2005

Um só povo, uma só cabeça, uma só nação

por Maria Rita Kehl

Resumo

Há que se notar, de início, que escrever sobre a televisão brasileira na década de 1970 é praticamente escrever sua história. Talvez a TV tenha sido muito mais criativa, muito mais capaz de improviso nos 20 anos anteriores, quando tudo estava por ser inventado e não havia modelos prontos. Mas foi a partir do momento em que a televisão no Brasil “criou seu próprio modelo” — e isso significa exatamente o advento da Rede Globo — que ela passou a existir como fenômeno social significativo e como sistema abrangente. A década de 1970 está intimamente relacionada com a expansão da indústria cultural no Brasil. Escrever sobre a TV brasileira neste período é reconstituir a história da indústria cultural no país ligada à atuação dos grandes monopólios econômicos, e consequentemente à história da Globo.

Havia oito emissoras de televisão no Brasil: três redes e cinco estações locais (São Paulo e Rio). A princípio, o objetivo era escrever um pouco sobre cada uma. Mas chegou-se à conclusão de que o fenômeno Globo representava um vastíssimo campo a ser explorado, pela desproporção de sua penetração em relação ao alcance das outras emissoras e também pela complexidade de sua estratégia de conquista do público. A ideia foi concentrar o trabalho numa análise do processo de expansão da emissora ao longo desses 10 anos e descrever a luta pela sobrevivência das outras estações face ao monopólio.

Para reconstituir o processo de crescimento da televisão, foi preciso recorrer fundamentalmente a um arquivo: a memória dos homens que trabalham ou trabalharam para construí-la. Refletindo sobre esta memória pode-se descobrir — ou quem sabe, inventar — a história da Rede Globo e suas linhas de programação. Essa história representa um universo tão complexo que se optou por ocupar tratar de sua detalhada descrição e análise — a Globo é efetivamente a síntese da televisão brasileira na década de 70.

1970-1979: à maneira das “retrospectivas de fim de ano” levadas ao ar pela Globo a cada 31 de dezembro, arrisca-se uma retrospectiva da década que começa de fato em 1968 — com o AI-5 e o arrocho da ditadura, em termos mais amplos; com os primeiros acertos e definições da política de programação da maior emissora de televisão do país, em termos mais específicos mas nem por isso menos significativos — e que talvez já tenha dado seus últimos suspiros há alguns meses. Os acontecimentos mais marcantes de 1979 já não são mais típicos da “década de 1970” (embora consequência dela); já anunciam outra década, outra conjuntura, outros problemas e outras perspectivas — aparentemente, menos limitadas. Que esses 10 ou 12 anos passados sob jugo militar, tutelados pela indústria cultural em expansão e motivados pelas promessas do já falido milagre econômico brasileiro, não tenham viciado ou embotado as faculdades pensantes e sobretudo desejantes com que nós, brasileiros (“nós” quem?), temos que contar.

“Realismo”, “realidade brasileira”, “vida real” passam a ser nessa década as grandes bandeiras dos autores e diretores de telenovelas, que encontram na imitação das aparências da realidade empírica um elemento de sucesso, favorecendo ainda mais a identificação emocional dos espectadores com a problemática vivida e sofrida pelos personagens principais. Fala-se em “doses de realismo”, “nível de realidade”, “graus de aproximação com o real” como se, num passe de contabilidade, a realidade para a televisão funcionasse como um tempero, um superaditivo a ser acrescentado em doses maiores ou menores à obra — que assim ocuparia um lugar medido numa escala de zero a dez, ou seja: da fantasia desvairada à realidade nua e crua. Consistindo a última a reprodução perfeita da vida cotidiana pela TV, no ideal (inatingível?) a ser alcançado…


Escrever sobre a televisão brasileira na década de 70 é praticamente escrever sua história. Talvez a TV tenha sido muito mais criativa, muito mais capaz de improviso nos 20 anos anteriores, quando tudo estava por ser inventado e não havia modelos prontos. Mas foi a partir do momento em que a televisão no Brasil “criou seu próprio modelo” — e isto significa exatamente o advento da Rede Globo — que ela passou a existir como fenômeno social significativo e como sistema abrangente. A década de 70 está intimamente relacionada com a expansão da indústria cultural no Brasil. Escrever sobre a TV brasileira neste período é reconstituir a história da indústria cultural no país ligada à atuação dos grandes monopólios econômicos, e consequentemente à história da Globo.

Existem oito emissoras de televisão no Brasil: três redes e cinco estações locais (São Paulo e Rio). A princípio, pensamos em escrever um pouco sobre cada uma. Mas chegamos à conclusão de que o fenômeno Globo representava um vastíssimo campo a ser explorado, pela desproporção de sua penetração em relação ao alcance das outras emissoras e também pela complexidade de sua estratégia de conquista do público. A ideia foi concentrar o trabalho numa análise do processo de expansão da emissora ao longo desses dez anos e descrever a luta pela sobrevivência das outras estações face ao monopólio.

Para reconstituir o processo de crescimento da televisão, tivemos que recorrer fundamentalmente a um arquivo: a memória dos homens que trabalham ou trabalharam para construí-la. Refletindo sobre esta memória pudemos descobrir — ou quem sabe, inventar — a história da Rede Globo e suas linhas de programação. Esta história representa um universo tão complexo que acabamos optando por ocupar todo o espaço deste trabalho na sua detalhada descrição e análise — a Globo é efetivamente a síntese da televisão brasileira na década de 70.

1970-1979: à maneira das retrospectivas de fim de ano levadas ao ar pela Globo a cada 31 de dezembro, tentaremos uma retrospectiva da década que começa de fato em 1968 — com o AI-5 e o arrocho da ditadura, em termos mais amplos; com os primeiros acertos e definições da política de programação da maior emissora de televisão do país, em termos mais específicos mas nem por isso menos significativos — e que talvez já tenha dado seus últimos suspiros há alguns meses. Os acontecimentos mais marcantes deste ano já não são mais tipicamente “década de 70” (embora consequência dela); já anunciam outra década, outra conjuntura, outros problemas e outras perspectivas — aparentemente, menos limitadas. Que esses dez ou 12 anos passados sob jugo militar, tutelados pela indústria cultural em expansão e motivados pelas promessas do já falido milagre econômico brasileiro, não tenham viciado ou embotado as faculdades pensantes e sobretudo desejantes com que nós, brasileiros (“nós” quem?), temos que contar.

Mas, se não embotaram, certamente marcaram bastante. Essas linhas de abertura, por exemplo, independentemente de seu conteúdo, levam o jeito daquelas palavras de estímulo e consolo com que o elegante Cid Moreira encerra o Fantástico todos os domingos, deixando a mensagem editorial da Globo para a semana que inicia. E a retrospectiva da década feita em pequenos takes, que se segue, não difere muito do estilo telejornalístico com que a emissora pretende informar seu público. Para escaparmos de tanto determinismo só nos resta refletir sobre os fatos, reencadeá-los de outra maneira, extrair deles significados além das aparentes evidências, fazer emergir da constatação que imobiliza a compreensão que transforma. Nesse terreno, na manutenção e renovação desses estranhos hábitos, residem alguns fundamentos essenciais da liberdade – palavra que pode soar estranhamente vazia de sentido no contexto da década de 70, mas talvez adquira significados mais concretos e menos demagógicos nesses incipientes anos 80, dos quais tenho vagas ideias sobre o que quero que sejam, e ideias muito precisas sobre o que, espero, não sejam.

  1. 1° de janeiro de 1971. Em Salvador, Bahia, cidade onde entre carnavais e candomblés ainda subsistem elementos do que se poderia chamar de uma “pujante cultura popular”, acontece a Procissão dos Navegantes. Centenas de barcos de todos os tamanhos saem ao mar em procissão seguindo a imagem de N.S. dos Navegantes e saudando o ano novo. Num dos barcos, naquele ano, iam dois turistas muito especiais – Tarcísio Meira e Daniel Filho, respectivamente astro e diretor da novela das oito da Globo no momento, Irmãos Coragem. Aliás, a primeira novela de grande repercussão nacional da Globo, comparável aos fenômenos de audiência já garantidos pela emissora para quase qualquer coisa que leve ao ar às oito horas, atualmente. De repente, vinda de um dos barcos, a música-tema da novela eleva-se acima dos outros ruídos da festa. Aos poucos os barcos que seguiam a Senhora dos Navegantes vão mudando de rumo até formarem um círculo em torno daquele que transportava nossos heróis. O povo baiano e outros visitantes entoavam em coro “irmãos, é preciso ter coragem…” enquanto Tarcísio os saudava na proa, os braços erguidos, os olhos cheios de lágrimas diante daquela expressão espontânea do afeto popular.

