2005

“Renascimento” e descaracterização do choro

por Margarida Autran

Resumo

Em meados dos anos 70, dois concertos, patrocinados pelas prefeituras do Rio e de São Paulo, marcaram a volta do choro ao cenário musical brasileiro. Ao ser subvencionado pelo Estado e encampado pela indústria cultural, que pretenderam torná-lo competitivo no mercado nacional, este gênero intimista foi levado à descaracterização.

Fusão abrasileirada de gêneros europeus e africanos, o choro foi criado no Rio de Janeiro, na década de 1870, por músicos em sua maioria amadores, pequenos funcionários públicos que se reuniam nas manhãs de domingo para executar, à sua moda, os tangos, xotes, polcas, mazurcas e habaneras que animavam os salões da alta burguesia. Como também sofriam a influência das danças negras, trazidas pelos escravos, como o lundu, o batuque e o jongo, estes músicos populares tinham uma maneira de tocar nostálgica, chorosa, que levou a que fossem conhecidos como chorões. Os conjuntos, que inicialmente eram formados apenas pelo trio flauta, violão e cavaquinho, aos quais se juntaram mais tarde outros instrumentos, como bandolim, bandola, bombardino, trombone, pistom, clarineta e saxofone, eram chamados de choros. Esta denominação depois foi estendida às próprias músicas que executavam, e o choro transformado em gênero musical.

Sempre tocado amadoristicamente, o choro teve uma curta fase de sucesso, na década de 40, mas logo desapareceu novamente, para ser enfim redescoberto nos anos 70, durante um período musicalmente marcado pelo esvaziamento da música urbana intelectualizada e pela maciça imposição de ritmos importados.

Talvez o fato de o choro não encontrar problemas com a censura tenha facilitado seu rápido acolhimento por parte do novo projeto cultural brasileiro. Mas não foi o fator determinante. Se em 1974/75 o governo decide promover formas espontâneas de cultura que, como o choro, sobreviviam de um modo marginal, buscando integrá-las ao mercado, é porque precisa de uma base de sustentação ideológica. E é nas manifestações culturais que já contam com uma base popular que ela será buscada.

Transformado num “fantástico choro de plástico”, ao ser adaptado aos anseios e aspirações da classe média, o velho chorinho chegou ao final da década de 70 exaurido. Criado por músicos populares, que durante um século se esforçaram anonimamente para manter viva sua pureza original, ele não teve fôlego para se manter por mais tempo como produto de consumo de massa.


No Rio, houve tumulto e briga na porta da Sala Cecília Meirelles, pequena para conter a multidão que queria ouvir Abel Ferreira, Luperce Miranda, Joel Nascimento, Déo Rian, Os Carioquinhas, Paulo Moura e o conjunto de Radamés Gnatalli. Em São Paulo, no coreto do jardim da Luz, quase três mil pessoas cantaram e dançaram ao som da flauta de Altamiro Carrilho e da voz de Ademilde Fonseca, a Rainha do Chorinho.

Os dois concertos, patrocinados pelas prefeituras locais no final de 1976 e início de 77, marcaram indiscutivelmente a volta do choro, mas são também uma clara amostra da atuação oficial na cultura popular. Ao ser subvencionado pelo Estado e encampado pela indústria cultural, que pretenderam torná-lo competitivo no mercado nacional, este gênero basicamente intimista — que nos seus cem anos de existência nunca deixou de ser tocado amadoristicamente nos quintais dos subúrbios cariocas, onde nasceu — foi levado à descaracterização. Isso provocou o rápido esvaziamento de um boom criado artificialmente. “Esta volta do choro teve um problema gravíssimo”, observa a jornalista Maria Helena Dutra. “Ele voltou muito oficial, de patrocínio, menos popular que cultural. Hoje quem quer ouvir choro tem que ir ao Planetário da Gávea, onde é executado em promoção da Secretaria de Cultura.”

