2007

Religião: esquecimento da política?

por Sergio Paulo Rouanet

Resumo

Eis o paradoxo: com a democratização de boa parte do mundo, há um recuo na esfera política, causado pela descrença na própria democracia. Isso se dá por vários motivos, dos quais se destacam a impossibilidade de exercício da política, vedada pelo Estado, e a irrelevância dela aos olhos da sociedade, o que, no Brasil, agrava-se pela corrupção generalizada, pela prática do “caixa dois” para financiamento de campanha, pela instituição do voto secreto no Congresso Nacional e pela substituição da representação partidária pela corporativista, tais como a ruralista, a da arma, a da indústria farmacêutica etc. Daí que, mais do que descrédito, fala-se de esquecimento da política republicana ou de, ao menos, uma época em que ela era possível. Mas como todo esquecimento gera reminiscências, há respostas mesmo para a política degradada, seja ela na forma de violência urbana, de tecnoburocracia ou de programação genética (ainda virtual). Ora, elas sucedem a política, poderia a religião fazer o mesmo? Como?

Na forma não só da radicalização de sua prática como na da violência que esta pode gerar.

Com efeito, as três principais religiões monoteístas estão tendendo a isso. A “Shariah” muçulmana, a “Halachá” judaica e o puritanismo católico são exemplos disso. Mais: nos três casos, Estado e religião se confundem. Se é certo que no islamismo isso acontece, sabe-se menos sobre a ortodoxia judaica, segundo a qual a atividade fundamental do homem é a oração e a da mulher a procriação. No mais, ela professa que se evite o contato com qualquer pessoa alheia à comunidade, mesmo que seja outro judeu; liberal, por exemplo. Quanto ao cristianismo, note-se que foi justamente num país cristão que o termo “fundamentalismo” foi cunhado. Tratava-se dos fundamentos dos quais nenhuma igreja não poderia prescindir. Deles derivaram, por exemplo, leis que proibiram o ensino do darwinismo em escolas na Flórida, Mississipi, Arkansas e Tennessee. Retomava-se o criacionismo, segundo o qual a Terra existiria há 4.000 anos.

E a violência como elemento do fundamentalismo?

No contexto islâmico, é preciso esclarecer que nem todo movimento terrorista é religioso (a exemplo da OLP) e que nem toda fé recrudescida é violenta. Mas a partir de dado momento do conflito no Oriente Médio, os dois fenômenos tenderam a se amalgamar. Foi quando surgiram o Hamas (na Palestina), o Hisbollah (no Líbano) e a Al Qaeda (pan-islâmica).

A violência religiosa judaica é defendida e praticada, entre outros, por grupos ultra-ortodoxos que não recuam diante da luta armada, inclusive o assassinato, para atingir seus fins. Muitos se filiam aos ensinamentos do rabino Kook, que atuou na Palestina antes do advento do Estado de Israel, e do rabino Meir Kahane, fundador de uma ideologia messiânica extremamente violenta, segundo a qual o Messias só poderia advir no bojo de uma grande vitória militar dos judeus. Essas ideias influenciaram terroristas como o Dr. Baruch Goldstein, que em 1994 massacrou dezenas de palestinos no túmulo dos Patriarcas, em Hebron, e Yigal Amir, que em 1995 assassinou o Primeiro-Ministro Yitzak Rabin, para puni-lo por ter assinado o acordo de Oslo.

Entre os fundamentalistas cristãos, muitos advogam e praticam a luta armada. Os alvos principais dos seus ataques são clínicas de aborto e bares de homossexuais. Em geral, eles são contra as restrições à venda de armas, por estarem convencidos de que os verdadeiros cristãos precisam ter o direito de defender-se contra o governo, que para eles transformou-se em instrumento de uma conspiração diabólica para implantar o reino do Anticristo.

Essa radicalidade do fenômeno religioso não pode deixar de influenciar a problemática da relação entre religião e política. Mas não porque esta precise ser tolerada pela política ou porque dela precise para se afirmar. Antes, é a política que precisa da religião para com ela preencher seus déficits de motivação e de solidariedade cívica, indispensáveis numa sociedade civil plenamente participativa. Talvez a religião fosse capaz de devolver a fé nas virtudes enumeradas por Max Weber em sua conferência sobre a política como vocação. Elas que hoje fazem tanta falta na política brasileira, como a honestidade, a veracidade, a responsabilidade, a dedicação apaixonada a uma causa, ideais que a visão secular de mundo não consegue mais sustentar.


Muitas pessoas se queixam, hoje em dia, de certa tendência à politização excessiva de alguns temas e atividades. Exemplos dessa politização seriam a exploração eleitoral dos assassinatos de rua ocorridos em São Paulo; ou o “aparelhamento” da administração pública através de nomeações político-partidárias para cargos de confiança, ou a utilização de critérios partidários para orientar numa ou noutra direção as comissões parlamentares de inquérito, sem qualquer preocupação com a descoberta objetiva dos fatos.

E se tudo isso fosse um mal-entendido? Se em vez de política demais, tivéssemos política de menos? Se em vez da hipertrofia do político estivéssemos assistindo a um recuo da esfera pública, a uma atrofia do político, em todas as esferas, a um processo de esvaziamento progressivo do processo democrático?

Outrora essa atrofia caracterizava os países totalitários, em que a onipotência do Estado produzia um encolhimento correlativo da sociedade civil, lugar por excelência do debate e da ação política. Com a democratização de grande parte do mundo, há um novo recuo da esfera política, dessa vez motivado por uma crescente descrença na própria democracia. O primeiro recuo ocorre porque a política é vedada pelo Estado, o segundo, porque a sociedade passa a considerá-la irrelevante.

