2007

Questionando a ciência

por Etienne Klein

Resumo

As relações entre ciência e sociedade se parecem cada vez mais com as de um casal que se distancia: as discussões continuam apaixonadas, enquanto as narrativas dos fatos deixaram de ser. Essa evolução, que toma na ocasião os movimentos de uma crise, é acompanhada por uma desconfiança recíproca: enquanto os do campo científico – cuja imagem intercala daqui em diante as figuras de Pasteur e de Frankenstein – se sentem incompreendidos e mal-amados, o público, preso entre as tenazes da admiração e do temor, reclama por se avaliar fora do jogo. Um duplo signo desses tempos resume a nova situação: à medida que as controvérsias se intensificam, os comitês “Ciência e Sociedade” se multiplicam. A ciência, antigamente admirada e glorificada, parece hoje colocar um “problema”para a democracia.É suficiente ler os jornais, escutar as conversas: um pouco mais cada dia, os novos poderes da ciência açoitam nossa imaginação, suscitando ao mesmo tempo interrogações inéditas, associadas aos novos temores. A ciência carregará a ameaça como uma nuvem de tempestade? É certo que as angústias contemporâneas não são especialmente pós-modernas: o homem primitivo que, pela primeira vez, utilizou uma raspadeira de pêlo de animal para degolar um rival musculoso, também se questionou sobre os perigos que a evolução da técnica carrega com ela. O homem não refaz nem reinventa seus medos. Mas o que mudou, foi o registro das questões, a ampliação das dúvidas e a ambivalência das advertências. Como as relações entre ciência e sociedade se reconfiguram?


Os laços entre ciência e sociedade cada vez mais se assemelham com os de um velho casal que está se separando: as discussões são apaixonadas, mas as relações não. Essa evolução, que ocasionalmente toma ares de uma crise, é acompanhada de uma desconfiança recíproca: os cientistas, cuja imagem a partir de agora é uma espécie de mistura entre Pasteur e Frankenstein, sentem-se incompreendidos e mal-amados, enquanto o público, entre a cruz e a espada, ora tomado por uma admiração excessiva, ora por um temor, considera-se frequentemente, se não desprezado, ao menos deixado de lado. Um duplo sinal dos tempos resume a nova situação: à medida que as controvérsias se intensificam, os comitês “Ciência e Sociedade” se multiplicam.


A ciência, antigamente admirada e glorificada, representaria hoje em dia um “problema”?

O ESTADO DAS COISAS

Para tentar compreender o novo olhar sobre a ciência, seria mais conveniente, em primeiro lugar, afinar a análise da situação. Começaremos, então, farejando “os ares do nosso tempo”, levantando certo número de constatações retiradas da leitura de jornais ou da escuta de diversos comentários que a ciência suscita cotidianamente.

Em primeiro lugar, parece que nossa sociedade está tomada por uma nova paixão: o medo como figura até agora inédita dos vínculos sociais. A ciência intervém de modo evidente nesse medo, mesmo que seja apenas em parte.

Organismos geneticamente modificados (OGM), energia nuclear, clonagem, vaca louca; representaria a ciência, agora, uma ameaça como a nuvem que sinaliza a tempestade?

Para observar a novidade e a amplitude do fenômeno, basta medir a distância que nos separa dos primeiros tempos democráticos. Diante do terremoto que devastou Lisboa em 1755, causando a morte de milhares de pessoas, a reação das mentes mais brilhantes da época foi unânime e confiante: com o progresso das ciências e das técnicas, tal catástrofe poderá, no futuro, ser evitada. A geologia, a matemática e a física permitiriam prever e até prevenir os infortúnios que a natureza nos infligiria. Em suma, as ciências, mais exatamente as ciências e suas aplicações, iriam nos salvar das tiranias da matéria bruta. O postulado era o seguinte: o acúmulo de conhecimentos científicos só pode aumentar o número de realizações técnicas e industriais, que só poderão resultar numa melhora geral da condição humana, até mesmo na felicidade em pessoa. Essa doutrina acabou por se transformar num tipo de catecismo, com seus padres e teóricos (de Descartes a Auguste Comte). Trazida por ela, a ideia laica de progresso veio suplantar a ideia religiosa da Salvação e fazer do futuro o refúgio da esperança.

