2004

Quem é bárbaro?

por Francis Wolff

Resumo

Quem é bárbaro? Quem é civilizado? Duas respostas são igualmente tentadoras. A mais difundida, para todos os povos, em qualquer época, é dizer: nós somos os civilizados, os outros são bárbaros; sua língua, seus costumes, suas tradições, seus deuses, seus valores não são os de homens verdadeiros. Sabe-se que os gregos da Antiguidade que sabiam não estarem sozinhos no mundo, atribuíam-se uma superioridade de civilização sobre todos os outros povos: é bárbaro todo povo que não fale grego. Os chamamentos, mais recentes, às guerras santas de todas as espécies, do Bem (nós somos a civilização) contra o Mal (os outros são a barbárie) são outras ilustrações.

A segunda resposta consiste em negar o problema, a relativizar as noções: nenhum povo é mais civilizado do que outro, nenhum costume é bárbaro. Todas as culturas são equivalentes de forma absoluta, tudo depende do critério escolhido: o único valor universal é a adaptação de cada cultura a seu próprio meio natural. No limite, como dizia Claude Lévi-Strauss, em fórmula magnífica: “É bárbaro aquele que crê na barbárie”. Esta atitude não é nova: os próprios gregos, que inventaram a ideia etnocêntrica de barbárie, também inventaram o relativismo cultural, desde o nascimento da pesquisa histórica e sociológica com Heródoto.

Estas duas respostas têm princípios e consequências éticas e políticas inaceitáveis. A primeira é a fonte do escravismo, do colonialismo e do imperialismo. A segunda corre o risco de levar ao ceticismo sobre suas próprias crenças, mas sobretudo à negação de todo valor humano universal: o que pensar, realmente, e, acima de tudo, o que fazer, quando julgamos (segundo nossos próprios critérios culturais) que outras culturas (consideradas tão “civilizadas” quanto a nossa) são produtoras de humilhação, de opressão, de exploração? Não podemos condená-las? Mas em nome de que, senão de valores que pensamos ser absolutos e não daqueles de nossa própria tribo?

Será que podemos sair desta alternativa insustentável, de um lado “somente nossos valores”, de outro, “tudo se equivale”? Assim sendo nos perguntaremos como determinar um critério objetivo e absoluto de “civilização”… e pois de “barbárie”… reconhecendo igual valor a todas as culturas. A resposta talvez esteja na questão: seria então bárbara toda cultura que não disponha, em seu próprio interior, de possibilidades que lhe permitissem admitir, assimilar ou reconhecer uma outra?


Samuel Huntington, autor de O choque das civilizações, anunciou a inevitabilidade de um novo enfrentamento entre o Ocidente cristão e o mundo muçulmano… E o 11 de setembro de 2001 poderia parecer dar-lhe razão. Com efeito, várias redes islâmicas transnacionais, das quais a Al-Qaeda é a mais conhecida, travam uma guerra religiosa mundial (para expulsar os infiéis dos lugares sagrados), e ao mesmo tempo uma guerra política (para unificar politicamente o mundo muçulmano e impedir de todas as maneiras a integração das minorias muçulmanas nos países europeus ou nos Estados Unidos). Essas finalidades estratégicas passam pelo objetivo tático que consiste em enfrentar diretamente o “Ocidente cristão”, encabeçado pelos Estados Unidos, denominados como “o Grande Satã”, país que simboliza a um só tempo a onipotência racionalista, o cristianismo individualista e o materialismo moderno, os três inimigos, segundo a Al Qaeda, da civilização, ou seja, do islã. Os atentados criminosos de 11 de setembro contra os Estados Unidos, pela primeira vez no âmago do país inimigo, foram sua mais espetacular manifestação. Nas horas que se seguiram aos atentados, o presidente dos Estados Unidos se colocou no mesmo terreno, o da luta da civilização contra a barbárie: ele falou em “cruzada”, em “luta do Bem contra o Mal”, e qualificou os atentados como “ataque à civilização” — estando os islâmicos do lado do Mal e da barbárie. O presidente do Conselho italiano, Silvio Berlusconi, foi mais explícito em seu desprezo, afirmando a “supremacia da civilização ocidental sobre o islã”.

Mas quem é bárbaro? A resposta a essa pergunta não deixa dúvidas para os partidários de Bin Laden: a única civilização é a civilização do islã tal como a concebem, e a barbárie é a dos infiéis, ou seja, do Ocidente. A resposta dos presidentes Bush e Berlusconi a essa mesma pergunta tampouco é mais hesitante: a civilização está em perigo, ameaçada pelo terrorismo cego, pelo fanatismo frenético e pelo obscurantismo arcaico dos novos bárbaros, que são as redes islâmicas encabeçadas pelos três países do eixo do Mal: o Afeganistão, o Iraque e a Coréia do Norte.

Então, quem é civilizado, e quem é bárbaro? Os fanáticos terroristas suicidas do 11 de setembro são a vanguarda da civilização? Ninguém defende essa opinião, nem mesmo os muçulmanos ou os países  árabes, até porque esses atentados nos parecem, por sua dimensão inédita e sua brutalidade cega, atos particularmente bárbaros. Porém, simetricamente, os Estados Unidos podem pretender encarnar a civilização, e podem-se considerar bárbaros os seus inimigos, ou aqueles que não reconhecem seus valores? É igualmente difícil pensar assim, mesmo porque quando um país, uma sociedade ou uma cultura se identifica à civilização, qualificando como  bárbaros seus adversários, quase sempre é para justificar iniciativas imperialistas menos recomendáveis. Há então outro risco, simétrico ao anterior: o de que uma pretensão à universalidade (a civilização é única, é a mesma para todos e para toda a humanidade) esteja a serviço de um desejo de uniformização (um único modelo de humanidade para toda a humanidade) ou, pior, de um objetivo expansionista (“nós somos a civilização, eles são a barbárie”). Nesse caso, a escolha histórica com que depararíamos hoje já não seria entre “civilização e barbárie”, e sim um entre duas formas de barbárie: a barbárie destrutiva do fanatismo versus a barbárie devastadora da civilização.

É evidentemente tentador, com efeito, não enxergar diferenças entre as duas posições. Já que cada um qualifica o outro de bárbaro a fim de defender sua própria e única concepção de civilização, parece sensato declarar que não existe civilização, pelo menos não uma ideia única de civilização, apenas culturas diferentes; portanto, não existem bárbaros, tudo é uma questão de ponto de vista, cada um chama de civilizado aquilo que ele mesmo é, conhece, compreende, e de bárbaro o que lhe é estrangeiro ou desconhecido. Também não acredito nisso. Gostaria inclusive de demonstrar que essa segunda posição (não existe barbárie) é tão falsa, ou mesmo tão perigosa, quanto a outra, aquela para a qual bárbaro é o outro.

É preciso então responder realmente, com seriedade, à pergunta: “Quem é bárbaro?”.

Antes de procurar responder a essa pergunta, porém, é preciso tentar resolver um problema de definição. O que chamamos de bárbaro? O que é a barbárie?

OS TRÊS SENTIDOS DA BARBÁRIE

Consideremos três fatos, quase ao acaso:

  1. Certos grupos étnicos na Nova Guiné recorrem à antropofagia devoram seus prisioneiros. Um costume e um povo bárbaros.
  2. No ano de 2001, o regime talibã destruiu, no Afeganistão, estátuas gigantescas e admiráveis que datavam da Idade Média, patrimônios da humanidade. Uma prática e uma cultura bárbaras.
  3. Em 1975, depois que o Khmer vermelho tomou o poder em Phnom Pehn, houve um gigantesco massacre da população cambojana das cidades, que resultou em 1 milhão de mortos. Uma prática e um regime bárbaros.

Esses três exemplos de costumes, culturas e regimes que podem com efeito ser qualificados de “bárbaros” talvez nos remetam a três sentidos bastante distintos da palavra e, portanto, de seu antônimo: “civilização”.