Espontânea, sim, e carregada de muito mais significados do que o simples carinho do público por seu ator predileto. Expressão do poder de mobilizar emoções, conquistado pelos produtos de uma emissora de televisão. Expressão do poder de certas imagens, certos dramas pré-fabricados, certos truques estilísticos que compõem uma telenovela – aliados à capacidade de penetração da rede em nível nacional – em ocupar um espaço central na vida afetiva de milhões de pessoas. Não é qualquer comício que desvia os rumos da curtição de uma festa de rua, na Bahia – e também não foi a primeira nem a única vez que a Globo arrombou a festa nesses anos de seu monopólio. Arrombou a festa, a missa, a passeata, a noite de núpcias, o comício, o divã do psicanalista, a hora do jantar – e tantos outros eventos cuja proporção talvez precisemos de mais alguns anos para avaliar com clareza.

  1. Em Caicó, pequena cidade do sertão do Rio Grande do Norte, na região do Seridó, uma rádio local anuncia a próxima música dirigindo-se a seus ouvintes mais jovens: “E agora, para o embalo de vocês, cocotinhas do Seridó…”. Deslocado da Zona Sul carioca ou dos grandes centros urbanos em geral, o apelo parece ridículo. No sertão do Seridó, a realidade física é outra, o nível de consumo é outro, os problemas de sobrevivência são outros. Mas outros planos da realidade (nem por isso “menos reais”), o plano simbólico e o plano do imaginário, planos das codificações, dos signos e da linguagem, das fantasias e das aspirações, tornam-se cada vez mais homogêneos por todo o país. Que o digam as cocotinhas do sertão, os motoqueiros (ainda que montados em anacrônicas lambretas) do cerrado, os frequentadores de discotecas da Zona Franca de Manaus. Se a burguesia reproduz sua imagem pelo mundo afora, a indústria cultural, tendo a TV como veículo mais eficaz, dilui essa imagem em padrões pequeno-burgueses tornando a imitação acessível a quase qualquer outro estrato social. Democracia burguesa é isso aí. Integração Nacional via unificação da linguagem, do consumo e da ideologia, também. A Globo cumpre orgulhosamente seu papel.
  2. A revista Amiga (Ed. Bloch) vem lançando, há três ou quatro anos, uma edição especial – As casas dos artistas – para brindar os leitores com a atitude generosa de seus atores, cantores, autores de novelas, locutores e diretores mais queridos: nas páginas coloridas da revista estes personagens abrem as portas de seus lares para exibir seu estilo de vida privada, seus símbolos de sucesso profissional e (como não poderia deixar de ser) amoroso, sua correta moral familiar, seu bem-estar, sua extrema domesticidade, sempre plenamente compatível com a “vida artística”. No domínio do espaço privado ostentado pelos artistas, temos o testemunho de uma carreira em linha reta, tal como convém aos bem-ajustados. A televisão, como veículo doméstico e bem-comportado que é, apagou definitivamente a imagem maldita que pesava sobre a carreira artística. Os empregados do Sr. Roberto Marinho transitam, sim, por um território reservado aos deuses (e quantos não sonham pelo Brasil afora em ser “gente da Globo”, em qualquer nível!) mas onde a moralidade não deve chocar em nada a de seu público, onde os casais se separam apenas em função de formar uma família ainda mais bem-sucedida que a anterior e a dedicação à carreira só não é grande o suficiente para superar o amor ao lar, a vocação à maternidade, o prazer em cuidar do maridinho. A vida do artista é exemplar. Modelo a ser imitado com as devidas adaptações materiais, na medida do possível (mas o importante é que seja sempre possível) por qualquer cidadão comum.
  3. Em fins de 1977, a Globo atingiu sua fase mais ousada em termos de experimentação (que daria lugar a uma volta atrás, logo em seguida). No horário das oito, o horário dos grandes novelões, uma novela de Lauro Cézar Muniz pretendia revelar ao público os bastidores da TV, desmistificar a imagem do ator e o processo de produção das próprias novelas. Um projeto inviável sobretudo por ser executado dentro da chamada Hollywood brasileira. Em todo caso, o Espelho mágico chegou a conter uma metanovela — Coquetel de amor — a famosa novela-dentro-da-novela que caricaturizava a tal ponto os clichês desse tipo de produto que o público não gostou nem um pouco da brincadeira. Ou sentiu-se ofendido com a revelação? Mas o Espelho foi polêmico. Chico Anysio, por exemplo, não gostou da personagem vivida por Sônia Braga, uma atriz principiante que lança mão de todos os recursos a seu alcance para fazer carreira. Também se ofendeu, e desancou a novela no Fantástico. No domingo seguinte, o mesmo programa apresentava um debate-promoção da novela de Lauro Cézar Muniz. A televisão tem essa agilidade: ela mesma cria o fenômeno que em seguida critica, debate, justifica, envolvendo ainda mais o público no julgamento desse fato social artificial. Antes de mais nada focaliza a si mesma: “Eu sou o espetáculo”. A partir daí tudo é espetáculo. A vida é amiga da Arte, mas em televisão essas categorias se confundem. Melhor dizer: a cultura industrializada é amiga sobretudo de si mesma.

Aliás: no último capítulo de Espelho mágico, o personagem de Lima Duarte tirou a máscara e falou como ator em nome de todos os atores. Seu discurso de encerramento da novela reivindicava os direitos profissionais dos trabalhadores de teatro, cinema, circo e TV, e pedia a regulamentação da profissão. A Censura deixou passar a maior parte das lamentações do ator sobre seu trabalho, sua dedicação, suas alegrias e sofrimentos, mas cortou a parte dos direitos autorais e da regulamentação da profissão. Ossos do ofício, implicações das regras do jogo: todo detentor de qualquer tipo de poder precisa de salvaguardas para se revelar aos seus subordinados… Num caso como este (e quantos outros?) a emissora talvez deva agradecer a proteção da Polícia Federal.

SOLIDÃO EM CADEIA

Um dia qualquer, uma hora qualquer desses últimos dez anos. Um ponto qualquer do país (o que em termos de televisão significa qualquer município com mais de 50 mil habitantes; o resto não conta, porque o mercado consumidor potencial é muito pequeno para justificar qualquer investimento). Um brasileiro qualquer no isolamento de seu lar liga o aparelho de televisão e entra em cadeia com todos os que supõe seus iguais, pelo resto do território nacional. Um brasileiro qualquer: o homem isolado, desinformado, conformado. O homem urbano ou subitamente urbanizado por força de um processo de industrialização violento (se em 1950 o Brasil tinha 40% de sua população nas cidades e 60% no campo, em 1977 a população urbana representava 65% do total contra 35% de população rural). O homem moderno e desenraizado cujas tradições, quaisquer que tenham sido, foram aceleradamente substituídas por crenças mais seculares e mais coerentes com o ritmo do país: a fé na felicidade via consumo, no poder das cadernetas de poupança, na viabilidade da casa própria e carro do ano comprado com crédito facilitado; ufanista do seu terno novo e da bela fachada da agência bancária próxima à sua residência – assim como do supermercado inaugurado há pouco – para sua maior comodidade. Este homem convicto do progresso de seu país, que faz dele o cidadão participante de um novo sonho, endividado e angustiado, assoberbado de trabalho e desejos de ascensão. O filho calouro na faculdade de fim de semana, a mulher pedindo um segundo carro, a filha de cabelos cortados à Pigmaleão 70, a sogra orgulhosa da nova TV a cores, a geladeira cheia de embalagens coloridas – margarina da moda em vez de manteiga, iogurte com frutas, pudim de pacote, tudo mais sedutor e, quem sabe, um pouco mais barato.