Hoje, novos ares. Nova era também. Primeiramente, o futuro inquieta: somos assaltados por todos os tipos de temores concernentes ao futuro. Melhor, provamos de um remorso antecipado com relação ao que poderia acontecer. Sentimos, com efeito, que nosso domínio das coisas está ao mesmo tempo desmesurado e incompleto: suficiente para que tenhamos consciência de fazer a história, mas insuficiente para que saibamos qual história estamos efetivamente fazendo. O que se constrói? O que se destrói? Ninguém sabe ao certo.

Aliás, ainda que a sociedade moderna tenha atingido um nível de segurança sem precedentes na história, ela se reconhece assumidamente como “a sociedade do risco”. Tudo é percebido, analisado e pensado sob a ótica da ameaça. Segundo alguns comentaristas, teríamos até entrado naquilo que chamam de “o tempo das catástrofes”.[1] Praticamente impregnando todos os discursos, uma sensação disseminada como a de que “o negócio vai esquentar” influencia nossas reações coletivas: cada vez que uma inovação técnica ou científica é anunciada, apressamo-nos em elaborar a lista de perigos potenciais a que essa inovação pode levar, ainda que seus riscos sejam fracos. Tudo se passa como se exigíssemos, a partir de agora, o serviço perfeito, o “defeito zero”, a tecnologia silenciosa, limpa, sóbria, econômica, sem nenhum efeito negativo.

Enfim, é acertar as contas com a natureza, que nos parece, de agora em diante, benévola. Para os antípodas do otimismo das Luzes, não descrevemos mais sistematicamente os avanços da ciência como um progresso, mas como um exílio de algum paraíso perdido. Ou, melhor dizendo, nós nos preocupamos em saber se nos tornamos mais livres e mais felizes pela multiplicação das performances técnicas. Em sua versão clássica, o mito de Frankenstein contava a história de uma criatura monstruosa ou mágica que escapa insensivelmente de seu criador e ameaça devastar a Terra. Mas é na própria busca científica que agora se aplica essa metáfora: recentemente conduzida e dominada pelos seres humanos, a ciência ameaçaria hoje escapar-lhes das mãos. Daí o aumento da nossa desconfiança com relação aos detentores do saber, suspeitos de fabricar clandestinamente o inumano, de ampliar os perigos e de favorecer em surdina o pavor.

Suspeitamos cada vez menos de tudo isso pelo fato de que nos tornamos hipersensíveis aos riscos: tudo aquilo que pode pôr em perigo nossa existência nos apavora. A angústia de uma morte que fingimos ser possível evitar se desdobra agora em uma infinidade de medos novos. É como se fosse redistribuída. Praticamente desapercebida, ela se difunde de forma exorcizada em todos os atos da vida cotidiana: comer, respirar, viajar, consumir, tudo nos assusta. Isso explica em parte por que, nos países industrializados, o aumento excepcional da expectativa de vida e o acesso de um grande número de pessoas a certo conforto material faz com que, pela primeira vez na história, cada um possa considerar sua existência como um tipo de capital adquirido, de duração relativamente assegurada, agora, perder a vida ou a saúde significa perder muito, em todo caso muito mais do que antes. Especialmente porque, ao mesmo tempo, a esperança religiosa no lado de lá se esvaneceu (não haverá nem segunda chance nem prémio de consolação), o que torna a vida, a vida que está aqui, presente, ainda mais preciosa.