  1. No primeiro, civilização designa um processo, supostamente progressivo, pelo qual os povos são libertados dos costumes grosseiros e rudimentares das sociedades tradicionais e fechadas para se “civilizar”, o que supõe que pertençam a uma sociedade maior, aberta e complexa e, portanto, urbanizada. A civilização designa esse processo de paulatino abrandamento dos costumes, de respeito aos modos, ao refinamento, à delicadeza, ao pudor, à elegância etc., notadamente no cumprimento das funções naturais (comer, defecar, copular, assoar o nariz, cuspir) e das relações sociais (polidez, modos à mesa, modos de dirigir-se ao outro). Observe-se que os cínicos, discípulos de Sócrates, recomendavam a transgressão desses usos e regras da civilização, tomada nesse sentido, por julgarem-nos artificiais e convencionais: a polidez, o pudor, a monogamia. E iam além. Recomendavam também o que seus contemporâneos consideravam atos bárbaros por excelência, a consumação do incesto ou o consumo de carne crua.

Seja como for, são chamados bárbaros, nesse sentido, os que se comportam como brutos grosseiros e ignoram as boas maneiras. O bárbaro, no imaginário popular, é o canibal que vive quase nu no meio das selvas. É também o camponês não educado, em oposição à civilidade da cidade. A urbe, com efeito, é ao mesmo tempo a cidade, a pólis, espaço de relações variadas, e a sociedade em geral é o espaço de intersecção entre a urbanidade e a cidadania. O bárbaro supostamente se inclui num estágio inferior da evolução política, num estágio pré-civil ou, pelo menos, pré-urbano.

Compreendida a civilização nesse sentido, seu grande teórico é o sociólogo alemão do século XX Norbert Elias, que mostra como, entre os séculos XI e XIX, desenvolveu-se essa “paulatina modelagem da sensibilidade e do comportamento humanos”, em um longo processo de racionalização das condutas, ligado a uma interdependência crescente dos atos de todos os indivíduos, de modo que cada um possa vir a preencher uma função cada vez mais complexa: desde a mais tenra infância, todos devem aprender a dar a seus gestos maior firmeza e regularidade, devem controlar melhor as próprias reações imediatas, impulsos, sentimentos, afetos, para torná-los compatíveis com uma vida social cada vez mais exigente. Tal é, para Elias, a marcha da civilização. Não desenvolverei esse ponto no momento.

  1. No segundo sentido, a civilização designa as ciências, as letras e as artes, em suma, o patrimônio mais elevado de uma sociedade. Não se trata exatamente da cultura, de toda a cultura, e sim da parte mais “desinteressada”, mais “liberal”, da cultura humana. A “civilização”, compreendida nesse sentido, designa, portanto, menos as técnicas e os ofícios, menos o know-how prático e utilitário, do que a parte especulativa, contemplativa e espiritual da vida, o saber puro, a ciência pela ciência, a arte pela arte, a filosofia, a literatura, a poesia, a música erudita etc. Os bárbaros são insensíveis ao saber ou à beleza pura, não respeitam o valor destes ou não compreendem seu sentido, só reconhecem valor no útil, na satisfação das necessidades vitais ou dos prazeres grosseiros. O bárbaro, portanto, é aquele que pilha as igrejas para fundir o ouro que nelas encontra, que queima os livros ou… destrói as estátuas. Para alguns,  é simplesmente a civilização Disneylândia e McDonald’s, pela imagem que passa da diversão ou da gastronomia.

Nesse segundo sentido, supõe-se que o bárbaro pertença não apenas a um estágio anterior de socialização ou de história política, como também a um estágio anterior da cultura humana.

É o sentido mais antigo do termo. Remonta ao barbarus latino, termo que, adaptado do grego, designava sob o Império romano todos os povos estrangeiros àquele império. É o termo que serviu para designar todas as grandes invasões da Europa a partir do século III, notadamente as primeiras, que, produtos de povos ainda “selvagens”, destruíam tudo à sua passagem, como as magníficas construções urbanas da Gália.

O melhor teórico da civilização compreendida nesse sentido é Morgan, grande antropólogo inglês do século XIX que queria, a um só tempo, retraçar o passado das sociedades modernas e propor uma tipologia das diversas culturas existentes em sua época. Trata-se da tese “evolucionista”. Segundo Morgan, toda a humanidade atravessa sucessivamente, seguindo uma única direção, tão natural quanto necessária, uma trajetória do simples para o complexo, do irracional para o racional, compreendendo três fases de desenvolvimento: a selvageria, a barbárie e, finalmente, a civilização. À selvageria correspondem o arco, as flechas e uma forma de organização política, a horda primitiva. À barbárie correspondem a cerâmica, as ferramentas de ferro e uma forma política: a “tribo”. A civilização, segundo Morgan, é marcada pelo surgimento da escrita e da forma política do Estado.

  1. No terceiro sentido, ainda mais forte, menos técnico, mas muito mais comum, “civilização” designa tudo aquilo que, nos costumes, em especial nas relações com outros homens e outras sociedades, parece humano, realmente humano — o que pressupõe respeito pelo outro, assistência, cooperação, compaixão, conciliação e pacificação das relações —, em oposição ao que se supõe natural ou bestial, a uma violência vista como primitiva ou arcaica, a uma luta impiedosa pela vida. Os bárbaros são descritos como bichos do mato, dotados de uma brutalidade feroz, cega e selvagem, sem motivo razoável e, sobretudo, sem limite racional. É nesses termos que o etnólogo britânico Colin Turnbull descreveu, em The mountain people (1972), a situação do povo Ik, expulso de seu ancestral território de caça no Nordeste de Uganda pela criação de um parque nacional e confinado nas montanhas que separam Uganda do Sudão e do Quênia. Incapazes de voltar à atividade agrícola, aqueles caçadores, antes prósperos e felizes, em menos de três gerações se transformaram em pequenas comunidades de aldeãos degenerados, desprovidos de vida social, como também de esperança, compaixão, amor e bondade: filhos arrancam a comida da boca dos pais, estes expulsam os filhos do recinto familiar para não ter de alimentá-los, deixam morrer em total indiferença os velhos, doentes e deficientes. A “barbárie” representa aqui a perda de qualquer sentimento humanitário (assistência ao mais fraco, piedade, benevolência), e parece, nesse caso, resultar da dessocialização e da desculturação. Mas esse nem sempre é o caso: também são chamados de bárbaros, no mesmo sentido, os campos de extermínio do Khmer vermelho ou do regime nazista. De modo geral, a barbárie, considerada nesse sentido, designa fenômenos essencialmente destruidores, manifestações de desumanidade incontrolada; fala-se em “crime bárbaro” em referência a mutilações atrozes, assassinatos horríveis, sacrifícios humanos em massa, holocaustos, etnocídios, genocídios.

Em suma, no primeiro sentido, civilização é civilidade; no segundo, é a parte espiritual da cultura; no terceiro, é a humanidade do sentido moral. O primeiro tipo de bárbaro parece pertencer a um estágio arcaico de socialização; o segundo, a um estágio arcaico da cultura; e, mais grave ainda, é a um estágio pré-humano que o terceiro parece pertencer: é o homem que permaneceu em estado selvagem, que se tornou, ou tornou a ser, desumano.

TRAÇOS COMUNS ENTRE OS TRÊS SENTIDOS

Há, evidentemente, traços comuns entre esses três sentidos — e parece que passamos de um a outro imperceptivelmente, ao ponto de seus limites parecerem difíceis de definir. Nos três casos, a oposição civilização/barbárie determina uma espécie de divórcio entre o que há de humano, de propriamente humano e, sobretudo, de supremamente humano, em oposição ao que parece primitivo, selvagem, bruto, inculto, arcaico. Desse ponto de vista, a oposição civilização/barbárie parece comparável à oposição cultura/natureza.

