceitos de valor de troca e valor de uso, e esse último traduz o uso que um objeto pode adquirir em nossa vida material imediata, isto é, sua utilidade para nós, e aquele dá a dimensão de trocabilidade das coisas, ou seja, em que proporção umas podem ser trocadas pelas outras. Qualquer mercadoria, enquanto forma básica de bem econômico numa sociedade capitalista, precisa ter esses dois aspectos (melhor dizendo, polos) do valor; mas a definição desse último como “tempo médio de trabalho socialmente necessário” para produzi-la traduz a especificidade da apropriação que Marx faz da economia política clássica — especialmente de David Ricardo. Diferentemente desse último, Marx insiste na distinção entre o “valor do trabalho” e o “valor da força de trabalho”, o que lhe permite formular uma hipótese nova sobre a exploração dos trabalhadores pelos capitalistas: já que a força de trabalho daqueles — sua capacidade muscular para realizar tarefas produtivas — é numa sociedade capitalista também uma mercadoria; ela tem valor de uso e valor de troca. Esse último coincide com o próprio “valor da força de trabalho” e é estabelecido macroeconomicamente como a soma dos víveres que o trabalhador precisa para continuar vivo e garantir, também no futuro, a oferta de mão-de-obra de que o capitalista tanto precisa (por isso, tal espécie de valor leva em conta também a “reprodução da força de trabalho”, isto é, meios, mesmo que miseráveis em certos contextos, pelos quais também a família do trabalhador se mantenha viva).

Temos aqui a base da famosa teoria marxiana sobre a mais-valia: ela é a diferença entre o valor de uso da força de trabalho — o emprego, por parte do capitalista, da energia muscular do trabalhador na produção — e o seu valor de troca, isto é, o que o empregador efetivamente paga a seus empregados, de acordo com o cálculo supramencionado. Tendo-se em vista que, desse modo, o que o trabalhador proporciona ao patrão é sempre superior ao que este lhe dá em troca, tem-se a situação na qual a suposta “troca entre iguais”, formalmente garantida pelo contrato de trabalho, na verdade implica uma vantagem para aquele que detém os meios de produção: a apropriação de um excedente, de uma parcela não paga do trabalho realizado pelo empregado.

Todos sabem do escândalo que, ainda no século XIX, essa tese marxiana provocou e — até hoje — continua provocando. Desde aquela época se procurou desqualificar a “Crítica da economia política” como anticientífica, metafísica e outras coisas do gênero. Mas tudo indica que o que Marx descobriu foi uma das leis mais fundamentais do funcionamento do sistema capitalista, pois a noção de “valor-trabalho” implica uma saudável relação produtiva da sociedade com a natureza: a aplicação do trabalho humano auxiliado pelos recursos tecnológicos sempre mais poderosos — as chamadas forças produtivas — define cada um dos estágios de desenvolvimento histórico do sistema capitalista, e a maior “resistência” que a natureza impõe ao aproveitamento de cada um de seus recursos reflete-se em seu maior valor, isto é, no maior tempo médio de trabalho socialmente necessário para produzir os bens deles advindos. No entanto, a própria dinâmica do capital acrescentou, através de um processo histórico impossível de ser previsto por Marx, alguns elementos que, se não invalidaram a lei do valor, tornaram seu funcionamento mais complexo e, por assim dizer, particularizado. Esse ponto será retomado adiante.

Depois dessa breve recordação sobre alguns tópicos da teoria marxiana do valor-trabalho, retomemos a questão dos “valores”. Como já se disse, desde a Antiguidade grega eles têm sido uma preocupação constante dos filósofos. Mas na Idade Moderna sua consideração torna-se algo muito mais candente, pois em nenhuma outra época os ideais de liberdade humana foram postos com tanta clareza e com um potencial de universalização tão grande quanto a partir do Renascimento, da Reforma protestante (e da consequente Contra-reforma católica) e da Revolução mecanicista do século XVII. Todos esses acontecimentos pressupõem o ser humano como sujeito da realização de valores — respectivamente — estéticos, ético-religiosos e científicos, o que, por sua vez, requer sua autonomia, sua pertença a um processo de emancipação com relação a tudo o que o aprisiona e oprime.

Embora essas ideias se exprimam em inúmeros pensadores “iluministas”, talvez em nenhum deles a relação entre valor — especialmente ético — e autonomia seja tão clara como em Kant, em cuja ética destacam-se as diversas formulações da “lei moral” ou do “imperativo categórico”. Entre essas, destaca-se aquela em que Kant afirma a necessidade de considerar os seres humanos, enquanto “seres de razão”, sempre como fins em si mesmos, nunca como meios para qualquer outra coisa: “Aja de modo que faça uso da humanidade, tanto na sua pessoa como na de qualquer outro, sempre como fim, nunca meramente como meio”.[4] É interessante observar que, a partir de formulações desse tipo, reencontramos em Kant aquela interpenetração de categorias morais e econômicas que caracterizara a ética aristotélica supramencionada. Um bom exemplo disso pode ser encontrado ainda na Fundamentação da metafísica dos costumes:

No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. No lugar do que tem um preço pode ser posta outra coisa, como equivalente; o que, ao contrário, está acima de qualquer preço, portanto, não fornece nada equivalente, tem uma dignidade. […] O que se relaciona de modo geral com as inclinações e necessidades humanas tem um preço de mercado; o que, mesmo sem pressupor uma necessidade, está de acordo com um certo gosto, isto é, com um agrado no mero jogo não-finalístico das faculdades do nosso espírito, tem um preço afetivo. O que, porém, satisfaz a condição, somente sob a qual algo pode ser um fim em si mesmo, não tem apenas um valor relativo, isto é, um preço, mas um valor interno, isto é, uma dignidade.[5]

Nesse trecho, Kant delimita de modo exemplar os três âmbitos fundamentais em que se desdobra a existência humana: o econômico-instrumental, no qual as coisas adquirem um “preço de mercado”, o estético, em que o “valor” é apenas de caráter “afetivo”, e o propriamente moral, no qual nada tem preço, sendo o “valor” medido em termos de “dignidade”. A distinção entre o domínio econômico e o estético se revelará adiante como de grande importância, mas registre-se — com toda a distinção feita por Kant entre preço e dignidade — como a relação do valor econômico com o ético, estabelecida por Aristóteles na Antiguidade grega, continuou valendo para a Modernidade europeia, se bem que, até certo ponto, “invertida”.

Quando Kant se refere a “inclinações” (Neigungen) no trecho citado anteriormente, ele se refere à dependência da vontade do indivíduo com relação à faculdade apetitiva e às sensações, de modo que aquelas se relacionam sempre a uma necessidade (Bedürfnis). A partir disso, Kant define “interesse” — outro dos conceitos-chave desta exposição — como “a dependência com relação a uma vontade determinável ao acaso, mas a partir de princípios da razão”.[6] Os interesses mostram-se como pertencentes de modo essencial à natureza humana, já que, em Deus, por exemplo, não se poderia pressupor a dependência com relação a uma vontade. Mas, assim como no caso do valor há a distinção entre preço e dignidade, Kant distingue um interesse depurado da dependência imediata de um carecimento (Bedürfnis), chamado por ele de “prático”, daquele que se interessa principalmente pelo objeto de uma ação (e não pela própria ação). Esse último é chamado por Kant “interesse patológico” e, do ponto de vista da ética kantiana, caracteriza o interesse num sentido que chamaríamos, hoje, de “econômico”, isto é, no limite, relaciona-se com a “humanidade […] meramente como meio”.

É importante observar que a noção de interesse em Kant é de grande importância — ainda que negativamente — para sua estética, pois o mais completo tipo de juízo estético, o “juízo de gosto”, ocorre a partir do “livre jogo da imaginação e do entendimento”,[7] ocasionando no sujeito um prazer “desinteressado”, embora universal e necessariamente comunicável. Comparado com o juízo sobre o agradável — um juízo estético empírico que contém em si sempre um interesse, definido agora como “satisfação na representação da existência do objeto”[8] o juízo de gosto pressupõe uma relativa independência para com os “valores de uso”, portanto, com os objetos econômicos.

Essa característica é reforçada pelo fato de que o objeto que ocasio—na o juízo de gosto — candidato, portanto, a ser chamado “belo” — tem a característica paradoxal de insinuar uma finalidade, expressa segundo Kant pelo seu aspecto formal, sem, no entanto, explicitar qualquer fim.

Isso faz do objeto potencialmente belo uma espécie de antítese da coisa produzida para o consumo, que poderia ser definida, por oposição àquele, como “finalidade que explicita claramente um fim”. Na hipótese de esse fim não ser claramente explicitado, há o risco de o objeto tornar-se mais uma mercadoria encalhada nas prateleiras das lojas.

Tendo discutido, ainda que sucintamente, os termos “valores” e “interesses”, seria necessário agora explicitar como se deve entender a expressão “era das imagens”. O tema das imagens, a exemplo do que ocorre com os “valores” e os “interesses”, é tão antigo quanto a própria humanidade. Mais uma vez, podemos nos reportar aos filósofos da Grécia Antiga, para os quais o éikon é um problema filosófico de peso. Para se ter uma ideia da importância dessa questão, basta lembrar que toda a polêmica que Platão levanta contra a mimesis[9] é, no fundo, uma problematização do alcance e dos limites das imagens como “representantes” de seus objetos.

No entanto, falar de uma “era das imagens” significa referir-se a um momento em que as imagens parecem predominar absolutamente sobre todos os outros objetos. Mas não há nada de mágico (pelo menos imediatamente) nisso: esse estado de coisas é fruto de um desenvolvimento histórico, o qual foi certeiramente descrito por Guy Debord (de quem, aliás, advém o termo “espetáculo” que figura no título desse ciclo de palestras): “O espetáculo é o capital num grau tal de acumulação que se torna imagem”.[10] O que caracteriza esse processo de “acumulação” do capital, que o leva a “se tornar imagem”, ou, antes, fazer da imagem a pedra de toque de todo o seu desenvolvimento numa fase que se poderia chamar “tardia”?