Ao longo de uma insidiosa progressão, viemos novamente questionar os ideais que, dois séculos antes, nos pareciam fundadores da civilização. Tratar‑se-ia de uma renegação culposa? De uma passageira ranhetice de criança mimada? De um salutar sobressalto de lucidez? A noção de progresso, um funil em outros tempos escancarado sobre o futuro a partir do presente, parece, apesar de tudo, desfazer-se. Mesmo que a realidade dos avanços conquistados em alguns séculos seja inegável, nós pedimos ao progresso que nos dê provas de sua existência. Houve progresso, indiscutivelmente, mas estamos menos entusiasmados do que no passado ao mostrá-lo e ao reconhecê-lo. Ter-nos-íamos tornado cegos? Não, vemos muito bem que a época presente se encontra em explosiva produção, em invenção florescente, em inovações todas azimutes, mas ela ainda nos parece cheia de carência. Em particular, contrariamente ao que esperávamos, a ciência não fez a infelicidade se aquietar. Um sentimento de falta está sempre presente, que persiste a corroer nossas almas. Alguma coisa parece até que se agrava, mas não sabemos bem o quê… A ideia de progresso morreria lentamente, aqui, diante de nossos olhos? Mas eis que ante essa única possibilidade, já somos tomados pela vertigem e por ainda mais angústias. Isso porque não somos Tarzãs: podemos, a rigor, aceitar — até sonhar — retornar radicalmente à natureza bruta, mas com a condição expressa de podermos levar roupas de fios sintéticos, um cartão de crédito, um telefone celular, um GPS e uma mochila de antibióticos.

É o paradoxo de nossa relação com o progresso: pretendemos não mais acreditar nele, porém, na realidade, fazemos questão dele, visceralmente, mesmo que seja apenas de forma negativa, quer dizer, na proporção do susto que nos dá a ideia de que ele possa ser interrompido.

Mas desejamos, a partir de agora, julgar a árvore pelos seus frutos, quase estudando caso por caso.

AS NOVAS QUESTÕES DIRIGIDAS AOS CIENTISTAS

Essas questões já existem em âmbito geral. Mas existe também todo um registro de perguntas mais precisas que trabalham a mente de nossos concidadãos. Os cientistas que praticam a difícil arte das conferências ditas para o grande público” conhecem bem essas questões, às vezes embaraçosas, já que é a eles que se vem diretamente fazê-las. Elas dizem respeito aos vínculos entre saber e poder, entre ciência e desenvolvimento, entre ciência e verdade, enfim entre ciência e universalidade. Evoquemo-las brevemente e em ordem.

Saber e poder: A ciência manifestamente não deu conta de todas as suas promessas. Ela até se tornou cúmplice da guerra e do horror. Interpelamos então o estudioso para perguntar-lhe se não existiria, segundo ele, uma ligação quase ontológica entre o exercício das ciências e o da dominação violenta. Desejar compreender o mundo e querer esmagar o “outro”: essas duas atividades procederiam de apenas uma vontade inconsciente? A ciência tem, aliás, por objetivo principal conhecer o mundo e criar conceitos? Não teria ela se transformado preferencialmente numa vasta tecnologia, cujo ativismo febril visa apenas ao domínio, à ação, à inovação, à eficácia?

Mais de sessenta anos após Hiroshima, urge meditar sobre a “premonição” de Nietzsche, que escrevia em Le gai savoir: “O que dizer? O fim último da ciência seria o de conquistar para o homem o maior prazer possível e de evitar-lhe o maior desprazer? Poderia ser, no entanto, que um dia ela (a ciência) se revelasse como a grande geradora de dor” (grifos do original).

Ciência e desenvolvimento. Toda disciplina científica adota uma metodologia reducionista: ao menos na sua fase de constituição, ela não visa a nada a não ser à elaboração de um modelo reduzido próprio para esclarecer a inteligibilidade do real. Ela começa, então, sempre por um corte, eventualmente acompanhado pelo enunciado de uma relação. Dirigimo-nos, assim, ao cientista, para perguntar-lhe qual poderia ser a pertinência global de uma aproximação científica do mundo, uma vez que esta começa por torná-lo esquelético graças a uma série de reduções: como tornar inteiro aquilo que foi separado? Reconhecemos aí a reserva classicamente feita ao reducionismo, acusado de mutilar o real até que este último se torne compreensível. Mas — fato novo — essa repreensão desemboca cada vez mais numa crítica do desenvolvimento. Mesmo melhorado em desenvolvimento sustentável, este último ignoraria o que não é mensurável, nem calculável (por exemplo, a qualidade de vida) e fingiria não ver que o crescimento técnico-econômico produz também subdesenvolvimento moral e psíquico. De fato, quem poderia negar que a embreagem entre progresso científico e progresso geral não funcione tão bem quanto o que os cientistas do fim do século XIX haviam predito?