No Brasil, essa sensação de irrelevância é reforçada por déficits internos de moralidade pública, que aceleram o processo de esvaziamento do político:

  • índices sem precedentes de corrupção em toda a nossa classe política, associada à percepção por parte da opinião pública de uma impunidade generalizada, levam a um radical descrédito das instituições republicanas e preparam a população para uma solução extrapolítica;
  • desaparece a exigência da accountability, da prestação de contas, que obrigava um homem público a justificar sua atuação, tornando-a transparente, isto é, plenamente acessível ao escrutínio dos eleitores. A prática de caixa dois, cujo principal efeito é subtrair opinião pública dados sobre quem financia a campanha política dos vários candidatos, sonega informações que permitiriam controlar a integridade dos detentores de cargos eletivos, verificando se suas posições são de fato independentes, ou se são distorcidas pelos interesses dos doadores. Por isso a ideia de que a prática do caixa dois é um delito menor, comparado a crimes de corrupção financeira, demonstra uma total insensibilidade política, pois os crimes financeiros afetam apenas o bolso dos contribuintes, enquanto o caixa dois corrompe até a medula o mais valioso de todos os bens, a democracia. O que é visto como um atenuante é de fato um agravante. A exigência da accountability é frustrada, igualmente, quando os parlamentares se escondem atrás do voto secreto para acobertar sua participação em votações escandalosas, ignorando o direito dos eleitores de serem informados sobre cada ato que seus representantes executam no exercício dos seus mandatos,
  • a representação partidária, no Congresso, vai sendo substituída pela representação corporativista. Nosso parlamento é composto em grande parte de lobbies. A representando interesses setoriais (bancada ruralista, bancada das armas, bancada dos laboratórios farmacêuticos, bancada das faculdades particulares), cujos integrantes se encontram em todos os partidos e estão entre os principais atores do jogo parlamentar, independentemente das legendas oficiais.

Esse descrédito da política, se durar muito tempo, pode levar a algo de muito grave, que é o esquecimento da política republicana, o esquecimento de uma época em que a política, em geral, ainda era possível. Mas talvez essa amnésia já tenha começado. Ora, sabemos por Freud que toda memória suprimida deixa sucedâneos em seu lugar, sob a forma de falsas reminiscências, de sintomas, de fantasias. O esquecimento da política não é exceção à regra. Ele gerou sucedâneos, capazes de oferecer respostas que a política degradada não pode mais proporcionar. Entre essas alternativas à política estão a violência urbana, a tecnoburocracia e a programação genética.

A primeira alternativa se torna atraente sobretudo em países sujeitos a um alto índice de exclusão social. A característica do capitalismo globalizado é seu caráter estruturalmente excludente. Ao contrário do capitalismo clássico, em que a expulsão de parcelas da população trabalhadora assumia a forma de um exército de reserva, — isto é, como a própria expressão indicava, uma força de trabalho que a qualquer momento podia ser “convocada” para retornar ao processo produtivo —, a marginalidade hoje é muito mais definitiva, porque ela se compõe não só dos que perderam seu emprego como dos que nunca foram nem serão empregados. São os inassimiláveis do capitalismo atual, que por serem excluídos não podem exprimir seu ressentimento com a arma reservada aos protagonistas plenos do jogo político-partidário: a arma do voto. Em parte, é o que está na raiz da crescente criminalidade urbana, como está na raiz da violência dos jovens da periferia de Paris, que reagiram, incendiando carros, à sociedade que os tinha tornado descartáveis. Comum aos bandidos paulistas e aos vândalos de Paris é a consciência de que, estando excluídos do sistema social e político, não têm nenhuma esperança de mudar pelo voto suas condições materiais de vida: não têm força política por estarem excluídos e estão excluídos por não terem nenhum poder de alterar o estado de coisas que os condenou à exclusão. Expulsos da ágora, só lhes resta a rua. Nessas sociedades, a política se estreita, atrofia, interessando, no máximo, àqueles que não foram expelidos para a margem do sistema.

A segunda alternativa extrapolítica se materializa na tendência a tratar problemas políticos como se fossem problemas técnicos ou burocráticos. A consequência é que esferas inteiras da vida social são subtraídas ao debate público e à necessidade de justificação política, sob a alegação de que elas estão sujeitas apenas a imperativos técnicos, que são da competência exclusiva de especialistas e não precisam de qualquer justificação. Essa tendência se mostra com especial clareza em agrupamentos como a União Europeia, em que decisões que normalmente deveriam ser submetidas às instâncias políticas apropriadas, dentro da própria Unido Europeia ou nos Estados membros, são tomadas pelos “eurocratas” de Bruxelas. Foi a revolta diante dessa usurpação de poder que levou à rejeição do projeto de Constituição europeia, resultado em si indesejável, por sinalizar uma regressão para posições nacionalistas ultrapassadas, mas compreensível como reação ao esvaziamento do processo político europeu.

A terceira alternativa extrapolítica, por enquanto ainda em grande parte virtual, pode ser vislumbrada em certas linhas de pesquisa científica, que tendem para a construção biológica de um homem novo, dotado de predisposições genéticas que o encaminhem automaticamente para comportamentos condizentes com o bem coletivo. Desapareceria, com isso, a necessidade da mediação política, forma tradicional de conciliar os interesses de indivíduos e grupos com o interesse social. Teríamos, em vez disso, a fabricação em laboratório de homens pós-políticos, como parece sugerir num ensaio recente o filósofo Peter Sloterdijk, que fala numa “reforma genética da espécie”, destinada a controlar o lado “selvagem” da natureza humana.

Em suma, em todos os exemplos acima, a política é deslocada por sucedâneos: em vez da política, a violência, em vez da política, a tecnoburocracia; em vez da política, a biologia.

Poderíamos acrescentar a essa lista um quarto sucedâneo: em vez da política, a religião? Como no caso dos outros sucedâneos, teríamos que excluir a religião, para que a política volte a tornar-se possível?

A resposta é ambivalente: sim, no caso da variante fundamentalista da religião, e não necessariamente, nas outras modalidades de religião.

Quanto à primeira variante, proponho fazer uma distinção entre integrismo e fundamentalismo. Em seu sentido original, o integrismo tem origem católica, e remonta ao antiliberalismo e ao antimodernismo do Syllabus, de Pio IX. Generalizando, podemos dizer que o integrismo se baseia numa interpretação literal dos textos sagrados, em práticas rituais rigorosas, derivadas desses textos, e num desejo de reorganizar a sociedade e o Estado à luz da lei divina. O fundamentalismo agrega ao integrismo a violência. Em seus dois componentes — integrismo e violência — o fundamentalismo está se tornando cada vez mais forte, nas três religiões monoteistas.

