1998

Profecias e o tempo do fim

por Marilena Chaui

Resumo

As Grandes Navegações foram promessa de uma nova primavera e esperança do tempo do fim (quando, segundo o profeta Daniel, “será aberto o livro dos segredos do mundo”). A descoberta de Colombo em 1492, que coincide com a Reconquista cristã da península ibérica, reforça o sentido hermético das ideias milenaristas de um Joaquim de Fiori (século XII). Anuncia-se o “Tempo do Espírito” da conversão integral de pagãos e judeus. Tempo da salvação (diferente do tempo da natureza dos gregos e do tempo político dos romanos) que Agostinho havia tornado simbólico ao firmar a doutrina da Igreja, mas que voltou a ser literal com as heresias resultantes do abandono do ideal cristão de amor e pobreza. Colombo aparece então como o mensageiro divino profetizado no Antigo e no Novo Testamento. É o que revelam seus escritos marcados por traços obsessivos e paradoxais que são os do homem renascentista: desejo de glória, ânsia de regeneração e visão finalista. Quando ele parte de Palos, o Novo Mundo já está escrito.Mas o mundo messiânico de Colombo será o da violência que transforma a Conquista em escravização e genocídio. Se para Colombo se abriam as portas do Paraíso, para os índios elas se fechavam. No entanto houve também um milenarismo indígena, anterior à invasão branca, no qual o karai, profeta guarani, negava a estrutura de sua sociedade e queria levar o povo à terra sem males. Diante do obstáculo intransponível do mar, as “viagens interiores” e a purificação da dança eram os meios de se elevar sobre as águas.


A geografia das Utopias situa-se na América. É um nauta português que descreve para Morus a gente, os costumes descobertos do outro lado da terra. Um século depois, Campanella, na Cidade do sol, se reportaria a um armador genovês, lembrando Cristóvão Colombo. E mesmo Francisco Bacon (possivelmente Shakespeare), que escreveu a Nova Atlântida em pleno século XVII, faz partir sua expedição do Peru.

Oswald de Andrade,

Do pau-brasil à antropofagia e às utopias

O wonder!

How many goodly creatures are there here!

How beauteous mankind is! O brave new World

That has such people in it!

Shakespeare, The tempest

[…] maravillas de la lindeza de la tierra y de los arboles […] la más hermosa cosa del mundo y salem pôr ella muchas riberas de aguas que descendian d’estas montañas […] y certifico a Vuestras Altezas que debaxo del sol no me parece que las pueda aver mejores en fertilidad, en temperancia de frio y calor, en abundancia de aguas buenasy sanas (…) era toda la gente más hermosa y de mejor condición que ninguna outra[…] quanto a la hermosura, no avia comparación, asi en los hombres como en las mugeres.

Colombo,

Diário del primer viaje

ALFA E ÔMEGA DA MODERNIDADE

Outono do mundo. Primavera do mundo. Estas expressões são frequentes durante toda a Renascença: assinalam o sentimento de declínio e decrepitude de um mundo perpassado por guerras, peste, fome, cismas e heresias; mas também o sentimento de uma renascença, de um instauratio ou restauração da origem, de uma restitutio in integro, como dirão os protestantes.

Não são expressões contrárias, mas complementares, se considerarmos o modo como, por exemplo, são lidas as Metamorfoses de Ovídio. Aqui, o tempo é tempus edax do lamento de Helena: “Ó tempo insaciável, e tu, invejosa velhice, tudo destruís e tudo o que foi afetado pelo passar dos anos, consumis, pouco a pouco, pela morte”. Tempo da decadência, da passagem da Idade de Ouro, quando “a terra, mesmo não arada, ostentava searas”, “corriam rios de néctar”, o “mel escorria da verdejante azinheira” e “a primavera era perene, os zéfiros suaves acariciavam flores nascidas sem sementes”, à Idade do Belicoso Ferro, quando “irromperam todos os males”, desapareceram vergonha, lealdade e boa-fé, “substituídas pela fraude, pelo dolo e pela insídia, pela violência e pela voracidade criminosa”·. Mas é também o tempo benfazejo, cantado por Pitágoras para a instrução de Numa, tempo que não poupa sequer os elementos, mas que os faz ressurgir sob outras formas e cujo símbolo é a Fênix: “ave que se regenera e reproduz por si mesma”, que “não se alimenta de grãos ou ervas, mas das lágrimas do incenso e do amono”, que, a cada cinco séculos, prepara-se para morrer “num ninho de folhas de canela, nardo e mirra” e “termina a vida rodeada de perfumes” para que de seu corpo “renasça uma pequena Fênix”. Este outro tempo é aquele que Francis Bacon louva como pai da verdade: “a verdade é filha do tempo” (veritas filia temporis) e cunha a expressão Partus Temporis Masculus, o parto másculo do tempo.