Foram um antológico espetáculo de Jacob do Bandolim e Elizeth Cardoso, no aniversário de Pixinguinha de 1968, e o excelente disco que dele resultou que chamaram novamente a atenção de pessoas mais ligadas à música popular brasileira para este som rico, criativo e de difícil execução, que tinha em Jacob seu principal — e quase solitário — divulgador. Jacob promovia, em sua casa, reuniões que revelaram alguns excelentes chorões, e acumulava um grande acervo de discos e partituras que, com sua morte, foram incorporados ao Museu da Imagem e do Som.

Mas só a partir de 1973, quando o show Sarau, de Paulinho da Viola, dirigido por Sérgio Cabral, apresentou à Zona Sul carioca o tradicional conjunto Época de Ouro, acompanhante de Jacob do Bandolim, o choro começou a interessar a um outro tipo de plateia: “Esse tal de choro é um barato. Dava o maior pé em Woodstock”, escutou Sérgio Cabral de um jovem espectador. Em novembro de 1975, estimulados pela receptividade ao espetáculo, Sérgio, Paulinho da Viola, Albino Pinheiro e Juarez Barroso criaram o Clube do Choro, no Rio, promovendo concertos que reuniam chorões tradicionais, grupos recém-formados por músicos jovens e instrumentistas de formação erudita, como o Quinteto Villa-Lobos e o pianista Artur Moreira Lima, que estava então descobrindo o virtuosismo de Ernesto Nazareth.

Até então, quando a retomada do choro era ainda iniciativa de um grupo de intelectuais interessados em preservar a memória musical brasileira e apresentar aos instrumentistas uma opção ao vazio em que se encontravam, os concertos ainda tinham o clima que o choro exige e que, quando foram oficializados, não conseguiram mais ter. Tendo o improviso como característica fundamental, sua execução exige um envolvimento emocional entre os músicos e, segundo o flautista Bidé, único remanescente do regional Velha Guarda, do qual participaram Pixinguinha, Donga e João da Baiana, “esta música não é só para ser ouvida mas também sentida, nas suas fases de alegria e tristeza, porque a música para nós (chorões) é um diálogo de instrumentos. Enquanto o solo faz uma pergunta, os acompanhantes respondem com acordes harmônicos. E isto é uma coisa que só nasce de coração para coração” (Jornal Movimento, 29/11/1976).

Fusão abrasileirada de gêneros europeus e africanos, o choro foi criado no Rio de Janeiro, na década de 1870, por músicos em sua maioria amadores, pequenos funcionários públicos que se reuniam nas manhãs de domingo para executar, à sua moda, os tangos, xotes, polcas, mazurcas e habaneras que animavam os salões da alta burguesia. Como também sofriam a influência das danças negras, trazidas pelos escravos, como o lundu, o batuque e o jongo, estes músicos populares tinham uma maneira de tocar nostálgica, chorosa, que levou a que fossem conhecidos como chorões. Os conjuntos, que inicialmente eram formados apenas pelo terno flauta, violão e cavaquinho, aos quais se juntaram mais tarde outros instrumentos, como bandolim, bandola, oficleide, bombardino, trombone, pistom, clarineta e saxofone, eram chamados de choros. Esta denominação depois foi estendida às próprias músicas que executavam, e o choro transformado em gênero musical.

Sempre tocado amadoristicamente, mesmo por músicos profissionais que divulgavam em círculos restritos este gênero do qual o grande público nunca tomou muito conhecimento, o choro teve uma curta fase de sucesso, na década de 40, quando foi gravado por orquestras como a de Severino Araújo e a do Maestro Carioca. Mas logo desapareceu novamente, para ser enfim redescoberto nos anos 70, durante um período musicalmente marcado pelo esvaziamento da música urbana intelectualizada e pela maciça imposição de ritmos importados.

“As gravações eram raras, pois o gênero importado atendia plenamente às exigências de mercado e os conjuntos nacionais de rock e iê-iê-iê eram os mais solicitados”, disse ao Jornal de Música, em março de 1976, o violonista Dino.