Há traços comuns nos três integrismos. Todos desconhecem a separação entre a religião e o Estado. A legislação positiva deve conformar-se com os preceitos dos respectivos textos sagrados — o Alcorão, a Torá e o Velho e Novo Testamento. Os costumes devem ser reformados à luz da lei — a Shariah , para os muçulmanos, a Halachá, para os judeus, e a moral puritana, para os cristãos. Nas três, existem escolas para preparação dos fiéis. No mundo islâmico, é a madras, em que os ulemás ensinam o Alcorão e a lei. Uma dessas escolas, na cidade sagrada de Qum, no Irã, tornou-se célebre porque uma de suas estrelas era o aiatolá Khomeini. No mundo judaico, é a yeshiva, onde os rabinos ensinam a Torá, o Talmude e a Cabala. Essas escolas sempre foram bastiões da ortodoxia, a principio dirigidos contra heresias, como a hassídica, depois contra o judaísmo reformado, como o defendido por Moses Mendelsohn, a haskallah, equivalente do Iluminismo, e hoje, no Estado de Israel, contra o Estado secular. Finalmente, no mundo cristão, são as escolas bíblicas, como a Northwestern Bible School, o Moody Bible Institute e a Regent University, fundada pelo teleevangelista Pat Robertson, que, como indica o nome, prepara os alunos para exercerem uma espécie de “regência”, ocupando o poder até a segunda vinda de Cristo.

Mais que nos outros integrismos, o islâmico tende a confundir a lei religiosa com a lei do Estado. Por exemplo, não havia distinção entre o governo afegão e a ideologia religiosa dos Talibãs. O mesmo acontece na Arábia Saudita, apesar dos seus vínculos com os Estados Unidos, e no Paquistão, não obstante a orientação pró-americana do seu governo atual. Desde a origem, o Irã dos aiatolás foi uma teocracia, submetida à lei corônica.

O integrismo judaico se manifesta sob a forma de uma ritualização escrupulosa da vida cotidiana, segundo todos os preceitos da lei religiosa. Para os mais ortodoxos, ela tem valor absoluto, e deve ser observada em todos os seus detalhes. A atividade central dos homens é a oração, e o papel das mulheres é procriar e assegurar pelo seu trabalho a vida material da família, liberando o homem para o cumprimento dos seus deveres religiosos. A educação dos filhos se esgota no ensino religioso. Evitam-se contatos com pessoas alheias à comunidade. Contra os judeus liberais, que propugnam a integração com a sociedade local, os integristas cultivam uma atitude sistemática de auto-segregação, tanto com relação aos não-judeus como com relação aos demais grupos judaicos.

Quanto ao cristianismo, sabe-se que foi justamente num pais cristão que o termo “fundamentalista” nasceu — os Estados Unidos. Foi ali que entre 1909 e 1915 pastores de várias seitas protestantes relacionaram os fundamentals da fé cristã, os pontos fundamentais dos quais nenhuma das igrejas podia desviar-se. Foi só muito mais tarde que o termo foi aplicado aos muçulmanos e aos judeus. Deixando de lado, por enquanto, a discussão do fundamentalismo americano em seu sentido completo, podemos dizer que um dos traços mais salientes do integrismo americano é a interpretação literal da Bíblia. Ele se expôs ao ridículo mundial quando decidiu que a doutrina da seleção natural, de Darwin, era um “caso de polícia”. E juridicamente não deixava de ter razão. Depois da Primeira Guerra Mundial, os estados da Flórida, Mississippi, Louisiana, Arkansas e Tennessee promulgaram uma lei considerando ilegal o ensino do darwinismo nas escolas. Foi quando um jovem professor secundário do Tennessee decidiu desafiar a lei, confessando haver ensinado o evolucionismo a seus alunos. Preso, o rapaz foi defendido por um advogado liberal, que defendia a supremacia da ciência. No outro campo, estava o político e presbiteriano William Jennings Bryan, para quem Darwin estava destruindo os valores morais da América e da civilização. No tribunal, Bryan defendeu, contra Darwin, a verdade literal do relato bíblico e a cronologia bíblica, segundo a qual o mundo fora criado por volta do ano 4000 antes de Cristo. Mas podia-se acreditar que depois da derrota fragorosa de Bryan, ridicularizado diante do mundo inteiro por seu implacável adversário, os partidários do criacionismo deporiam as armas. A controvérsia parecia ter sido definitivamente sepultada quando a Corte Suprema decidiu, em 1987, declarar a nulidade da lei da Louisiana que proibia o ensino da evolução. Mas nos últimos anos os fundamentalistas voltaram à cena. Em 1994, a Junta de Educação do estado do Kansas votou uma recomendação que na prática encorajava as escolas a retirarem dos currículos a evolução. Há poucos anos, o estado de Ohio decidiu adotar um currículo que inclui a evolução, mas inclui também as teorias que a criticam, o que equivale a dar o mesmo valor a Darwin e ao criacionismo bíblico. Foi um pouco o compromisso no filme Inherit the Wind, em que Spencer Tracy, representando o papel do advogado, sai do tribunal, depois de sua vitória, carregando numa das mãos a Bíblia e no outro A origem das espécies. Não podendo mais dizer que o país está ameaçado pelo comunismo, a direita religiosa americana descobriu que a verdadeira ameaça, agora, é o darwinismo. Li recentemente um artigo intitulado “Propaganda evolucionista”, cujo autor enxerga em toda parte indícios de uma vasta conspiração darwinista para intoxicar as consciências cristãs. Uma das provas mais sinistras desse complô anticristo é que o sistema operacional do último computador Macintosh chama-se… Darwin! Como o ridículo não tem fronteiras, o exemplo americano está frutificando no Brasil. Em 2004, o governo do Estado do Rio de Janeiro, que em 2002 havia sancionado uma lei estabelecendo o ensino confessional nas escolas públicas estaduais, decidiu que a doutrina criacionista seria ensinada nas aulas de religião. É uma primeira vitória do fundamentalismo antidarwinista no estado em cuja capital Darwin aportou, em 1832, a bordo do Beagle.