O tempo das Grandes Navegações é promessa da nova primavera do mundo. Por isso não causará espanto que os tempos modernos – em filosofia – se abram, com o último dos renascentistas, Francis Bacon, e se encerrem, com o último dos clássicos, Isaac Newton, sob a esperança do tempo do fim, quando, no dizer do profeta Daniel, “será aberto o livro dos segredos do Mundo” (Dn 12,4) e, no dizer de João Evangelista, serão vistos “um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra já passaram, e o mar já não existe” (Ap 21,1) e o Senhor dirá: “Tudo está feito. Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim” (Ap 21,6), momento final da abertura do Livro “escrito por dentro e por fora, de todo selado com sete selos” (Ap 5,1).

***

“Nesse dia, vi içarem-se os estandartes reais sobre as torres da Alhambra, e o rei mouro sair pela porta da cidade e beijar as mãos de Vossas Altezas”, assim se dirige Cristóvão Colombo aos Reis Católicos, na abertura do Diário del primer viaje.

No dia 6 de janeiro de 1492, Fernando e Isabel entram em Granada e recebem das mãos do califa as chaves de Alhambra. Fazem hastear o estandarte real e erguer o crucifixo nos parapeitos mais altos do que fora o Reino de Granada. Está concluída a Reconquista, depois de oito séculos de ocupação árabe.

Os embaixadores de Gênova, em Barcelona, enviam uma carta de louvor às majestades católicas: “Não é indigno nem sem razão que vos asseveramos, reis grandíssimos, que lemos o que predisse o abade Joaquim Calabrês, que a restauração da Arca Sião seria feita pela Espanha”.

Em seus escritos, entre os séculos XII e XIII, o franciscano, depois “fiorello”, Joaquim de Fiori, criador da mais longa e persistente concepção cristã do milênio, determinara que o Reino de Deus na Terra – a era do Espírito Santo – começaria com a vitória de Cristo contra o anticristo, identificado por ele com Saladino, que acabara de invadir a Espanha. Assim, os embaixadores genoveses saúdam menos a expulsão dos mouros e mais o primeiro sinal do milênio, o tempo do tempo do fim, aberto pela vitória de Castela. No mesmo espírito, profecias de Jean de Roquetaille e do mago Merlim, associadas às de Joaquim de Fiori, já se haviam difundido pela Espanha, com a subida ao trono de Fernando de Aragão e Castela, pois um rei “filho da águia” estava destinado a subjugar os mouros de Granada e recuperar a Cidade Santa para a cristandade. Colombo, que no Livro das profecias, apresenta-se como “mensageiro do novo céu e da nova terra”, escreve aos Reis, em 1501, repetindo o que dissera e dirá inúmeras vezes: “[…] o abade Joaquim disse que deve vir da Espanha aquele que reconstruirá a Santa Casa de Sião”.[1] Ao encontrar a primeira mina de ouro, registrou em seu diário de bordo: “[…] daqui a três anos, Suas Altezas poderão preparar-se para partir à conquista da Casa Santa”.[2]

Em abril de 1492, morre em Florença Lourenço de Médici, o Magnífico, para quem Marcílio Ficino traduzira a primeira parte do Corpus Hermeticus, obra heteróclita e anônima do século II d. C., mas, durante séculos, julgada egípcia, antiquíssima, fundamento da Bíblia, da filosofia pitagórica e do platonismo. Com ela, a magia natural, a astrologia e matemática mística penetram no pensamento e na imaginação da intelligenzia renascentista, afirmando que o homem, senhor e governante da Natureza, nascido e feito para dominar os elementos e os animais, é também astrólogo e astrônomo, capaz de compreender os movimentos das esferas celestes e, na qualidade de geômetra é mago, de construir pequenos céus e outros mundos, conformes ao modelo divino, pois é dotado de inteligência semelhante à divina e do poder da mimesis para criar deuses e novos mundos, tornando-se plenamente divino também. Novo Mundo, como veremos, é uma expressão polissémica e um de seus sentidos é o hermético, de criação de um mundo novo pela arte e engenho humanos. No outono de 1492, Pico della Mirandola é absolvido do crime de heresia pela publicação de De Dignitate Homini Oratio, baseada num dos livros do Corpus Hermeticus, o Ascelepius, onde o homem é designado como Grande Milagre. Qual a dignidade do homem? Terminada a obra da criação, Deus desejou uma inteligência que com ele compartilhasse a obra realizada. Fez o homem. Todos os dons, porém, já estavam distribuídos entre as criaturas e nada restava para a última. Por isso, o Criador deu a ela uma parte de cada um dos dons distribuídos a todas as outras, fazendo o homem um microcosmo, nem mortal nem imortal, nem terrestre nem celeste, nem material nem espiritual, mas capaz de ser tudo por força de sua vontade. Possuindo em si mesmo todas as potencialidades, o homem pode tornar-se planta, animal, anjo ou unificar-se com Deus. Sua dignidade é sua liberdade para passar das formas inferiores de vida às superiores, até identificar-se com a divindade. Há três mundos – o elementar, o celestial e o invisível – e o homem, Magnum Mysterium, é a junção, mediação e conexão de todos eles. Combina, vincula, entrelaça e une todas as coisas, não só em pensamento, mas em realidade, por meio da magia natural. Compartilha esse poder com Deus e difere da divindade apenas porque esta contém em si todas as coisas por ser a causa delas, enquanto o homem combina e vincula todas as coisas por ser o centro delas.