O homem permanentemente insatisfeito cuja participação no processo político do país ficou limitada a concordar ou não com os apelos da ARP ou com as mensagens editoriais do jornal Nacional. O homem desentendido que perdeu em um curto período de tempo a imagem de seu país tal como o concebia dez ou 15 anos antes (uma imagem carregada de valores rurais, ainda que defasados em relação à época) e perdeu ao mesmo tempo seus canais habituais de articulação com a comunidade – “canais” que vão do campinho de futebol de várzea à participação sindical, da festa de rua às eleições diretas. A este brasileiro resta o consolo da festa global, resta entrar em cadeia às oito da noite através do Jornal Nacional, ou da novela do momento (e, sendo mulher, mais despudorada em relação a esse tipo de envolvimento, quem sabe até enviar uma carta a Janete Clair pedindo um final reconfortante?). A este homem expropriado de sua condição de ser político, resta a televisão como encarregada de reintegrá-lo sem dor e sem riscos à vida da sociedade, ao Lugar onde as coisas acontecem. Pois este lugar é o próprio espaço da imagem televisiva, e este é o principal papel que a rede líder em audiência representou na década. Ela é O Veículo. Ela fala para estes brasileiros como se falasse deles – sem deixar de considerar uma faixa importante dos mais marginalizados economicamente, para quem acena com a possibilidade de ser como eles. Ela absorve e canaliza suas aspirações emergentes e, cúmplice, coloca no vídeo sua imagem e dessemelhança capitalizando seus desejos para o terreno do possível. Sendo que os limites do possível também é a televisão que condiciona sutilmente, impondo, com a força da imagem, padrões de comportamento, de identificação, de juízo e até mesmo um novo padrão estético compatível com a nova fachada do país “em vias de desenvolvimento”.

Foi por volta de 1970 por exemplo que os fins de ano na Globo (e nos outdoors por aí) se tornaram mais opulentos. As imagens do casal jovem e bem-sucedido, símbolo do Banco Itaú, diante de sua mesa farta de Natal confundiam-se com as da linda ceia de confraternização/encerramento da novela das sete. Entre um e outro comercial, os atores da Globo aparecem todos juntos convidando o público para sua festa: “Hoje é um novo dia de um novo tempo que começou / nesses nossos dias as alegrias serão de todos, é só querer / Todos nossos sonhos serão verdade, o futuro já começou / Hoje a festa é sua, hoje a festa é nossa, é de quem quiser, quem vier…” O tema de fim de ano não mudou durante toda a década, como uma marca registrada da emissora que conservou sua fé no Brasil Grande, atravessando crises econômicas e conjunturais, inabalável.

O Brasil não é mais o “subdesenvolvido” dos anos 60. O “dia que virá” das canções de protesto perde o sentido no momento em que a Globo anuncia que “o futuro já começou”. Se nos anos 60, conforme escreveu Roberto Schwarz, a esquerda regeu e deu o tom da produção cultural consumida inclusive pela burguesia no poder, de 1969 em diante as coisas foram mudando, e os “90 milhões em ação”, que a televisão cantou até a exaustão por ocasião da Copa de 70 e que podem ser traduzidos em termos mais concretos por 30 milhões em audiência, não desejavam outra coisa senão serem bem-sucedidos, diretamente – no sentido da ascensão social individual, conquista de símbolos de status etc – ou indiretamente, através da identificação com uma nação vencedora, um país que vai pra frente, o país do futuro onde o futuro é hoje, e tal.

O Padrão Globo de Qualidade que se firmou sobretudo a partir de 1973, com a chegada ao Brasil da televisão colorida, é incompatível com a estética do subdesenvolvimento criada por produtores culturais de esquerda – os teatros de Arena e Oficina (considerando evidentemente as diferenças entre suas propostas), os Centros Populares de Cultura (CPCs), o Cinema Novo. A opulência visual eletrônica criada pela emissora contribuiu para apagar definitivamente do imaginário brasileiro a ideia de miséria, de atraso econômico e cultural; e essa imagem glamourizada, luxuosa ou na pior das hipóteses antisséptica (quando é imprescindível mostrar a pobreza convém ao menos desinfetá-la: em vez de classes miseráveis, um povo “humilde porém decente” para não chocar ninguém) contaminou a linguagem visual de todos os setores da produção cultural e artística que se propõem a atingir o grande público. Hoje, a estética da fome pegaria muito mal, e não é só porque as condições do capitalismo no Brasil evoluíram. Hoje o país é mais tropicalista do que nunca – o desenvolvimento desigual e combinado produz imagens grotescas, o mendigo guardando a comida achada no lixo em uma sacola de butique cara, o aparelho de televisão no barraco do favelado, a mulher da roça tentando curar a fraqueza do filho com Tetrex – mas a Globo despreza solenemente a estética do tropicalismo. No entanto, ela é, a despeito de sua vontade, a própria síntese do que o tropicalismo cantou e ridicularizou há dez anos atrás: o símbolo da tropicália, o Troféu Superbacana conquistado pela burguesia multi e nacional como prêmio por sua farsa em fazer com que o processo de expansão do capitalismo aqui pareça um processo honrado, sério, meritório.

UM SÓ CORPO, UMA SÓ NAÇÃO

Pronunciamento do ministro das Comunicações em dezembro de 1973: a Globo foi a única emissora de televisão que cumpriu até então as exigências do governo federal — “a transmissão eletrônica de recreação, informação e educação nas mãos da iniciativa privada, alicerçada numa sólida estrutura de empresa moderna”.

Declarações de Walter Clark à revista Banas (13/5/1974): “A partir de 1973, quando completou a parte mais expressiva da expansão da rede (…), todo esforço da Globo foi orientado no sentido da elaboração de uma nova programação” (…) “A TV vive de um universo quantitativo; essa ideia, e a de integração nacional, acabaram com a imagem de programas específicos para cada região” (…) “O maior mal da televisão brasileira sempre foi a falta de unidade no comando das empresas” (…) “A Globo tratou de formular uma programação que induz a esse universo global”.

A “sólida estrutura de empresa moderna” a que se referia o ministro Higino Corsetti, fortemente centralizada em sua direção como propunha Walter Clark, resultou no sucesso não apenas da Rede Globo de Televisão, mas de todo um corpo de empresas, o Sistema Globo de Comunicações, que abrange um jornal, sete emissoras de rádio, cinco emissoras de TV com 18 afiliadas e centenas de estações retransmissoras; uma editora (Rio Gráfica), uma gravadora cuja base mais forte de vendas são as trilhas sonoras das novelas do momento (Som Livre), uma empresa de promoção de espetáculos (Vasglo), uma empresa de promoção e galerias de arte (Global) nas principais capitais do país. Em 1977, foi criada a Fundação Roberto Marinho (provavelmente com vistas a diminuir os impostos sobre os formidáveis lucros das empresas do Sistema Globo), para “prestar serviços à comunidade”, concentrando suas atividades nas áreas de cultura, esportes e educação.

Através de convênios com o governo federal ou governos estaduais, a fundação passa a intervir em outras áreas da vida nacional, com programas como o de Preservação do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional, em perfeita sintonia com os objetivos do Plano Nacional de Cultura do governo Geisel/gestão Ney Braga, que coloca a preservação da memória nacional (memória de quem?) como meta prioritária. (Coincidência ou não, a outra meta prioritária do PNC / 77 era a “identificação do estilo brasileiro de vida”, para a qual a televisão muito contribui lançando modelos de comportamento fabricados em São Paulo e Rio para todo o território brasileiro…). O programa propõe, além da “conscientização e interesse da população” para o assunto, o engajamento direto da FRM no trabalho de conservação e restauração das cidades históricas do Rio e de Minas.

Interferindo na área do lazer nos grandes centros urbanos (quase como uma reparação pela distorção dos hábitos de lazer criada pela própria televisão…), a fundação criou um programa de bolsas para atletas brasileiros em convênio com a OEA — o melhor bolsista tem direito a um mês de treinamento nos Estados Unidos, um técnico norte-americano vem ao Brasil pelo convênio para treinamento da seleção que vai competir em Porto Rico etc. No Rio, mantém núcleos esportivos na Mangueira, no Estácio e na Cidade de Deus, além de desenvolver o programa Futeboys, de torneios entre equipes de office-boys organizados por empresas de maneira a promover não apenas o lazer dos menores assalariados, mas também sua maior identificação com a camisa da empresa em que trabalham. Em colaboração com programas das prefeituras de São Paulo e Rio, inventou o Globinho/Ruas de lazer, levando atividades recreativas às ruas de lazer das prefeituras. Inventou também um tal Domingo alegre, que consiste em promover manhãs de ginástica recreativa para pais e filhos, a cada mês em um bairro do Rio de Janeiro.