Mas voltemos aos Estados Unidos. Depois do atentado contra as Torres Gêmeas, tem-se a impressão de que os fundamentalistas tomaram o poder. Se dependesse da direita religiosa que passou a mandar no pais, a Bíblia se transformaria numa fonte de legitimidade superior à da Constituição, o que quase se verificou quando o Presidente decidiu que as reuniões de gabinete deveriam começar com orações compostas por seus Ministros (uma delas, depois do 11 de novembro, foi uma obra-prima de eloquência sacra, que o Espírito Santo inspirou a Donald Rumsfeld) e quando Bush se bateu para que as preces fossem introduzidas nas escolas, o que transgredia flagrantemente o princípio constitucional da separação entre a Igreja e o Estado. Em suma, embora em menor grau que nos outros fundamentalismos, a lei divina foi-se confundindo com a lei do Estado, fusão fácil de verificar em temas como a clonagem, o aborto ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Quanto à segunda dimensão do fundamentalismo — a violência —, é preciso lembrar que toda religião tem uma relação ambígua com a violência. Por um lado, a religião pode contribuir para domar os impulsos agressivos do homem, e por outro pode desencadear a violência.

Freud examinou a religião sob esses dois aspectos.

Para ele, a religião é um freio contra a violência. Sob esse aspecto, ela deve ser vista como ilusão necessária. É uma ilusão, porque não está a serviço do princípio da realidade, e sim a serviço do desejo, que induz o homem a criar um pai supra-sensível que o proteja contra os pavores da morte, os perigos da natureza e os riscos da vida em sociedade. Mas é uma ilusão necessária, porque sem ela o homem não aceitaria os sacrifícios exigidos pela civilização. A consequência seria o desencadeamento dos seus impulsos agressivos, em explosões de violência que acabariam por destruir a civilização. Freud acrescenta que muitas vezes tal violência seria plenamente compreensível, pois, numa sociedade em que a riqueza e o poder estejam desigualmente distribuídos, os sacrifícios pulsionais impostos à maioria oprimida não se destinam a manter a civilização como tal, e sim uma sociedade injusta. Desse ponto de vista, Freud não está longe de Marx, para quem a religião é um ópio do povo.

Por outro lado, a religião pode ser uma fonte de violência, na medida em que estimula a intolerância contra seitas rivais. Em sua “Psicologia coletiva e análise do Ego”, Freud examinou os laços de solidariedade que surgem em certos grupos, em que cada indivíduo se liga por vínculos libidinais com o chefe a todos os outros indivíduos que compõem o grupo. O homem perde sua individualidade, mergulhando no coletivo. Abre mão de sua inteligência, deixando-se guiar por imagens mobilizadoras, e não por ideias. Extrojeta na pessoa do líder uma parte, cindida, do seu Eu — o ideal do Eu, herdeiro da fase narcisista. Com isso, o líder se torna imune às críticas, porque é a soma de todas as perfeições que o Eu narcisista encontrava em si mesmo.

É exatamente o que acontece nas Igrejas. O chefe (Cristo, ou seus representantes) assume o papel de um pai que ama igualmente todos os seus filhos, e os crentes ligam-se uns aos outros por vínculos eróticos dessexualizados. Reduz-se o narcisismo individual e criam-se nexos de fraternidade. Nesse momento, a violência intragrupal tende a desaparecer. Surge um “Nós” parcialmente pacífico, gerado pelo amálgama de vários “Eus”, sob o comando de um Eros comunitário.

Mas o preço desse processo é a violência conduzida contra outras comunidades religiosas. Tânatos foi banido do grupo, mas reaparece em toda a sua destrutividade na relação com outras religiões. Como diz Freud, “mesmo uma religião do amor deve ser severa e tratar sem amor os não-adeptos. No fundo, toda religião é uma religião de amor para os que a praticam, e cada uma está pronta a mostrar-se cruel e intolerante para os que não a reconhecem”.

A história confirma o pessimismo de Freud. Ao contrário do paganismo, em geral tolerante com os deuses estrangeiros, a “religião de amor” a que se referia Freud, o cristianismo, foi responsável por atos horripilantes de violência. As vítimas foram, durante a Idade Média, os cátaros, quase inteiramente extintos em consequência da campanha contra os albigenses, e os hereges em geral, que pagavam com a morte nas fogueiras da Inquisição o crime de sustentarem opiniões políticas heterodoxas. As cruzadas foram exemplos apavorantes de violência praticada em nome da religião: gritando Dieu le veult, os guerreiros de Cristo ensanguentaram a Terra Santa. No período moderno, as vitimas foram os protestantes massacrados pelos católicos, e vice-versa, ou os protestantes perseguidos na França, e os católicos perseguidos na Inglaterra. Além disso, as vítimas da intolerância eram elas próprias intolerantes. Calvet foi executado em Genebra, por ordem de Calvino. Os puritanos ingleses, vítimas da intolerância anglicana, foram ser intolerantes na América, queimando bruxas em Salem e exterminando a população indígena com o mesmo zelo sagrado com que os hebreus bíblicos tinham exterminado os primeiros habitantes de Canaã.

Mas com o tempo as paixões religiosas foram represadas. Pelo Edito de Nantes, Henrique IV autorizou o culto protestante, desde que não fosse posto em questão o estatuto do catolicismo como religião de Estado. Na Inglaterra, a glorious revolution de 1688 permitiu o funcionamento de todas as Igrejas protestantes dissidentes, e mais tarde da própria Igreja católica. Concomitantemente a essas decisões políticas, difundiam-se livros defendendo a tolerância no plano conceitual, como a Carta sobre a tolerância, de Locke, e o Traité sur la tolérance, de Voltaire. Apesar de alguns retrocessos, como a revogação do Edito de Nantes por Luis XIV, e embora a Inquisição continuasse atuando durante muito tempo nos países ibéricos, pode-se dizer que de modo geral a violência praticada em nome da religião foi se tornando cada vez mais rara. É que o processo de secularização fez com que a religião fosse sendo deslocada para a esfera do foro intimo, perdendo com isso sua virulência destrutiva, enquanto a ascensão do Estado liberal criou uma instância neutra capaz de assegurar a coexistência pacifica das várias denominações.
Tudo isso inspirou em Freud um otimismo provisório, quando disse, no Futuro de uma ilusão, que a intolerância religiosa “não mais atinge a violência e a crueldade que a caracterizavam no passado”, o que se deve “ao enfraquecimento incontestável dos sentimentos religiosos e dos nexos libidinais que dai decorrem”. Mas pouco depois, em Novas conferências introdutórias, ele se corrigiria. “A luta do espírito científico contra a concepção religiosa do mundo ainda não chegou a seu fim, ela ainda se trava diante dos nossos olhos.”

