2010

Tempos antiprometeicos

por Francisco de Oliveira

Resumo

Constitutiva do mito, a polissemia permite variações em torno de seu núcleo; no caso de Prometeu, qual foi o fogo que o titã roubou do Olimpo para dar de presente aos homens? O pensamento e sua experiência. A isso, claro, seguiu-se o castigo. Prometeu foi acorrentado, para que seu fígado fosse devorado por uma enorme águia, até que se reconstituísse, para ser de novo devorado…

Pelo pensamento, o homem tornou-se não só “rei da criação” como senhor do Universo; em sua temporalidade, inclusive. Surgiam, então, passado, presente e futuro. Seus significados.
Do pensamento derivaram a ciência e a técnica. Elas que, dia após dia, passaram a acorrentar não mais um titã, mas o conjunto dos mortais, incapazes, então, de estabelecer e controlar o fluxo do tempo e seus significados. O fogo foi devolvido aos deuses e, com ele, o destino dos homens.   

O Fausto goethiano resgata do mito seu caráter destrutivo, endemoniado, e os frankfurtianos (Horkheimer, Adorno e certamente Benjamin) tinham-no em mente como fundamento da crítica da modernidade. Na interpretação benjaminiana, o anjo de Klee é uma das mais poderosas e belas imagens do mito, pois, contra sua vontade, mas por seus meios (suas poderosas asas) o progresso o empurra para os céus, deixando para trás uma trilha de desastres.

O capitalismo contemporâneo é isso. Tendo atingido os cumes dos montes do Cáucaso, prisão eterna de Prometeu, ele chegou à forma pura, isto é, à moeda, que já espreitava há milênios. E isso de tal modo que as reflexões de Marx sobre o metalismo do dinheiro são, hoje, histórias para meninos amedrontados, como os caipiras dos grotões. No fim do mito, vige o capital fictício, analisado no capítulo XXXII do terceiro volume de “O Capital”. A crise atual é sua anti-história, pois em meio às montanhas de dinheiro injetadas para contê-la, não há espaço para a experiência do pensamento.

O desempregado vive entre o azar e a sorte, já que não se trata mais de emprego e desemprego, mas de empreitadas apenas. Nos cruzamentos das nossas cidades, já se veem as novas produções capitalistas, isto é, as balinhas, antigas formas artesanais, agora industrializadas. Mais: as quinquilharias “made in China”. Sem contradições, o céu da exploração vil do trabalho é o limite, e por isso as classes dominantes hoje já não são classes, mas gangues; assim como as classes dominadas também já não são classes, mas apenas pobres.
Para a formação da classe, a experiência é insubstituível, ensina Edward Thompson. O império do descartável já não deixa tempo ou espaço para sua isso: nem nos pubs, nem nas igrejas. Aqueles agora são “fast” e estas entronizaram o dinheiro e a volúpia de possuí-lo como o novo Deus.
A presentificação absoluta torna o próprio pensamento obsoleto em sua forma técnica. A obra de arte e a paciência do conceito (Hegel) são descartadas em nome da urgência. Nos governos, a exceção, prevista pelos teóricos de Weimar como o último recurso para domar a desaparição da sociedade, é hoje regra. É assim que a economia, estúpida, avassaladora do tempo, torna os governos inúteis e os parlamentos meros lugares da “conversa sem fim” (segundo Carl Schimitt).
Ao adotar a educação à distância, ela é rebaixada ao último degrau. Em primeiro lugar, porque a desaparição das classes sociais tornou a hegemonia um conceito inútil, já que a aceleração da tecnociência produz a ilusão de que todos participam de tudo ao mesmo tempo. Depois, porque a própria tecnociência descarta também as novas formas de educação, sobretudo porque, ao priorizar a “informação”, dispensa o pensamento. Quanto mais sua experiência. Todos sabem de tudo instantaneamente, mas não podem intervir nem modificar o curso do tempo e das coisas.


Constitutiva do mito, a polissemia permite variações em torno de seu núcleo; no caso de Prometeu, qual foi o fogo que o titã roubou do Olimpo e presenteou-o aos homens? O pensamento e sua experiência. O castigo é bem conhecido: amarrado por poderosas correntes às pedras, o filho de Japeto tem o fígado comido diariamente por enorme águia, mas durante o dia o órgão volta a crescer e volta a ser devorado quando chega a noite.

Pelo pensamento, o homem tornou-se o senhor do Universo: não apenas o “rei da criação”, mas o que define a própria sequência do tempo – passado, presente e futuro – e seus significados.

Do pensamento derivaram ciência e técnica, como conhecimento e controle do mundo – uma das tragédias prometeicas – esse avanço irrefreável de Prometeu está se tornando seu contrário: ciência e técnica estão se convertendo em novas correntes que aprisionam o titã, roubando agora não mais do Olimpo, mas tirando dos homens a capacidade de estabelecer e controlar o fluxo do tempo e seus significados. O fogo foi devolvido aos deuses, e o destino dos homens voltou a ser atributo dos deuses: as deusas da ciência e da técnica.