A resposta a essa pergunta remete ao que se disse acima sobre as limitações a que esteve sujeita a lei do valor a partir do fim do século XIX e início do XX. Na própria obra de Marx, existem elementos que nos ajudam a entender o processo que levou a essa situação. Trata-se da tese marxiana sobre a “baixa tendencial da taxa de lucro”, exposta no tomo III de O capital.[11] Segundo essa teoria, pressupondo-se um capitalismo em que industriais independentes concorrem entre si para garantir parcelas sempre maiores do mercado, a concorrência entre eles faz com que a composição orgânica do capital — a relação entre os insumos “inertes”, como instalações, maquinaria, matérias-primas e matérias auxiliares e o trabalho humano, fonte da mais-valia — aumente crescentemente. Em outras palavras, considerando que a produtividade do capital aumenta muito com a aplicação de tecnologias cada vez mais sofisticadas e a concorrência impele os capitalistas a fazerem cada vez mais uso delas, a parcela relativa aos salários dos trabalhadores diminuiu (e ainda vem diminuindo) progressivamente. O problema é que só o trabalho “vivo”, realizado pelo operário, proporciona ao capitalista um valor de uso superior a seu valor de troca: a máquina apenas “repassa” adiante o valor nela incrustado, não criando “mais valor”, não produzindo, portanto, “mais-valia”. Marx acreditava que esse processo seria importante no esgotamento do modo de produção capitalista, pois a necessidade de incorporar tecnologia sempre nova — e sempre mais dispendiosa — levaria a composição orgânica do capital a um ponto em que o trabalho vivo, a fonte da mais-valia, fosse uma parcela tão ínfima do capital total, que quase nenhum lucro mais existiria, o que representaria o colapso de um sistema econômico totalmente baseado no lucro.

Embora Marx tenha previsto a crescente cartelização e mundialização do capitalismo, não lhe ocorreu que esses processos poderiam ser a “tábua de salvação” do capitalismo, na medida em que ele como um todo se tornasse “monopolista”, isto é, não deixasse que a concorrência entre os capitalistas acelerasse a baixa tendencial da taxa de lucro e fizesse da crescente concentração do capital em cada vez menos mãos um modo de controlar o mercado. Esse controle consistia ora na diminuição sub-reptícia da oferta, por meio de armazenagem ou destruição em massa de mercadorias, ora no estímulo artificial da demanda, por meio dos novos meios de comunicação, como o rádio e o cinema, os quais surgiram exatamente na época em que esse processo de oligopolização do capitalismo consolidava-se em escala mundial.

Desse modo, a lei do valor, sobre a qual se baseia a tese da baixa tendencial da taxa de lucro, não desaparece no “capitalismo tardio”, mas deixa de ser uma limitação intransponível à continuidade da exploração capitalista, pois a própria incorporação de tecnologia ao processo produtivo pode ser controlada, uma vez que a pressão da concorrência entre os capitalistas individuais — típica do capitalismo liberal do século XIX — deu lugar a uma enorme centralização das decisões, apoiada por mecanismos cada vez mais sofisticados de manipulação das variáveis macroeconômicas.

Entre esses mecanismos encontra-se o sistema batizado de “indústria cultural” por Max Horkheimer e Theodor Adorno, na obra conjunta de 1947, intitulada Dialética do esclarecimento.[12] O objetivo dessa obra é mostrar em que medida a racionalidade unilateral, de base científica e com forte motivação de ordem econômica, desenvolveu-se como uma reação humana à ameaça das enormes forças naturais, atingindo um elevado estágio de domínio da natureza, sem, no entanto, livrar o homem da opressão. Outrora era a natureza que ameaçava a humanidade em virtude de suas descomunais energias, e agora, no momento em que o homem aprendeu a controlar com mestria as forças naturais, a fonte de opressão transferiu-se para a própria sociedade, cujo funcionamento alienado assemelha-se à brutalidade com que as catástrofes naturais periodicamente eliminavam populações inteiras no passado. Os autores vêem esse processo ocorrer em todo o ambiente moderno, no qual a maquinaria predomina sobre os homens e a natureza. Mas, para eles, dois fenômenos contemporâneos são emblemáticos desse momento marcado pelo capitalismo monopolista: a já mencionada indústria cultural e os regimes totalitários, corporificando, respectivamente, suas versões “democrática” e ditatorial.