Ciência e verdade(s). Seria útil aqui, ainda, retomar os argumentos de Nietzsche, muito severo com relação a vários aspectos das ciências modernas que, a seus olhos, encobertos pelo triunfo da razão e defendendo a felicidade da humanidade, apenas protegem as velhas “vontades de crença”, porém sob uma máscara que dissimula o novo ídolo, chegando até a legitimar a mudança de ser como a verdadeira alternativa às antigas religiões. Além do mais, a ciência continua a trazer com ela uma ilusão metafísica, a do desvelamento completo do ser que está, no entanto, constantemente decepcionado. O diagnóstico trazido por Nietzsche desde O nascimento da tragédia não foi, em todo caso, jamais verdadeiramente desmentido:

Existe uma fantasia profunda que nasce, pela primeira vez, na pessoa de Sócrates: a crença inabalável que o pensamento, seguindo o fio condutor da causalidade, pode chegar até os abismos mais longínquos do ser e que ele está em condições de não somente conhecer o ser, mas ainda de corrigi-lo. Essa sublime potência de ilusão metafísica está conectada com a ciência como instinto.[2]

A ciência não continua a ir de par com esse otimismo?
Aliás, nota-se que, hoje, as teses “relativistas”, por exemplo, a de Paul Féyerabend,[3] tiveram um impacto muito forte, especialmente nos meios estudantis. Ainda que sua difusão seja acompanhada de contra-senso e de mal-entendidos, elas servem de pedestal às críticas cada vez mais vivas dirigidas aos profissionais da pesquisa: sua ciência diz realmente a verdade? Como você ousa pretender que ela se refira à racionalidade, enquanto os julgamentos estéticos, os preconceitos metafísicos e outros desejos subjetivos impregnam se não a atividade científica inteira, mas ao menos algumas de suas fases? A legitimidade de vocês, incontestável, estaria ela fundada em uma outra coisa que não sejam os efeitos de poder? Os mitos, que vocês desprezam, não falam também de uma parte da verdade? O relativismo beneficia-se, sob todas as suas formas, de uma simpatia intelectual quase espontânea. Por que ele seduz tanto aqueles que se perguntam sobre o alcance dos discursos da ciência? Talvez porque, abusivamente interpretado como um trazer à baila as pretensões da ciência, o relativismo parece alimentar uma suspeita que se generaliza, a da impostura:”Finalmente (tanto aqui como fora), tudo é relativo”.

Ciência e universalidade. A ciência se permite, sem contestação, sustentar no mundo um discurso universal. Mas esse universal que a ciência exibe é completo? Ele permite pensar melhor o sentido da vida, o amor, a liberdade, a justiça? Isso não é óbvio. Ora, compreendam bem, explica-se aos cientistas, que essas questões são as que nos importam mais (muito mais, em todo caso, do que a ladainha das grandes leis da física ou da genética), uma vez que é em torno delas que construímos nossos valores. Pois então, se sua ciência não nos ajuda a esclarecer nossa humanidade, se ela é incapaz de fornecer-nos as referências das quais temos necessidade, se ela descobre a verdade, mas não pode encontrar-lhe um sentido, não fiquem surpresos se não entrarmos em comunhão com sua comunidade.[4]

EM BUSCA DE UMA INELUTÁVEL RECONFIGURAÇÃO DOS
VÍNCULOS ENTRE CIÊNCIA E SOCIEDADE

Já que estamos tratando de ciência ou de tecnologia, sentimos despontar a necessidade de uma tomada de responsabilidade coletiva, mesmo que essas modalidades sejam difíceis de entrever. O cidadão se pergunta: o que, da ciência, me diz respeito? O que, na ciência, é discutível? O que é que, na ciência, pode ser transformado em “bem público”? E, sobretudo, está onde a fronteira entre o que diz respeito à sábia expertise, o que pede uma discussão geral e o que deve ser decisão política?