“Foi o início do rock e da Bossa Nova. De um lado, valorizaram-se os conjuntos de música internacional; de outro, reduziu-se o acompanhamento musical a poucos instrumentos, dando fim às grandes orquestras”, acrescentou dois meses depois, em entrevista ao mesmo jornal, o clarinetista Abel Ferreira, recordando com tristeza a fase de desvalorização do músico brasileiro, que se estendeu de 1955 até a década de 70. E como muitos músicos ficaram sem emprego, alguns chegando a passar fome, os dois tomaram a mesma decisão, a única que lhes restava. “Eu, quando senti a barra, pensei: vou aderir. Afinal, eu tinha braços e ouvidos e precisava trabalhar. Comprei uma guitarra e fui tocar em baile”, disse Dino, considerado o melhor violão de sete cordas do país, e integrante do conjunto Época de Ouro. Abel também foi animar os bailes de formatura, “executando de tudo, desde o bolero ao rock”.

A música popular autenticamente brasileira era considerada quadrada e cafona e, segundo Paulinho da Viola, o músico que a tocasse “ganhava rótulos pejorativos como nacionalista, purista, saudosista”. E ele explica este “preconceito” como “um problema da classe média, que sempre teve uma relação de consumo com a música e sempre a colocou como coisa secundária, de pano de fundo para outras coisas”. E continua: “O problema maior é que durante algum tempo se discutiu o problema da cultura brasileira por um prisma universitário. Tudo o que cheirasse a brasileiro, usando um termo de Vianinha, fazia o pessoal torcer o nariz. E essa discussão toda, por essa perspectiva, só alienava ainda mais os verdadeiros valores populares. Depois houve uma certa abertura, o tropicalismo etc.”(Jornal de Música, março de 1976).

Mas os tempos mudaram. O consumismo da classe média não se satisfazia mais com a alienação do rock, o mercado interno precisava se expandir para absorver a indústria cultural que se desenvolvia e a década de 70 traz em seu bojo uma necessidade do Estado de reformular sua política de cultura, na qual os intelectuais iriam assumir um novo papel.

Quando Roberto Moura define o choro como “a antimúsica de protesto” e afirma que “certamente não será uma coincidência o fato de que, num momento em que todas as artes brasileiras estão vivendo um clima de tensão, a MPB ter-se encaminhado para a ressurreição de um gênero tipicamente instrumental — onde não é preciso dizer nada” (O Dia, novembro de 1977), ele está abordando apenas um lado da questão. Talvez o fato de o choro não encontrar problemas com a Censura tenha facilitado seu rápido acolhimento por parte do novo projeto cultural brasileiro. Mas não foi o fator determinante.

Se em 1974/75 o governo decide promover formas espontâneas de cultura que, como o choro, sobreviviam de um modo marginal, buscando integrá-las ao mercado, é porque precisa de uma base de sustentação ideológica. E é nas manifestações culturais que já contam com uma base popular que ela será buscada. É preciso tapar o buraco cultural, “interpretando” os “anseios e aspirações” do povo e impondo-os de volta como novos padrões a serem adotados, em prol da preservação da “identidade cultural” do país.

Neste sentido, é interessante reler a declaração feita por Ricardo Cravo Albin à revista Veja de 5 de janeiro de 1977. Para ele, naquela ocasião só faltava mesmo “divulgação, particular e estatal” para que o choro “atinja com profundidade o povo, do qual é oriundo.”

Esta divulgação, na verdade, já estava em plena execução. Tanto que, no ano de 1976, só o Departamento de Cultura da prefeitura carioca e a Companhia Internacional de Seguros investiram nela aproximadamente dois milhões de cruzeiros. O departamento estatal, em campanhas nas escolas e locais públicos e numa série de doze concertos (iniciada em 1975) em praças públicas, escolas, quadras de pequenas escolas de samba, encerrada apoteoticamente no espetáculo da Sala Cecília Meirelles. A empresa seguradora privada, na edição do álbum duplo Chorada, chorões, chorinhos, uma antologia organizada a título de brinde de Natal, cujo lançamento levou ao salão nobre do tradicional e elegante Copacabana Palace Hotel uma plateia de duas mil pessoas, entre circunspectos executivos e jovens com roupas ousadas, para assistir a um recital de três gerações de chorões, todos eles muito pouco à vontade em smokings certamente alugados para a inusitada ocasião.