A literatura e a reflexão ocidental se debruçam, incansavelmente, sobre esse poderoso mito; a Prometeu e seu irmão Epimeteu é atribuída a própria criação do homem e no acabamento que lhe pede Epimeteu para a obra, Prometeu rouba o fogo sagrado. O Fausto goethiano recorda no mito acentuando seu caráter destrutivo, endemoniado, e os frankfurtianos (Horkheimer, Adorno e certamente Benjamin) o tinham em mente como pavimento da crítica da modernidade. Na interpretação benjaminiana, o anjo de Klee é uma das mais poderosas e belas imagens do mito: contra sua vontade, mas por seus meios (suas poderosas asas) o progresso o empurra para os céus, deixando para trás uma trilha de desastres.

Mas o pior apenas se anunciava. Se bem que o nazismo já é a contrafacção da razão, esta ainda forçava a contradição, de que a própria produção frankfurtiana dá testemunho. Hoje, a tecnociência, criação máxima de Prometeu, não deixa espaço para a reflexão e pois, para o pensamento. É puro fato, presentificado, inexperimental, sem o seu contrário.

Ela se autodescarta num processo interminável, numa velocidade que não permite a experiência do pensamento: “Tudo que é sólido desmancha no ar”. Marx, ele mesmo um fervoroso adepto de Prometeu, nunca foi tão certeiro na sua reflexão dupla, prometeica e antiprometeica. O anjo de Klee é isso: as câmaras de Auschwitz e a bomba de Hiroshima eram o Prometeu acorrentado e o mundo correndo para elas de forma demente.

O capitalismo contemporâneo é esse Prometeu enlouquecido, na forma antiprometeica. Tendo atingido os cumes dos montes do Cáucaso, prisão eterna do titã, ele chegou à forma pura: a moeda e o dinheiro, que já espreitavam há milênios. Mas as reflexões de Marx sobre o metalismo do dinheiro são, hoje, histórias para criancinhas amedrontadas: os caipiras dos grotões. O dinheiro supremo, a suprema criação do Prometeu enlouquecido é o capital fictício do capítulo XXXII do terceiro volume de O Capital. A crise atual é sua anti-história: entre os fatos das montanhas (Cáucaso) de dinheiro injetada para contê-la, não há espaço para a experiência do pensamento. Repete-se apenas monotonamente a reflexão sobre uma experiência passada: a da crise dos anos 1930. Como se Prometeu tivesse permanecido o mesmo e ainda fosse capaz de façanhas prometeicas.

Depois da crise dos anos 1930, escoaram-se seis anos até que uma nova interpretação ousasse pensar aquela experiência: a teoria geral de Keynes, e ao seu lado, sem aplicação imediata, A grande transformação, de Polanyi. Até que um pensamento prometeico tirasse todas as consequências da experiência quase fatal. Hoje, decorridos quase dez anos desde a primeira “bolha”, o pensamento não pode ousar porque não há experiência.

Porque a dominância do capital financeiro é como o anjo de Klee: olhando sua trajetória por trás, só se vê uma acumulação de desastres. O desempregado vive como disse minha querida Verinha da Silva Telles, entre o azar e a sorte – que em francês é a mesma coisa. O azar de perder o emprego e a sorte de arranjar “um bico”. Aliás, não se trata mais de emprego e desemprego: trata-se apenas de ocupação, e o capital já produz para essa desocupação. Nos cruzamentos das nossas cidades, já se vê a nova produção capitalista para essa desocupação: as balinhas e os chicletes embalados, antigas formas artesanais agora industrializadas, e as principais delas: os produtos “made in China” e os softwares “made in Índia”. Essa inexperiência vai conformar seu antigo adversário: sem contradições, o céu da exploração vil do trabalho é o limite, e por isso as classes dominantes hoje já não são classes, senão gangues; assim como as classes dominadas também já não são classes, mas apenas pobres.

Para a formação da classe, a experiência é insubstituível, como nos ensinou Edward Thompson. A desenfreada descartabilidade não deixa tempo e espaço para sua formação: nem nos pubs, nem nas igrejas. Os primeiros são agora fast, e as segundas entronizaram o dinheiro e a volúpia de possuí-lo como o novo Deus.
A presentificação absoluta torna o próprio pensamento descartável em sua forma técnica. Lembremos Benjamin e a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. A obra de arte e a paciência do conceito (Hegel) são descartadas em nome da urgência. Nos governos, a exceção, prevista pelos teóricos de Weimar como o último recurso para domar a desaparição da sociedade, transformou-se em permanente: é a economia, estúpida, avassalando o tempo, tornando os governos inúteis e os parlamentos meros lugares da “conversa sem fim” (Carl Schimitt).

Já se adota a educação à distância como solução para o rebaixamento da educação para o último degrau das prioridades: ela mesma deixou de ser prioritária, em primeiro lugar, porque a desaparição das classes sociais tornou a hegemonia um conceito sem uso, já que a aceleração da tecnociência produz a ilusão de que todos participam de tudo ao mesmo tempo. Em segundo lugar, porque a própria tecnociência descarta também as novas formas educacionais: o fato absolutamente presente leva apenas “informação”, o novo mito antiprometeico, mas não leva experiência e nem produz pensamento. Todos sabem de tudo instantaneamente, mas não podem intervir nem modificar o curso do tempo e das coisas. Fomos transformados em seres passivos, à espera da enorme águia que nos devore o figado.

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