Quando Horkheimer e Adorno põem a indústria cultural do lado “democrático”, eles não querem dizer com isso que ela seja democrática no sentido mais radical do termo, mas que ela — em toda sua plenitude — é um fenômeno muito mais típico das democracias formais do Ocidente, nas quais existe a necessidade absoluta de se manter uma aparência de liberdade, do que dos regimes fechados, como o fascismo ou o stalinismo. O caráter “antidemocrático”, porém dissimulado, da indústria cultural revela-se já no fato de que, sob a aparência de apenas suprir demandas do público, ela, na verdade, impõe a ele apenas o que interessa no sentido de valorização do capital investido e da manutenção ideológica do status quo (que garantirá também no futuro essa valorização). Segundo os autores,

[…] os padrões resultariam originariamente das necessidades dos consumidores: eis por que são aceitos sem resistência. Na verdade, isso é o círculo de manipulação e necessidade retroativa, no qual a unidade do sistema concentra-se cada vez mais densamente. Cala-se, aqui, sobre o fato de que o solo sobre o qual a técnica adquire poder sobre a sociedade é o poder daqueles economicamente mais fortes sobre a sociedade.[13]

Um outro modo de se referir ao aspecto manipulatório da indústria cultural consiste na apropriação que Horkheimer e Adorno fazem da doutrina kantiana do esquematismo, tal coma ela se encontra na Crítica da razão pura. Segundo Kant, os dados advindos do mundo exterior à nossa consciência são o conteúdo de nossa sensibilidade, que é uma faculdade de conhecimento apenas receptiva; o verdadeiro processamento das informações externas é realizado por uma faculdade ativa, denominada por Kant entendimento. Como se sabe, o que caracteriza a epistemologia kantiana é o fato de que nós temos formas puras, tanto em nossa sensibilidade (as intuições puras a priori espaço e tempo) quanta em nosso entendimento (as categorias ou conceitos puros do entendimento), que impõem ao mundo exterior uma legalidade gnosiológica: sem esse nosso aparato cognoscente a priori a realidade externa não seria absolutamente nada para nós. É de importância fundamental para essa doutrina do conhecimento o fato de que a “aplicação” das categorias aos objetas exteriores depende inicialmente de um sujeito autoconsciente que, através de um procedimento reflexivo, que Kant chama de “unidade sintética originária da apercepção”, reconhece como suas as representações que se referem às coisas fora dele, tanto em seu aspecto intuitivo quanto no pensamento associado às percepções. Ainda assim, resta um problema, que é o da heterogeneidade entre a matéria sensível das sensações e o processo totalmente intelectual do pensamento que deve aplicar as categorias aos objetos externos. Para resolver esse problema, Kant concebe o mencionado “esquematismo”, que é um procedimento mental, através do qual as intuições são apresentadas às categorias correspondentes no conhecimento de um fenômeno, de modo que fica erigida uma “ponte” entre as faculdades, segundo Kant, absolutamente distintas e heterogêneas, da sensibilidade e do entendimento.[14]

Horkheimer e Adorno chamam a atenção para o fato de que a indústria cultural tem como tarefa precípua manipular o comportamento das massas, mas de um modo que cada indivíduo acredite piamente que sua ação é fruto de decisão pessoal, pois, como se disse, ela floresce principalmente nas sociedades que se crêem democráticas. Para evitar desagradáveis surpresas de ordem mercadológica ou — o que pode ser pior — até mesmo política, a solução sobre a qual se concentram as cada vez menos agências de decisão no capitalismo tardio é uma espécie de direcionamento da percepção dos indivíduos, uma espécie de “pedagogia dos sentidos” por meio da qual as pessoas vêem e ouvem apenas aquilo para o que elas estão programadas para ver e ouvir. É desse modo que se deve entender a afirmação de Horkheimer e Adorno de que — ao contrário do elevado grau de subjetividade que pressupunha Kant para a aplicação das categorias aos fenômenos — a indústria cultural usurpa do sujeito o procedimento do esquematismo, tendo como objetivo subtrair-lhe a chave de uma possível — e tendencialmente ameaçadora — percepção autônoma do mundo exterior.

A função que o esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber, referir de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais, é tomada ao sujeito pela indústria. Ela executa o esquematismo como primeiro serviço a seus clientes. Na alma deveria funcionar um mecanismo secreto, o qual já prepara os dados imediatos de modo que eles se adaptem ao sistema da razão pura. O segredo foi hoje decifrado. […] Para os consumidores nada há mais para classificar, que não tenha sido antecipado no esquematismo da produção. A arte para o povo desprovida de sonhos preenche aquele onírico idealismo, que para o criticismo ia longe demais. Tudo vem da consciência, em Malebranche e Berkeley da consciência de Deus; na arte para as massas, da consciência terrena das equipes de produção.[15]