No dia 2 de agosto de 1492, findo o prazo de quatro meses, estipulado pelo decreto régio de 31 de março, os judeus são expulsos da Espanha. A diáspora sefardim, cujas causas são econômicas e políticas (ligadas à reorganização da riqueza monárquica e à centralização das cortes), aparece, porém, como um fato teológico-político, sinal de tempos proféticos, simbolizados na expressão de Isaías, “o resto de Israel”. Para os expulsos, que não se fizeram “conversos”, não se submeteram à “limpeza de sangue” e permaneceram fiéis à “lei de Moisés”, a nova dispersão indica a proximidade da redenção prometida, quando “o Senhor tiver lavado a imundície das filhas de Sião e o sangue de Jerusalém no meio delas” (Is 4,4), pois são eles o “resto de Israel” a quem o profeta garante o fim das provações quando “o resto de Sião e o remanescente de Jerusalém serão chamados de santos” (Is 4,3). Aos expulsos está prometido o “descanso do teu sofrimento, da tua inquietude e dura sujeição” porque Iahweh “quebra a vara dos ímpios, o cetro dos dominadores, daquele que feria o povo com furor” (Is 14,5). Quando isso acontecer, e está próximo o dia, “Iahweh será uma coroa de esplendor e uma grinalda magnífica para o resto do seu povo”·(Is 28,5). No entanto, se esta é a esperança dos expulsos, não é a visão dos que expulsam. Para estes, o apóstolo Paulo deu a certeza de que são eles “o resto de Israel” quando escreveu aos Romanos: “Não teria Deus, porventura, rejeitado seu povo? De modo algum […] Reservei para mim sete mil homens que não dobram o joelho a Baal. Assim também, no tempo de hoje, constitui se um resto segundo a eleição e a graça […] Aquilo a que tanto aspira, Israel não conseguiu; conseguiram-no, porém, os escolhidos. E os demais ficaram endurecidos”‘ (Rm 11, 1-7).

Colombo, que entrará para a Ordem Terceira dos Franciscanos e com ela compartilhará o joaquimismo da Era do Intelecto ou do Espírito o terceiro tempo e último tempo da Trindade, reino do Espírito Santo, aprova a expulsão, louvando os reis por terem “destruído aqueles que não queriam confessar o Pai, o Filho e o Espírito Santo”[3], pois o Tempo do Espírito será o da conversão integral de todos os pagãos e todos os judeus e da tomada de Jerusalém pelos cristãos.

Será neste mesmo mês de agosto de 1492, no dia 3, que Colombo, após sete anos de espera, partirá de Palos. Era chegado o tempo. O Diário da primeira viagem abre-se com a exposição dos motivos: os reis o enviaram ao Oriente pelo Ocidente para combater “a seita de Maomé e todas as idolatrias e heresias” e para que, nas regiões da Índia, Catai e Cipango, visse príncipes, povos e “a disposição deles” para serem convertidos “à nossa fé”. Conversão profeticamente anunciada como necessária, pois, na Epístola aos Romanos, Paulo também escrevera: “[…] o endurecimento atingiu uma parte de Israel até que chegue a plenitude dos gentios [isto é, a conversão de todos] e assim todo Israel será salvo, conforme está escrito” (Rm 11, 25-26). O tempo do fim exige, antes da conversão de todo Israel, o retorno à Palestina e é este que Colombo prevê como resultado da expulsão espanhola, por obra dos reis, cabendo ao futuro almirante a tarefa da conversão de todos os gentios do Oriente.

