2003

Natureza do Estado moderno

por Gerd Bornheim

Resumo

Estado e cidadania – eis conceitos que se afetam mutuamente, uma vez que profundamente imbricados. E isso mesmo que a origem do conceito de cidadania seja recente.

O Estado – para fazer, desde já uma ressalva – não pode ser confundido com governabilidade, a começar porque as formas de governo são muitas, como o atesta a história. Trata-se, pois, de um fenômeno relativamente recente. Até porque, num movimento tipicamente moderno, ele se elabora desde dentro, seja ele monárquico, democrático ou – até – totalitário.

Observe-se, preliminarmente ainda, que o conceito de cidadania encontra seu pressuposto no individualismo. Este que é também moderno, já que, desde a origem, mostra-se um modo de “ser” completamente outro, carregado de tal gravidade que, em nome da invenção de um novo mundo, abalou a estrutura social do Ocidente – mais: do próprio processo civilizatório, instaurado a partir do neolítico. Mas que se note que a concepção de “indivíduo” não constitui uma consequência ou espécie de resultado final da modernidade, pois o que há é uma construção que coincide com o nascimento dela. É, de certo modo, como se tudo se passasse com base no indivíduo. E isso de tal modo que ele atravessa toda a paisagem. Daí a constante procura por reequacionar os modernos avanços empreendidos por ele, de que data o surgimento da ideia de autonomia.

Contra todas as potestades, o homem começa a ver-se como realidade primeira, motivo pelo qual o trabalho – antes, marginalizado – passa a ser a medida da ordenação humana ou a força que gera novos modos de existência, vinculados à propriedade privada (assim como é concebida hoje), à acumulação de riqueza em novos moldes e a exploração dos resultados de sua própria produção. É que a ciência, por meio do novo cálculo, reduz o objeto a uma realidade dominável, decorrente de seu modelo moderno.

Não por acaso é desde Descartes que o livre-arbítrio torna-se o que há de mais importante no homem, que se põe a conquistar os meandros da cidadania, que, no limite, torna-se, por sua vez, a grande questão a ser enfrentada pelo Estado moderno. Inaugura-se assim, desde a mencionada revolução neolítica – com as práticas da agricultura e da pecuária –, a nova grande revolução humana. Tanto que ela se faz acompanhar de drásticas mudanças em toda e qualquer atividade do pensamento: a científica, a filosófica, a tecnológica, a industrial. Com efeito, passa-se da linguagem dos milagres para a racional. Mas não demora para que a soberania individual comece a desentender-se com suas próprias fronteiras, a começar pela de natureza social. Daí o surgimento das constituintes e convenções. Das várias teorias do contrato social.

Dois dos principais pensadores disso tudo foram Hegel e Marx. Tanto que a presença do conceito de Estado na extensa obra daquele é ampla. É mesmo a grande porta de entrada para a História Universal ou nada menos do que o Espírito Absoluto. Ele e a síntese do que ele representa. Isto é: a individualidade e a universalidade. Tal dicotomia acompanha uma carga pedagógica imensa. Isso que os antigos gregos já tinham entendido bem; ou seja: que toda educação é educação para o universal, mediada pela racionalidade.

Evidente que, nisso tudo, tudo são problemas, a começar pela tentativa de estabelecer a precedência entre as noções de indivíduo e universal. O lugar de cada um.

Se, para os gregos – sobretudo Platão e Aristóteles –, o problema resolve-se rápido, é porque, na Cidade-Estado, o indivíduo praticamente não existe. Já no contexto hegeliano, que parte da exacerbação kantiana do sujeito, tudo deve não só ser integrado como superado – pelo Estado. Mas que não se duvide da importância do sujeito para Hegel, o primeiro filósofo a analisá-lo por completo, inclusive o que há nele de mais corrosivo, que é o processo de auto-absolutização, ao qual Hegel contrapôs a necessidade de reconquista da objetividade, que se desdobra nos seguintes âmbitos, fundamentais: o povo, a nação e o Estado. Este que, para Hegel, é, antes de tudo, um conceito inerente ao próprio sentido da metafísica ocidental, contanto que entendido do ponto de vista do processo histórico, cujo fim é a inteligibilidade dele mesmo. A síntese última. A verdade que estabelece “o Estado como síntese da universalidade e da singularidade”. Mais: ele como “o mundo que o espírito fez para si, cujo andamento, determinado, é de si para si”.

O passo seguinte seria dado por Marx e sua crítica do Estado, já que do hegeliano “sentimento fundamental da ordem que todos partilham” passa-se para o que tal idealismo acoberta, isto é, o individualismo extremo, selvático. O pensamento marxista está, pois, na retaguarda ignorada pela especulação hegeliana.

Trata-se de uma visita aos bastidores – violentos, já que se “a família e a sociedade burguesas transformam-se, elas mesmas, em Estado”, este, na verdade, deve refletir as condições do povo e suas reivindicações. Afinal, o Estado é abstrato, ao passo que o povo concreto.

O projeto marxista pressupõe, enfim, a reinvenção da humanidade, já que sua política faz-se alheia aos processos particularização. E isso talvez constitua o seu maior desafio. Enquanto isso, cabe considerar que o Capitalismo não é o erro por excelência, mas parte da própria história da verdade. Uma face, dialética, da evolução dela, ainda que seja, e continue sendo, o modo de produção a ser ultrapassado.


*Este foi o último texto escrito pelo autor pouco antes de sua morte, em 5/09/2002.

O conceito de Estado: trata-se aqui de um problema que afeta visceralmente a própria constituição da cidadania. Aliás, a cidadania também é um conceito novo, e estes dois conceitos nasceram profundamente imbricados. Mas faço, para iniciar, algumas observações preliminares. E a primeira é a seguinte: que não se deve confundir ou equiparar Estado com governabilidade. Há inúmeras formas de governança, e a história revela-se um profícuo mostruário de tais formas. Entretanto, o Estado deve aqui ser considerado enquanto experiência e conceito essencialmente modernos. Talvez toda a sua especificidade resida exatamente neste ponto: é que uma forma determinada de governo passa a elaborar também, de modo até inédito, o conceito de si mesma. Eu disse que esse governo passa a elaborar: pois, no correr dos tempos modernos, o Estado atravessa toda uma série de etapas em sua evolução que se estende da monarquia à democracia e aos Estados totalitários.