Se cada um de nós fosse capaz de fazer um julgamento claro sobre os grandes riscos científicos e tecnológicos do momento, as respostas a essas questões aparecer-nos-iam de maneira límpida. Mas não somos capazes disso. O que fazer então? Como incitar aqueles que não conhecem a ciência a querer conhecê-la? Como converter o direito de saber, legítimo, mas ocasional, em termos de esforço, em desejo de conhecer, que demanda um comprometimento cronófago e um verdadeiro trabalho pessoal? E como incitar os menos interessados entre nós a ir à busca dos cientistas para questioná-los: “O que vocês fazem exatamente? O que vocês sabem exatamente? Em que, naquilo a que vocês se propõem, isso é pertinente para vocês?”. Reciprocamente, como obrigar os experts a não mais se fechar em suas próprias razões e a escutar as razões dos outros? E quais decisões tomar, que fizessem da incerteza e dos riscos um fardo compartilhado, e compartilhado equitativamente?

De modo claro, e para falar como Habermas, como produzir, com relação às tecnociências, uma “racionalidade deliberativa”?

Nessa matéria, um avanço recente merece ser notado: a ideia segundo a qual o cidadão tem, a partir de agora, um papel a representar é cada vez mais largamente admitida. Entretanto, conflitos surgem quando se começa a traçar o perfil desse papel. Numerosos cientistas, agora convencidos que devem sair de sua torre de marfim, pensam que seja conveniente, sobretudo, associar-se ao público numa vasta empreitada de comunicação: em suas mentes, trata-se somente de explicar de maneira clara aquilo que não é, sem fazer mais do que isso. Ora, o público, ainda que se saiba profano, não hesita em reivindicar outros papéis além do de ouvinte. Ele aspira a ser tanto controlador das decisões quanto co-legislador, já que compreendeu bem que seus julgamentos, na falta de serem racionais ou esclarecidos, são, em geral, razoáveis. Quanto aos políticos, eles ainda não se deram conta de que as questões científicas estão, hoje, no coração do sistema: para eles a política é a direita e a esquerda, os negócios sociais e os econômicos, a família e a aposentadoria, a maconha e a segurança nas estradas, mas nada ainda com relação a escolhas científicas e técnicas.

Tais constatações justificam um certo ceticismo quando se evoca a ideia de uma ciência “cidadã”. Alguns, que repreendem o público por sua preguiça intelectual e por sua pouca resistência diante da manipulação da mídia, acham que ela seja uma utopia; outros suspeitam que os cientistas não joguem o jogo, acusam-nos de esoterismo ou de elitismo, e lamentam-se com o fato de que eles não tenham sabido proteger sua autonomia contra todos os tipos de hegemonia. Todos esses julgamentos apóiam-se certamente em sólidos argumentos, mas não me parecem ainda amadurecidos. Já que, antes de decretar se a ciência é ou não uma empreitada compatível com o que chamamos de “cidadania”, deveríamos verificar se tentamos tudo em matéria de compartilhar os conhecimentos. Os cientistas fizeram o suficiente nesse domínio? E as mídias? O que fez, especialmente a televisão, única capaz de atingir um grande público? O cidadão não tem direito de esperar dela maiores esclarecimentos e explicações? Da atitude dos responsáveis dos grandes canais, é preciso compreender que o negócio é tão complicado que a forma tradicional da vulgarização parece ter atingido seus limites. Pode-se até falar de um insucesso “relativo” da difusão dos saberes científicos. Querem um exemplo? Mais de um século depois de sua descoberta, a grande maioria dos nossos cidadãos continua ignorando o que é a radioatividade, embora grandes esforços tenham sido feitos para apresentá-la, nesses últimos anos (especialmente por ocasião do primeiro centenário dos trabalhos decisivos de Henri Becquerel, e depois os de Marie Curie).