Há, porém, duas diferenças importantes entre “cultura” e civilização. A primeira é de ordem quantitativa. Uma civilização supõe um vasto conjunto geográfico e histórico, estende-se por longas gerações a diversas sociedades, a numerosas etnias ou nações, e atravessa continentes, línguas, ou mesmo religiões e regimes políticos — a cultura, em contrapartida, é local. Pode-se falar, por exemplo, em “civilização neolítica” para designar o vasto movimento que assinalou, há 8 mil anos, em diversos lugares da Europa central e do Ocidente mediterrâneo, a passagem da pedra talhada para a pedra polida, o surgimento da agricultura e da pecuária, com a domesticação das primeiras plantas e animais e, portanto, a sedentarização dos homens e o surgimento das primeiras aldeias — o que não impedia a existência local de técnicas, crenças, costumes e ritos diferentes, que constituíam diferentes culturas. No mesmo sentido, pode-se também falar em “cultura francesa” ou “brasileira”, mas diz-se “civilização ocidental” para designar um conjunto tão vasto quanto indeterminado no espaço e no tempo. Em última instância, uma civilização é algo tão amplo que nos referimos a ela no singular, a civilização, como se só houvesse uma. O bárbaro é então, evidentemente, simplesmente, aquele que está sem civilização ou fora da civilização. Evidentemente, deparamos aqui com um problema: a civilização é una ou múltipla? As duas posições parecem problemáticas. Se há apenas uma civilização, é necessariamente o conjunto a   que nós próprios pertencemos, e fora dela há apenas bárbaros de toda espécie, qualquer que seja a cultura a que pertençam. Em contrapartida, se há várias civilizações, torna-se difícil diferenciá-las das culturas e estabelecer entre elas uma hierarquia segundo uma escala que indique um suposto avanço da civilização. É então que se chega à segunda diferença entre cultura e civilização, que não é mais apenas quantitativa, mas é também qualitativa.

Com efeito, a oposição cultura/natureza é uma oposição axiologicamente neutra, ou seja, sem noção de valor. Podemos defender o valor da cultura contra o da natureza ou, inversamente, defender a superioridade da natureza sobre a cultura. Pode-se, por exemplo, julgar necessário defender o natural (o simples, o originário, o autêntico) contra o cultural (sofisticado demais, corrompido, desnaturado, depravado etc.). Ao contrário, quando se passa da oposição cultura/natureza para a oposição civilização/barbárie, o valor está, incontestavelmente, apenas do lado da civilização, e o bárbaro é sempre desvalorizado. Quando se quiser falar depreciativamente de uma forma de humanidade “próxima de um estado natural”, não se qualificará essa forma como natural, nem como selvagem ou primitiva, mas como bárbara. Inversamente, quando se quer valorizar uma cultura em detrimento de outra, ou de todas as outras, fala-se em civilização. Por isso, civilização não é cultura, mas é a cultura apenas no que esta supostamente tem de mais elevado, ou é a cultura supostamente mais elevada — qualquer que seja o aspecto que se queira valorizar: a socialização (primeiro sentido), o saber (segundo), as relações humanas em geral (terceiro). Bárbaro, portanto, é o indivíduo, a etnia, a sociedade, a cultura que parece estranha aos valores ao mesmo tempo mais elevados e mais evoluídos da humanidade. Em suma, a oposição entre civilização e barbárie é a oposição entre o Bem e o Mal.

Compreende-se assim como era fácil, para alguns, interpretar o 11 de setembro, ataque-surpresa de um movimento terrorista panislâmico, como um ataque da barbárie contra a civilização. O ataque parece inserir-se nos três sentidos da palavra bárbaro: massacre em massa (em tempo de paz) perpetrado em uma espécie de arcaico auto-sacrifício humano, animado por um ódio inexpiável pela Cidade e pela Modernidade, já que atingiu as torres-símbolo da Modernidade, na cidade que simboliza a Cidade, Nova York.

Mas, justamente, será legítimo esse uso, não apenas nesse caso, mas em geral? Temos o direito de falar em barbárie? Será possível unificar os três usos da palavra bárbaro? Estará a mesma ideia de civilização contida nos três casos?

EXISTE UMA LIGAÇÃO ENTRE OS TRÊS SENTIDOS?

Existiria um estágio pré-humano da humanidade — a barbárie — em que nenhum dos verdadeiros valores da humanidade fosse reconhecido? Ou melhor, existiria um processo único que se chamaria civilização, que faria com que, à medida que os costumes se tornassem mais polidos (primeiro sentido), a cultura se tornasse mais sábia e refinada (segundo sentido) e o homem, menos brutal, mais moral, mais “humano” (terceiro)?

Esta é, em certo sentido, a tese que anima O processo civilizador (1939), livro de Norbert Elias. Segundo Elias, o processo civilizador ocidental é um amplo movimento histórico que tem um motor secreto: o surgimento do Estado, ou melhor, a monopolização do poder por parte de uma autoridade única, em um dado território. Essa autoridade central torna-se a única a poder utilizar a violência; institui um exército e uma polícia, e autoriza-se a recolher impostos. Isso tem como consequência o desarmamento dos indivíduos, dos pequenos grupos, dos potentados locais — e, portanto, uma pacificação geral dos costumes. Há, porém, outras consequências, particularmente, uma diferenciação cada vez mais acirrada das funções sociais, com maior pressão da competitividade — e, portanto, um “crescimento contínuo do número de funções e de homens” dos quais cada indivíduo depende, o que quer que ele faça. Isso tem consequências sobretudo psicológicas, que estão na origem de outros dois aspectos daquilo que chamamos de civilização: repressão dos  impulsos espontâneos, domínio das emoções, ampliação do espaço mental, hábito de refletir sobre as causas passadas e as consequências futuras dos próprios atos. A vida torna-se menos perigosa, mas também menos apaixonada e menos agradável, pelo menos no que diz respeito à satisfação imediata dos apetites. Há um refúgio no sonho, nos livros, na imagem; a nobreza em via de curialização (corte) põe-se a ler romances de cavalaria, o burguês admirará no cinema a violência e a paixão do amor. As pulsões são satisfeitas de modo sublimado, na imaginação, mediante a adoção de uma atitude de espectador e ouvinte, deixando-se levar por sonhos e devaneios. Observe-se como os três sentidos do conceito de “civilização” para os quais chamei a atenção estão ligados na história da Europa ocidental: a humanização e a pacificação dos costumes (terceiro sentido) são acompanhadas pelo refinamento das relações sociais (polidez, cortesia, afabilidade, tato, distinção) (primeiro sentido) e pelo desenvolvimento de uma cultura do espírito e do lazer (literatura, artes liberais, contemplação estética) (segundo sentido).

Não se trata aqui de discutir a admirável construção de Elias acerca da história da Europa. Gostaria apenas de demonstrar, com alguns exemplos, quão equivocado seria pensar como interligados os três sentidos da barbárie que nos esforçamos por diferenciar.

Com efeito, é possível demonstrar que os comportamentos mais bárbaros, no terceiro sentido — ou seja, comportamentos selvagens e sanguinários —, são muitas vezes atos de homens, sociedades e culturas que são — ou se consideram — os mais civilizados no primeiro e no segundo sentidos. Essa já era, aliás, a tese de Rousseau em seu Discurso sobre as ciências e as artes: o refinamento dos modos da corte — por conseguinte, a civilização em seu primeiro sentido — e o avanço das ciências e das artes — ou seja, a civilização no segundo sentido —, longe de contribuírem para a depuração dos costumes — para a civilização no terceiro sentido —, colaboraram, isto sim, para sua perdição — ou seja, para a barbárie no terceiro sentido.

Vejamos alguns exemplos.

Os gregos consideravam legítima a escravidão dos persas, já que não eram gregos, ou seja, civilizados, e eram, portanto, bárbaros. Mas o que é mais bárbaro, desconhecer a retórica ou praticar a escravatura?

Outro exemplo, ainda mais significativo: o dos conquistadores.

Alguns povos que Colombo encontrou eram considerados bárbaros porque viviam nus e desconheciam a escrita. Outros, como os astecas ou maias, visivelmente pertenciam a grandes civilizações complexas e urbanizadas, mas eram tidos como bárbaros porque praticavam uma religião cujos ritos incluíam sacrifícios humanos em massa. Mas em proporções muito maiores, e em nome da civilização cristã, todos esses povos foram reduzidos à escravidão, torturados, massacrados, e sua cultura, seus templos e suas estátuas foram destruídos pelos espanhóis, que, encantados com o ouro, cometeram ali o primeiro grande genocídio conhecido da história moderna. Bartolomé de Las Casas já observava: os espanhóis dizem que eles são bárbaros, mas a barbárie dos espanhóis em relação a eles é muito maior. Quando finalmente reconheceram que os índios eram dotados de uma alma que os habilitava à civilização e à conversão cristã, não substituíram a mão-de-obra gratuita que representavam pelo tráfico de escravos trazidos da África negra? Foi então que começou o mais longo e racional empreendimento de barbárie da história moderna, o comércio triangular — em nome (novamente!) da “civilização” que era preciso levar para além-mar.