Outro tópico preambular situa-se precisamente no referido conceito de cidadania, ou melhor, em seu pressuposto, que está no individualismo. Observo que o individualismo configura um conceito e uma experiência essencialmente modernos. Ressalte-se esse modo de ser completamente outro do indivíduo, e que vem munido de tal gravidade, que consegue, em nome da invenção de um mundo novo, pôr em crise os pró-alicerces do Mundo Ocidental, e não só dele: é todo o labor civilizatório instaurado a partir do neolítico que então passa a entrar em conflito consigo mesmo. E nas bases desse processo radical de transformação vamos encontrar a emergência de uma concepção totalmente inusitada do indivíduo, em que pesem os traços de tudo o que lhe era avoengo. Baste, por ora, o seguinte: o individualismo não constitui uma consequência, uma espécie de resultado final do evolver dos tempos modernos. Antes disso, a construção do individualismo coincide com os momentos de elaboração primeva dos próprios fundamentos do Mundo Moderno. De certo modo, cabe até avançar que tudo se passa como se já estivesse funcionando um certo conceito do indivíduo nas bases mesmas das façanhas que viriam a caracterizar todo o alvoroço inaugural dos novos tempos. A paisagem que hoje nos cerca configura muito mais as marcas de uma extensa crise daquele individualismo incipiente — crise, observe-se desde já, que desfigura justamente quaisquer tentativas de reavivamento de um passado anterior às descobertas das dimensões da individualidade. Quero dizer, simplesmente e de modo provisório, que os valores do indivíduo e a sua tão decantada crise nos travancos do mundo contemporâneo, longe de se restringirem à mera crise do indivíduo, conformam muito mais um processo de transformação que busca reequacionar as bases das modernas conquistas da individualidade.

Mas o ponto de partida está agora no indivíduo, isto é, no individualismo. Quer dizer: o indivíduo passa a ocupar um lugar central, põe-se a conquistar a sua autonomia, e o espantoso está precisamente na carga de ajustada lucidez que envolve todo esse advento. A grande novidade reside, portanto, neste lugar em tudo surpreendente: é que o indivíduo, pela primeira vez na história, põe-se a construir as suas próprias funções, passa a inventar-se por modos que nada ficam a dever a extremos de andanças revolucionárias, e que estão, por isso mesmo, nas origens do caráter profundamente revolucionário dos tempos modernos.

O indivíduo, eis a questão medular, já discorri em outro ponto[1] sobre os caminhos pelos quais o indivíduo passa a investir no denodado empenho de construção de seu novo perfil, assestadas as perspectivas da melhor transparência. Volto a chamar a atenção, resumidamente, para os tópicos mais proeminentes desse percurso. Ponha-se em primeiríssimo lugar o tema em tudo avassalador da autonomia; contra todas as potestades, o homem começa a ver-se enquanto realidade essencialmente autônoma: tal é o pressuposto de tudo, a pedra angular que passa a alicerçar a suntuosidade que se inicia. Vejam-se algumas de suas facetas. A primeira: contra a negatividade que ensombrecia a prática do trabalho em toda a tradição — o trabalho que era especificamente escravo para os gregos, e, para os cristãos, considerado com decorrência do pecado original —, o homem moderno passa a inventariar a idéia de que, pelo trabalho, constrói a sua ordenação propriamente humana; através de um processo, com a devida demora, o homem começa a fincar os seus pés na energia que brota de seu próprio labor, na força de produção que introduz de modo novo todos os níveis de suas formas de existir. Logo se acrescentaria a isso a invenção da propriedade privada tal como ainda hoje é entendida: o solo, a solidificação das conquistas auferidas. Surge também, neste contexto, o moderno capitalismo, a possibilidade da acumulação da riqueza em moldes novos, toda advinda da manipulação das mãos do homem que cria o objeto fabricado, mas que elabora também os meios para explorar os resultados de sua própria produção. E ele inventa, nos permeios desse itinerário, um poderoso auxiliar para a dominação de seus novos objetivos: é que a ciência, pela novidade do cálculo, reduz o objeto a uma realidade dominável, passível de ser manipulada pelo homem inventa-se, então, a tecnologia moderna. Finalmente, como que cimentando isso tudo, desanuviam-se os horizontes para a orgulhosa edificação da liberdade — tema tão ignorado no passado; ou enegrecido, como na Idade Média, por essa outra temática, muito mais pretensiosa, que era a da predestinação divina. Pois, de repente, o livre-arbítrio faz-se na coisa mais importante que há no homem — como asseverava Descartes —, e o homem põe-se, nem tão vagarosamente, a conquistar os meandros de sua cidadania. Veja-se que, nos espaços desse panorama aqui esboçado, tudo se edifica em torno do grande tema adensador, que está na constituição da individualidade. E é, por assim dizer, na ponta dessa constituição que desponta também a problemática do Estado moderno. De um modo preliminar, e para bem situar o cenário em que se desdobraria a ideia de Estado, eu acrescentaria ao que foi dito que a história da Humanidade se distende no espaço que separa duas grandes revoluções. Lembro apenas que a primeira ocorreu no já referido período denominado de neolítico, quando surge, para empregar a terminologia dos antropólogos, a, doutrina dos dois mundos; vale dizer, a contraposição entre o mundo superior dos deuses e esta outra realidade, a das sombras, como dirá Platão, a das coisas simplesmente humanas, em tudo inferiores. Anoto aqui apenas o cerne do problema. A partir do momento em que começa a deixar de ser um ente predatório, um animal passivo que se serve da natureza, o homem desencadeia a primeira grande revolução, inventando a vida sedentária da organização política e pondo-se a trabalhar; a instituição da agricultura e da pecuária estabelecem no homem essa experiência fundamental, que é a de tornar-se senhor da natureza: a natureza passa a ser o produto de sua própria atividade. Esse cometimento, cuja importância sequer poderia ser exagerada, passa a sofrer, entretanto, o desvario de súbitas experiências como a dos incêndios causados pelos relâmpagos, ou como o da inundação já relatada no Antigo Testamento —, que contrapõem o assentamento humano à constatação de que existiam forças superiores, não domináveis pelo homem. Donde a dicotomia dos dois mundos, a delimitar a esfera do superior e a do inferior, a de deuses e homens. Cabe até dizer que todas as grandes e pequenas culturas são modos de interpretar essa dicotomia fundamental, como que a esgotar, na trama de suas diversidades, todos os empenhos humanos.