Diante do sucesso de marketing que foi o lançamento de Chorada, chorões, chorinhos, que mereceu amplas reportagens nos órgãos da grande imprensa, outras empresas também investiram em sofisticados discos-brindes com repertórios chorísticos. E não só empresas privadas, como a Servenco e a Rede Globo. O Banco do Brasil, no Natal de 1977, presenteou clientes selecionados com um LP no qual o Quinteto Villa-Lobos interpreta choros de câmara de autoria de seu inspirador, sabidamente um amante do gênero.

Enfim, transformado de manifestação ingênua de músicos de subúrbio em meio de integração cultural, o choro é exportado dos botecos da Penha, via Projeto Pixinguinha (leia-se Funarte), para outras capitais do país. Em algumas delas vai encontrar pequenos redutos de chorões, que durante anos vinham se reunindo anonimamente e que agora, embarcando na recente euforia, já haviam se organizado em clubes do choro, à imagem e semelhança do grupo carioca. Este, no entanto, no momento em que o movimento fugiu ao seu controle, foi desativado, retornando à intimidade da Zona Norte, ao transferir seu acervo ao Clube do Choro da Tijuca. Já havia cumprido sua função, segundo seus diretores.

O mesmo se deu em São Paulo. Após dois anos de atividades, durante os quais editou um LP do excelente e até então desconhecido chorão Armandinho Neves, lançou um único número da revista Urubu Malandro e promoveu alguns shows, o Clube do Choro desobrigou seus 500 sócios de pagar os 20 cruzeiros de mensalidade e “agora espera o auxílio da Secretaria de Cultura” (Veja, 11/7/1979), a qual chegou a patrocinar, entre outros, um concerto de choro no aristocrático Teatro Municipal da cidade, em março de 1977.

Para surpresa dos não-iniciados, a popularização do chorinho revelou a existência, em São Paulo, de um importante núcleo da cultores deste gênero tipicamente carioca, representado principalmente pelo Conjunto Atlântico, que desde 1954 se reúne numa garagem transformada em estúdio no bairro de Casa Verde, e por Evandro e seu regional, atrações desde 1969 da boate Jogral, com dez LPs gravados, a maioria de choros. Antônio D’Auria, líder do Conjunto Atlântico, formado por mecânicos, motoristas, pesquisadores, ajustadores e pedreiros, foi contratado em 1977 pela Secretaria de Cultura para percorrer o interior do estado, onde descobriu pelo menos seis grupos de chorões. Em Santos chegaram a existir mais de trinta conjuntos, que até meados da década de 60 desfilavam no carnaval.

Em Brasília, onde chorões vindos do Rio iniciaram alguns músicos que ali encontraram, criando também em 1976 seu Clube do Choro, o nome mais conhecido é o do veterano Waldir Azevedo, autor de sucessos gravados no mundo inteiro, como Delicado e Brasileirinho, que the permitem — caso raro entre os músicos brasileiros — viver de direitos autorais. Fato que não acontece com Francisco Soares de Araújo, o legendário Canhoto da Paraíba, autor de quase uma centena de composições e respeitado por músicos como Pixinguinha e Jacob do Bandolim. Isolado em Recife, onde foi um dos fundadores do Clube do Choro daquela cidade, e apresentando-se em serestas para grupos restritos de admiradores, ele ainda vive de seu modesto salário de assistente social do Sesi de Pernambuco e só em 1977, por insistência de Paulinho da Viola junto a Marcus Pereira, conseguiu gravar seu primeiro LP de qualidade.