De fato, é muitas vezes em nome do fato de que se é (ou se pensa ser) portador da civilização (no primeiro sentido, o de refinamento, ou mesmo no segundo, das ciências e das artes) que se é transformado em bárbaro (no terceiro sentido): essa é a história de todas as formas de colonialismo, mas também do apartheid. O discurso do civilizador tem sempre esta estrutura: “Vamos levar a civilização (ou a verdadeira religião) aos povos bárbaros. Nossa superioridade nos autoriza a tratá-los como inferiores. Eles nos devem gratidão, já que contribuímos para arrancá-los de sua barbárie — ou da ignorância, ou do paganismo”. De modo geral, a noção de civilização serve tanto para valorizar a si mesmo como para justificar a sujeição de outros povos (ou sociedades). Essa ideologia apoia-se no mito paternalista: para tirar os povos de sua infância, ou seja, da barbárie primitiva, para trazê-los para a humanidade (ou seja, para a civilização), todos os meios são válidos. O problema é que esse empreendimento, dito “civilizador”, nunca beneficiou a não ser os próprios colonizadores: é essa a forma mais sutil, porém mais indiscutível, de barbárie (no terceiro sentido).

Talvez exista algo pior, uma barbárie maior ainda. Um povo, uma nação, um homem pode chegar ao cúmulo da barbárie dando mostras, por outro lado, de um refinamento ou de uma polidez extremos (sendo civilizados, no primeiro sentido), e de uma altíssima cultura (sendo civilizados no segundo sentido). É o caso da Alemanha nazista e das condições em que ocorreu um dos crimes mais bárbaros da história, o extermínio dos judeus e dos ciganos. Que esse genocídio tenha ocorrido no país de Goethe e Schiller, de Kant e Hegel, de Beethoven e Schubert, ou seja, algumas das sumidades da civilização ocidental, só acrescenta mais horror à barbárie. Havia, é claro, torturadores nazistas sanguinários e ignorantes. Mas esse não era o perfil predominante. Foi um crime desproporcional, mas cometido racionalmente, industrialmente, por burocratas frios e militares polidos.

Como observa, a respeito da polidez, André Comte-Sponville, no Pequeno tratado das grandes virtudes (p. 16):

A polidez torna o mau mais odioso porque nele denota uma educação sem a qual sua maldade seria de certo modo desculpável. O crápula polido é o contrário do bruto tosco, grosseiro, inculto, que é por certo assustador, mas cuja violência inata e limitada nós podemos ao menos explicar pela falta de cultura. O crápula polido não é uma fera, nem um selvagem, nem um bruto: pelo contrário, é civilizado, educado, e por isso indesculpável. Quem poderá dizer do malcriado agressivo se é mau ou simplesmente mal-educado? Já para o carrasco seleto, pelo contrário, não restam dúvidas. Assim como o sangue se vê melhor em luvas brancas, o horror mostra-se mais quando policiado. Diz-se que os nazistas, ou pelo menos alguns deles, primavam nesse papel. E compreende-se que parte da ignomínia alemã se deva a essa mescla de barbárie e civilização, de violência e civilidade, a essa crueldade ora polida, ora bestial, mas sempre cruel, e talvez mais culpada por ser polida, mais inumana por ser humana, correta, mais bárbara por ser civilizada. Numa criatura grosseira, podemos acusar o animal, a ignorância, a incultura, atribuir a falta à pilhagem de uma infância ou ao fracasso de uma sociedade. Num ser polido, não. A polidez é, nesse caso, como uma circunstância agravante, que acusa diretamente o homem, povo, ou indivíduo, e a sociedade, não dos seus fracassos, que poderiam ser outras tantas desculpas, mas dos seus êxitos.

Desse ponto de vista, é significativa a confrontação entre o horror suscitado pelo genocídio dos judeus na Alemanha nazista e o genocídio dos tútsis em Ruanda. Quaisquer que sejam as diferenças de duração e de contexto político, qualquer que seja a diferença no planejamento e na realização, esses dois genocídios não deixam de ser comparáveis em sua amplitude e sistematicidade: houve, nos dois casos, o desejo metódico de massacrar uma etnia e todos os indivíduos (homens, mulheres,  crianças) que  dela faziam  parte, pelo simples fato de dela fazerem parte. No entanto, esses dois genocídios ocupam posições opostas no imaginário ocidental contemporâneo. A barbárie dos hútus, em sua fúria repentina e no modo técnico de sua realização (com machetes), sempre nos parece — não obstante as claras determinações políticas, históricas e sociais — uma espécie de regressão a uma selvageria originária, uma fúria fulgurante de desumanidade, uma violência bruta e absoluta. A barbárie nazista, por seu caráter sistemático de longo prazo e por sua realização técnica (da organização hiper-racional das deportações ao funcionamento industrial das câmaras de gás), parece, ao contrário, ser a quintessência, e ao mesmo tempo a perversão, da ideia de civilização no que esta tem de mais elevado. Associada, num dos casos, à monstruosidade bestial, a barbárie, no outro, vincula-se a seu oposto, à própria civilização. De um lado, o homem parece desnaturado pela perda da civilização, um defeito o faz desumano e semelhante a um bruto; de outro, o homem parece desnaturado por excesso de civilização, desumano como que por excesso, e semelhante a um demônio. E o que torna o genocídio nazista ainda mais terrível, mais opaco, é que ele une as marcas mais tangíveis da monstruosidade e da selvageria com os sinais mais evidentes do saber e da racionalidade.

Mas esse paralelo entre os dois genocídios refuta, por outro lado, todas as explicações simplistas que se deram de um e de outro, e que por vezes ainda vigoram. Foi possível, outrora, acreditar que os grandes massacres genocidas do passado, como o extermínio de índios, eram uma espécie de retorno do homem a um estado de natureza selvagem, quando os princípios da civilização se dissolvem e as leis sociais não vigoram mais. O nazismo mandou para o espaço essa teoria. Ao desenvolver-se em um dos Estados mais “polidos” da história, no cerne da nação que, ao longo dos dois séculos anteriores, fora um dos mais indiscutíveis berços das artes, das ciências e das letras, deitou por terra essa visão simplista. Passou-se então para a explicação inversa. Assim, depois da guerra, a moda filosófica, tanto nos meios “heideggerianos” como em torno da Escola de Frankfurt, foi explicar o genocídio pelo excessivo desenvolvimento da técnica moderna, e relacioná-lo, consequentemente, à razão ocidental, de acordo com uma equação simplista: se o genocídio nazista precisou de tal tecnicidade e racionalidade, é porque era a consequência inelutável do desejo de poder contido na técnica e no projeto das Luzes. Depois de um outro genocídio, pode-se dizer que essa teoria também caducou. É possível, sem Kant nem Wagner, querer exterminar um povo inteiro. É possível matar com machetes 1 milhão de pessoas.

Vamos concluir esta primeira parte. Tínhamos perguntado: “O que é ser bárbaro?”. Podemos responder: a barbárie, a ideia simples e única de barbárie, oposta à ideia única e simples de civilização, não existe. Há várias formas de barbárie e, contrariando o preconceito evolucionista, elas não estão ligadas entre si. Não existe um eixo único no progresso da humanidade, que parta da selvageria primitiva e se encaminhe para a mais alta civilização. Na história, há, decerto, lugares ou momentos de alta civilização, ou seja, de grande desenvolvimento do pensamento, dos saberes e das artes, por vezes ligado a revoluções técnicas, muitas vezes vinculado a desenvolvimentos políticos e econômicos, por vezes relacionado também à centralização do poder e à extensão das cidades. Esses lugares, esses momentos de alta cultura são muitas vezes acompanhados de uma socialização refinada (o garfo ou os pauzinhos, a polidez ou as boas maneiras), mas isso não tem nada a ver com uma suavização das relações com outros povos, outras etnias, outras culturas. Algumas vezes, os povos menos civilizados nos sentidos precedentes, outras, os mais civilizados é que são mais bárbaros nesse sentido. Ora, a verdadeira “barbárie” não é exatamente essa? Não é o recurso ordinário ou sistemático a práticas ferozes, desumanas, cruéis? — seja na escala familiar das mutilações rituais ou na escala política dos extermínios em massa?