A segunda grande revolução instaura-se precisamente nos tempos modernos, e pode ser interpretada, em seu ponto de partida, pelo denodado esforço de desmantelar sistematicamente aquela dicotomia entre os dois mundos do neolítico em todos os seus grandes e pequenos segmentos, e isso a favor da organização de uma nova sociedade, que despreze, por exemplo, a linguagem dos milagres —como foi feito vitoriosamente pelo racionalismo de fins do século XVII—, em prol de uma linguagem racional, fincada em seus esteios claramente humanos. Foi a partir de tais posturas que aos poucos se foram codificando os parâmetros de uma sociedade nova, que encontraria os seus reforços nos diversos tipos de revolução que atravessam os tempos modernos. Veja-se um pouco de seu elenco: a revolução científica, a artística, a filosófica, a política, a tecnológica, a industrial — e por aí afora, porque nenhuma delas pode ser dada como concluída.

Sublinhe-se, no mais, o caráter profundamente histórico dessa vasta problemática — o que nela está em jogo são nada menos do que as destinações da realidade humana. As ideias indicadas linhas atrás são suficientes para que se entenda o relevo essencial que passa a ostentar a presença do individualismo, a significação do processo de ruptura que ele representa, condensando em si o peso maior de uma marcha histórica que vive da velocidade de seu próprio evolver, já nem deixando dúvidas quanto à sua índole irreversível.

Destaco nessa imensa complexidade o feito maior de Descartes, ao afirmar a excelência da liberdade humana. Em relação ao tema, ele faz duas coisas fundamentais: em primeiro lugar, reduz a liberdade à questão do livre-arbítrio, isto é, o homem passa a ser dono de si, se faz senhor e pode dispor de seus desígnios — tal é a essência do livre-arbítrio, a fundamentar até mesmo a própria possibilidade da ação fundante do cogito. Em segundo lugar, começa a espairecer-se o tema da autonomia do indivíduo. A palavra, claro está, pertence à terminologia da ética kantiana, mas os seus pressupostos anunciam-se muito exatamente nas páginas de Descartes. De fato, o livre-arbítrio só pode ser afirmado a partir da idéia de autonomia do indivíduo. Por aí, entende-se que o individualismo se imponha enquanto cometimento maior do início dos tempos modernos e de suas sequelas históricas.

Portanto, o individualismo, construído com uma lucidez inusitada, se configura como ponto de partida das modernas revoluções. Acontece que esse mesmo individualismo desencadearia também o drama maior da modernidade. Realmente, a soberania do indivíduo começa a tropeçar de imediato com as suas próprias fronteiras. A questão que logo se coloca está toda nesta pergunta: se a auto-afirmação do indivíduo se torna tão soberana quanto autônoma, cabe perguntar pelos limites dessa nova situação; até que ponto se faz de fato tolerável essa expansão do indivíduo, que até passa a equacionar a si próprio simplesmente em termos de universo: o homem — quer-se garantir agora — reflete em seu próprio corpo as proporções do cosmo. Entrementes, ocorre, por aí, que se marginaliza esse outro problema não menos essencial: se há uma matemática proporção entre o cosmo e o indivíduo, qual seria a proporção entre esse mesmo cosmo e a sociedade que congrega os indivíduos? Cabe dizer, pois, que o individualismo termina por desentender-se no tema maior de suas próprias limitações. Como consegue o indivíduo, finalmente alçado à sua própria excelência, fazer de si mesmo uma realidade social? E esta pergunta configura as bases que perpassam todas as crises sociais dos tempos modernos.

As tentativas de superação de tais crises vão concentrar-se, e muito cedo, no enfrentamento de duas questões basilares, que permanecem de resto intimamente entrosadas: o problema do contrato social e o da natureza do Estado. São questões aparceiradas e de algum modo presas a certas ambiguidades. Principalmente esta: ainda se fala muito em Deus, mas em sua essência topamos com empreitadas que terminam convergindo para a eliminação do elemento divino, favorecendo um estatuto exclusivamente humano. E por trás dessa realidade divina preterida, é toda a velha concepção do mundo social que começa a ser superada. Percebe-se, por aí, que tal processo de superação — expressão evidente também das transformações sociais da época— poderia trazer consigo até mesmo muita violência, muito derramamento de sangue, mas também muito do silêncio dos laboratórios, e essas coisas tornavam os objetivos a serem alcançados cada vez mais transparentes: mormente pela organização de constituintes que buscavam estabelecer, através da discussão e do consenso, as convenções que deveriam passar a nortear o comportamento humano. Ocupar-me-ei, a seguir, apenas de dois momentos desse controvertido itinerário, a concepção do Estado tal como aparece no pensamento de Hegel e de Marx.