A indústria fonográfica, que como bem afirma Tárik de Souza “está sempre a reboque do que considera sucesso, sendo raro investir em alguma coisa cultural”, chegou com algum atraso a esta retomada do choro. Foi quando as vendagens de discos de samba tiveram uma súbita queda, em 1977, que as gravadoras começaram a revirar seus arquivos em busca de velhos registros dos grandes mestres do choro, regravados a toque de caixa (só em julho de 1977 foram lançados seis discos, ao invés dos habituais dois LPs anuais) e, de maneira mais rápida e barata, aproveitaram os shows e festivais que reuniam velhos e novos chorões e os gravaram ao vivo, quase sempre com inevitável perda de qualidade.

“Pelo menos teoricamente já existe candidato ao trono de principal produto brasileiro para o mercado interno da MPB”, escreveu Tárik de Souza no Coojornal, em setembro de 1977. “É o choro, praticamente adormecido com as mortes de Jacob do Bandolim (1969) e Pixinguinha (1972), que ressurge agora com uma força nunca vista.”

Mas poucos foram os discos gravados em estúdio com os intérpretes, tão solicitados para shows que trouxeram de volta chorões tradicionais como Altamiro Carrilho, Waldir Azevedo, Abel Ferreira, Copinha, Dino e Raul de Barros, e revelaram uma geração intermediária, na qual Déo Rian e Joel Nascimento se destacaram. Um virtuose do bandolim chorão, considerado o herdeiro de Jacob, Joel ainda aguarda um registro à sua altura[1], enquanto o monstro sagrado da flauta, Altamiro Carrilho, encerra a década com um disco bem sintomático: Os clássicos no choro, onde toca Bach e Chopin em ritmo de chorinho. Quanto aos novos conjuntos, os raros que tiveram oportunidade de gravar tiveram seus trabalhos deturpados. É o que se vê no segundo disco do grupo Chapéu de Palha, onde o choro entra com uma entre cada três faixas de sambões de parada. A Fina Flor do Samba, conjunto formado para acompanhar a cantora Beth Carvalho e que também aderiu ao chorinho, desistiu de um suado contrato quando descobriu que tipo de produção a gravadora pretendia.

Esta atividade apressada e descuidada resultou numa avalanche de discos de choro, um ou outro inegavelmente antológicos, mas na imensa maioria apenas oportunistas (90% são regravações), que levaram à saturação do mercado e ao declínio da febre do chorinho. Contudo é importante ressaltar o papel de Marcus Pereira, que como publicitário teve a ideia de oferecer a seus clientes, no Natal de 1968, disco Brasil, flauta, cavaquinho e violão, contendo choros gravados com artistas de sua casa de música, jogral. A experiência acabou por levá-lo a abandonar a publicidade e tornar-se um combativo produtor preocupado em promover a boa música brasileira. Assim, ele foi responsável pelos melhores discos de choro, como Altamiro revive Pattapio, História de um bandolim — Luperce Miranda, a gravação praticamente inédita da obra de Ernesto Nazareth na interpretação do pianista Artur Moreira Lima e o disco do Quinteto Villa-Lobos, no qual o choro recebeu um tratamento camerístico.

Mas a Marcus Pereira Discos não conseguiu sobreviver, num mercado monopolizado pelas multinacionais. Como produtor independente, Marcus passou a gravar suas produções na Copacabana, empresa fonográfica de capital nacional. “Quanto à explosão do choro, que vem alimentando as gravadoras multinacionais, é simples explicar. No mundo em que a gente vive, comida, saúde e educação são negócio. Por que a cultura estaria a salvo? É um negócio para as grandes empresas e não tenho dúvidas de que vai ser explorado assim. É uma visão realista do mundo em que vivemos. O resto é ingenuidade”, escreveu ele em O Globo (27/9/1977).