Finalmente, atuando de maneira direta sobre a questão educacional, criou o Telecurso Segundo Grau em convênio com a Fundação Padre Anchieta, oferecendo ao Estado os préstimos da iniciativa privada para sanar (e ao mesmo tempo, em se tratando de uma grande rede nacional de televisão, para unificar definitivamente) os déficits do sistema educacional brasileiro, através de aulas de 15 minutos de duração levadas ao ar diariamente, em dois ou mais horários, por 39 emissoras da Globo e TVs educativas, atingindo todos os estados brasileiros desde julho de 1978.

No programa do Telecurso, surge com maior evidência a preocupação em integrar/uniformizar/unificar o processo de informação/formação da chamada “opinião pública” no Brasil: “As aulas na TV têm a vantagem de o veículo permitir a otimização do processo ensino-aprendizagem, pela vantagem que apresenta de unificar as diretrizes educacionais, por ser uma fonte única de onde emanariam instrução, sugestão e controles, evitando dispersão didática e formativa” (revista Mercado Global, set. /out. de 1978). O tratamento empresarial da educação, em termos de otimização de recursos, economia didática e formativa, reforça o enfoque político que propõe o controle centralizado do processo de aprendizagem, utilizando a TV como “força decisiva no domínio da informação”, como se fosse um veículo neutro que, “sem ignorar diferenças regionais nem massificar a juventude”, é capaz de colaborar decisivamente com o “desenvolvimento harmonioso do país (seus processos de) mudança, modernização e igualdade de oportunidades” (Discurso de Roberto Marinho a autoridades de Brasília em 19/4/1978, publicado no mesmo número da Mercado Global).

Um ano depois de inaugurado o Telecurso global, 46% dos alunos que prestaram exame de Segundo Grau haviam se preparado pela televisão, quebrando o monopólio dos cursinhos supletivos. Do ponto de vista do aluno, a vantagem maior da educação pela televisão talvez seja justamente aquela que o Estado deveria oferecer – a gratuidade do ensino, uma vez que ele não paga (ou não percebe que paga; pois, em última instância, de quem é a mais-valia que sustenta a publicidade que sustenta a televisão?) pelos 15 minutos diários de aulas-padrão-Globo, apresentadas por atores famosos e cheias de imagens coloridas muito mais bonitas que as de uma sala de aula comum.

Não contente com o bom cumprimento de seus deveres cívicos através da Fundação Roberto Marinho, a empresa mais representativa e mais poderosa da indústria cultural brasileira criou ainda outra forma de interferência na vida social, de maneira a atenuar mais um pouco os pontos de atrito ou mau funcionamento do sistema do qual é uma das maiores defensoras e beneficiadas. A Divisão de Projetos Especiais da Globo propõe aos anunciantes uma nova relação com o público, através de campanhas promovidas pela emissora em convênio com qualquer empresa interessada. Assim, com um enfoque menos comercial e mais institucional, cria-se a “possibilidade de o anunciante prestar um serviço comunitário ou cultural que só dignifica sua imagem junto ao público” (Mercado Global de maio/junho de 1977), contribuindo simultaneamente para o bom comportamento e o bom ajustamento desse público à ordem social.

Baseado nas tensões emergentes entre as classes médias do país em consequência da deterioração da qualidade de vida nas grandes cidades, o convênio Globo/Unibanco, por exemplo, lançou a campanha Guie sem ódio, em 1974, referindo-se à crescente violência no trânsito; e Mexa-se, em 1975, propondo ao homem urbano que não estrague sua saúde com uma vida sedentária – que lhe é imposta a partir do momento em que é condicionado a viver em apartamento, sair cada vez menos da cidade por falta de condições econômicas, perder várias horas por dia em condução, aumentar constantemente a jornada de trabalho para compensar o efeito da inflação sobre os salários e, é claro, despender seu tempo de lazer sentado diante da televisão. Em seguida, a campanha Desarme-se propunha maior cordialidade nas relações sociais, também tendo como alvo a crescente onda de violência urbana. Outras campanhas menores foram lançadas, muitas vezes com linguagem bem próxima à das campanhas promovidas pelo governo federal (ARP). Por ocasião das enchentes que arrasaram o Recife, foi feita em Pernambuco a campanha de Defesa da cidade. A Bolsa de Valores de São Paulo lançou É hora de confiar, e o Bradesco, uma campanha de esclarecimentos sobre a utilidade do Imposto de Renda.

A proposta parece ter pegado bem, e nos fins de ano as grandes instituições financeiras têm deixado de anunciar diretamente seu principal produto – a mais-valia do trabalhador brasileiro transformada em lucro, por sua vez transformado em “rendimentos” para o investidor – para se colocarem na posição de principais defensores de valores humanísticos em extinção: o Bradesco propõe que “Neste Natal… leve um presente a uma criança que não tem papai”, o Banorte sugere otimismo e confiança (“Quero ver você não chorar, não olhar pra trás, nem se arrepender do que faz”), o Banespa anuncia-se como o Banco de um novo tempo e conclama os homens a, todos juntos, “galgar as colinas da terra até o topo do mundo”, e vai por aí. Uma sociedade em que o capital financeiro se coloca como tutor da Caridade, da Fé e da Solidariedade através de um onipresente sistema de comunicações parece de uma organicidade quase perfeita.

No final de 1978, a enorme campanha lançada pela Globo por ocasião da abertura do Ano Internacional da Criança (Unesco) arrecadou em um dia mais de 20 milhões de cruzeiros só em dinheiro, além de receber, milhares de doações de outros tipos, ficando 24 horas no ar e provando que, transformada em espetáculo bem empresariado, uma atividade beneficente pode se tornar sucesso nacional. Além disso, provou ser uma instituição poderosa o suficiente para criar um acontecimento social, um fato político de maior penetração na consciência das pessoas do que toda a atuação da Unesco somada, ou de maior impacto do que a existência, no Brasil, de 70% de crianças desnutridas numa população de 23 milhões de crianças de O a 6 anos. Uma promoção de grande repercussão para propor que cada indivíduo contribua com um pequeno gesto caridoso — um gesto bem-comportado, o gesto solicitado e permitido — para que tudo possa permanecer como sempre esteve, criando ao mesmo tempo uma válvula de escape para o desconforto que pode causar a situação de miséria da infância no Brasil.

A MÁQUINA DE SUGAR CÉREBROS

Quando se pensa na televisão como “sugadora de cabeças”, logo se imagina a imagem, criada por Jaguar no Pasquim, do monstro diabólico esvaziando de qualquer conteúdo inteligente, como um aspirador, a cabecinha passiva de seus espectadores. Não gosto da imagem: nem a televisão é tão poderosa assim, nem as cabeças do público tão passivas, nem o processo pelo qual uma e outra interagem equivale a uma mera relação sugadora. Para manter seu público atento, a televisão precisa saber preencher lacunas de insatisfação, dar nome ao que ainda não foi dito, dar forma ao inconsciente coletivo, ordenar o caos das chamadas “manifestações espontâneas” conferindo-lhes um significado único antes que outro aventureiro lance mão da tarefa de compreendê-las. Precisa curto-circuitar processos sociais, ou seja: tomá-los sob sua tutela desde o embrião. Os homens de TV bem-sucedidos (assim como os de publicidade) precisam afiar sua intuição para farejar tendências latentes e fazer delas a sua proposta, aparando evidentemente todas as arestas que possam prejudicar o bom funcionamento da ordem social. Para manter seu público fiel, a televisão precisa recriar o mito a cada dia, roubar as falas marginais ou as de vanguarda, enquadrar os malditos. Ela é o aparelho reprodutor de ideologia por excelência, o mais ágil, o mais eficaz por suas próprias características, tanto como veículo quanto pela relação íntima que mantém com as tendências de consumo de bens materiais na sociedade, pois sobrevive e enriquece exclusivamente às custas da publicidade — e, portanto, do controle e conhecimento das tendências de seu mercado consumidor.