A importância do conceito de Estado na filosofia hegeliana já pode ser aquilatada pela constância da presença desse conceito ao longo da extensa obra do filósofo; trata-se de um conceito fundamental, que constitui a grande porta de abertura que leva à História Universal, ou seja, nada menos do que à realização do Espírito absoluto. Portanto, lembro, o pensamento de Hegel se quer panteísta, e é em tudo fundamental que tal pressuposto não seja esquecido em todas as perquirições do filósofo em torno do conceito de Estado. Sabe-se que o pensamento hegeliano se institui enquanto construção de um sem-número de sínteses; estas são estratégias as mais diversas, cujo sentido definitivo converge para a conquista da suprema síntese, que seria a Idéia absoluta. A coerência interna do sistema exige, obviamente, que a síntese definitiva e final redunde num processo de auto-realização do próprio Espírito. Acontece, por consequência, e este é o aspecto mais fascinante do pensar hegeliano, que tal auto-realização deixa-se processar através de um extenso e necessário itinerário, de mediações de toda ordem e que elaboram justamente a essência do método dialético que, longe de ser um método meramente formal, permeia as próprias andanças do infinito mesclado à finitude.

Digamos que há em Hegel dois conceitos basilares, ambos profundamente históricos, e nosso filósofo se compraz em elucidar as suas inúmeras formas de desenvolvimento. Uma dessas formas configura precisamente o conceito de Estado e a síntese que ele representa. Que conceitos são estes? São os de individualidade e de universalidade. Essa dicotomia oferece-se munida de uma carga pedagógica imensa; as relações entre o indivíduo e o universal pretendem, de muitas maneiras, conduzir o indivíduo a seu destino definitivo. Os velhos gregos já entenderam isto muito bem: toda educação é educação para o universal. A grande originalidade grega neste contexto está em que, se a questão está presente na própria constituição social do homem e deixa-se interpretar de variegadas maneiras nas mais diversas culturas, os gregos inventaram-lhe um caminho de excelência, que está por inteiro na invenção da racionalidade. Hegel aceita estes dois tópicos: trata-se de uma pedagogia que deve decidir o destino das relações entre o indivíduo e o universal, e subscreve também a excelência do caminho que se fez ofertado pela racionalidade.

Evidentemente, nisto tudo, tudo são problemas. E já de saída: qual o lugar do indivíduo e do universal? Qual dos dois termos é anterior? Para os gregos, para Platão e Aristóteles, o tema se resolve de modo relativamente fácil, e isso porque o indivíduo, naquela sociedade, escassamente existia. Em primeiro lugar estava a Cidade-Estado, e o homem particular quase que se deixava reduzir à condição de mero cidadão. Hegel sente sem dúvida a sedução de sentido muito visceral desta antiga tese. Mas há também o outro lado, e que se impõe ao nosso filósofo de modo até mesmo contundente: é que os tempos modernos souberam estabelecer — e, para o alívio panteísta de Hegel, até exagerar — a autonomia do indivíduo, pintado como nunca por Rembrandt e Franz Hals, e pensado de um modo digamos definitivo pela ética de Kant. É nesta encruzilhada que Hegel assesta as suas armas: Tudo deve ser integrado, mas tudo deve também ser superado — e tal é a exata missão do Estado.

Nem se duvide, pois, da importância que Hegel atribui ao indivíduo: ele foi o primeiro a analisar por inteiro toda a sua evolução moderna: soube elogiar o seu surto renascentista, mas coube-lhe também vaticinar os sinto: mas de um mal extremamente corrosivo que habita as raízes da moderna individualidade do indivíduo — esse indivíduo, reduzido a si, chega ao extremo de gerar um mal infinito a ponto de com ele confundir-se através de um estéril processo de auto-absolutização. Mas por aí, estiolado, o indivíduo termina por reconhecer o fracasso de sua própria empreitada de auto-afirmação. A astúcia é esta: o fracasso acaba se revelando precisamente como princípio de redenção — a redenção está em reconhecer que o indivíduo, em que pese toda a sua importância, acaba por desfigurar a justa pedagogia centralizada no universal. Urge, por isto, reabilitar tal pedagogia, ainda que assentada em bases novas. O universal se impõe, agora com força redobrada, em destino definitivo do homem. Ou seja, o indivíduo moderno, isto é, o individualismo, passa a ser o grande mediador, superando-se assim a ingenuidade da tese grega. O Estado, em definitivo, tem por missão tratar da aplicação de uma pedagogia fundamental para o indivíduo, em termos de racionalidade.

Existe, portanto, toda uma evolução do indivíduo, e que termina por tornar evidente a importância deste para a constituição do Estado: a vontade das singularidades, ainda que transidas de negatividade, torna-se fundamental em toda essa caminhada. Acontece, entretanto, que certas realidades transindividuais acabam se revelando anteriores às limitações do indivíduo e mais promissoras do que ele. E isso porque o indivíduo está, desde sempre, de algum modo inserido no universal. A realidade desse universal pode agora, enfim, ser reconquistada. Pois a exacerbação romântica chegou ao extremo de celebrar o indivíduo como “subjetividade infinita”, gerando, em consequência, a “consciência infeliz”. Digamos que o excesso de concentração nos valores da subjetividade terminou por gerar o sentimento de absurdo dessa subjetividade exorbitada, levando ao reconhecimento de que há, nessa alma romântica, uma ausência de senso de objetividade. Pois Hegel julga chegado o momento da necessidade de reconquista da objetividade perdida. Há, neste processo, um certo escalonamento, e poder-se-ia dizer que o processo se desdobra em três níveis fundamentais: o povo, a nação e o Estado.

O conceito de povo é extremamente complexo em Hegel: a partir de seu nível inferior, ele se alça até alcançar o volksgeist, o espírito do povo. Mas em seu momento inicial, nas já incipientes promessas de seus movimentos inaugurais, o povo é simplesmente a multidão, um aglomerado (Haufen) de pessoas sem nenhuma modalidade de determinação intrínseca. O povo originário concentra-se todo nessa indeterminação radical, em que nada parece ter realmente sentido. Mas o pressuposto essencial da tese está na busca dos estatutos da universalidade. E já ao nível do povo acontece a experiência privilegiada da família. A família constitui a expressão originária da constituição do universal. Entenda-se: a criança é o indivíduo que se contrapõe a seus pais e a tudo o que configura o seu meio ambiente: o indivíduo se forma justamente através do processo de universalização, pela contraposição entre as singularidades e os seus contrastes outros. A família é o berço dos universais.