Quanto aos músicos, inebriados com tão inexplicável sucesso, poucos tiveram a clareza do experiente Hermeto Pascoal, que, entre outras coisas, também entende de choro e de mercado: “… Por exemplo: eu acho que a onda do chorinho, a onda do rock e a onda do baião, a onda disso ou daquilo, são estas coisas que atrapalham. Fica todo mundo querendo ganhar dinheiro em cima disso aí. Esse negócio que estão fazendo com o chorinho é como se fosse a safra da laranja, a safra da banana, a safra da manga.” (Se a música fosse uma banana, depoimento ao jornal O Beijo, novembro de 1977).

Até a Prefeitura e a Universidade de Londrina investiram suas verbas num festival de choro, deslocando para o Paraná uma respeitável caravana de grandes intérpretes do gênero. E os meios de comunicação de massa assumiram o papel que lhes era destinado no plano cultural em vigor, divulgando maciça e massificadamente a nova moda em todo o território nacional. Nunca os chorões deram tantas entrevistas a revistas e jornais e, embora os disc-jockeys confessassem sua dificuldade em selecionar boas gravações, o choro passou a ser veiculado com frequência nas rádios, especialmente depois que virou jingle comercial e tema de telenovelas (Bohêmios, de Anacleto Medeiros, foi incluído na trilha musical de Pecado capital e Brejeiro, de Ernesto Nazareth, na de Nina, entre outros).

Na TV Cultura, O choro das sextas-feiras, produção dos jornalistas Júlio Lerner e J.R. Tinhorão, que desde 1975 apresenta o Conjunto Atlântico e convidados como Altamiro Carrilho e Ademilde Fonseca, tornou-se em dois anos o programa de maior audiência. Mas a escalada televisiva do choro culminou com o Festival da Bandeirantes, que, em outubro de 1977, inscreveu 1.200 músicas, enviadas de todo o país. Para Maria Helena Dutra, “os festivais foram terríveis, sem clima, porque o choro não é uma boa mercadoria para este tipo de espetáculo, já que não cria competição”.

Repetido no ano seguinte, já com menos repercussão, o festival motivou uma polêmica sobre os caminhos do choro. Participando do júri, o crítico Tinhorão colocou-se contra os que pretendiam “modernizá-lo”, afirmando que o festival revelou, no geral, “um apego e uma fidelidade muito grandes à forma-choro de tocar, enquanto criação musical a nível de músicos e compositores da classe média para baixo”. E mais: “Quem quiser algo diferente que crie o Festival de Choro de Vanguarda, para gênios de alta classe média. Ou mate o povo que o incomoda com sua pobreza, sua rotina, sua falta de cultura, seu apego à tradição da orelhada, seu instrumental ‘ultrapassado’ e sua vocação para ser autêntico” (Elites musicais começam a implicar com o choro, Jornal do Brasil, 21/10/1978).

Contudo, esta “reciclagem” era inevitável — e até mesmo esperada — no momento em que o choro foi retirado de seu meio ambiente e divulgado para um novo público, desligado da tradição popular que durante um século o acompanhou. Classificado pelo crítico Ruy Fabiano como “talvez o único gênero de música progressiva nacional, rompendo em determinados momentos as fronteiras entre o popular e o erudito”, não é de estranhar que, rompidas aquelas fronteiras, o choro aglutinasse à sua volta instrumentistas vindos de outras escolas, como a jazzística e a erudita, os quais, por sua própria formação, dificilmente se enquadrariam nos moldes originais. “Atualmente, fazer só choro é uma coisa cansativa devido ao policiamento e ao cuidado dos puristas, defensores e críticos da MPB, que dificultam qualquer passo adiante que se queira dar”, queixou-se Paulo Moura, saxofonista oriundo do jazz (Última Hora, dezembro de 1976).

Foram também as possibilidades instrumentais desta música que despertaram o interesse das gerações que vieram depois da bossa nova e do tropicalismo — movimentos que valorizaram a linguagem musical propriamente dita, o som em si mesmo. E, enquanto em 1970 o musicólogo Mozart Araújo declarava ser difícil encontrar autênticos chorões “nestes dias de iê-iê-iê”, devido à virtuosidade que o choro exigia de seus executantes, quatro anos mais tarde começam a surgir grupos de choro formados por músicos que não tinham sequer idade para se profissionalizar.