Fica, então, para os pedagogos entusiastas explicar o que é a ciência e o que ela tem de fazer junto à sociedade. Nessa matéria, todas as iniciativas são de encorajamento. Mas não se pode sonhar demais, defendendo, por exemplo, uma concepção de democracia que seja muito escolar: é irrealista esperar que cada cidadão se torne um cientista esclarecido (apenas isso seria desejável?). Deveríamos, para tanto, diminuir nossas ambições em matéria de democracia? Não. É, ao contrário, a tarefa mais audaciosa a que somos a partir de agora convidados. Uma vez que a democracia, como escreveu o físico Jean-Marc Lévy-Leblond, é a aposta que, perante o fato de reconhecermos um relativo desconhecimento de causa, se mostra a “menos pior” das soluções (seguindo o implacável aforismo churchilliano), deve-se vencê-la coletivamente e assumir juntos os riscos de suas decisões. No próprio cerne do projeto democrático encontra-se o princípio segundo o qual a consciência prima pela competência. Ora, Jean-Marc Lévy-Leblond é quem diz:

É curioso constatar as resistências que encontra essa ideia quando entramos no campo tecnocientífico […]. Não se exige, entretanto, dos cidadãos um brevê de teoria constitucional antes para que possam votar, nem dos jurados do tribunal do júri um certificado de aptidão de direito criminal antes de consultá-los. Por que seria preciso saber mais de física do que de política para poder opinar sobre a construção de uma usina nuclear; mais de biologia do que de direito para se pronunciar sobre um programa industrial de gênio genético? Ainda que o aumento do nível geral de cultura científica e técnica da sociedade esteja longe de ser uma prévia da extensão do projeto democrático à tecnociência, é, justamente ao contrário, essa extensão que estimulará esse aumento: é a bonificação concedida à consciência que desenvolverá a competência.[5]

Essa inversão de ponto de vista merece ser discutida. Quando se trata de dizer qual futuro queremos construir juntos, é realmente obrigatório conhecer muito de ciência antes de se dar o direito de tomar a palavra?

Muito de ciência, não. O que fica é aquilo que é difícil de negar: a divisão generalizada de um pouco de ciência não deveria ser nociva…

REEROTIZAR O ATO DE CONHECER…

Para que “um pouco de ciência” seja conhecido de todos, talvez seja imperativo que se reerotize o ato de conhecer. Mas como fazer isso?

Primeiro, jogando com paradoxos. Só eles nos forçam a deixar as banalidades de lado. Eles destroem os compartimentos dos nossos intelectos, elevando-os acima das certezas estabelecidas, obrigando-os a verdadeiras orgias de desconstrução, permitindo-lhes assim apreender aquilo que uma ciência aventureira propõe de radicalmente novo. A ciência não cessa, com efeito, de elaborar o “bizarro” e os paradoxos constituem o melhor meio de mostrá-lo. A episteme — o discurso da ciência — na verdade, só coincide excepcionalmente com a doxa — opinião comum. Ora, é sobretudo a esse distanciamento sideral que a ciência deve o que lhe resta de poder de fascinação.

Em seguida, reencontrando o desejo de pensar os saberes e de expressar seus sabores essenciais. Mesmo se ele for muito contrário às tendências de seu tempo, essa ambição nada tem de utópico. Ser um estudioso, em princípio, não é somente tocar com grandes instrumentos ou acompanhar uma linha orçamentária. É também favorecer certa abundância do imaginário, é jogar com as ideias, meditar sobre os conceitos e deles criar novos, perceber seu alcance,

explicitar seus sentidos. Essa dimensão, ao mesmo tempo criadora e reflexiva, é vital, já que ela constitui o pressuposto de qualquer transmissão eficaz dos conhecimentos: quando essa “espessura” lhes falta, a capacidade dos pesquisadores em se posicionar nas diversas situações humanas, engajando as ciências, encontra-se singularmente desfalcada, assim como sua aptidão em apresentar ou ensinar seu saber como uma verdadeira aventura intelectual. Então é preciso reabilitá-la. Principalmente porque, bem conduzida e atuando em vários registros, a ciência poderia desembocar em novos gêneros ou novas formas de acessibilidade, mais inventivas e mais ambiciosas.