Depois, sempre atravessando os percalços de concretização do universal, passa a surgir a nação. O predileto exemplo de Hegel está no advento da figura do herói, tal como ele foi cantado nos versos de Homero. A exemplaridade do herói decorre do fato de que ele sabe encarnar certas virtudes com as quais o povo passa a se identificar. Tais virtudes emprestam então ao povo uma espécie de denominador comum, um modelo a ser imitado. E é justamente esse elemento comum que cria o sentimento da nacionalidade. A nação desdobra a experiência da família, alarga o seu âmbito, empresta-lhe uma consistência nova, forma-se a nação. E a consciência dela. Ainda hoje, só para exemplificar, uma vitória de Copa do Mundo constitui-se em afirmação de brasilidade; mas é importante para o entendimento do processo dialético observar que, mesmo em caso de derrota, é o sentimento nacional que se confirma: em definitivo, nós não somos argentinos nem uruguaios. Faz-se claro, desse modo, que a nação já edifica um tipo de universalidade bem superior aos das incipiências da vida familiar. Mas tudo concorre para a realização do universal concreto.

Finalmente, surge o Estado. E o Estado, entre tantas coisas, é principalmente isto: um conceito. Tal é o ponto de apoio para o entendimento de tudo o que Hegel diz sobre o tema, tema este que termina por se constituir numa espécie de fatalidade inerente ao próprio sentido da metafísica ocidental. Basta lembrar que o último livro escrito por Aristóteles faz a análise da Constituição de Atenas. Sabe-se que Aristóteles e seus discípulos conseguiram coligir nada menos do que 158 constituições de estados gregos, e o definitivo do velho Aristóteles consistia em transmitir a totalidade da cultura grega, desde a “história dos animais”, passando pelo levantamento dos Jogos Olímpicos, da montagem das tragédias — enfim, de tudo o que a cultura grega conseguiu edificar, até alcançar a esfera das constituições políticas. O que o filósofo grego buscava, em seus derradeiros anos de vida, era traduzir tudo para a esfera do conceito. A biblioteca de Aristóteles, em seus diversos departamentos — a coleção de todos os escritos gregos, o registro dos mapas, e o inventário dos objetos que constituíam a paisagem grega —, já era a organização de uma espécie de enciclopédia, a servir de exemplo para outras, como a de Alexandria, e que está na base da própria ideia de Universidade. Mas, na base, isto: tudo pode ser transcrito em termos de conceitos. Nem se sabe se a Constituição de Atenas seria apenas um modelo a ser desenvolvido por Aristóteles ou por seus discípulos, para que se pudesse enfim visualizar com precisão o conceito político da antiga cidade grega. Claro que as coisas se complicam enormemente com Hegel, e isso por razões que permanecem integralmente metafísicas.

A busca do conceito comanda toda a construção do espetáculo. Mas, em Aristóteles, esse projeto de um levantamento do princípio organizador da cidade grega obedece simplesmente à crueza da visão por assim dizer natural dos fatos. Já em Hegel topamos com a construção de um processo histórico, através do qual a sociedade pretende o entendimento do princípio de sua própria inteligibilidade. E isso porque os gregos ainda não podiam saber, na maturação de seus inícios, a quantas andavam; em verdade, fez-se necessário acompanhar o percurso de uma longa evolução histórica para que, superada a ingenuidade da tese grega, se pudesse chegar, através das exacerbações do individualismo, através de Descartes, da ética kantiana e de todos os fervores políticos do romantismo, à compreensão do que deva realmente ser o significado de um Estado.

O terceiro momento, de ordem dialética, inclusivo e conclusivo de todo esse processo histórico, leva a uma síntese. A tese aristotélica de base pode agora, justamente em seu estofo último de verdade, ser superada: já não basta dizer que o estatuto da cidade é anterior às diatribes do indivíduo, pois fez-se historicamente necessário que a invenção do indivíduo se tornasse presente para que viesse a se constituir na realidade de um novo e definitivo conceito de Estado. Esse Estado seria, em consequência, uma síntese de toda a evolução histórica; se fez em verdade necessário, produto de um processo que encontra em seus devires a sua própria justificativa.

E voltamos, em quarto lugar, ao tema da verdade. Trata-se, como não poderia deixar de ser, de um processo dialético, através do qual se estabelece “o Estado como unidade da universalidade e da singularidade”[2]. Como já foi dito, toda pedagogia tende a realizar o indivíduo enquanto “vida universal”, e tal processo de universalização leva Hegel a asseverar que “o indivíduo só tem objetividade, verdade e eticidade enquanto é membro do Estado”[3]. Esse processo dialético pressupõe, de um lado, a vigorosa afirmação da realidade individual tal como foi constituída através dos tempos modernos, e, por outro lado, a realização de um novo tipo de universalidade, que instaura justamente o Estado moderno: “o mundo moderno, pela primeira vez, faz justiça a todas as determinações da Ideia”[4]. Isso leva o nosso filósofo a afirmar ainda que “o Estado, como Espírito de um povo, é simultaneamente a lei que penetra e perpassa todas as relações desse povo, os costumes e a consciência dos indivíduos (…)[5]. Essa síntese acaba por constituir uma certa realização da verdade, ou da Ideia absoluta. Concretiza-se, assim, a categoria de “Espírito do povo”, pelo estreitamento da relações entre o povo e o Estado: o povo supera a sua indeterminação originária e alcança o conceito de constituição, ou seja, da realidade do Estado: “o ‘Espírito do povo’ é a consciência que o povo tem de sua constituição política”[6]. Entende-se, assim, a excelência que Hegel atribui ao conceito de soberania do Estado. O elogio do Estado atinge a sua culminância exatamente com Hegel: “O Estado é o mundo que o Espírito fez para si; tem, por isso, um andamento determinado, sendo em si e para si.”[7] A consequência está em que “há que se venerar o Estado como divino-terreno”[8], dotado de uma majestade que lhe é toda peculiar.