Os cérebros que a televisão “suga” são aqueles que ela absorve para incorporar em suas fileiras. Autores e atores, humoristas, dramaturgos, jornalistas, diretores de cinema e teatro, técnicos especializados, cenógrafos de todos os campos de produção artística foram absorvidos aos bandos pela TV, e mais especificamente pela Globo, que engoliu inclusive os melhores profissionais criados por emissoras concorrentes. Seu enorme poder de sedução é facilmente explicável. Em primeiro lugar ela oferece salários mais altos, embora para a grande maioria de seus trabalhadores o alto nível salarial não passe de uma miragem que lhes acena de longe, do alto da escalada do sucesso — para a qual “muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos”. Se autores de novelas como Janete Clair e Lauro Cézar Muniz chegam a ganhar respectivamente 300 ou 200 mil cruzeiros mensais, trabalhando num esquema de revezamento que lhes garante férias a cada seis ou sete meses (toda vez que terminam um roteiro), a maioria dos atores do Astro (1978) ganhava cerca de 5 mil cruzeiros por mês, segundo declarações do próprio diretor da novela à imprensa.

Os figurantes da Globo são contratados através de agências que lhes oferecem 200 a 500 cruzeiros por dia de trabalho que pode durar quatro, sete ou dez horas — e o figurante deve estar disponível todo o tempo. Por ocasião da gravação do último capítulo de Dancin’ Days (janeiro de 1979), cerca de 200 figurantes estiveram das oito da manhã às nove da noite à disposição da direção, no Salão Nobre do Copacabana Palace, onde deviam fazer fundo para a festa de inauguração da boate de Seu Alberico (Mário Lago). Deviam arrumar figurinos por conta própria, pois a emissora só fornece as roupas dos atores. Da mesma forma, não tiveram nenhuma refeição paga pela Globo, nem horário estipulado para almoço ou jantar durante as 13 horas de trabalho — tinham que correr aos bares vizinhos, nos intervalos forçados entre uma cena e outra. Para os técnicos de televisão em geral — cenógrafos, câmeras, maquiadores, figurinistas, esse elenco anônimo que compõe a infra-estrutura de qualquer programa — essas jornadas de 12 ou 15 horas de trabalho, desde muito antes de começar a gravação até depois de os atores terem sido dispensados, são consideradas normais.

As vantagens de se trabalhar na Globo? Talvez porque ela pague em dia a quantia estipulada na carteira de trabalho, coisa que muitas das outras emissoras não garantem a seus assalariados (entre elas, na cabeça, a Tupi, das Associadas, recordista em problemas trabalhistas). Mas antes disso parece contar um fator mais subjetivo e nem por isso menos poderoso: o status conferido a quem transita dentro da instituição mais popular do país. “Do faxineiro ao figurante, da moça do cafezinho ao jornalista, não há quem não sonhe em ser ‘gente da Globo’, como o Bozó, do Chico Anysio”, comenta Daniel Filho: “A Globo representa em termos nacionais o que a Metro Goldwin Mayer representou em escala mundial na década de 40”. Walter Avancini, homem da Globo durante sete anos, principal responsável pelo núcleo das novelas das dez horas até o início de 1979 (depois contratado pela Tupi como diretor do departamento de jornalismo), também reconhece o prestígio da Globo como empresa, como mercado de trabalho, “mas ela nunca ofereceu uma infra-estrutura trabalhista compatível com as necessidades de seus assalariados. Considero inclusive que esses 15 anos de repressão facilitaram muito o comportamento empresarial da Globo, pois com a ausência de sindicatos fortes e a impossibilidade de se reivindicar direitos trabalhistas por meio de greves, etc., todo trabalhador da emissora foi obrigado a aceitar as precárias condições que ela impõe. Qualquer reação podia ser considerada subversiva…”

Mas, segundo o próprio Avancini, essa realidade não corresponde à imagem que as pessoas fazem da Globo como empresa. O prestígio da emissora, a opulência de suas produções, a alta qualidade técnica — quase um preciosismo eletrônico — de sua imagem, sua penetração pelo território nacional são fatores que “contaminam” as expectativas do trabalhador em relação às condições de trabalho lá dentro. É quase um orgulho sofrer para botar o Fantástico no ar. É um sonho para quem trabalha em outras emissoras de televisão. É uma eterna possibilidade de se sentir participante do que acontece no país e uma eterna perspectiva de vir a interferir mais diretamente — quem sabe o iluminador não terá alguma oportunidade de mostrar suas qualidades como humorista? E a moça que toma conta dos guarda-roupas, ali tão pertinho dos atores, não vai ter um jeito de saber antes de todo mundo o fim da novela e contar no seu bairro? A figurante mais bonitinha não pode vir a ser “descoberta” pelo diretor e convidada para uma ponta na próxima novela? “Mas eles tratam a gente que nem cachorro”, lamenta-se uma figurante mais velha, descansando um minuto no banheiro do Copacabana Palace. “Eu perguntei pra Yolanda (Joana Fomm) se ela ia fazer as pazes com a Júlia (Sônia Braga), e ela nem me olhou. No fim da gravação o Daniel fez o maior discurso agradecendo ao elenco, um por um, e nem falou no trabalho da figuração.”

Diferente da motivação desses trabalhadores anônimos é a dos grandes atores e autores de outras áreas — principalmente do teatro — que trocaram o palco pelas câmeras. Ou, segundo a expressão mais comum a todos eles: trocaram a oportunidade de se comunicar com dez, 20 ou no máximo 100 mil pessoas numa temporada pela chance excepcional de falar para 20 ou 30 milhões em uma única noite. “Em 1968 o teatro estava muito cerceado; eu tinha duas opções, ou tinha que ser funcionário público ou ia para a TV. Mas não existe o que discutir: se você luta por um teatro de massa, como recusar um público de 20 milhões? A TV é boa ou não, dependendo de quem faz; limitações também existem no teatro” (Dias Gomes à revista Veja de 29/6/1977). Com uma trajetória completamente diferente da do teatrólogo/novelista, a atriz Aracy Balabanian apresenta, no boletim para imprensa da Globo, de 30/4/1977, um discurso muito parecido: “Meu trabalho em televisão começou em 1965, por uma necessidade de contato com pessoas mais simples, de falar para uma plateia cada vez maior… Gostaria de fazer só isso (teatro), mas meu trabalho como gente tem que ser socialmente uma coisa maior. E a TV está aí, não posso negar. Quando faço televisão estou assumindo meu momento… Na TV, o artista entra em contato direto com o povo, entra em suas casas, fica sabendo do que as pessoas gostam…”

O dramaturgo Paulo Pontes (falecido em janeiro de 1977), do antigo grupo de teatro Opinião na década de 60 e um dos responsáveis pela série A grande família, que a Globo levou ao ar de 1973 a 75, afirmava: “A TV é um veículo essencialmente democrático; pode ser ligado por qualquer um… O grande tema é o que interessa à maioria da população, o que não quer dizer que exista contradição entre qualidade e televisão, mas sim entre a TV e a linguagem aristocrática.” Seu companheiro de Opinião e de Globo — A grande família — Armando Costa justifica o ritmo da “linha de montagem” de um programa de televisão, em detrimento às vezes da qualidade do produto: “Se semanalmente milhões de pessoas sobrevivem nas piores condições, por que um programa de TV não pode sair a cada sete dias?”

A busca de um público maior é compatível com a industrialização generalizada da produção de bens materiais no país e com a penetração massiva da indústria cultural em todas as áreas da produção de bens simbólicos, o que cria uma nova mentalidade quanto à relação do espectador com a obra de arte: agora, o circuito pequeno, regional ou local, parece inútil, patético. A peça única transforma-se num luxo descabido, a linguagem experimental, intimista ou mais elaborada, é vista como “artistocrática”. O fenômeno não é causado pela televisão, mas pelo desenvolvimento do país, que incorpora novas e diferenciadas faixas sociais ao mercado de consumo cultural e desperta o artista para uma contradição típica das sociedades de classe. Mas a TV surge, isto sim, como o diluidor da contradição, o veículo democrático que contorna as barreiras de classe e de linguagem, transforma a qualidade em quantidade e estende a mão para os produtores de cultura que buscam desesperadamente fugir do ostracismo a que as propostas intelectualizadas de esquerda dos anos 60 os haviam relegado. O dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, falecido em 1974, ex-CPCista, ex-Opinião e também homem da Globo (A grande família e inúmeros casos especiais), também resolvia seus conflitos entre os diferentes tipos de veículo, dizendo que se recusar a trabalhar em televisão em pleno século 20 é, no mínimo, burrice.

