2012

Que preguiça! O fetiche do trabalho

por Francisco de Oliveira

Resumo

Marx é geralmente tido como o teórico do trabalho, e aí reside um engano, que, se não deturpa seu programa, desvia-o ligeiramente, pois, na verdade, ele é o teórico da mercadoria e do capital. Mesmo assim, é possível afirmar que Marx tomou de Ricardo a questão do trabalho como fundamento do capitalismo, fazendo o que este não fez, isto é, levá-lo às últimas consequências.

Marx pode até ser considerado um autor “bíblico”, pois, segundo a tradição do Gênesis, a

expulsão dos pais míticos do Paraíso condena-os ao trabalho, antinatural. Ora, o mesmo vale para o comum dos mortais, a começar pela violência que o arranca da cama.

Desfetichizar o trabalho é, pois, a primeira tarefa para quem quer se furtar à maldição.

Mas a libertação da maldição será sempre precária, se não for considerada um problema de classe, pois, do contrário, será entendida como mera preguiça, indisposição, falta de vontade, indolência, indisciplina etc. Isso porque as necessidades permanecerão e somente poderão ser satisfeitas pelo trabalho transformado em mercadoria, de modo que o ciclo repete-se, naturaliza-se, e a ninguém ocorre perguntar, ao saltar da cama, se é realmente preciso trabalhar. Assim, somente quando os próprios trabalhadores controlarem os meios de produção estará aberta a trilha que os levará à liberdade.

Por outro lado, há os exploradores do trabalhado. Estes mesmos que também estão condenados, como no suplício de Tântalo, a nunca descansar, uma vez que, segundo a velha fórmula do empresário, é preciso exercer a constante vigilância sobre os negócios, já que o capital não trabalha sozinho – ou é autômato, como parecem sugerir as novas formas técnicas do trabalho através dos meios eletrônicos. O medo os move a não tirar os olhos de cima dos trabalhadores. É preciso, entretanto, não dramatizar, já que esse controle, esse não descansar, apresenta formas bastante diversas das que acodem os produtores diretos. Se o empresário ou seu preposto não pode ficar dormindo o dia inteiro, a posse dos produtos do trabalho dá-lhe o direito de usufruir, de outras formas, desse tempo que é roubado dos trabalhadores. Trata-se de um mundo de insones, tanto para estes, que são obrigados a estar permanentemente ativos, despertos, quanto para os capitalistas, que não dormem com medo de seus subordinados.


Este ciclo, Elogio à Preguiça, que os nossos Adauto Novaes e Hermano Taruma programaram e em boa parte já realizaram, parece ter sido pensado de propósito para desfetichizar o trabalho. Pelo menos para os que adotam o programa marxista de pesquisa e investigação sobre a sociedade, especialmente sobre o capitalismo; é como se a mosca caísse no mel.

Marx é tido geralmente como o teórico do trabalho, e aí reside um engano, que não deturpa inteiramente o programa do teórico de Triers, mas o desvia ligeiramente. Marx, na verdade, é o teórico da mercadoria e do capital.

Esclareçamo-nos: Marx tomou de Ricardo a questão do trabalho como central no capitalismo; Smith não, que se dedicou sobretudo a conceituar e conceber a troca e a competição como ós fundamentos do sistema. Mas Ricardo não levou às últimas consequências sua descoberta, e Marx aproveitou para explorar todas as consequências da descoberta ricardiana.

Quando os dois incríveis cavalheiros da cultura me propuseram o tema, fiquei embaraçado: como, logo eu, adepto de um campo teórico que parece repousar tudo no trabalho, sublinho parece, iria elogiar a preguiça? Vejam como o fetiche nos submete. Aí, salvou-me uma tirinha do Bob Thaves, no Estadão, que num resumo magnífico deu-me a chave para chegar ao fetiche: dizia o personagem que havia trabalhado a vida toda e sua própria vida somente tinha piorado. Magnífica resolução! Por isso, ia deixar de trabalhar. Em vez de um elogio à preguiça, nos termos, por exemplo, do Paul Lafargue, o personagem de humor simplesmente negava a centralidade do trabalho! Mais dialético que isso, desconheço, e tal como afirmei naquele texto apenas introdutório, até mesmo Marx morreria de inveja do personagem.

Marx pode até ser considerado um autor “bíblico”, pois, segundo a tradição mais comum do Gênesis, a expulsão do Paraíso dos nossos pais míticos, por terem provado da árvore do bem e do mal, é realizada como uma condenação ao trabalho. Tal como sugere essa visão tradicional da expulsão do Paraíso, o trabalho não podia ter nada de bom em comparação com a riqueza paradisíaca. O mesmo vale para o comum dos mortais: a obrigação de trabalhar é antinatural e o sabem todos que, de alguma maneira, experimentam a violência de sair da cama; e os que trabalham à noite?

Desfetichizar o trabalho é a primeira tarefa para nos livrarmos da “maldição”; recusar sua naturalidade. Mas a libertação da maldição será sempre precária, se não estiver inscrita como um problema de classe: será apenas preguiça, indisposição, falta de vontade, indolência, indisciplina etc. Porque as necessidades permanecerão e somente poderão ser satisfeitas pelo trabalho transformado em mercadoria; e o ciclo se repete, se naturaliza e a ninguém ocorre se perguntar, ao saltar da cama: preciso mesmo trabalhar? Assim, somente quando os próprios trabalhadores controlarem os meios de produção que os obrigam a trabalhar, estará aberta a trilha que leva à supressão do trabalho.

Mas existe o outro lado: o dos que exploram o trabalhador. Mesmo estes estão condenados, como no suplício de Tântalo, a não descansar nunca: ou diretamente, na velha fórmula do empresário, ou nas novas fórmulas através de seus prepostos, o dono do produto do trabalho tem que exercer a constante vigilância sobre os trabalhadores. Pois o capital não trabalha sozinho, não é um autômato, como parecem sugerir as novas formas técnicas do trabalho através dos meios eletrônicos. O medo os move a não tirar os olhos de cima dos trabalhadores. Mas não dramatizemos: esse controle, esse não descansar, tem formas bastante diversas daquelas que acodem aos produtores diretos. Se o empresário ou seu preposto não pode ficar dormindo o dia inteiro, a posse dos produtos do trabalho lhe dá o direito de usufruir, de outras formas, esse tempo que é roubado dos trabalhadores. Trata-se de um mundo de insones: os trabalhadores, que são obrigados a estar permanentemente ativos, despertos, e os capitalistas, que não dormem com medo dos que trabalham.

Voltamos a Bob Thaves e sua tirinha no Estadão: trabalhar só piora as coisas.

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