O passo seguinte seria dado por Karl Marx. E o tema se concentra agora no Estado em situação de crise. De certo modo, Hegel se defende da crítica de Marx por antecipação; assim, quando escreve: “A representação tem a impressão, frequentemente, de que é a violência que assegura a coesão do Estado; mas o que mantém o Estado é unicamente o sentimento fundamental da ordem de que todos partilham.”[9] Mas é justamente na temática da violência que se concentra o ponto de partida da crítica de Marx.

Para começar, topamos em Marx com uma vasta crítica, não apenas à filosofia idealista de Hegel, mas, principalmente, às estruturas do entendimento da sociedade da época. A crítica marxista se torna, em consequência, muito extensa. Chamo a atenção aqui, e de maneira extremamente abreviada, apenas para dois tópicos, pois eles permitirão o prosseguimento da análise. O primeiro encontra-se na frase de Hegel antes citada. A “coesão do Estado” fundamentar-se-ia simplesmente no “sentimento fundamental da ordem de que todos partilham”. Ora, a empresa de Marx concentra-se na perquirição daquilo que é acobertado pelo bom comportamento de tal sentimento. Essa ordem esconde em verdade um individualismo extremo que só encontra os seus limites em sua própria desmedida. O capitalismo já ostentava uma dimensão essencialmente selvática, que empurrava aquela ordem a seu bel-prazer, ou que inventava uma ordem a serviço de interesses particulares. O pensamento marxista está situado, por assim dizer, na retaguarda ignorada pela especulação hegeliana; mergulha naqueles níveis que Hegel não chegou sequer a perceber. E, na verdade, aquele sentimento fundamental acoberta que tipo de realidade? Qual é a ordem que o sustenta?

O segundo tópico prende-se a um outro conceito, o de povo, e neste tópico também Marx convida a uma visita aos bastidores. O fato é que Hegel, ainda que entusiasmado, maximamente em sua juventude, pelos ardores iconoclastas deflagrados pela Revolução Francesa, não soube revelar o menor “sentimento” por essa outra revolução, que já se armava com toda nitidez, que era a Revolução Industrial e tecnológica; esta oferecia aos olhos de Marx uma mesa farta para a análise, que fazia revezar a copiosidade e a indigência, numa paisagem que já se oferecia em seus menores detalhes humanos e sociais. Por aí, transforma-se justamente a noção de povo. No fundo, em que pesem as violências dos revolucionários franceses, o povo de Hegel encontra antes as suas raízes no lirismo herderiano que deu estatuto de cultura ao folclore. Para Hegel, o espírito do povo resume-se na consciência de sua constituição política, que “penetra e perpassa todas as relações desse povo, os costumes e a consciência dos indivíduos”[10]; seus temas condensam-se na constituição e na soberania do Estado. Para Marx, tudo se adensa, mais uma vez, num processo de transgressão daquilo que era objeto da fala de Hegel: ele quer saber daquilo que constitui o estofo das “relações” mais remotas e finalmente evidentes desse povo, onde encontra as suas raízes a configuração de seus “costumes”, e quais são as forças condicionadoras da “consciência dos indivíduos”. Trata-se, portanto, como já avançava Marx em sua juventude, de uma radical inversão do próprio sentido do idealismo hegeliano.

O que resta, então, para o conceito de Estado nessa perspectiva marxista? Justamente a análise desse mundo anterior, do avesso daquilo que aparecia no discurso hegeliano. A verdade, ensinava o idealista, se desoculta através dos processos históricos, e Marx não é mais do que um momento desse processo de desocultação, entendido agora de modo dialeticamente mais radical, ou seja, mais próximo de suas motivações contraditórias. Com outras palavras: o Estado, visto através dos reversos que se observam nas decorrências do individualismo e das condições de vida do povo, entra numa crise que não perde sua intensidade nem por seu caráter extremamente óbvio parece que em Marx nada há de mais claro do que a crise do Estado, e o tom de seu discurso como que substitui a análise por uma ênfase política que chega até a ser monocórdia. É que a crítica se deixa sustentar pela urgência de suas instâncias políticas, ou ainda por decorrer de discursos mais amplos e mais pertinentes.

Por que a urgência? Porque a primeiríssima sinonímia a decorrer da própria natureza do Estado moderno está toda concentrada no seu caráter de violência. A relevância da violência deriva por inteiro de uma nova visão interpretativa: para Hegel, tudo se explicaria pela ação da própria Ideia divina, que deveria acabar autoriz ando algo como um pacifismo universal. Pois é contra essa tese hegeliana que Marx desenvolve um de seus primeiros escritos, a tese “Crítica da filosofia hegeliana do Estado”. Neste escrito inaugural, para Marx “família e sociedade burguesa transformam a si mesmos em Estado. Elas são a força agente”. Para Hegel, ao contrário, elas são “feitas” pela Ideia divina; não é o seu “próprio currículo de vida que une num Estado, e sim o currículo da própria Ideia que o monta dessa maneira”.[11] E contra essa hegemonia da Ideia é que Marx passa a associar o Estado à violência: já nesse ensaio inicial, ele fala “das diversas violências que levam à realização das finalidades do Estado”[12]; tais finalidades vinculam os interesses gerais à manutenção dos interesses particulares. Nessa passagem da “realização da Ideia” para outro lado, para o lado do povo, instala-se então a própria necessidade da violência. O Estado verdadeiro passa a ser visto nas condições de vida do povo e em suas reivindicações: “O Estado é um abstrato. Só o povo é concreto.”[13]

Esses conceitos se fazem presentes também, como seria de esperar, no Manifesto Comunista. E isso, de modo até lacônico; incisivamente, Marx conclui que “a moderna violência do Estado não passa de um rebotalho, que administra os negócios gerais de toda a classe burguesa.”[14] Já nada sobraria então para o Estado? Sim, mas uma função meramente transitória — a do tempo exato que deve presidir as essenciais e breves medidas da revolução proletária. Ou seja: o desmonte das estruturas e das pertinências do Estado capitalista, a centralização do crédito num banco nacional, a centralização dos transportes passando para as mãos do Estado, e outras medidas igualmente práticas, a começar pela multiplicação das indústrias nacionais. O importante em Marx é que se trata aqui, como tarefa de um breve período de tempo, do desmantelamento da violência, ou melhor, de um tipo bem preciso da violência, aquela que se revela inerente à própria essência do moderno Estado capitalista; se, com a revolução, desaparecerem as diferenças de classe, e se os meios de produção se associarem nas mãos dos “indivíduos associados”, “a violência pública perderá o seu caráter político. Em seu sentido próprio, a violência política é a violência organizada de uma classe que se pretende opressora de outra classe”.[15] Isso significa que a violência política deve levar, pelo interregno da revolução, à supressão ao menos de um determinado tipo de violência política.