Talvez seja. O último dos “cooptados”, o ator Paulo Autran, que, até 1976, num debate sobre se o ator do teatro deve fazer TV (revista TV Guia, n° 2), dizia não, em oposição a outro ator, Raul Cortez, foi parar na novela Pai herói, de Janete Clair, em 1979. Um novelão folhetinesco onde seu talento colaborou para melhorar um pouco o personagem Bruno Baldaracci, um mafioso perdido na Baixada Fluminense, bufão e caricato. Denis Carvalho, ator bem mais jovem criado pela Tupi e posteriormente comprado pela Globo, reafirma seu deslumbramento pelo poder do veículo: “A TV é fascinante. O que você perde em complexidade ganha em penetração”. E o diretor Daniel Filho, em entrevista ao Jornal do Brasil (24/7/1977), leva um pouco mais adiante a questão do aparente dualismo entre quantidade e qualidade na televisão: “Temos que pensar que as populações brasileiras são muito diferentes entre si. Para se fazer algo popular e nacional deve-se procurar uma linguagem comum e aceitar as regras. Atingir quase todos ao mesmo tempo não é brincadeira — temos que pôr os pés no chão e voar ao mesmo tempo”.

NIVELAR PARA NIVELAR

Ou seja: não há dualismo entre qualidade e quantidade, mas a fabricação de uma nova qualidade. De uns dez anos para cá, pelo menos, os intelectuais, artistas, acadêmicos que falavam em “cultura brasileira” tentando enfiar no mesmo saco manifestações as mais diversas e preocupados já há muito tempo em atingir setores “populares” diferentes da burguesia são forçados a reconsiderar seus conceitos a partir do fenômeno televisão. E, mais importante, a partir da formação das grandes redes nacionais, como no caso da Globo, que transmite simultaneamente via Embratel para 96% dos municípios brasileiros com mais de 50 mil habitantes, desde 1975. Se, nas declarações acima, é evidente a impressão de que a TV transforma simplesmente “qualidade em quantidade”, não parece nada evidente a nenhum dos entrevistados qual seja o resultado do novo “salto qualitativo” que ela promove, ao jogar uma produção específica num circuito tão ampliado, tão desigual e ao mesmo tempo tão padronizado no que se refere à própria relação com a televisão: doméstica, cotidiana e capaz de conferir a qualquer assunto, a qualquer obra de arte, o mesmo tratamento que confere aos filmes de publicidade. Ou, o que é ainda mais confuso — capaz de abordar no mesmo tom e com a mesma inconsequência, por exemplo, o julgamento de policiais que torturaram até a morte um operário e os resultados de um jogo de basquete; de conferir o mesmo tratamento a um show tipo parada de sucessos, um festival universitário e uma apresentação do balé Bolshoi, de maneira a mobilizar, em seus espectadores, sempre o mesmo tipo de emoção, de atenção e de tensão.

A entrada massiva da televisão em 19 milhões de lares brasileiros e, por outro lado, a absorção, pela produção televisiva, de qualquer tipo de proposta cultural gerada aqui ou no exterior, agora ou no passado, por autores conservadores ou revolucionários, transformam substancialmente a própria relação do “público” (uma categoria que a indústria cultural tenta fazer passar por natural, mas que é criada por ela mesma) com a cultura dominante. Pois a televisão é capaz de fundir, sem escapar dos termos da ideologia dominante — ou melhor, a reiterar continuamente essa ideologia —, padrões, valores e expressões culturais marginais, minoritários e de oposição. A essa agilidade do veículo, a essa capacidade de neutralizar qualquer proposta e transformar tudo no que ela é refere-se Theodor Adorno ao dizer que a indústria cultural tem uma necessidade voraz da novidade para poder recriar continuamente a mesma coisa. Essa “mesma coisa” é simplesmente o espetáculo, a distração. O grande mérito inovador da Globo foi ter percebido, antes das outras emissoras, que um programa de televisão pode se dar ao luxo de tratar de conteúdos mais ousados, mais atuais, mais “realistas” (termo que resume as pretensões mais revolucionárias da emissora nessa década) se souber transformar tudo em objeto de distração, ou seja: literalmente, aquilo que o público consome distraído, entre um comercial e outro, entre a sobremesa e o cafezinho, entre o noticiário esportivo e as chamadas para a próxima novela.

Ao absorver expressões culturais diversificadas e transformá-las de acordo com as características técnicas e as limitações políticas do veículo, a televisão subverte a própria natureza desses produtos. Um balé, um “filme de arte”, um debate entre intelectuais, uma cena real de violência, uma adaptação literária, através da TV, já não são mais (como temia Ferreira Gullar na década passada) “inacessíveis ou incompreensíveis para o povo”, se é que o problema era de acessibilidade. Mas também não são mais o mesmo balé, o mesmo debate, a mesma cena violenta e real. O veículo, o circuito, a “aura” e o tipo de consumo (ou fruição) também fazem parte da natureza da obra de arte — e a todos estes elementos a televisão contaminou, pela relação padronizada que impõe entre a obra e o consumidor, além de subverter a própria forma das obras ao adaptá-las às suas necessidades básicas das mais corriqueiras: tempo máximo de 50 minutos picotado em três ou quatro intervalos comerciais, exigências de picos de suspense para não dispersar o público durante esses intervalos, necessidade de diluição da linguagem para não se afastar de nenhum setor potencial de seu mercado consumidor, etc.

É preciso não esquecer que a televisão é o veículo cuja relação entre produção/comercialização é mais evidente e mais direta. Não se trata apenas do fato de ela veicular, quase na mesma linguagem, publicidade e cultura, informação e propaganda, a ponto de ter criado a sofisticação do merchandising. Não se trata apenas do fato de o padrão estético dos filmes publicitários ter influenciado e forçado o desenvolvimento do padrão visual dos programas de televisão. Trata-se do fato de que qualquer nova proposta, em televisão, tem sua viabilidade avaliada em termos de conquista de novas faixas de público porque a conquista permanente de audiência é vital para a TV; e essa conquista não é aferida em números reais como a venda de ingressos para uma peça de teatro ou jogo de futebol. São números-fantasma que assombram o departamento de criação de uma emissora de televisão, números com que ele precisa acenar para o anunciante em termos de perspectiva de abertura de mercado, como horizonte de investimento, como tendência de setores consumidores… e que por isso mesmo não podem nunca oscilar para baixo, pois, por mais insignificante que seja essa oscilação, será igualmente fantasmagórica, assustadora, passível de interpretações que provocarão outras oscilações desproporcionais nos lucros da empresa.

Assim, se o tema da integração nacional é um dos principais pontos de confluência entre a política cultural dos governos Médici e Geisel e a política de expansão e unificação da programação da Rede Globo, existe um terceiro termo, ligado ao modelo de desenvolvimento econômico tanto do país em geral como da televisão em particular, responsável pela afinidade entre os dois primeiros. “Integrar a nação” pode significar, em termos políticos, afinar o coro dos descontentes de acordo com o tom ditado pela minoria satisfeita; mas também significa incorporar setores marginais ao mercado, padronizar aspirações e preferências, romper com tradições regionalistas e modernizar hábitos de acordo com as necessidades dos produtores de bens de consumo supérfluos que se expandiram nessa década. Da mútua dependência entre necessidades políticas e econômicas e da possibilidade de a TV conciliar exigências de ambos os lados resulta o êxito da Rede Globo, que conseguiu ser, no fim da década, o produto mais bem-acabado do acordo entre militares e burguesia. Mais bem-sucedida, inclusive, que cada uma das partes a ela associadas…

AVANÇOS PREVENTIVOS

Em conferência pronunciada na Escola Superior de Guerra há cerca de dois anos, o Sr. Mauro Salles, publicitário e dono de uma das maiores agências do país, ex-jornalista da Globo, analisa as desigualdades regionais do país considerando dados de analfabetismo e da marginalização econômica de parte da população. Para ele, o trabalho urgente das “empresas de comunicação social” consistiria em “incorporar ao mercado de consumo o 4° estrato da população, esses 20 milhões de sub-brasileiros que são responsabilidade de toda a nação” (…), pois “na miséria, na fome, na opressão e na desesperança não existe opinião pública”.