Mas é preciso fazê-lo rapidamente, já que dois sinais agora estão bem visíveis: o primeiro é que, como acabamos de lembrar, os conhecimentos científicos, mesmo os mais clássicos, não fazem parte do saber comum, o segundo é que os estudantes, em quase todos os países ocidentais, torcem o nariz cada vez mais ao engajamento em certas carreiras científicas, o que pode pôr em perigo a expansão dos laboratórios de pesquisa e a competitividade futura das empresas. Como explicar que a ciência, essa insubstituível escola de rigor, esse tipo de muralha contra certo espírito de puerilidade ameaçador, essa ciência agora como a parte midiatizada da cultura, perca a cada dia um pouco de seus atrativos?

Notemos primeiramente que seria imprudente interpretar de uma só vez essa baixa das vocações científicas como o resultado mecânico de um desamor ou de um desinteresse dos jovens pela ciência. É possível, depois de tudo, que eles continuem a julgá-la admirável e bela, considerando que ela se tornou muito difícil, até mesmo inacessível. E eles não teriam errado completamente: é incontestável que uma prática iniciante da pesquisa científica exija antecipadamente longos e pesados esforços. Então, nesses tempos em que até a ideia de futuro se enfraquece, ou em que só se privilegia o curto prazo, ou em que a distração, constantemente oferecida, infiltra-se por todos os lados, temos o direito de nos perguntar se a ciência não é simplesmente a primeira vítima dessa “crise de paciência” que toca todos os setores da vida social. Retorquir-me-iam que um diagnóstico exato e completo da situação deveria solicitar outras considerações em vez destas. Talvez. Mas estou convencido de que as grandes manobras depuradas pela televisão a fim de criar a ilusão de que cada um possa se tornar uma estrela em três dias prejudicam mais o nosso apetite coletivo para a ciência do que qualquer redução de orçamento para pesquisas.