O que se revelou profético foi o pessimismo de Freud, não o seu otimismo. Nos últimos anos, a religião voltou a exibir a “violência e a crueldade” que já pareciam ter sido superadas. Ela se tornou fundamentalista.

Quanto à violência religiosa islâmica, é preciso esclarecer inicialmente que nem todo movimento terrorista é religioso (a OLP de Arafat era secular) e que nem todo integrismo é violento. Mas, a partir de um certo patamar do conflito, o Oriente Médio, o integrismo e a violência tenderam a amalgamar-se, gerando o fundamentalismo. Tanto o Hamas, que atua nos territórios palestinos, quanto o Hisbollah , com base no Líbano, são facções fundamentalistas islâmicas. Os jovens suicidas que se imolam em atentados bárbaros são todos “mártires”, que terão como recompensa o paraíso prometido aos que morreram numa guerra santa. Não faz muito tempo, o mundo inteiro acompanhou com estupefação a resistência oposta pelo Hisbollah à invasão do Líbano por parte das forças armadas de Israel, um dos maiores exércitos do mundo. Mas o conflito no Oriente Médio é apenas parte de um cenário mais amplo, de âmbito mundial. O primeiro exemplo de violência transnacional, dentro dessa linha, foi o fatwa dirigido por um aiatolá iraniano contra o escritor Salmon Rushdie, autor de um livro considerado ofensivo ao profeta, os Versos satânicos. Mas hoje em dia o exemplo mais espetacular dessa orientação é a Al Qaeda, rede multinacional dirigida por Osama bin Laden, que inspirou os atentados de 11 de setembro. Bin Laden quer fundar um califado pan-islâmico, tem em seus quadros, entre outros, egípcios, jordanianos, iemenitas e sauditas, e instalou pontos de apoio em quase 50 paises. O mundo inteiro é palco dessa violência. Uma caricatura num jornal dinamarquês pondo em cena o Profeta Maomé despertou manifestações violentas em todo o mundo islâmico. Não faltaram ameaças de assassinato do Papa, quando ele fez um discurso na Alemanha interpretado como antiislâmico.

A violência religiosa judaica é defendida e praticada, entre outros, por grupos ultra-ortodoxos que não recuam diante da luta armada, inclusive o assassinato, para atingir seus fins. Muitos se filiam aos ensinamentos do rabino Kook, que atuou na Palestina antes do advento do Estado de Israel, e do rabino Meir Kahane, fundador de uma ideologia messiânica extremamente violenta, para quem o Messias só poderia advir no bojo de uma grande vitória militar dos judeus. Essas ideias influenciaram terroristas como o Dr. Baruch Goldstein, que em 1994 massacrou dezenas de palestinos no túmulo dos Patriarcas, em Hebron, e Yigal Amir, que em 1995 assassinou o Primeiro-Ministro Yitzak Rabin, para puni-lo por ter assinado o acordo de Oslo.

Entre os fundamentalistas cristãos, muitos advogam e praticam a luta armada. Os alvos principais dos seus ataques são as clínicas aborto e os bares de homossexuais, masculinos e femininos. Em 1994, o reverendo Paul Hill matou um médico e seu colaborador quando estavam a caminho de um clínica de aborto na Flórida. Hill justificou sua ação com uma citação dos Salmos: “Não temerás nem o terror noturno nem a seta que voa durante o dia.” Em 1995, o edifício federal da cidade de Oklahoma foi explodido por Timothy McVeigh, afiliado a um movimento religioso, Christian Identity (Identidade Cristã), de caráter abertamente anti-semita. Em 1996, outro ativista, contrário ao aborto e à homossexualidade, Eric Robert Rudolph, lançou uma bomba durante as Olimpíadas de Atlanta. A razão é que os atletas que carregavam a tocha olímpica fizeram um desvio para não passarem por um condado que tinha condenado a sodomia, o que Rudolph interpretou como uma atitude pró-gay. Em geral, esses fundamentalistas são contra as restrições a venda de armas, por estarem convencidos de que os verdadeiros cristãos precisam ter o direito de defender-se contra o governo, que para eles transformou-se em instrumento de uma conspiração diabólica para implantar o reino do Anticristo.

Há uma convergência impressionante entre os três fundamentalismos num ponto decisivo: em todos três, a violência se inscreve no contexto de uma guerra cósmica entre o bem e o mal, entre Deus e Satã. Quando Osama bin Laden proclamou seu primeiro fatwa contra os americanos, em fevereiro de 1998, disse que “os Estados Unidos tinham declarado guerra a Deus, a seu mensageiro e aos muçulmanos”. Os partidários judeus do Dr. Goldstein afirmaram que seu ato homicida era legítimo, porque “todos os judeus estavam em guerra contra todos os árabes”. Uma brochura publicada pelo movimento Identidade Cristã, para o qual os que hoje se fazem passar por judeus não são mais os judeus bíblicos, e sim impostores a serviço de Satã, contem a seguinte frase: “Acreditamos que há uma batalha sendo travada hoje entre os filhos da Treva, hoje conhecidos como judeus, e os filhos da Luz, a raça ariana, o verdadeiro Israel da Bíblia.”