À já aludida necessidade da indústria cultural de se fazer passar por democrática, a qual torna o processo de expropriação do esquematismo absolutamente central para seus procedimentos manipulatórios,[16] liga-se o fato, insistentemente assinalado por Horkheimer e Adorno, de que esse ramo industrial, embora organizado nos moldes dos grandes trustes da economia convencional, representa — pelo menos em termos ideológicos — um resquício do liberalismo num cenário econômico já totalmente cartelizado: “As modernas companhias culturais são o lugar econômico em que ainda sobrevive, juntamente com os correspondentes tipos de empresários, uma parte da esfera de circulação já em desagregação em outros setores”.[17] É importante observar que esses resquícios do liberalismo têm uma função não apenas imediatamente ideológica no sentido de procurar esconder quão cartelizada já se encontrava, à época (e ainda hoje se encontra), a economia, mas têm também um significado mediatamente ideológico de que a maior proximidade possível que a indústria cultural possa ter com relação a seu público deve garantir primeiramente uma perscrutação de suas necessidades latentes, de modo que a oferta lhe seja adequada e que a manipulação não se revele enquanto tal. Além disso, como uma espécie de consequência, a ilusão de “democracia” deve ser produto do estabelecimento de uma espécie de cumplicidade entre a indústria cultural e o público.[18]

Mas, ao lado dos afagos que a cultura de massas dedica a seu público existe um aspecto extremamente coercitivo, que não é absolutamente reconfortante e que é desvendado por Horkheimer e Adorno com auxílio da psicanálise — sempre associada, na teoria crítica da sociedade, ao pensamento marxiano. Trata-se da perene existência no ar de uma ameaça de castração, dirigida com força redobrada àqueles que não se dispõem espontaneamente a colaborar com a manutenção do status quo.[19] Sobre isso, é preciso que se diga que, à diferença do modelo desenvolvido por Freud para a família pequeno-burguesa do capitalismo liberal,[20] no qual a elaboração psíquica da ameaça de castração que o pai dirige ao filho competidor pelo amor da mãe auxilia na formação moral daquele, a ameaça lançada no ar pela indústria cultural é absolutamente difusa e impessoal, no limite, inibindo a formação do superego nas pessoas, no momento da constituição de seu psiquismo. Isso tem consequências muito drásticas, pois, como se sabe, a consolidação do ego, o qual para os teóricos críticos guarda certa semelhança com o sujeito, no sentido enfático, do idealismo filosófico, depende em grande parte da existência do superego, que, por sua vez, se forma pela introjeção da autoridade paterna. Acontece que desde os primeiros trabalhos de Horkheimer e da equipe do Instituto para a Pesquisa Social, ainda no início da década de 1930[21] — antes do exílio americano do período nazista na Alemanha —, já se sabia que o advento do capitalismo monopolista representava o fim do prestígio da família pequeno-burguesa, pois, tendencialmente, o outrora economicamente autônomo pai de família, que, enquanto provedor material, encarnava a autoridade suficiente para despertar nos filhos a referida introjeção da lei, tornava-se um pequeno funcionário, quando não um desempregado. Enquanto isso, o próprio sistema de dominação assumia o papel de autoridade impessoal e difusa, em relação à qual não havia como se rebelar e — em consequência disso — formar e fortalecer o próprio ego.

Desse modo, sugerem Horkheimer e Adorno, o “cliente” típico da indústria cultural é alguém com a estrutura psíquica frágil e malformada, sem a capacidade de resistir aos sempre renovados apelos ao consumo e à subserviência ao status quo. Para retomarmos a conexão mais direta ao tema dos “valores” e “interesses”, Adorno observa que a indústria cultural tem apenas um “imperativo categórico”: “Deves submeter-se, não importa a quê”. Num texto de 1952 intitulado “Televisão como ideologia”, no qual analisa o conformismo veiculado pelos teleteatros norte-americanos, ele explicita o que quer dizer com isso: “Deve-se ‘se entregar’: menos ao amor do que ao respeito por aquilo que a sociedade, segundo as regras do jogo, espera”.[22]

Na análise crítica da Dialética do esclarecimento, os autores procuram mostrar como esse perfil psicossocial se reflete na “estética” da indústria cultural, pondo em relevo o modo como antigas categorias da filosofia são apropriadas e adaptadas a esse novo modelo conformista. Ressalta-se, aqui, a noção do trágico: embora se saiba que na Grécia Antiga não existia ainda o indivíduo no sentido moderno do termo, os heróis das tragédias simbolizavam exatamente aquelas pessoas que desafiavam as potências universais — as divindades e o próprio destino — em nome de algum princípio que consideravam superior, não raro pagando essa ousadia com a própria vida. Mas como seria possível algo semelhante num contexto em que os indivíduos abdicaram de sua possível atribuição de sujeitos? No entanto, Horkheimer e Adorno afirmam que a indústria cultural ainda toma empréstimos à situação trágica no intuito de encenar uma espécie de profundidade filosófica que, na verdade, lhe é totalmente estranha:

A mentira não recua diante do trágico. Assim como a sociedade total não elimina o sofrimento de seus membros, mas o registra e planeja, do mesmo modo a cultura de massa procede com o trágico. Daí seus insistentes empréstimos à arte. Ela fornece a substância trágica que a pura diversão não pode por si só trazer, mas da qual ela precisa, se quiser manter-se fiel de uma ou de outra maneira ao princípio da reprodução exata do fenômeno. […] O trágico é reduzido à ameaça da destruição de quem não coopera, ao passo que seu sentido paradoxal consistia outrora numa resistência desesperada à ameaça mítica.[23]

Desse modo, pode-se dizer que o pleno funcionamento da indústria cultural tanto pressupõe a existência de indivíduos que não são necessariamente sujeitos, quanto tendencialmente suprime a autonomia pressuposta na ação ética no sentido estrito do termo, isto é, acompanhada de liberdade e de auto-reflexão por parte de seu sujeito. E esse fato tem sua expressão “estética” nas mercadorias culturais.