Sugere então os rumos para a publicidade no Brasil, considerando que 30 milhões de brasileiros são jovens e estudantes, consumidores em potencial e futuros líderes da população: “Temos que estar preparados para seus novos símbolos de status, não mais ligados apenas a posse, propriedade, moda e dinheiro.., olhar para frente e atender a essa geração que será produto da Nova Sociedade da Informação” — sociedade em que, para o conferencista, as grandes revoluções pacíficas foram realizadas pela indústria cultural: “O fenômeno hippie, a contracultura, o despertar da luta contra a poluição, a destruição de preconceitos sexuais, a emancipação feminina, a revolta contra a massificação da moda, etc.” (Mauro Salles talvez tenha razão: a indústria cultural, ao absorver todos esses movimentos e reproduzi-los segundo sua versão, termina por recriar cada um deles, semelhante na forma e esvaziado em seus conteúdos mais radicais, lançando-os num circuito internacional e produzindo infinitas repercussões ao nível da criação de novos bens de consumo simbólicos ou não.)

Por isso tudo, a propaganda hoje (e a programação que a reboca) teria que mudar “para responder às questões dessa nova geração consciente que surge”. O conferencista prega na ESG o fim da censura, que impede a participação livre e segura dos mídias na formação da opinião pública, e conclui: “Contem o presidente Geisel, as FAs, os legisladores com o apoio de todos os meios de comunicação social deste país, que, acima de seus debates e controvérsias, colocam sempre seu compromisso em orientar e conduzir a opinião pública na sua luta permanente contra a radicalização, na busca de caminhos da Justiça, do Progresso, da Ordem e da Democracia”.

Em outro ensaio publicado na revista Mercado Global, de janeiro/fevereiro de 1978, o professor Carlos Alberto Rabaça, diretor de Comunicações da Shell e chefe do Departamento de Comunicações da UFRJ, refere-se à importância da informação como fator de desenvolvimento nacional. A desinformação seria, a seu ver, responsável pela formação de focos de intranquilidade pública e perigo para a segurança nacional. Informar seria, portanto, essencial para se prevenir “a insegurança causada pelo silêncio: surgimento de suspeitas e temores, desenvolvimento de manobras nocivas…” sendo que, em contrapartida, “o silêncio nas informações gera cautela nas atividades econômicas”. Propõe então maior circulação da informação entre as diferentes camadas da população, “mas nunca desvinculada da necessidade de controlar seus limites, na procura de liberdade com responsabilidade”.

O pensamento dos dois “comunicadores sociais”, afinados com os ideais de crescimento econômico e “desenvolvimento harmonioso” da sociedade brasileira sob a batuta dos interesses empresariais e com a “colaboração de todos” (sic), ilustra perfeitamente a necessidade de que uma grande empresa de comunicações, como a Globo, esteja sintonizada com todos os aspectos da realidade nacional. Todas as tendências modernizantes ou mesmo vanguardistas da linha de programação da Globo, situadas mais ou menos a partir de 1973, quando a emissora fixou definitivamente o padrão de seus produtos e a liderança na audiência, explicam-se por aí. A Globo, através de programas que já se tornaram tradicionais, como o Globo repórter e suas ousadias jornalísticas, os espetáculos musicais da série Brasil especial, as telenovelas das oito especializadas em abordar grandes temas nacionais e as antigas novelas das dez, mais polêmicas e ousadas em forma e conteúdo, até os atuais seriados que absorvem inclusive propostas nitidamente de esquerda dos anos 60 (ver texto As novelas, novelinhas e novelões), vem se caracterizando por ser uma emissora cuja programação nacional suplanta a importada no chamado horário nobre, e que procura “tratar seriamente os problemas sociais que o povo enfrenta dia a dia ao invés de inventar melodramas escapistas”, como escrevem os americanos (de Harvard) Elhiu Katz e George Wedell em seu livro A TV no 3° Mundo. Os autores concluem que “a TV só conquista status se utilizar valores artísticos e culturais de todos os campos de arte do próprio país”, e, apesar de sua discutível avaliação do que seja o tratamento sério conferido pela Globo aos problemas sociais, acertam em cheio no que consiste à fórmula do sucesso da emissora.

Os ideólogos da Globo simplesmente perceberam que, melhor do que omitir os problemas e calar as exigências da realidade social, é encampá-los sob sua tutela. As reivindicações por “mais realismo”, “menos fantasia”, “menos ilusão” e outras, vindas de setores mais avançados do público e dos próprios críticos, serviram de orientação à estratégia de programação da emissora, que buscou, ao nível do senso comum, falar da realidade brasileira, colocar o “povo” no vídeo e não omitir nem mesmo os fenômenos criados pelas vanguardas da sociedade – como a libertação sexual, os movimentos ecológicos anticonsumistas e outros, que aliás consistem em excelentes chamarizes para a curiosidade das massas menos informadas e marginalizadas – se abordados, evidentemente, com o devido cuidado para que as tais massas não os considerem “incompreensíveis”.

Assim a Globo ingressava na fase da abertura política do país, com propostas que antecederam a própria dimensão governamental e preveniram inclusive sua necessidade para melhor controle e apaziguamento dos setores insatisfeitos da população – a tal “integração harmoniosa” da nação brasileira. Como uma esponja, como o “pulmão da sociedade” a que se refere brilhantemente Mauro Salles, ela aspira e absorve tendências e necessidades emergentes, que canaliza para sua programação, dirigindo assim o próprio debate que pode ocorrer em torno desses fatos; porque, na sociedade dos mídias, um fato social também é a sua versão – e frequentemente a versão pode se tornar mais poderosa que o fato.

No entanto, não é absurdo que hoje, apesar da maior margem de ação que o governo Figueiredo permite aos órgãos de informação e aos produtores de cultura no país, a Globo recue em vez de continuar avançando e adote uma atitude mais realista que o rei em termos de censura interna. O Jornal Nacional desse segundo semestre de 1979 pode ser confundido com um press-release da Secom, tal o destaque que dá a pronunciamentos governamentais e aos convescotes que o presidente vem realizando país afora em busca de popularidade. O Globo repórter abandonou estranhamente sua linha de grandes reportagens sobre temas polêmicos nacionais e voltou a preencher seu horário com enlatados sobre parapsicologia, a vida dos animais selvagens, os grandes monstros de terror do cinema, as mais recentes descobertas tecnológicas da medicina e outras norte-americanices do gênero. A estratificação por horários se reacentua para as telenovelas e as velhas fórmulas do começo da década se reafirmam: literatura romântica para as seis horas (Cabocla), romancinhos leves com um certo toque de humor às sete (Marrom glacê), dramalhões às oito horas (Pai herói, Os gigantes), restando para as dez horas a possibilidade de ser o horário inteligente com os novos seriados nacionais, que mesmo assim ainda não chegam ao padrão atingido pelos antigos Casos especiais. Novo press-release dos setores mais à direita que governam o país ou influem em seus rumos, no jornal da Globo, especializado em dar voz a velhos arenistas para que “expliquem” ao público os projetos em debate no Senado ou as divergências políticas do momento.

Lauro Cézar Muniz, autor da novela das oito horas, afirma que seu texto não tem sofrido cortes da Polícia Federal, mas costuma ser muito censurado dentro da própria emissora; ele não pode por exemplo usar a palavra multinacional para designar a nova indústria de laticínios que se implanta na cidade fictícia de Pilar para concorrer com a pequena São Lucas, de propriedade da família de Fernando Lucas (Tarcísio Meira). As restrições impostas pelo comando da Globo aos temas e linguagem dos seriados atuais quase foram motivo do pedido de demissão do ex-responsável pelo núcleo das séries e atual diretor de criação para o horário, Daniel Filho.