Há, portanto, e apesar de tudo, um sentido indiscutível ao se falar em barbárie: o terceiro, desde que seja dissociado dos outros dois e abstraído da ideologia simplista da civilização em que normalmente está imerso, segundo a qual a humanidade segue um avanço único ou obedece a uma só ideia.

QUEM É BÁRBARO?

Já começamos, portanto, a responder a nossa segunda pergunta: “Quem é bárbaro?”. Em todo caso, já eliminamos implicitamente a resposta mais imediata. Por desconfiança do outro, por medo do desconhecido, cada povo se sente espontaneamente o único representante possível da humanidade. “Nós somos a civilização, e os outros (os estrangeiros, nossos inferiores, nossos inimigos) são bárbaros.”

Com efeito, não existe uma ideia única de barbárie que reúna os três sentidos que identificamos.

O mais errado, porém, seria imaginar que certos povos, certas culturas ou certas religiões seriam, por natureza, “bárbaros” no terceiro sentido, ou seja, mais perigosos, agressivos ou intolerantes que os outros — de modo que deveríamos hoje nos preparar para uma guerra em defesa da civilização ameaçada por uma (ou mais) civilização ou civilizações ameaçadoras.

Tomemos o exemplo da religião (ou da civilização) islâmica. Primeiro, é preciso lembrar que ela foi um farol da civilização nos dois primeiros sentidos do termo. Enquanto nos séculos IX e X os monges, como representados por Umberto Eco em O nome da rosa, rasgavam os livros de magia, ou queimavam-nos, fazendo com que o Ocidente perdesse dois terços da civilização greco-romana, o islã conservou textos inteiros de filosofia (Aristóteles), medicina (Galiano) e matemática grega. Ele foi o primeiro veiculador da civilização antiga na Idade Média; é seu herdeiro, no mínimo tão legítimo quanto o Ocidente cristão. Na época, o islã tinha a ciência, a química, a álgebra. Assim, o sistema numérico decimal provém de uma região, hoje abandonada, do Uzbequistão, o Khwarzem. Os árabes introduziram o zero, que viera da Índia. Fizeram a síntese do álcool, que proibiram a si mesmos de tomar. Criaram o poder que permite transferir fundos de um país para outro, o cheque. Deram ao Ocidente, além da bússola, a vela dita “latina”, que é uma vela árabe.

Mas limitemo-nos no momento ao terceiro sentido. Ora, como observou A. Adler, e muitos outros antes dele, no islã, o grau de tolerância pode ser extremo, como se viu nos períodos de “apogeu” do islã, como na Bagdá abissínia do século IX, na Andaluzia omíada dos séculos IX-X, na Constantinopla das grandes sultãos otomanos, que notadamente acolheram os judeus expulsos da Espanha, ou na Índia dos primeiros mongóis, nos séculos XVI e XVII… E o islã e seu califado podem ser infinitamente mais tolerantes que o cristianismo e seu papado: nem a Europa carolíngia, nem a bizantina, nem a espanhola, com as fogueiras da Inquisição, podem se permitir julgar do alto o que foi o califado.

Poderão alegar que o Corão contém textos cuja aplicação se revela incompatível com a ideia de tolerância com outras religiões. É possível. Mas consideremos, por exemplo, o seguinte texto: “O senhor te dará essas nações diante de ti e as fará pasmar com grande pasmo, até que sejam destruídas. Também os seus reis te entregará na mão, para que desfaças os seus nomes de debaixo dos céus; nenhum homem parará diante de ti, até que os destruas”. Ora, esse texto não foi  tirado do Corão, e sim do Antigo Testamento (Deuteronômio,  7:23-4).

Poderão afirmar que não do ponto de vista da política externa, mas da interna — por exemplo, a respeito da condição da mulher  —, os preceitos do Corão são especialmente iníquos e tirânicos. Consideremos o seguinte texto:

O homem é a cabeça da mulher […] Toda mulher, porém, que ora ou profetiza com a cabeça sem véu desonra a sua própria cabeça, porque é como se a tivesse rapada. Portanto, se a mulher não usa véu, nesse caso, que rape o cabelo. Mas, se lhe é vergonhoso o tosquiar-se ou rapar-se, cumpre-lhe usar véu. Porque, na verdade, o homem não deve cobrir a cabeça, por ser ele imagem e glória de Deus, mas a mulher é glória do homem. Porque o homem não foi feito da mulher, e sim a mulher, do homem. Porque também o homem não foi criado por causa da mulher, e sim a mulher, por causa do homem. Portanto, deve a mulher […] trazer véu na cabeça, como sinal de autoridade.

Ora, esse texto não foi tirado do Corão, mas do Novo Testamento, é um texto de são Paulo, extraído da Primeira Epístola aos Coríntios. Portanto, o islã não é, por natureza, mais intolerante que o cristianismo ou o judaísmo. Toda religião tem sua história, feita de altos e baixos, de momentos de abertura para o outro e de fechamento sobre si mesma.

Mas, se é assim, já que, como vimos, é difícil vincular as práticas bárbaras a um nível supostamente inferior de civilização ou cultura, já que, por outro lado, nenhuma religião ou crença conduz à barbárie ou é uma proteção contra ela, é tentador, então, dar um passo adiante e dizer simplesmente: “Não existe barbárie”, trata-se de uma ilusão de óptica; ou, como Montaigne: “Cada um chama de barbárie o que não é do seu próprio uso” (Ensaios, I, 30). Hoje, essa ideia é sustentada com base no conceito “etnográfico” de cultura: não existe barbárie, todo povo tem sua cultura e todas as culturas se equivalem. Essa é a posição do relativismo cultural. Eu gostaria de mostrar que tal posição é tão insustentável quanto a outra, que defende a ideia de uma civilização única e superior, e de culturas naturalmente inferiores e bárbaras.

Mas vamos dar a palavra, primeiro, aos relativistas. Eles parecem estar com a razão. Como, com base em quê, perguntam eles, declarar que uma cultura é inferior a outra? A ideia de “barbárie” parece ter sido inventada por culturas que se acham superiores para assim tentar justificar o poder que podem exercer sobre as outras. Portanto, não existe barbárie, mas apenas homens que acreditam na barbárie, ou afirmam que os outros são bárbaros para tentar utilizá-los em proveito próprio. Tomemos um exemplo, o de Lévi-Strauss: enquanto os espanhóis realizavam diversas experiências para verificar se os índios possuíam uma alma que pudesse ser salva e conduzida à vida eterna, os índios, nas Antilhas, submergiam os brancos prisioneiros para verificar se o cadáver estaria ou não sujeito à putrefação, já que eles se achavam imortais. Quem é mais bárbaro? Aquele que, como o homem branco, se pergunta se o índio é mesmo um ser humano e não um animal, ou aquele que, como o índio, se pergunta se o branco é apenas um homem, ou talvez um deus? O mais bárbaro não será justamente aquele que acredita na barbárie? Percebe-se que o suposto humanismo, a vocação pretensamente universalista do Ocidente não são apenas máscaras do imperialismo. Além disso, a propagação planetária da civilização ocidental opõe-se à variedade das condições históricas e geográficas em que vivem os grupos humanos. Há que reconhecer o direito que estes têm de conservar sua cultura de origem e proclamar seu igual valor. Em suma, as verdadeiras Luzes não consistem em opor a civilização à barbárie, mas em proclamar a palavra de ordem: “Cada um com a sua cultura — não existe barbárie”.

Lévi-Strauss oferece outro exemplo: o da antropofagia, ou seja, uma das práticas humanas que nos parecem bárbaras por excelência.

Lembremos a magnífica análise proposta pelo autor de Tristes trópicos (capítulo XXXVIII). Nós a julgamos bárbara porque não a compreendemos: “A ingestão de uma parcela do corpo de um antepassado ou de um fragmento do cadáver de um inimigo permite a incorporação de suas virtudes ou, ainda, a neutralização do seu poder […]”. Se retornamos à razão de ser dessa antropofagia ritual, se compreendemos interiormente o ponto de vista das sociedades que a praticam, compreendemos que elas “vêem na absorção de certos indivíduos, detentores de forças temíveis, o único meio de neutralizar essas forças, ou até de beneficiar-se delas”. Lévi-Strauss faz então uma comparação com nossos próprios costumes judiciários, que consistem, por sua vez, em encerrar em prisões os indivíduos que transgridem as leis.