Mas tudo indica que os planos de Satã foram frustrados com a eleição de Bush. Com efeito, o Presidente da maior potência da terra passou a usar o discurso (e a prática) da violência cósmica. Bush disse que o conflito que se aproximava seria uma guerra monumental do bem contra o mal, e que Deus, cujo direito à neutralidade do Presidente contestou, estava do lado dos americanos. O Pentágono não fez por menos: batizou a operação antiterrorista de Justiça Infinita, termo de origem claramente bíblica. Ou seja, a violência divina dos americanos contrapôs-se, com uma simetria assustadora, à violência divina da Al Qaeda.

Em resumo, não há conciliação possível entre o fundamentalismo e a política democrática. Mas significa isso que existe uma incompatibilidade de princípio entre a política e qualquer forma de religião, fundamentalista ou não?
Na tradição do Iluminismo clássico, a resposta seria em grande parte afirmativa. Os padres eram aliados dos tiranos, contribuindo para manter o povo em estado de minoridade intelectual, o que o desqualificava para ser um ator político competente. Não há política sem aptidão para a política, e um povo imbecilizado por séculos de obscurantismo eclesiástico não podia nem pensar nem agir políticamente. A palavra de ordem de Voltaire — écrasez l’infâme — resume o grande combate do Iluminismo contra as forças que tutelavam a razão, impedindo o homem de construir seu próprio destino. Kant transpõe a mesma ideia na forma só aparentemente menos belicosa de um verso de Horácio: sapere aude, ousa fazer uso de tua razão. Para ele, a censura religiosa inibia o entendimento, e com isso paralisava a capacidade de ação política. Marx é herdeiro direto dessa tradição. A religião é “o suspiro da criatura oprimida, a emoção de um mundo sem coração, a expressão espiritual de condições sociais desprovidas de espiritualidade”. Ela é expressão da miséria, mas também véu que impede o conhecimento das causas dessa miséria. Consequentemente, ela mergulha os atores sociais na “falsa consciência”, funcionando, nesse sentido, como “ópio do povo”, narcótico que ilude as vítimas da opressão e as leva à letargia, à aceitação passiva da sociedade vigente.

Mas com o tempo a política foi ficando menos revolucionária, e, depois da institucionalização do secularismo moderno, a religião se transformou numa protagonista normal do jogo político democrático. Cristalizaram-se dois cenários típicos. No primeiro, a religião é posta a serviço de objetivos político-partidários. É a instrumentalização da religião pela política. Em outra, a religião funciona como sistema de crenças circulando no espaço público, lado a lado com outros sistemas de crenças, de caráter profano ou não, no quadro de uma sociedade secular moderna. No segundo caso, há um uso legítimo dos canais de mobilização abertos pela sociedade democrática. Tradicionalmente, esses canais foram utilizados pela Igreja católica para recomendar candidatos identificados com seus princípios religiosos. Hoje a Igreja não indica mais candidatos específicos, mas adverte seus fiéis para que exerçam conscientemente seu direito de voto, levando em conta critérios éticos e de competência. Estes dois casos — a instrumentalização político-partidária da religião e o uso dos canais democráticos para promover valores religiosos — pouco se distinguem daqueles em que os candidatos defendem, com mais ou menos sinceridade, plataformas ecológicas, feministas ou étnicas, dirigindo-se, em cada caso, às respectivas clientelas eleitorais. Nos dois casos, a política democrática não é posta em questão. Em nossa terminologia, não há esquecimento, ou expulsão, da política, como ocorre no fundamentalismo. Em compensação, a convivência entre religião e política perdeu toda dramaticidade, tornando-se rotineira.

Mas um fato novo, recentíssimo, está tornando mais dinâmico o equilíbrio alcançado historicamente entre a política democrática e a religião não-fundamentalista. Se os atentados de 11 de setembro acentuaram a aversão da opinião pública ocidental ao fundamentalismo, tem-se a impressão de que, em compensação, aumentaram a receptividade para variantes não-fundamentalistas de religião. Não se pode mais dizer o que um famoso jornalista do século XIX alegou, ao recusar um artigo sobre a religião: “Deus não é assunto de atualidade.” Surgiu um novo estado de espírito, que não é nem anti-religioso, como no Iluminismo e no século XIX, nem apologético, como na vaga neotomista do período de entre guerras (Maritain) ou na trilha de Jean Guitton ou Teilhard de Chardin, com suas tentativas de reconciliar razão e fé. O secularismo não é posto em xeque, mas ele se torna agora mais hospitaleiro à religião. Os primeiros sintomas do que poderíamos chamar, com algum sensacionalismo, a volta de Deus antecederam de pouco os atentados, e talvez tenham servido como sismógrafos dos novos tempos.

Entre os textos mais interessantes que se publicaram a respeito está o livro de Luc Ferry, O homem-Deus ou o sentido da vida. Para ele, a modernidade acarretou uma perda de sentido, mas ela pode ser compensada graças aos recursos de sentido oferecidos pela própria modernidade. A modernidade, com efeito, significa a ascensão irresistível do secularismo. Foi um progresso extraordinário para o espírito humano, porque permitiu ao homem, finalmente, pensar por si mesmo. Esse movimento implica o fim das transcendências verticais, autoritárias, situadas fora e acima do sujeito. Nesse sentido, a modernidade é o reino da imanência. Mas a modernidade comporta, também, um movimento oposto, que permite ao homem, nas entranhas da imanência, pensar algo que o transborda, um estar-fora-dele, um extravasamento em direção a transcendências horizontais, livremente consentidas, puramente humanas. Essa transcendência horizontal é movimentada pelo amor, um amor especificamente moderno, que não é Eros, porque este pressupõe a falta do objeto amado e se extingue com a gratificação do desejo, mas Filia, no sentido de Aristóteles, afeição que exige a presença viva e constante do amado. A Filia, por sua vez, remete a outro tipo de amor, o Agape cristão, sentimento que nos liga mesmo aos que nos são indiferentes, mesmo aos nossos inimigos, e que tem como horizonte virtual a humanidade inteira. Ferry chama essa perspectiva de “humanismo cristão”. Esse humanismo encontra, no final do percurso, um homem que não é nem um Prometeu que roubou o fogo do Olimpo, nem um Lúcifer que usurpou o trono de Deus, e sim, muito de acordo com a fé cristã, um ser capaz de amor e caridade, que quer completar a Filia com a Agape, e estender a todo o gênero humano o amor que ele tem pelos seus próximos. Com sua adesão obstinada à modernidade, Ferry constrói uma filosofia totalmente compatível com a essência da modernidade política, a democracia.