Outro conceito tradicional da filosofia da arte, o de beleza, por motivos análogos aos que se aplicam ao trágico, é distorcido no âmbito da indústria cultural, em virtude da necessidade de uma atividade reflexiva do sujeito, que é cada vez menos disponível entre os consumidores da indústria cultural. De fato, se recorrermos ao que foi dito sobre o juízo de gosto — para Kant, o juízo sobre o belo por excelência —, o “livre jogo da imaginação e do entendimento” pressupõe esse tipo de atividade subjetiva, assim como o desinteresse no ajuizamento e a “finalidade sem fim” atribuída ao construto requerem um alto grau de liberdade com relação a uma possível utilidade imediata do objeto a ser considerado belo. Além da mencionada ausência de reflexão que caracteriza o consumo dos produtos da indústria cultural, o fato de eles serem antes de tudo mercadorias tanto suprime a independência com relação aos interesses no juízo quanto compromete a “finalidade sem fim” que deveria caracterizar objetos candidatos ao predicado da beleza.

Horkheimer e Adorno têm em mente essas conceituações da estética kantiana quando se referem ao “fetichismo da mercadoria” em sua aplicação aos produtos culturais. Em Marx, tal fetichismo refere-se ao fato de que a mercadoria em geral não passa de uma coisa, que, no entanto, ao entrar no processo de circulação da economia capitalista adquire vida própria e atua no sentido de ocultar o sistema de relações sociais que se encontra por trás daquele objeto.[24] Por outro lado, os autores da Dialética do esclarecimento compreenderam que, no caso da mercadoria cultural — coisa que, a rigor, na época de Marx não existia —, tornar-se-ia necessário acrescentar algo a essa descrição marxiana do fetichismo, já que nesse tipo de produto o caráter de aparência inerente à mercadoria em geral é como que reforçado. A característica “estética” da mercadoria cultural introduz um aspecto imagético adicional que tem repercussões no plano representacional, corn a ideologia tendendo a deixar de ser um discurso para se incrustar nas próprias coisas (ou, antes, na imagem delas).

Desse modo, o valor de troca, que numa mercadoria comum do período liberal do capitalismo era apenas um índice da viabilidade de sua circulação numa economia mercantil, adquire, no caso de uma mercadoria cultural, um valor quase absoluto, absorvendo inteiramente qualquer “valor de uso” que ela pudesse vir a ter:

O que se poderia chamar de valor de uso na recepção dos bens culturais é substituído pelo valor de troca; em vez do prazer, o que se busca é assistir e estar informado, o que se quer é conquistar prestígio, e não se tornar um conhecedor. (…) O valor de uso da arte, seu ser, é considerado como um fetiche, e o fetiche, a avaliação social que é erroneamente entendida como hierarquia das obras de arte, torna-se seu único valor de uso, a única qualidade da qual elas desfrutam.[25]

Procurei até aqui caracterizar como “era das imagens” o período da história a partir do qual os meios tecnológicos de registro e difusão de mensagens audiovisuais foram encampados pelo capitalismo monopolista enquanto seu principal recurso de manutenção da ordem vigente, sem esquecer que isso ocorreu também como inauguração de um lucrativo ramo de negócios, que, aliás, se consolidou como um dos mais prósperos da economia contemporânea. Mas pode-se perguntar até que ponto a caracterização feita por Horkheimer e Adorno no início da década de 1940 continua válida após sessenta anos — depois de uma série de mudanças sociais ocorridas no período subsequente ao fim da Segunda Guerra Mundial e, principalmente, da Guerra Fria. Esse período, por outro lado, presenciou o surgimento de enormes inovações tecnológicas no âmbito audiovisual, que superaram em muito o cinema e o rádio — principais meios considerados na análise crítica dos autores à época da redação da Dialética do esclarecimento.