… E REPENSAR O DISCURSO DA CIÊNCIA

Em geral, o discurso dos cientistas é entravado. É como se vivessem perturbados com uma ideia que os obstrui, que nos faz em pensar que um “verdadeiro” cientista, puro e rigoroso, não se interessa pelo que está na periferia de seu saber. O aprendizado que eles vivenciaram cultivou tanto um apetite negativo por todas as questões rapidamente qualificadas de “não científicas”, que se transformaram em vítimas do preconceito segundo o qual um interesse por elas poria em perigo a criatividade de pesquisador. Isso lembra, como notou bem Isabelle Stengers,[6] a metáfora do sonâmbulo que anda no cume do telhado: se acordar e vir onde está, ele… cai! De fato, os cientistas têm sempre a tendência de tratar como inimigos os que querem fazê-los sair de sua “sonolência de especialistas”. Nos locais de produção do saber científico não há nenhum sinal oficial, em todo caso, que os encoraje a se retirar, de alguma forma, do ativismo monomaníaco. Por exemplo, nem história nem filosofia das ciências são regularmente evocadas, e muito menos praticadas.
Num primeiro momento, essa quase-ausência de reflexão sobre as ciências, nos locais que protegem o conhecimento que se está produzindo, só pode ser virtuosa, nem que seja apenas pelo fato de que ela incita os pesquisadores a certa reserva filosófica. Estes são assim poupados de tomar parte em muitos debates ocasionais que acabam sendo deixados em seara alheia, para os filósofos. O que eles poderiam encontrar aí para recolher? As ciências não foram heroicamente emancipadas da filosofia? Não foi precisamente por terem se livrado de certo “esterco metafísico”[7] que elas acabaram conquistando seu poder e sua eficácia?
Os comentários deste tipo tornaram-se tão recorrentes que acabaram por ser aceitos para gerar um tipo de ladainha antifilosófica que faz de uma pretensa “insensata ineficácia” da filosofia das ciências um elemento fundador da doxa dos laboratórios: por que diabos seria preciso interessar-se pelas filiações conceituais insignificantes que exibem às vezes os filósofos das ciências? Que interesse supremo haveria aí que levasse em conta a demarcação que estes últimos teimam em assinalar entre a ciência e os outros métodos de conhecimento? Os critérios dessa demarcação não são evidentes? Que eficácia tangível se ganharia em interessar-se pelas categorias filosóficas que conduzem o julgamento dos cientistas ou em exibir as “dobradiças” em torno das quais seus pensamentos se movimentam? O mundo da pesquisa soube tão bem separar ciência daquilo que realmente não é ciência que, no seu seio, as misturas de gênero, denegridas por sua suposta capacidade de nocividade, tornaram-se aí impraticáveis.
No entanto, para olhar melhor para isso, a indiferença comum dos cientistas em relação à filosofia das ciências teve também efeitos perversos. Primeiro, ela pode ser interpretada como a marca de um tipo de desprezo por parte dos atores da ciência para com todas as questões que transcendem a operatividade de suas disciplinas, deixando crer que a ciência se transformou numa empresa exclusivamente produtivista. Segundo, incitando os cientistas ao mutismo filosófico, e, sobretudo, impedindo os pesquisadores comuns de dizer o que pensam daquilo que sabem, ela assume o aspecto de uma demissão coletiva, que produz toda sorte de efeitos devastadores. Por exemplo, ela abre espaço a formas muito planas de “comunicação” sobre as ciências: parece que agora nos contentamos com uma apresentação puramente descritiva dos trabalhos científicos, cujos tons são, às vezes, quase publicitários.
A coisa me parece ter ficado gritante: as ciências contemporâneas carecem terrivelmente, não só na sua construção, mas também na sua apresentação, de um trabalho filosófico regular. Por exemplo, uma crítica saudável de sua linguagem permitiria já, se não aniquilar, ao menos problematizar as vulgatas dolorosas e superficiais que abarrotam hoje os discursos (e, portanto, as opiniões), cobrindo de ferrugem a vitalidade da ciência.
Uma nova retórica e novas essências, eis o que talvez — entre outras coisas — ajudaria a ciência de hoje a se transformar em cultura.

Tradução de Marcelo Gomes.

Notas

[1] Ver, por exemplo, Jean-Pierre Dupuy, Pour un catastrophisme éclairé: quando l’impossible est certain (paris: Le Seuil, 2002)

[2] Friederich Nietzche, O nascimento da tragédia, trad. Jacó Guinsburg (São Paulo: Companhia das Letras, 1992).

[3] Ver, por exemplo Paul Fèyerabend, Adieu la raison (Paris: Seuil, 1989)

[4] Esse silêncio constatado da ciência a respeito do sentido da existência alimenta sem contestação o que Edmund Husserl chamava “a crise das ciências europeias”: “Na descontração de nossa vida — é o que ouvimos em todos os lugares —, essa ciência nada tem a nos dizer. As questões que ela exclui, por princípio, são precisamente as questões que são as mais acaloradas da nossa época infeliz por uma humanidade abandonada aos transtornos do destino: são as questões que tratam do sentido ou da falta de sentido de toda essa existência humana”, cf. Edmund Husserl, La crise des sciences européennes et la Phénoménologie transcendantale, coleção Tel, capítulos 1 e 2 (Paris: Gallimard, 1976), p. 10.

[5] Jean-Marc Lévy-Leblond, “En méconnaissance de cause”, em La pierre de touche, Coleção Folio-Essais (Paris: Gallimard, 1996), pp. 38-59.

[6] Isabelle Stengers, “Penser les sciences par leur milieu”, em À quoi sert la philosophie des sciences?, Revue Rue Descartes, nº 41, setembro de 2003, pp. 41-51.

[7] Steven Weinberg, Lê rêve d’une théorie ultime (Paris: Odile Jacob, 1997), p. 159.

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