O tema reaparece, mais uma vez, em O capital, e aqui também de modo bastante escasso. Lembro apenas dois breves itens, mesmo porque eles são apresentados assim, de passagem. O primeiro faz presente uma espécie de nostalgia de um mundo anterior aos procedimentos dominatórios do Estado, e afirma: “A intromissão do Estado falsificou a relação econômica em suas medidas naturais”[16] e isso diz da alienação radical que o Estado moderno introduz. A outra observação refere-se aos processos de transição da economia feudal para as modernas formas de capitalismo, e não esquece “a violência brutal” dos sistemas colonialistas: “Todos servem-se do poder do Estado, da violência concentrada e organizada da sociedade (…)”, para concluir que a própria violência “é uma potência econômica”.[17]

A referência ao sistema colonial, ou ao que Marx denomina de “sistema colonial cristão”[18], autoriza uma curta digressão que pode, talvez, elucidar melhor nossa temática. É que o pensamento de Marx é a primeira grande expressão de um processo histórico essencialmente moderno, através do qual as velhas categorias do rico e do pobre começam a ser superadas — uma superação que ainda continua trazendo, claro está, muitas promessas dentro de si. Baste lembrar que, no passado — e trata-se de um passado do qual nem se percebem muito bem os confins —, a riqueza e a pobreza eram consideradas enquanto estamentos fixos, espécies de essências aderidas à própria natureza das coisas sociais: realmente existiam, com plenos direitos, os ricos e os pobres, e todas as consequências dessa desigualdade, a fundamentar até mesmo a santidade. Os gestos extremos apenas confirmavam tal situação “natural”; assim, por exemplo, um São Francisco de Assis, rico de raiz, decidiu-se pelo analfabetismo da pobreza. Na época, eram condições extremas, limites intransponíveis, a ponto de fazer da escolha entre os dois polos um verdadeiro ato heroico. E eram tantos, que a Igreja, em nome de uma ética absolutamente normal para a época, empenhada em preservar justamente aquelas duas balizas, inventa que a pobreza (e com ela a castidade — sempre a atrofia do corpo) deve ser considerada até mesmo como uma virtude. Hoje, o menor dos bons sensos já reconhece que a questão da pobreza concentra-se, simplesmente (ou muito complicadamente), na problemática maior da falta de educação — o pobre passa a ser, essencialmente, uma pessoa sem educação.

Ora, Marx foi o pensador que viu em primeira mão, nessa passagem das velharias para os parâmetros que vinham sendo estabelecidos pela sociedade moderna, o seu sentido profundamente revolucionário. Os critérios passivos de riqueza e pobreza começam a passar por caminhos de transformação por assim dizer definitivos, e Marx foi sem dúvida o exato primeiro pensador que desvendou esta temática de um modo consequente e programático, e isto de modo até mesmo fulminante. E isto porque, no lugar da antiga antinomia entre pobres e ricos, os tempos modernos souberam inventar esta outra dicotomia, a de produtor e consumidor. Não nos compete entrar aqui no tema, mas, a título de mero exemplo a ele introdutório, vale transcrever dois passos de O capital em tudo elucidativos e instigantes: “Uma máquina que não serve no processo de trabalho é inútil.”[19] Assim, a relação entre produção e consumo torna-se essencial: “Se, portanto, produtos existentes são não só resultados mas também condições de existência do processo de trabalho, por outro lado é sua introdução nele, isto é, seu contato com o trabalho vivo, o único meio de conservar e realizar esses produtos de trabalho passado como valores de uso.”[20] A nova antinomia está toda aqui: valores de produção e valores de consumo. Evidentemente, as vicissitudes históricas fizeram com que Marx se concentrasse na análise das forças de produção, já que no capitalismo, elas se viram alienadas precisamente em função dos valores de consumo, e isto de tal maneira, que a revolução capitalista continuaria a alimentar aquilo que deveria suprimir — a antinomia entre ricos e pobres. Nesta perspectiva, de certo modo, o socialismo é apenas a realização plena do capitalismo.

Dentro deste quadro, percebe-se logo a configuração das origens da violência. É que o desequilíbrio instala-se no cerne dos processos de produção, através da ativação dos mecanismos que geram a mais-valia. Haveria, pois, no ponto de arranque, certo equilíbrio decorrente da própria essência da situação humana: “O processo de trabalho (…) é uma atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, a apropriação do natural para satisfazer as necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a Natureza (…)[21] Essa “condição natural eterna da vida humana”[22], entretanto, desdobra-se através dos processos históricos, e pode gerar formas de desequilíbrio entre produção e consumo. E aconteceu que tal desequilíbrio passou a oferecer feições muito peculiares no percurso do capitalismo, e isso precisamente através da serventia de uma forma de violência nova, enraizada nas prevaricações decorrentes da mais-valia, e cuja mais notória manifestação está na luta de classes. A revolução industrial criou, de um lado, uma nova classe, o proletariado, e, de outro lado, um novo princípio de dominação todo concentrado no empresariado. A violência que passou a ser ativada por essa antítese iria determinar a presença da violência também nos avanços do Estado moderno. Sabe-se que esse Estado ostenta uma intrincada história que se estende da monarquia à democracia. E a violência, do modo como foi referida, passa a ser, e por caminhos sempre mais claros, assumida pelo Estado: “Todos utilizam-se do poder do Estado”, e este termina por se autodefinir enquanto “violência concentrada e organizada da sociedade”[23]. Esse Estado é que deve ser suprimido, o seu aparato policialesco deverá tornar-se anacrônico justamente através da política revolucionária da luta de classes.