Quanto às mudanças históricas: assim como a instalação do capitalismo monopolista nos países mais industrializados teve de ser acompanhada de concessões progressivas à classe trabalhadora, numa espécie de cooptação que neutralizasse o advento da União Soviética e tornasse os operários “cúmplices” do capital, o período do pós-guerra, no qual os Estados Unidos se afirmaram como principal potência capitalista, foi marcado também por uma necessidade de autolimitação da exploração, acompanhada, naturalmente, de uma cerrada propaganda ideológica sobre a superioridade da “livre-iniciativa” (que não mais existia) sobre o planejamento central dos regimes comunistas. Esse foi um período em que as mercadorias culturais traziam a marca da propaganda ideológica mais explícita, e o meio que mais se consolidou nesse período foi a televisão. Essa acrescentava à penetração que o cinema exercia a característica de flagrar o consumidor em sua própria casa, facilitando ainda mais a incorporação das mensagens publicitárias ou ideológicas em seu cotidiano. Note-se que, nesse período, apesar de as transmissões via satélite já terem se tornado uma realidade tecnológica, havia grandes limitações de natureza política: os sinais da televisão ocidental, por exemplo, praticamente não chegavam aos países da área de influência soviética, a não ser nas regiões de fronteira (por onde, aliás, começou o desmoronamento do bloco soviético). Data dos anos 1980 a disseminação dos aparelhos caseiros de vídeo e da televisão a cabo, que reforçaram a aparência de “liberdade de escolha” dos consumidores, num contexto em que a emancipação real das pessoas se encontrava mais longe do que nunca.

O ano de 1989, com a queda do Muro de Berlim, marcou o início da derrocada total do bloco de influência soviética e o início de um processo que ficou conhecido como “globalização”. Em poucos anos os Estados Unidos afirmaram-se como império mundial sem nenhum concorrente, e os âmbitos da microeletrônica e das telecomunicações, que paralela e silenciosamente se desenvolviam de modo inexorável desde o fim da Segunda Guerra, completaram sua fusão e consolidação comercial na abertura ao público da internet, ocorrida em 1993. Essa rede mundializada de computadores é herdeira da ARPAnet, criada na década de 1970 com objetivos militares e que, com o fim da Guerra Fria, perdeu muito de seu significado estratégico-militar.[26]

Os acontecimentos aqui resumidos marcaram o surgimento da chamada “indústria cultural global”, que se caracteriza, por um lado, pela inexistência de barreiras geopolíticas para a difusão de seus produtos, já que não há mais um bloco ideologicamente oposto ao capitalismo central. Desse modo, a telerradiodifusão via satélite consolidou-se fortemente e inaugurou uma nova era de transmissão centralizada das mensagens audiovisuais em tempo real para todo o mundo. Do ponto de vista dos conteúdos veiculados, constata-se nesse período, diante da inexistência de um inimigo ideológico imediato a ser combatido, uma espécie de auto-referencialidade da indústria cultural: alguns dos filmes de maior sucesso põem em relevo a “realidade” como constituída de imagens, que podem, até mesmo, ser falsas ou ilusórias, construídas em função de algum projeto de dominação ou tutela (ver, por exemplo, O show de Truman ou Matrix, entre muitos outros filmes desse período).

Por outro lado, do ponto de vista do desenvolvimento tecnológico, a definitiva incorporação de interfaces gráficas nos microcomputadores tornou-os potenciais concorrentes dos aparelhos eletrônicos domésticos, como o rádio, a televisão e o vídeo. Aliás, a consolidação da geração e distribuição digitais de sons e imagens é uma característica marcante da “indústria cultural global” e faz prever para um futuro não muito distante a fusão, em termos comerciais mais amplos, de todos os aparelhos aqui mencionados num só, de base digital (isso já é uma realidade palpável nos aparelhos de DVD, por exemplo).

Os referidos eventos históricos aliados à impressionante renovação tecnológica introduzida pela telemática, a meu ver, em nada contradisseram as observações críticas à indústria cultural feitas por Horkheimer e Adorno, na década de 1940. Pelo contrário, traços da cultura de massa que não eram tão visíveis àquela época tornaram-se patentes diante da nova situação trazida com a globalização. Por exemplo, os autores insistiam no fato de que, quanto mais “realistas” — em virtude dos desenvolvimentos tecnológicos — se tornassem os meios, maior seria a tendência a confundir-se, em benefício dos poderosos, ficção e realidade.[27] Potencialidades técnicas como a “realidade virtual” estão aptas a realizar literalmente essa confusão, mas, muito antes de se chegar à necessidade de empregar um meio tão sofisticado, a indústria cultural global trouxe para as ruas a exibição de alguns de seus produtos e o meio ambiente urbano tornou-se perversamente “estetizado”. Com isso, ganhou um significado maior a distinção, feita por Guy Debord, entre o “espetáculo concentrado”, característico dos regimes políticos fechados, e o “espetáculo difuso”, típico das sociedades ocidentais, nas quais a abundância de produtos funciona como contrapeso ideológico à liberdade política formal concedida: “Aqui, cada mercadoria tomada individualmente é justificada em nome da grandeza da produção da totalidade dos objetos, dos quais o espetáculo é um catálogo apologético”.[28]

Diante desse quadro, devemos concluir que não há outro modo de sobrevivência ética na “era das imagens” que não seja crítico: para Adorno, as imagens veiculadas pela indústria cultural são no fundo um modo de escrita ideológica, uma espécie de “script” relativo ao papel que cada um deve desempenhar na sociedade tardo-capitalista.[29] Exatamente por isso, é muito importante prestar atenção ao papel que o pensamento dialético pode ter na crítica ao atual estado de coisas, com um consequente posicionamento ético, que seja digno do nome. De modo quase premonitório, Horkheimer e Adorno reiteravam essa potencialidade no texto de fundamentação da Dialética do esclarecimento: “A dialética revela, antes, toda imagem como escrita. Ela ensina a ler dos traços da primeira a confissão de sua falsidade, a qual tira dela seu poder e o transfere à verdade”.[30]