Ainda em agosto de 1492, Rodrigo Borrai, pai de Lucrécia e César, ramo espanhol da família Borrai (os de Borja), compra, com o apoio financeiro de Fernando e Isabel, o cargo pelo qual se fará Sumo Pontífice, Vigário de Cristo, papa Alexandre VI. Sua ação belicosa e corrupta iria apressar a Reforma e, juntamente com os desastres políticos de Piero de Médici, em Florença, suscitar, em novembro de 1492, o início da pregação profético-messiânica de Savonarola. Este, invocando, ele também, Joaquim de Fiori, prega a primeira exigência do abade calabrês: a restauração moral dá cidade, o combate ao anticristo (encarnado, agora, no papa) e o fortalecimento dos “homens espirituais, responsáveis pelo Reino de Mil Anos de felicidade, preparação para a batalha final entre o Cordeiro e a Besta, antes do Juízo Final. Dirigindo-se notadamente aos jovens florentinos, Savonarola desencadeia a rebelião profética e a agitação milenarista cujo resultado esperado (mas fracassado) encontra-se representado numa das obras-primas de Botticelli, a Natividade mística. O conteúdo joaquimita do quadro, evidente para os contemporâneos, é enfatizado pelo pintor que, acima das figuras, escreveu:

Este quadro foi pintado por mim, Alessandro, durante as perturbações na Itália, na metade do tempo depois do tempo, quando se verificou o capítulo XI de são João, na segunda infelicidade do Apocalipse, quando o diabo foi liberado por três anos e meio, em seguida será encadeado, segundo o capítulo XII e nós o veremos pisoteado como se vê neste quadro.

O quadro foi pintado por Botticelli em 1500. Neste mesmo ano de 1500, no mês de novembro, Colombo escreve a Juana de la Torre, governanta do príncipe herdeiro d. Juan:

Fiz-me o mensageiro do novo céu e da nova terra, de que fala Nosso Senhor Jesus Cristo pela boca de são João, após tê-lo feito pela de Isaías; e eu os fiz conhecer! Todos me escutaram com incredulidade. Meu Deus deu à rainha, minha soberana, o espírito de inteligência e de resolução. Ele a fez herdeira de tudo como a uma filha bem-amada.[4]

Que dissera são João, no Apocalipse? Terminada a luta entre Cristo e o anticristo, abertos os sete selos, ouvidas as sete trombetas, cumprido o Juízo Final, o Senhor dá ao seu profeta a visão do “novo céu” e da “nova terra”; completando a tarefa. Aquele que é o Alfa e o Ômega proclama: “O vencedor herdará estas coisas e eu lhe serei Deus e ele me será filho” (Ap 21,7).

Que dissera Isaías? “Ai da terra dos grilos alados, que fica além dos rios da Etiópia. Que envia mensageiros pelo mar em barcos de papiro sobre as águas. Ide, mensageiros velozes, a uma nação de gente de alta estatura e pele bronzeada” (Is 18, 1-2). Se Isabel é a herdeira, filha de Deus, Colombo é o mensageiro divino profetizado no Antigo e no Novo Testamento.

É desta maneira que, na carta de 1501, aos reis, o Almirante do Mar Oceano, d. Cristóbal Colón, declara:

A Sagrada Escritura testemunha no Velho Testamento, pela boca dos profetas, e no Novo, por nosso Redentor Jesus Cristo, que este mundo há de ter fim […] não faltam mais do que 155 anos para o cumprimento dos 7 mil anos, quando haverá de fenecer este mundo. Nosso Redentor disse que antes da consumação deste mundo se haverá de cumprir tudo quanto estava profetizado […] de Isaías se diz que foi mais do que profeta, foi evangelista, e colocou toda sua diligência para escrever sobre o porvir e chamar gente para nossa fé católica […] Grande parte das profecias e das Sagradas Escrituras está acabada […] muito resta a cumprir das profecias e são coisas grandes no mundo e há sinais de que Nosso Senhor tem pressa delas […] O cardeal Pedro de Ailíaco escreve muito sobre o fim da seita de Maomé e do advento do anticristo[…] O abade Joaquim Calabrês disse que haveria de sair da Espanha quem iria reedificar a casa do Monte Sião […] Para a execução da empresa das Índias não me aproveitou razão nem matemática nem mapa-múndi; plenamente cumpriu-se o que disse Isaías.[5]