Mas aconteceu que, no correr do século XX, e de modo totalmente imprevisível para Marx, o Estado voltou a assumir, em formas inéditas, o seu caráter absolutista; a proliferação de ditaduras alcançou níveis que tornaram a violência política um fato corriqueiro até nas ruas das cidades e mesmo na intimidade das residências. E, em segundo lugar, faz-se necessário observar que essa absolutização do Estado está longe de ter sido um fenômeno exclusivo das forças conservadoras, da chamada política de direita. Ao contrário disso, o Estado soube embrenhar-se, com toda a sua carga de violência, também nas formas de governo de esquerda, e o exemplo mais escandaloso disso deve ser visto no absolutismo do Estado estalinista, que acabou ruindo, ainda que de modo mais monumental, como qualquer empresa capitalista. Crise do Estado? Sem dúvida. A chamada guerra fria, que dominou largamente o século XX, fez-se totalmente à margem de qualquer entendimento dialético; foi, antes, uma guerra que se debateu entre os pólos absolutos do certo e do errado, justificando assim a violência em qualquer dos lados. A violência do Estado, em consequência, nas mais diversas formas e orientações políticas, deixou-se levar com facilidade ao extremo de si mesma, num processo de auto-esterilização que soube desrespeitar todos os limites. O resultado está nessa espécie de perplexidade política a desorientar as consciências, numa forma de paralisia que vem impedindo essas consciências de se defrontarem com a necessidade de reexaminar as categorias alicerçadoras de sua própria aventura. É de importância fundamental que sejam repensados conceitos normativos, tais como o Estado, a nação, o nacionalismo, o capitalismo, o capitalismo de Estado, e por aí afora. Refiro-me, pois, às estruturas de base que vêm regendo a vigência do Estado. E a questão já começa neste ponto exato: o Estado, em face de sua crise, tornar-se-á dispensável? Com certeza, e como sempre, será preciso despistar as invenções da eternidade.

Para concluir, gostaria de fazer uma curta observação sobre um conceito que tem muito mais a ver com a temática aqui exposta do que possa parecer à primeira vista. Quero referir-me ao conceito de Humanidade: nada mais instrutivo do que contrapor os conceitos de Humanidade e de Estado. Trata-se de um conceito novo, que se foi desenvolvendo no correr do século XVIII e tomou um vulto em tudo singular. Tanto quanto vejo, os seus inícios coincidem com a atividade política de Leibniz: o filósofo foi também um diplomata, empenhado, entre outras coisas, em resolver a eterna crise do Oriente Médio; a novidade estava em que, longe de prender-se ao particularismo das religiões, ele tentou superá-la com critérios simplesmente políticos. Com os franceses do Enciclopedismo, o conceito de Humanidade tornou-se moeda corrente, e a ética de Kant, um dos fundadores da democracia, fez da Humanidade o seu principal pressuposto. Os escassos exemplos citados são suficientes para patentear o significado que adquiria na época essa fronteira extrema que a inteireza da Humanidade. Pois Marx também deve ser situado nestas coordenadas. Todo o projeto marxista pretende nada menos do que a reinvenção da Humanidade; por definição, a política marxista se constrói alheia aos processos de particularização, e nisto está talvez o maior de seus desafios. Marx foi o primeiro a compreender que os processos de internacionalização pertencem à própria essência do capital; o capital se expande, por exemplo, à maneira da iniciativa do patriarca dos Rotschild: assentou os seus cinco filhos nas principais capitais financeiras da época. Não há nada de menos marxista do que pretender vencer o capitalismo através de atravancamentos de ordem nacional. E, afinal, Marx foi o fundador da Primeira Internacional, e isto diz tudo. Deve-se considerar, enfim, que o capitalismo não é simplesmente o erro em contraposição à verdade; o capitalismo pertence, antes, à própria história da verdade, constitui um momento dialético de seu evoluir, ainda que constitua, e continue constituindo, o modo de produção a ser ultrapassado.

NOTAS

  1. Bornheim, Gerd, “O sujeito e a norma”, em Ética, org. Adauto Novaes, São Paulo, ed. Companhia das Letras, 1992, p. 247-260. 
  2. Hegel, G. W. E, Linhas fundamentais da filosofia do direito, terceira parte: A eticidade, terceira seção: O Estado, trad. de Marcos Lutz Mueller, Campinas, ed. IFCH/ UNICAMP, 1998, p. 26. 
  3. Id., ibid. 
  4. Id., p. 14. 
  5. Id., p. 73. 
  6. Id., p. 17. 
  7. Id., p. 67. 
  8. Id., ibid. 
  9. Id., p. 17. 
  10. Id., ibid. 
  11. Marx, Karl, “Kritik der hegelschen Staatspbilosophie”, em Die Frueschriften, Stuttugart, ed. Alfred Kroenel, 1953, p. 25. 
  12. Id., p. 33. 
  13. Id., p. 45. 
  14. Marx, Karl, “Manifest der Kommunistischem Partei”, em Die Fruehschriften, id., p. 527. 
  15. Id., p. 548. 
  16. MARX, Karl, Das Kapital, Berlin, ed. Dietz, 1975, p. 587, vol. I. 
  17. Id., p. 779.. 
  18. Id.ibid. 
  19. Marx, Karl, O capital, trad. de Régis Barbosa e Flávio R. Kothe, São Paulo, ed. Abril, 1983, p. 153, vol. I. 
  20. Id. ibid. 
  21. Id. ibid. 
  22. Id. ibid. 
  23. Marx, Karl, Das Kapital, id., p.779, vol. I. 

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