O censor interno da Globo, José Leite Otati, que foi chefe da Censura no Rio de Janeiro durante 25 anos, desde 1968 é funcionário regular da emissora, encarregado da “revisão de textos” a fim de advertir a direção da empresa a respeito de prováveis deslizes na programação e assim evitar “consequências mais graves”. Ao que parece, o Sr. Roberto Marinho anda bem mais atento às recomendações de seu “revisor de textos” do que alguns anos atrás, quando a Globo chegou a ter alguns entreveros mais sérios com a Censura (ver texto As novelas, novelinhas e novelões). É como se, no momento em que o sistema se redefine — ainda que dentro de uma razoável margem de segurança para os detentores do poder —, uma grande empresa capitalista como a Globo, que é ao mesmo tempo fabricante de ideologia, revele com mais clareza sua posição no jogo das forças que nos governam. No atual momento, se a burguesia já não está tão coesa como há quatro ou cinco anos e por isso mesmo já não se sente tão forte, o proprietário da Globo arregaça as mangas e assume seu papel de principal guardião do sistema. Se ocorre uma greve, a emissora não deixa de divulgá-la (e os argumentos de Rabaça e Mauro Salles mostram boas razões políticas para que a emissora não se omita sobre acontecimentos quentes do momento) mas procura encaixá-la no noticiário das sete (local), de menor audiência, tratamento mais leve e menor peso político. E se, por algum motivo, o empresário Roberto Marinho sente-se mais ameaçado pela conjuntura, não tem nenhum pudor em utilizar o Jornal Nacional para recomendar ao público, em tom editorial, que leia no jornal O Globo o artigo intitulado “As flores de Moscou”, sobre a presença de Gregório Bezerra na missa celebrada por Dom Paulo Evaristo Arns, em São Paulo — dois perigosos comedores de criancinhas para cujas artimanhas a Globo estará sempre atenta no dever de alertar seus 30 milhões de espectadores.

25 aos depois:

Os 25 anos que me separam da escrita desse texto permitiram que o relesse como se fosse de autoria de outra pessoa. Por isso, em respeito à autora que já não sou eu, decidi não alterar nada além do estritamente necessário. A começar pelo estilo, que eu chamaria de ensaísmo jornalístico: é um texto muito veloz, que busca condensar um grande número de informações sem perder a concisão e a prosa coloquial. Na época, não me lembro por quê, não recorri a nenhuma referência bibliográfica. O nome de Theodor Adorno aparece deslocado por ali, como se fosse o de um colega que me forneceu uma dica interessante; as fontes empíricas são mais nomeadas do que as teóricas. Vou deixá-lo assim mesmo.

Ao mesmo tempo é um texto irreverente, bem ao tom do final dos anos 70. Percebo que “a autora” tentou conciliar seus recursos analíticos com algumas provocações críticas dirigidas tanto ao leitor como ao seu próprio objeto. Deste segundo aspecto, excluí apenas, talvez por excesso de pudor, alguns termos que me parecem hoje, do alto do terceiro milênio, provocativos demais.

Quanto ao conteúdo, fiquei tocada com o aspecto de “descoberta” desta que foi uma das primeiras tentativas de traçar uma história crítica da Rede Globo. Os primeiros efeitos da expansão de um meio de comunicação tão abrangente como a televisão sobre a sociedade brasileira no período militar aparecem como que em primeira mão, captados no nascedouro. Naquela época o acesso a depoimentos de várias fontes — empresários de televisão, criadores, publicitários e também autoridades militares — que me foi facilitado pelos arquivos da Funarte, com a ajuda inestimável do organizador daquele ciclo de pesquisas, Adauto Novaes, demonstrou que nenhum dos movimentos estratégicos que nortearam a expansão da Rede Globo no Brasil foi espontâneo, ingênuo ou impensado.

A consolidação da hegemonia da Globo foi fruto de uma estratégia muito bem pensada, para a qual contribuíram a experiência e os interesses tanto do capital privado das telecomunicação como dos setores encarregados de pensar políticas culturais compatíveis com as diretrizes dos governos Médici e Geisel. O mais espantoso, hoje, é confirmar como o projeto dos anos 70 era consistente, e como suas linhas mestras se mantêm com sucesso, três décadas mais tarde. Aquilo que me produziu tanta inquietação em 1979, o projeto de construção de um novo “aparelho ideológico” eficiente e sedutor que este texto anuncia com ênfase crítica, hoje já se estabeleceu com tal eficiência que se naturalizou como parte integrante da sociedade brasileira. A televisão existe como um fato inexorável, fruto do progresso tecnológico e das necessidades comunicativas da população. Sua história se escreve como a história dos grandes espetáculos que ela, de fato, ofereceu ao público. A origem, o conluio com os militares, a missão domesticadora desta que foi e continua sendo a maior e mais bem-sucedida rede de televisão do país, tudo se apagou ou tornou-se irrelevante diante do fato de que o público aceita, ama e deseja que a Globo (assim como as outras emissoras) continue cumprindo o seu papel.

A iniciativa da Aeroplano Editora de reeditar esta série de ensaios críticos sobre os rumos da cultura no Brasil da década de 70 é preciosa; só a recuperação da origem do que hoje nos parecem fatos consumados pode produzir algum estranhamento e “desnaturalizar” o imenso poder das emissoras de televisão em nosso país. A televisão participou e participa do progresso e da evolução democrática da sociedade brasileira. Como costumo afirmar nos debates de que tenho participado sobre os efeitos benéficos e maléficos da televisão no Brasil: nossos problemas não decorrem dos poderes da televisão, mas certamente são agravados pela falta de outros poderes que se contraponham a ela. Outros pontos de vista, outros discursos, outros modos de enquadrar a realidade e de ocupar o espaço público ainda estão por ser construídos ou fortalecidos, no Brasil. Enquanto a sociedade não o fizer, a televisão o fará — sozinha e hegemônica.

Por fim, vale reconhecer a atualidade das informações contidas neste pequeno ensaio. Não por mérito da autora. O texto nada tem de profético. Nada do que escrevi aqui ultrapassa o horizonte dos depoimentos dos homens de televisão, das pesquisas e projeções publicadas nos boletins internos da emissora, dos relatórios de encontros entre empresários das comunicações, publicitários e autoridades militares na Escola Superior de Guerra. Se as informações que recolhi permanecem atuais, o mérito se deve à consistência do projeto Globo, que teve nos anos 70 o período mais importante de sua consolidação. De lá para cá, o padrão global só fez seguir as diretrizes iniciais e aperfeiçoar sua linguagem, seus recursos técnicos e sobretudo — passado o período da censura — seu ímpeto criativo. Ao mesmo tempo, na última década, a emissora adaptou-se bem à queda de qualidade das emissoras comerciais em função da migração de uma parte de seu público para as TVs pagas, que tornou mais selvagem a concorrência entre as de canal aberto. Se na segunda metade dos anos 90 a Globo foi tentada a baixar o nível em alguns horários da grade de programação para concorrer com emissoras que se dizem “mais populares” (como é o caso da Record e do SBT), nos anos 2000 a tendência se reverteu e observamos um empenho redobrado da emissora em manter seu público ligado em programas de bom nível ético e estético.

O que mudou, do período pesquisado para cá, foi a maior desenvoltura com que a emissora vem participando do processo de redemocratização do país, sobretudo durante os períodos de campanhas eleitorais. Até certo ponto, o movimento de diluição e acomodação das tensões sociais que apontei no primeiro texto continua a se repetir. A cada reviravolta dos movimentos sociais que expressam anseios de mudar a estratificação e os modos de dominação da sociedade brasileira, a Globo (sobretudo em seu departamento de jornalismo) repete o mesmo padrão de reação. Primeiro, tenta ignorar o movimento incipiente, na esperança de que, se “o que é bom está na Globo”, o que fica de fora da Globo não deveria valer nada. Lembrem-se das primeiras greves operárias de 1978, das primeiras manifestações pelas Diretas em 1984, dos primeiros sinais de que a sociedade desejava o impeachment do presidente Collor, em 1992. Enquanto foi possível deixar passar a onda de insatisfação sem dar a ela o estatuto de notícia, esta vem sendo a política da Globo. Mas quando a tendência de mudança começa afazer ruído, a Globo passa a encampá-la e assume uma espécie de liderança imaginária sobre os rumos das manifestações populares — como fez ao “inventar” a geração cara-pintada, em 1992. Por fim, quando a mudança ocorre, é a primeira a lançar sobre ela uma cobertura de alegre normalidade. Neste sentido a maior emissora do país continua fiel a seu compromisso de origem, com a estabilidade do poder, seja quem for que ocupe os postos no governo. Fatalmente tem se tornado uma aliada imprescindível na manutenção de todos os projetos políticos que já vigoraram aqui. Se ela é capaz, pela força de sua capacidade de criar mitos, de transformar todas as tentativas de mudança em “mais do mesmo”, é algo que a sociedade ainda está por discutir. Em todo caso, vale lembrar que uma máquina de contar histórias (e realizar desejos), por mais poderosa e bem-equipada que seja no cumprimento de sua tarefa, só terá o poder que nós lhe outorgarmos.

/comentário de Maria Rita Kehl/

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