“Quando o choro começou a voltar — e eu não sei bem por que isto aconteceu — eu imaginei que fosse haver essa identidade com o pessoal mais novo, bastante aberto a uma linguagem instrumental”, disse Paulinho da Viola ao Jornal de Música, em março de 1976. “Isso eu vinha observando nos meus shows, onde apresentava choros que empolgavam a garotada.”

Os Carioquinhas, Galo Preto, Cinco Companheiros, Levanta Poeira, Anjos da Madrugada, Éramos Felizes e a Fina Flor do Samba foram formados por instrumentistas de 15 a 20 anos de idade. Rafael Rabello, ex-Carioquinhas, excepcional violão de sete cordas que substituiu o veterano Dino na turnê do Época de Ouro com o Projeto Pixinguinha, tinha apenas 14 anos quando foi “descoberto” por um diretor do Departamento Cultural carioca no Sovaco de Cobra (grupo de chorões que se reúne aos domingos num boteco da Penha Circular, transformado em atração para a classe média do Rio).

A maioria dos conjuntos então formados se mantiveram fiéis ao estilo tradicional, como Os Carioquinhas, que tocavam na mesma harmonia que o Época de Ouro. Outros já fizeram algumas modificações em sua formação, como A Fina Flor do Samba, que incluiu o solo de contrabaixo acústico, muita percussão e bateria, embora mantivesse um estilo de execução autêntico. Mas até Os Mutantes, o Vímana e outros grupos mais habitualmente ligados ao rock incorporaram o choro a suas apresentações.

Revelando mais intérpretes que compositores, esta retomada do choro pouco renovou o repertório de sucessos. As exceções ficam com Meu caro-amigo, de Chico Buarque e Francis Hime, e o LP Memórias chorando, de Paulinho da Viola. Contudo, atendendo às regras de mercado, o gênero redescoberto foi incluído pelas gravadoras nos discos anuais de seus artistas contratados já que, afinal, “choro vende”.

A Cor do Som, um conjunto formado por músicos com experiência de rock e frevo (via trio-elétrico baiano), chegou a conseguir o quinto lugar no primeiro Festival da Bandeirantes com sua composição Espírito infantil e, embora mestre Pixinguinha já dissesse que “choro é um negócio sacudido e gostoso”, uma reportagem do Jornal de Música afirmava na ocasião que “A Cor do Som tirou o chorinho da eterna condição de relíquia e fez dele uma música viva, esperta, curiosa” e em seguida sugere que “Espírito infantil bem que poderia ser a infância de uma nova forma de fazer um tipo de música que precisa encontrar novos caminhos para sobreviver”. Mas, mais adiante, o autor já duvidava da perseverança destes inovadores e da continuidade desta “nova forma” de fazer choro, ao prever que, a curto prazo, muita coisa poderia mudar e “a febre do choro, o modismo atual, certamente dará lugar a gente nova com novas ideias na cabeça”. (É fantástico o choro de plástico, Jornal de Música, outubro de 1976)

Realmente. Transformado num “fantástico choro de plástico”, ao ser adaptado aos anseios e aspirações da classe média — destinada a retomar seu papel de base social do regime —, o velho chorinho de Callado, Nazareth e Pixinguinha chegou ao final da década exaurido. Criado por músicos populares, que durante um século se esforçaram anonimamente para manter viva sua pureza original, ele não teve fôlego para se manter por mais tempo como produto de consumo de massa. Os bons instrumentistas que revelou partiram para outros caminhos (o que motivou a dissolução da maioria dos conjuntos) e os chorões tradicionais aproveitam o final da safra, enquanto não são forçados a se adaptar ao novo modismo: a gafieira.

Notas

  1. Em 1980, Joel Nascimento foi o solista da série de concertos Tributo a Jacob do Bandolim, com o maestro Radamés Gnatalli e a Camerata Carioca. A gravação teve o apoio da Secretaria de Cultura do Estado do Paraná.

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