Estudando-as de perto, ficaríamos tentados a opor dois tipos de sociedade: as que praticam a antropofagia, ou seja, que vêem na absorção de certos indivíduos, detentores de forças temíveis, o único meio de neutralizar essas forças, e até de beneficiar-se delas; e aquelas que, como a nossa,  adotam o que se poderia chamar de antropemia  (do grego émein, vomitar); diante do mesmo problema, optaram pela solução inversa, que consiste em expulsar esses seres temíveis para fora do corpo social, mantendo-os temporária ou definitivamente isolados, sem contato com a humanidade, em estabelecimentos destinados a esse uso. Na maioria das sociedades que chamamos de primitivas, esse costume inspiraria um horror profundo; ele nos marcaria, aos olhos delas, com a mesma barbárie que estaríamos tentados a imputar-lhes por causa de seus costumes simétricos.

Basta, portanto, mudar de ponto de vista para inverter os julgamentos: o que, visto do lado de fora de uma sociedade, parece bárbaro (a antropofagia para os que praticam a prisão, a prisão para os que recorrem à antropofagia ritual) parece humano e civilizado quando visto do lado de dentro (eliminar os indivíduos nocivos) — e vice-versa. Essa inversão dos pontos de vista é a estratégia clássica do relativismo.

A grande lição do relativismo é uma lição espinosista: antes de criticar, de denegrir, é preciso tentar compreender. Pois bem, façamos o mesmo: antes de criticar o relativismo, tentemos compreender a que objetivos ele obedece. O relativismo cultural responde, em Lévi-Strauss, a uma tripla necessidade. Primeiro, é uma posição ético-política contra os males do expansionismo ocidental, notadamente colonialista, praticados em nome de um ideal “civilizador”. É também, segundo ele, uma necessidade metodológica: com efeito, o etnólogo só pode alcançar resultados científicos se suspender a priori qualquer julgamento moral sobre o que parece chocante ou “bárbaro” nas populações que estuda. Finalmente, para o teórico do social que ele é, trata-se de uma questão epistemológica. De fato, uma das grandes teses antropológicas de Lévi-Strauss é que onde houver o humano haverá o social; toda sociedade se constrói adaptando-se, à sua maneira singular, às condições naturais: é a oposição universal, mas sempre diferente, entre “natureza” e “cultura”. Em Raça e história, Lévi-Strauss ilustra e desenvolve magistralmente essa tese, comparando as diversas culturas do ponto de vista de seu modo de adaptação à natureza e, mais genericamente, do ideal humano que nele se privilegia. Em outros termos, toda cultura tem uma estrutura interna, cujos elementos devem todos se relacionar entre si para ser compreendidos. “Estando todo modelo cultural circunscrito à sua área de validade, nenhum deles é, por direito  universal  ou absoluto, superior  aos outros.” É a tese oposta ao evolucionismo (tirado de Morgan), que explica as sociedades por sua história mais do que por sua estrutura, e considera todas as sociedades como momentos sucessivos de um mesmo devir humano. A contrapartida do estruturalismo straussiano é, portanto, o igual valor de todas as culturas, as quais são todas expressões possíveis do humano. Não pode haver sociedade bárbara.

Conforme lembra Lévi-Strauss, o paradoxo do bárbaro, com efeito, é o seguinte (Antropologia estrutural, II): “Essa atitude mental, em nome da qual se relegam os ‘selvagens’ (ou os ‘bárbaros’) para fora da humanidade, é justamente a atitude mais marcante e mais distintiva desses mesmos selvagens […] A tal ponto que um bom número de populações ditas primitivas designam a si próprias com um nome que significa ‘os homens’ (ou, às vezes […] os bons, os excelentes, os completos)”. “O bárbaro, portanto, é antes de tudo o homem que acredita na barbárie.”

Para Lévi-Strauss, portanto, só existem duas atitudes mentais possíveis: o etnocentrismo, do Ocidente ou do selvagem, que defende o valor absoluto de sua própria cultura e acredita, portanto, na barbárie; e o relativismo, que reconhece um valor apenas relativo e igual em todas as culturas, e nega a ideia de barbárie.

O relativismo cultural parece possuir incontestáveis vantagens morais, políticas e intelectuais. É desnecessário insistir em suas virtudes políticas e morais. Ele parece ser consequência natural do humanismo das Luzes. Proclamar o igual valor de todas as culturas parece ser outro modo de proclamar a igual dignidade de todos os homens, a melhor proteção contra a uniformização e o imperialismo culturais. A imensa virtude intelectual do relativismo é que ele é o melhor remédio para o etnocentrismo ingênuo. Mas é notório um imenso inconveniente intelectual do relativismo — que é a contrapartida de sua vantagem: para ele, toda prática, todo costume, toda crença parece inseparável de uma cultura, e toda cultura assemelha-se a uma espécie de totalidade fechada, sem janelas para as outras e inacessível ao julgamento tanto interno como externo. Vamos verificar se esse inconveniente intelectual não acarreta outros inconvenientes, morais e políticos. E perguntar-nos se existe uma terceira via entre o etnocentrismo e o relativismo.

Acredito que podemos submeter o relativismo cultural a dois grandes tipos de crítica: uma crítica moral e uma crítica lógica.

  1. Crítica moral: pode-se observar, primeiramente, que o relativismo cultural conduz necessariamente ao relativismo moral. Tudo se equivale. Para o relativista, não existe valor universal, nem prática universalmente válida ou condenável, nem costume, nem uso — existem apenas culturas específicas. Quem quer que fale (ou pense falar) em nome do universal estará sempre falando em nome de uma cultura específica. De fato, para o relativista, não se pode escapar à própria cultura, tampouco à própria época. Não se pode, portanto, criticar nenhuma cultura — o que é decerto uma posição de prudência metodológica contra qualquer forma de etnocentrismo —, mas também não se podem sequer criticar um uso ou uma crença específicos, ou um costume, qualquer que seja, ou um valor pertencente a outra cultura, já que todos justamente pertencem a uma cultura! E já que, no absoluto, toda cultura é tão respeitável quanto outra. Nada é universal, tudo o que é humano é cultura, e toda cultura é específica: aquilo em cujo nome se critica — que não é universalmente válido ou correto — e aquilo que se critica — que não é universalmente condenável ou injusto. (Observemos, entre parênteses, que essa posição deixa todo o mundo numa posição muito mais indulgente e compreensiva em relação aos valores das outras culturas do que em relação aos valores vigentes em sua própria tribo, já que nenhuma sociedade, por onipotente que seja no modo de fusão de seus indivíduos, deixa de garantir-lhes uma margem, por menor que seja, para a crítica, a derrisão, a dúvida, a desconfiança, a rebelião ou a revolta.) Mas, afinal, como criticar a condição da mulher entre os talibãs, como criticar o tráfico de crianças praticado na Arábia Saudita ou nas Filipinas, a tortura como forma sistemática de interrogatório em certos sistemas judiciários, a escravidão intertribal ainda praticada em certos países africanos? Em nome do que lutar contra a excisão de milhões de meninas na África negra, contra o suplício de mulheres adúlteras na Nigéria, contra o suicídio forçado das viúvas na Índia — se “tudo é cultura” e se todas as culturas se equivalem? Afinal, não é o “ponto” específico dessas culturas considerar a mulher como objeto, a criança como mercadoria, um possuído pelo demônio como possível supliciado, um vencido na guerra como mão-de-obra servil?

Não é um costume tradicional, e por isso mesmo respeitável, mutilar meninas ou forçar as viúvas a imolar-se? Irão alegar que não há motivo para que nós condenemos a condição das mulheres no Afeganistão, já que elas a aceitam — já que essa ordem lhes parece tão natural quanto o movimento do sol? Mas, vai saber! Uma cultura, uma sociedade será um todo tão homogêneo ao ponto de tampouco haver, dentro dela e aos olhos de alguns de seus próprios membros, contradições, valores contestados, práticas contestáveis, usos revoltantes, exploração de uns pelos outros? Será que, também para os escravos negros, a ordem que os sujeitava aos senhores brancos não tinha se tornado natural?