Impossível mencionar todas as publicações pós-setembro de 2001 que se têm ocupado com a religião, e que incluem, entre outros, o volumoso tratado de Régis Debray, Deus, um itinerário. Citarei apenas dois autores que me parecem representativos dos novos tempos, Richard Rorty e Jiirgen Habermas.

Em dezembro de 2001, Rorty recebeu o prêmio Mestre Eckhart. A ironia da outorga de um prêmio com o nome do místico alemão a um filósofo declaradamente ateu não passou despercebida a Rorty, mas isso não o impediu de dedicar a totalidade de sua conferência à religião.

Começa referindo-se com muita simpatia a um texto do filósofo italiano Gianni Vattimo, em que ele faz uma profissão de fé católica. Para Vattimo, o cristianismo não tem nenhuma relação com a verdade, e por isso não pode ser refutado (posição digna de aplauso para um filósofo, como Rorty, treinado na tradição da filosofia analítica), mas tem relação com o amor, nos termos do capitulo 13 da primeira epístola aos Coríntios. No momento de tornar-se homem, Deus abriu mão, por amor, em favor dos homens, de todo seu poder e de toda sua autoridade. O cristianismo consiste nessa auto-alienação de Deus, e por isso a secularização é a característica constitutiva da experiência religiosa autêntica. O divino está justamente nessa ausência de Deus. Rorty conclui dizendo que sua principal divergência com Vattimo é que para o italiano o sagrado está no passado, no ato amoroso pelo qual Deus renuncia à sua dominação sobre os homens, enquanto para ele, Rorty, está numa esperança futura, num estado de coisas em que os homens fossem livres e, tanto quanto possível, iguais. O ateísmo de Rorty soa estranhamente religioso. Sua utopia se parece nos mínimos detalhes com uma utopia messiânica, e, para não deixar dúvida, faz questão de usar, para descrevê-la, o adjetivo “sagrado”.

Quanto a Habermas, ele desempenhou mais uma vez seu papel de anunciador de novas tendências. Ao receber o prêmio da Paz, concedido apenas um mês depois dos atentados, em outubro de 2001, Habermas não faz, pura e simplesmente, o elogio do laicismo, como seria de se esperar de um filósofo de origens marxistas, mas fala numa sociedade pós-secular, em que não há nenhum sinal do desaparecimento da religião, apesar de todas as tendências secularizadoras. Sem dúvida, a religião tem que aprender a conviver com outras Igrejas, tem que aceitar as regras do jogo democrático, que obrigam o Estado a seguir uma política de neutralidade religiosa. Além disso, os crentes devem “traduzir” suas convicções religiosas numa linguagem leiga, se quiserem que seus argumentos sejam debatidos no espaço público.

É o que ocorre, por exemplo, quando católicos e protestantes articulam sua visão religiosa da sacralidade do feto na linguagem secular dos direitos humanos. Mas o processo de aprendizado não pode ser uma rua de mão única. Os não-crentes devem também fazer um esforço de aproximação, tornando-se sensíveis aos potenciais semânticos da tradição religiosa, que muitas vezes se perdem quando transpostos na linguagem profana. É o que acontece, por exemplo, quando o pecado se converte em culpa e a transgressão dos mandamentos divinos é transformada numa violação das leis humanas. Não há equivalente secular para a noção de perdão, que envolve a anulação do sofrimento imposto aos outros, e não a mera reparação de uma injustiça. O fim da ideia de ressurreição torna irrealizável aquela esperança desesperada de Benjamin, ele próprio profundamente influenciado pela religião, de salvar os mortos, corrigindo, pela rememoração, todos os massacres da história. Por isso Habermas é a favor, sim, da secularização, mas de uma secularização por assim dizer pós-secular, que preserve os conteúdos da religião, em vez de aniquilá-los. Uma sociedade civil pós-secular, conclui Habermas, pode haurir na religião, mesmo quando dela se afasta, os recursos de sentido que se tornam cada vez mais escassos numa sociedade dominada pelo mercado.

No dia 19 de janeiro de 2004, Habermas trava com o cardeal Ratzinger, futuro Papa Bento XVI, um diálogo histórico, em que aprofunda essas ideias. Discordando de Ratzinger, Habermas não acredita na necessidade de legitimar a democracia invocando um suposto fundamento pré-político, como a religião ou o direito natural, pois o liberalismo político, na versão que ele advoga — o republicanismo kantiano —, é plenamente capaz de fornecer sua própria legitimação. Mas isso não significa que a religião tenha se tornado irrelevante nas democracias modernas. Pelo contrário, ela tem um papel positivo a desempenhar numa modernidade que sucumbiu à condição que ele chama de “descarrilhamento” (Entgleisung), apresentando características patológicas como anomia, ceticismo, privatismo e narcisismo. A religião pode contribuir para curar esses males, reinjetando entusiasmo e solidariedade cívica na esfera política. Por isso, na sociedade pós-secular a religião não será mais condenada ao limbo do obscurantismo, o que não significa, evidentemente, a volta a um passado pré-secular. Habermas imagina um processo de aprendizado recíproco, em que os cidadãos seculares, herdeiros dos valores iluministas, se tornarão mais receptivos à religião e os crentes aprenderão a traduzir numa linguagem publicamente acessível os conteúdos expressos num código religioso, que constitui uma linguagem privada porque dependente de uma revelação não-aceita por todos. Seria um confronto entre duas tradições, a religiosa e a iluminista. A pós-secularização levaria as duas tradições a uma reflexão sobre seus respectivos limites. De certo modo, seria uma repetição do que já aconteceu no passado, quando o cristianismo absorveu alguns conceitos da filosofia grega e quando a filosofia assimilou e traduziu em sua própria linguagem muitas categorias cristãs, como responsabilidade, autonomia, justificação, alienação e sobretudo a ideia de que todos os homens são iguais diante de Deus. As religiões conservaram a memória da injustiça histórica, das vidas mutiladas, das esperanças traídas, e a política profana faria bem se ouvisse essas vozes que vêm do passado. O conceito de sociedade pós-secular reflete a convicção de que a religião continua a existir, de que ela ainda é relevante e pode contribuir para dar significado e direção a vidas que estão sendo erodidas por valores de mercado — o que significa que ela é indispensável para alimentar um processo político vibrante e participativo, sem o qual a democracia se burocratiza numa rotina mecânica.