Notas

[1] Aristóteles, “Etica nicomaquea”, em Obras, trad. Francisco de P. Samaranch (Madri: Aguilar, 1982), 1133a-b. Nessa passagem, Aristóteles chama a atenção para o fato de que a palavra grega para dinheiro ou moeda é nomisma, oriunda de nómos, que, por sua vez, significa lei, no sentido jurídico do termo. É importante observar, no entanto, que a princípio era a economia que se subordinava à ética. Hannah Arendt, por exemplo, chama a atenção para o fato de que, até o início da era moderna, a economia era uma parte — não muito importante — da ética, em The Human Condition (Chicago/Londres: The University of Chicago Press, 1996), p. 42.

[2] Karl Marx, Das Kapital, tomo I (Berlim: Dietz Verlag, 1981), p. 73.

[3] Ibid., p. 74.

[4] Immanuel Kant, Kritik der praktischen Vernunft/Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991), p.67. Doravante designado por “KpV”, seguido pela paginação padrão da edição da Academia.

[5] Ibid., KpV 77.

[6] Ibid., KpV, BA 39 nota.

[7] Immanuel Kant, Kritik der Urteilskraft (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984). Doravante designado por “KdU”, seguido pela paginação padrão da edição da Academia.

[8] Ibid., KdU, B 6.

[9] Ver, por exemplo, o livro III de “A República”, em Obras completas (Madri: Aguilar, 1988).

[10] Guy Debord, La societé du spectacle (Paris: Gallimard, 1992), p. 32.

[11] Karl Marx, Das Kapital, tomo III, cit., pp. 221 e ss.

[12] Max Horkheimer & Theodor Adorno, “Dialektik der Aufklärung”, em Max Horkheimer, Gesammelte Schriften, tomo V (Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1997). Doravante, designado por “DA”, seguido do número da página nessa edição.

[13] Ibid., DA 145.

[14] Immanuel Kant, Kritik der reinen Vernunft (Hamburgo: Felix Meiner Verlag, 1976), p. 197, B 177.

[15] Max Horkheimer & Theodor Adorno, “Dialektik der Aufklärung”, cit., DA 149.

[16] Sobre a relação entre o esquematismo kantiano e a cultura de massas, ver meus artigos: “0 esquematismo kantiano e a crítica à indústria cultural”, em Studia Kantiana, vol. 4, fascículo 1, São Paulo, novembro de 2002, pp. 85-105; e “Esquematismo e semiformação”, em Educação e sociedade, vol. 24, fascículo 83, Campinas, agosto de 2003, pp. 441-457.

[17] Max Horkheimer & Theodor Adorno, “Dialektik der Aufklärung”, cit., DA 156.

[18] Ibid., DA 161.

[19] Ibid., DA 165 e ss.

[20] Há dezenas de textos de Freud em que ele trata desse assunto. A título de ilustração, destacamos: “Dissolução do complexo de Edipo” (1924), “Algumas consequências psíquicas da distinção entre os sexos” (1925), Conferência XXXII: “Ansiedade e vida instintual” (1933), as duas primeiras localizadas no volume 19 e a última no volume 22 das Obras completas de Sigmund Freud (Rio de Janeiro: Imago, s/d.).

[21] Max Horkheimer et al., Studien über Autoritiit und Familie. Forschungsberichte aus dem Institut für Sozialforschung, edição fac-símile (Lüneburg: Dietrich zu Klamplcn Vcrlag, 1987), especialmente as pp. 77-135, “Sozialpsychologischer Teil”.

[22] Theodor Adorno, “Fernschen ais Ideologic”, em Gesammelte Schriften, vol. 10.2 (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996), p. 528.

[23] Max Horkheimer & Theodor Adorno, “Dialektik der Aufklärung”, cit., DA 178.

[24] Karl Marx, Das Kapital, tomo I, cit., pp. 85 e ss.

[25] Max Horkheimer & Theodor Adorno, “Dialektik der Aufklärung”, cit., DA 186.

[26] Cf Stephen Segaller, Nerds 2.0.1: a Brief History of the Internet (Nova York: TV Books, 1999).

[27] Cf. Max Horkheimer & Theodor Adorno, “Dialektik der Aufklärung”, cit., DA 174

[28] Guy Debord, La societé du spectacle, cit., p. 60.

[29] Cf. Theodor Adorno,”O esquema da cultura de massas”, em Gesarnmelte Schriften, vol. 3 (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981), p. 332. Ver também “Prolog zum Fernsehen”, em Gesammelte Schriften, vol. 10.2, cit., p. 514.

[30] Max Horkheimer & Theodor Adorno, “Dialektik der Aufklärung”, cit., DA 46-7.

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