É necessário, portanto, recorrer a um universal moral, acima de qualquer cultura específica, e rejeitar como práticas bárbaras o tráfico de crianças, a escravidão, a excisão, os sacrifícios humanos. Pode-se alegar que esse universal (um apelo à ideia, supostamente universal, dos “direitos humanos”, por exemplo) não é realmente universal, já que ele mesmo representa um “ponto” específico, surgido em sociedades específicas, num momento específico (as sociedades ocidentais do final do século XVIII), e que essas sociedades não têm o monopólio da moral, nem, sobretudo, o direito de dar lições aos outros, tendo em vista sua própria história e as barbáries das quais elas próprias se fizeram culpadas. No entanto, temos de supor que, qualquer que seja seu local de nascimento e sua expressão específica, existem valores humanos universalizáveis: do contrário, cada cultura permanece encerrada em sua ideia específica de humanidade, e ninguém pode criticar nenhuma prática, nenhum uso, nenhum costume de outra cultura, qualquer que seja ela — inclusive, portanto, a sua própria.

Resta, então, saber: supondo que exista um universal verdadeiro, e não falso — ou seja, um ponto específico criado por uma cultura para submeter todas as outras e reduzi-las à sua própria uniformidade —, como reconhecê-lo? e quem pode enunciá-lo? E, sobretudo, como fazer com que esse universal de civilização seja compatível com a diversidade das culturas e que ele não se imponha ao preço da diversidade destas, nem em benefício de um hegemonismo cultural? É esse ponto difícil que a segunda crítica do relativismo deveria nos permitir resolver.

  1. Crítica lógica: existe uma crítica “lógica” ao relativismo que remonta a Platão e Aristóteles. Protágoras defendia que “o homem é a medida de todas as coisas”: isso equivalia a defender que cada homem, ou cada cidade, é em última instância juiz do que lhe parece verdadeiro — ou justo, ou bom. Contra esse relativismo epistemológico, Platão observava, no Teeteto (169 d-171 e), que o relativista é obrigado a reconhecer, em nome de sua própria teoria, o igual valor da teoria contrária, ou seja, a teoria que reconhece haver valores absolutos e universais; em contrapartida, os que acreditam na existência de valores absolutos não têm a obrigação, dados seus princípios, de reconhecer o valor do relativismo, já que acreditam apenas em seus próprios valores. Podemos tentar adaptar essa crítica platônica ao relativismo cultural e traduzi-la nos termos da oposição civilização/barbárie.

O relativista, aquele que acredita que não existem costumes, práticas ou culturas bárbaras, e que todas as culturas se equivalem, fica preso num dilema:

Primeira possibilidade: ele abre uma exceção para si mesmo e para a sua própria posição relativista, e declara que ela é a única não relativizável e absoluta. Entra, portanto, em contradição consigo mesmo, já que existe um discurso universalizável, aquele que admite o igual valor de todos os outros. Existem, claro, discursos inferiores, que são os discursos etnocêntricos de todas as tribos. Existe também, por conseguinte, uma posição superior, a que não reconhece nenhum valor absoluto. Essa posição superior é a dele próprio. Ele não só entra em contradição consigo mesmo como também entra em contradição com todos os outros, ou seja, com todas as culturas que, por seu lado, só dão valor a seus próprios valores — ou seja, só reconhecem a existência de seus próprios deuses. Ele, o relativista, e apenas ele, não pertencerá a nenhuma tribo, ou melhor, pertencerá a uma espécie de tribo superior, que não crê nos deuses de nenhuma tribo.

Segunda possibilidade: ele reconhece que sua própria posição, a posição relativista, é também uma posição relativizável. Que representa, no fundo, o “ponto” específico de uma cultura específica, a sua. Que é, por exemplo, uma invenção do Ocidente. “Ponto” que nenhuma outra cultura reconhece, nem deveria reconhecer, já que ele não quer impor sua própria cultura “ocidental” aos outros. Ele não reconhece, para si mesmo, o direito de impor sua posição relativista às outras culturas, já que isso significaria uma pretensão a absolutizar seus próprios valores; mas, em compensação, ele deve reconhecer, para as outras culturas, o dever de impor seus valores às outras, inclusive à sua, já que o “ponto” delas é querer acreditar em seus próprios deuses e (por exemplo) impô-los à força a todas as outras. Como ele poderia, sendo um relativista consequente que reconhece a igualdade de todos os valores específicos de todas as culturas, se opor a esse “ponto” específico que consiste, por exemplo, para uma dada cultura, em acreditar que seus deuses são universalmente válidos e em querer, por conseguinte, impô-los a todo o mundo?

Essa segunda posição tem o mérito aparente da coerência. Esse relativista é um relativista ao extremo, ou seja, é relativista consigo mesmo, e não com os outros, já que os outros não o são. Porém (além das dificuldades morais que já mencionamos), ele depara com uma séria dificuldade intelectual. É que essa é, sem tirar nem pôr, a posição de seus adversários mais ferozes, os fanáticos, por exemplo, da Inquisição, ou da Al-Qaeda. Eles acreditam que seus valores e seus deuses são os únicos possíveis, não só para eles como (já que não são relativistas) para todo o mundo. De acordo com o fanático, o Ocidente (ou aquilo que ele julga ser uma cultura específica que ele chama de Ocidente) é o inimigo, justamente por ser relativista. De acordo com o fanático, o relativismo é uma criação desiludida de uma civilização decadente que perdeu todo o sentido do absoluto, que não acredita mais em nenhum valor, já que para ela tudo se equivale, que perdeu até seus próprios deuses, já que, para ela, todos os deuses se equivalem. O relativismo não é, portanto, para ele, uma posição universalizável que permitiria a coexistência de todas as culturas, quaisquer que fossem, de todos os valores que se querem absolutos, de todos os deuses que se querem únicos, e sim o “ponto” específico de uma cultura específica, e é justamente isso que ele combate nessa cultura. O inimigo principal, para o fanático, não é o outro deus absoluto da outra tribo, é a relativização de todos os deuses — e é isso o que ele chama, portanto, de Ocidente, na medida em que este lhe parece relativista.

Quantas dificuldades para o relativista, ou seja, para aquele que não acredita na barbárie!

E, também, quantas dificuldades em não ser relativista — ou seja, acreditar na barbárie e na civilização e, portanto, na superioridade de certas culturas e, portanto, na de sua própria!

Lembremos as duas dificuldades principais do relativista:

1. Ele encerra todo indivíduo, toda prática, todo costume dentro de uma cultura, e também encerra cada cultura em sua especificidade, já que nega a existência de valores universais (como a humanidade ou “a” civilização em geral).

2. Se for coerente, ele não poderá criticar, e menos ainda lutar contra as práticas consideradas “bárbaras” de uma cultura qualquer, já que todas as culturas se equivalem e todas têm o direito de existir: ele não pode fazê-lo nem em nome de sua própria cultura específica, que é tão específica como qualquer outra, nem em nome de um universal moral, já que este não existe.

Mas lembremos também as duas principais dificuldades da noção de “barbárie”, mesmo limitada ao sentido restrito que afinal lhe atribuímos. Admitir que existe barbárie significa, de fato, admitir a existência de civilização e, portanto, de culturas superiores e inferiores. Mas quem irá decidir isso, e em nome do quê?

Se é uma cultura específica que decide, só pode ser a cultura dominante em dado momento, por exemplo, o que hoje se denomina, com uma palavra tão vaga quanto discutível, o Ocidente. Como evitar, então, o hegemonismo cultural do Ocidente?

Se não for em nome dos valores específicos de uma cultura específica, só pode ser em nome de valores universais. Supondo que se saiba reconhecer o universal verdadeiro, já que ele deve ser imposto a todo o mundo, como evitar a uniformização generalizada e, portanto, o desaparecimento de todas as culturas específicas, regionais, dominadas?

Como sair desses dois tipos de dificuldade? Será possível escapar à opção entre um relativismo incoerente e um etnocentrismo uniformizador e expansionista?