Finalmente, em 2005 Habermas publicou um livro intitulado Entre o naturalismo e a religião. É uma coletânea de ensaios sobre a religião, um dois quais, ainda inédito, volta ao tema da “tradução” de argumentos religiosos em argumentos publicamente acessíveis. Habermas parte do conceito de “razão pública”, de John Rawls, segundo o qual as políticas advogadas por cada cidadão ou partido devem ser susceptíveis de justificação, com base em argumentos políticos, acessíveis a todos, e não com base em argumentos extrapolíticos, extraídos de doutrinas religiosas, e válidos apenas para os membros da respectiva comunidade religiosa. Tentando atenuar o rigor dessa norma, Rawls admite que argumentos religiosos podem, sim, ser apresentados no debate público, desde que, “in due time”, no devido tempo, eles sejam complementados por argumentos propriamente políticos. Seguindo essa mesma linha, Habermas especula sobre as maneiras de flexibilizar mais ainda a exigência da tradução do registro religioso para o secular, para que essa regra não se transforme numa restrição disfarçada à liberdade religiosa, inadmissível num Estado democrático.

Essa revalorização do fenômeno religioso não pode deixar de influenciar a problemática da relação entre a religião e a política. Se Habermas tem razão, não é mais a religião que tem que ser tolerada pela política ou que precisa dela para afirmar-se, é a política que precisa da religião para com ela preencher seus déficits de motivação e de solidariedade cívica, indispensáveis numa sociedade civil plenamente participativa. Quem sabe se a religião não seria capaz de devolver-nos a fé naquelas virtudes enumeradas por Max Weber em sua conferência sobre a política como vocação, e que hoje fazem tanta falta na política brasileira, como a honestidade, a veracidade, a responsabilidade, a dedicação apaixonada a uma causa, valores que as visões do mundo seculares não têm mais como fundamentar?

Haveria espaço, numa sociedade pós-secular, para a contribuição das Igrejas tradicionais, como o catolicismo e o protestantismo “oficial” — a Igreja luterana, a presbiteriana, a metodista. Haveria espaço, também, para a Teologia da Libertação e para movimentos políticos inspirados por motivos religiosos, como o MST, permeado pelo imaginário bíblico da Terra Prometida, sem esquecer as músicas de protesto nas favelas e periferias, num continuum que vai desde o rap gospel (em que o protesto tem uma nítida conotação evangélica), passando pelos raps sincréticos (em que há elementos de catolicismo e de umbanda), até os raps religiosos sem filiações confessionais (porque os rappers falam diretamente com Deus e interpretam livremente a Bíblia).
Tudo isso é mais ou menos óbvio, mas o que dizer do integrismo? No Brasil, ele corresponde, grosso modo, à religiosidade dos movimentos pentecostais e neopentecostais, nas quais incluo até o catolicismo carismático. Felizmente, não foi dado no Brasil o último passo, a aceitação da violência, e por isso nosso integrismo pode ser a antessala do fundamentalismo, mas não é ainda o fundamentalismo. Mesmo assim, como poderíamos dar direito de entrada a uma tendência tão claramente antimoderna? Meus companheiros de geração não hesitariam em voltar à tecla da religião como ópio do povo e dizer que as ideias dessas Igrejas são alienadas, reacionárias etc. Eles certamente teriam razão, segundo o paradigma iluminista clássico, do qual o marxismo é uma variante. Não é fácil, para alguém formado numa tradição kantiana, para a qual cada indivíduo deve submeter a tradição religiosa ao crivo da razão secular, aceitar um sacriftium intellectus, levantando os braços, num gesto de entrega a Jesus, em vez de chegar a opções intelectuais e políticas próprias, o que constituía a essência da Reforma luterana. Porém, é preciso salientar que os adeptos dessas Igrejas podem ser despolitizados, mas não são apolíticos, e é disso que se trata aqui. São certamente despolitizados, no sentido de que se deixam influenciar por seus pastores, segundo argumentos bíblicos, e não políticos. Mas não são apolíticos porque todas as Igrejas aceitam a validade dos canais políticos constitucionais para a difusão dos seus valores e para a eleição de representantes afinados com seus pontos de vista. Os candidatos fazem uso dos seus direitos democráticos quando se dirigem a clientelas especificas, e nisso pouco se distinguem dos que defendem, com maior ou menor sinceridade, plataformas ecológicas, feministas ou étnicas. Essas práticas são legítimas, desde que não ponham em questão o princípio básico da democracia liberal, a separação entre a Igreja e o Estado. Talvez a democracia tenha mais a temer dos que usam inescrupulosamente os votos evangélicos do que dos adeptos dessas Igrejas. Quando Fernando Henrique Cardoso encerrou um discurso feito numa Assembleia de pastores com um grito de Aleluia, ou quando o candidato Lula, diante de um público semelhante, proferiu vinte vezes o nome de Deus num discurso de quinze minutos, poucos acreditariam que os dois tivessem sido tocados, naquele momento, pela graça divina.

Se isso é verdade, há motivos para um modesto otimismo. Pode-se esperar que toda essa efervescência religiosa, convencional ou não, contribua para repolitizar a sociedade civil, salvando-a da apatia e do ceticismo, e impedindo o “descarrilhamento” da democracia. Pode-se esperar também que a própria reativação do debate político ajude os membros das comunidades integristas a se reconciliarem com o mundo moderno, acreditando mais na expulsão dos inimigos do povo pelo voto que na expulsão dos inimigos da alma pelo exorcismo. Com isso, a amnésia total terá sido evitada, e pelo menos a religião sobreviverá como lembrança de uma época em que a política ainda era possível — se Deus quiser.

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