Parece-me que existe um meio de resolver essas duas últimas dificuldades, sem tornar a cair nas dificuldades próprias do relativismo.

Observemos, primeiro, que todo o raciocínio anterior sofre de um grave defeito. Coloca no mesmo plano práticas, costumes e culturas específicas, de um lado, e, de outro, a condição geral de sua existência ou coexistência. Ora, a “civilização” não é uma cultura específica, é a forma que permite a existência das culturas humanas em sua diversidade e, por conseguinte, em sua coexistência. Para dizê-lo negativamente: a barbárie não é uma prática humana, um costume humano, e tampouco uma cultura humana específica, é uma prática, um costume, uma cultura que se define pelo fato de negar tal ou tal forma específica de humanidade. Façamos uma comparação: a liberdade formal que a democracia oferece não é, em si, uma opinião pública igual às outras, não tem nenhum conteúdo específico, é a possibilidade de existência livre de todas as opiniões políticas e, por conseguinte, a condição da coexistência destas. Aceitar a igualdade formal das opiniões e seu igual direito à existência e à coexistência não significa considerar que todas elas são igualmente falsas ou verdadeiras, justas ou injustas, nem que não se deva lutar para fazer triunfar a sua própria opinião, no terreno formal da democracia. Do mesmo modo, a tolerância não é uma crença qualquer, é a possibilidade puramente formal da existência da diversidade das crenças, que, estas sim, têm um conteúdo específico, que pode até se pretender absoluto. Eu não renuncio ao valor de minha opinião política específica por ser democrata ou por aceitar que existam outras; tampouco renuncio à minha fé, ou no valor absoluto de minha fé em meu Deus, por aceitar que possa haver outras crenças ou fés diferentes. Acho apenas que elas são falsas, ou ilusórias, o que é totalmente diferente. É o fanático que considera a “tolerância” uma espécie de crença particular, quando ela é apenas a condição formal de sua existência.  E  o  relativista,  como  vimos,  é  vítima  da  mesma confusão quando se quer coerente. Quando coloca a simples possibilidade de existência de diversas culturas no mesmo patamar e no mesmo nível nformal que todas as culturas específicas, está raciocinando de modo idêntico ao fanático: renunciando ao universal. Admitir a multiplici-dade e o igual direito a priori de todas as culturas, ou pelo menos de uma grande variedade de culturas diferentes, é uma posição que não pode, nem de fato, nem de direito, ser parte de uma cultura específica como outro discurso qualquer, e só pode ser parte de um discurso universal. O universal de que se trata, porém, não é o de uma cultura específica, é um universal que é também puramente formal.

Com efeito, o que vem a ser uma cultura “bárbara” (e, portanto, uma cultura “civilizada”), de acordo com nossa definição? Chamaremos de bárbara toda cultura que não disponha, em seu próprio cerne, de estruturas que lhe permitam admitir, assimilar ou reconhecer outra cultura — ou seja, a simples possibilidade de outra forma de humanidade. Também chamaremos de bárbaro, consequentemente, todo costume ou toda prática que, qualquer que seja a cultura específica a que pertença, tem como finalidade ou efeito negar uma forma específica de existência humana. É o que nos permite compreender, a partir de agora, a ligação entre esse sentido “formal” da barbárie e o conteúdo que lhe demos inicialmente, o terceiro sentido, o único que mantivemos. Dizíamos ser bárbaro o recurso comum ou sistemático a práticas cruéis — quer na escala familiar das mutilações rituais, quer na escala social dos extermínios em massa. Em suma, é a redução da idéia de humanidade à unidade de uma essência, a impossibilidade de suportar a humanidade em sua diversidade. O bárbaro é aquele que acredita que ser homem é ser como ele, enquanto ser homem é sempre poder ser outro, é poder ser indiano, judeu, cigano, tútsi, mulher etc. Daí que se rejeitem, se coloquem fora da humanidade, os pressupostos “bárbaros” e as práticas, também bárbaras, que decorrem dessa rejeição: pois só se pode tratar de modo desumano o que não se insere na essência do humano. Em compensação, chamaremos de “civilizações” os momentos históricos, os espaços geográficos, as áreas culturais que permitem a coexistência, tanto de fato como de direito, de vários povos, sociedades ou culturas — ou que permitem até que se interpenetrem e se compreendam reciprocamente. Uma civilização é, portanto, a simples possibilidade formal da diversidade das culturas. Consequentemente, diremos que uma cultura específica é “civilizada” quando, independentemente da riqueza ou pobreza de sua cultura científica, de seu nível de desenvolvimento técnico, ou da sofisticação de seus costumes, ela tolera em seu seio uma diversidade de crenças ou práticas (excluindo-se, evidentemente, práticas bárbaras). Uma cultura civilizada é sempre virtualmente mestiça. Em suma, uma civilização é enriquecida por uma pluralidade de culturas, enquanto uma cultura é bárbara quando é apenas ela mesma, só pode ser ela mesma, permanece centrada e, portanto, fechada sobre si mesma.

Essa definição deriva da palavra de ordem relativista, levando-a a sério e às últimas conseqüências. São bárbaros aqueles que acreditam na barbárie, mas não no sentido de acreditarem que haja culturas inferiores (isso seria paradoxal, pois, como vimos, existem culturas inferiores, bárbaras), e sim no sentido de acreditarem que sua própria cultura é a única forma de humanidade possível. O bárbaro é aquele que é incapaz de pensar tanto o uno como o múltiplo — já que os dois estão ligados. Incapaz de pensar tanto a universalidade humana como a diversidade indefinida das culturas. Ele só consegue pensar em termos dicotômicos, o Bem e o Mal, o próprio e o estrangeiro, nós e eles, mesmo que os chamem de “civilização” (aqui, eu, meus deuses) e “barbárie” (lá, o outro, o inimigo de Deus, o Grande Satã). Sim, existe barbárie, e não porque existem povos ou culturas que sejam bárbaros por natureza, mas porque existe um modo de pensar que é incapaz do uno e do múltiplo. E existem, por conseguinte, práticas bárbaras, às vezes povos, ou sociedades, religiões, movimentos políticos que caem na barbárie. Sim, definitivamente, o verdadeiro bárbaro é aquele que acredita na barbárie do Outro. E aqueles que reconhecem que o homem se diz em vários sentidos podem se dizer civilizados.

Nossas  dificuldades  anteriores  estão,  portanto,  resolvidas. De fato, não há contradição alguma em reconhecer na ideia de civilização a forma mais elevada da humanidade, a única compatível com a diversidade das culturas. Não há, sobretudo, nenhum risco de hegemonismo cultural nem de uniformização. Toda  uniformização  está excluída, na medida em que a civilização constitui a própria forma da multiplicidade. E todo risco de hegemonismo também está excluído, na medida em que ao longo das épocas, ou mesmo, às vezes, num mesmo momento, pode acontecer de culturas bem diversas serem portadoras dessa ideia de civilização, como já ocorreu de culturas bem diversas terem sido portadoras de barbárie. A Andaluzia do século X, onde coexistiam as culturas judaica, muçulmana e cristã, era seguramente mais civilizada do que na época dos reis católicos, depois da Reconquista, quando judeus e árabes foram expulsos da Espanha — em 1492, justamente no ano em que Colombo descobria a América, para a desgraça dos povos que nela se encontravam. A Europa do século XX pode ter sido portadora da mesma ideia de “civilização”, e em princípio ainda é, o que não a impediu de ser cenário, ou até agente, dos genocídios mais bárbaros da história. Por isso o ataque de 11 de setembro é de fato um ataque bárbaro, e por ser bárbaro é que exige uma resposta civilizada. É bárbaro tanto na forma como no fundo, não por ser organizado por uma religião ou cultura bárbara, mas por ser organizado em nome da idéia do Bem absoluto. E ele exige uma resposta civilizada, ou seja, uma luta sem hipocrisia, não em nome da idéia do Bem ou da civilização, mas em nome da luta pela diversidade da humanidade, da qual todas as civilizações são garantia. Portanto, existem, sim, bárbaros e civilizados, práticas ou culturas bárbaras, práticas ou culturas civilizadas, mesmo que toda cultura, qualquer que seja, possa ser exemplo de civilização ou mergulhar na barbárie.

Tradução de Dorothée de Bruchard

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