O que disse Isaías que faz Colombo tão confiante do fim dos tempos, de que este mundo, já no outono, fenecerá em 155 anos? Por que a missão salvífica espanhola, prevista por Joaquim de Fiori, encontraria em Isaías a confirmação plena? A força persuasiva deste profeta sobre a imaginação dos navegantes e conquistadores, de um lado, e sobre a dos missionários franciscanos e jesuítas, de outro, não se deve apenas à interpretação paulina do “resto de Israel” que, convertendo a plenitude dos gentios, converterá, a seguir, os endurecidos de Israel para que tenha lugar o Segundo Advento de Cristo e findo este mundo. Se Isaías veio a tornar­ se o profeta do Novo Mundo é porque nele Colombo, e os outros que se seguiram, encontraram o anúncio explícito das novas terras e gentes:

Assim, tu chamarás por uma nação que não conheces, sim, uma nação que não te conhece acorrerá a ti. [Is 55,6]

Eu virei, a fim de reunir todas as nações e línguas; elas virão e verão minha glória. Porei um sinal no meio deles e enviarei os sobreviventes dentre eles às nações: a Társis, a Fud, a Lud, a Masoc, a Tubal e a Javà, às ilhas distantes que nunca ouviram falar a meu respeito, nem viram a minha glória. Estes proclamarão a minha glória entre as nações e todas as nações trarão todos os vossos irmãos como uma oferenda a IAHWEH, conduzindo-os ao meu santo monte […] Sim, da mesma maneira que os novos céus e a nova terra que estou para criar subsistirão na minha presença, assim subsistirá a vossa descendência e o vosso nome. [Is 36, 13-20; 66, 22]

Milenarismo joaquimita, filosofia hermética, messianismo judaico, profetismo, guerras santas internas e externas para a vitória sobre o anti­cristo, poderio onipresente da Inquisição, intrigas universitárias e palacianas: eis o mundo onde habita Cristóvão Colombo, cujas cartas, diários de viagem, anotações e documentos exprimem as contradições de uma sociedade frequentemente assolada pela peste, pela fome, pela guerra, tentada pelos objetos técnicos e pela imaginação mágico-hermética de divinização do humano, arrogante e degradada no movimento da conquista e da evangelização que, inseparáveis, formarão o império ibérico de ultramar.

Escrevendo sobre a condição do homem moderno, Lewis Munford[6] observa que, a partir do século XV, “o espaço impelia os homens ao movimento e o movimento devorava o espaço”, cada um e todos arrastados por “uma descoberta prática e um constructo ideológico”: o Novo Mundo, simultaneamente, “um lugar e um idolum”. A épica da expansão e o drama da conquista, cujo enredo era simples, mas cujo cenário era magnificente, aliados à bússola, ao navio de três mastros, à pólvora e ao astrolábio, deram ao capitalismo ultramarino a possibilidade de fazer mudar os conceitos medievais de espaço e tempo, puseram em operação a crença de que, na busca das riquezas, os exploradores não seriam detidos por nenhum obstáculo. À pergunta: “Podes fisgar o Leviatã?”, responderiam em uníssono: “Sim”. O Novo Mundo não foi um conceito meramente geográfico. A descoberta de outras terras, outros mares, outros céus e outras gentes, pondo em questão a ideia mesma de humanidade, foi a descoberta de novas técnicas, novas ciências, nova educação, nova ordem social e política e de um “novo hemisfério da mente”.

Na mesma linha de argumentação, escreve Sérgio Buarque de Holanda, em A visão do paraíso:

Colombo, sem dissuadir-se de que atingira pelo Ocidente as partes do Oriente, julgou-se em outro mundo ao avistar a costa o Pária, onde tudo lhe dizia estar o caminho do verdadeiro Paraíso Terreal. Ganha com isso o seu significado pleno aquela expressão “Novo Mundo”, que o próprio descobridor esteve na iminência de empregar e que o humanista Anghiera cunharia, antes mesmo de Vespúcio, para designar as terras descobertas. Novo, não só porque, ignorado, até então, das gentes da Europa e ausente da geografia de Ptolomeu, fora “novamente” encontrado, mas porque parecia o mundo renovar-se ali, e regenerar-se vestido de verde imutável, banhado numa perene primavera, alheio à variedade e aos rigores das estações, como se estivesse verdadeiramente restituído à glória dos dias da Criação. Assim pensariam os primeiros viajantes ou cronistas das Índias Ocidentais. Assim dirá, passado quase meio século depois do descobrimento, certo discípulo espanhol de Tomás Moro, advogado, por sua vez, de uma espécie de utopia indígena … Nessa mesma ideia, embora não passasse, em geral, de vago pressentimento, e mal formulado, irá articular-se o misto de cobiça, piedosa devoção e imaginação desvairada, que domina quase sempre o ânimo dos conquistadores, mormente dos conquistadores das Índias de Castela. Não deveria, então, realçar-se tão vivamente como hoje o que pudesse haver de estranhamente contraditório nessa mescla de motivos sagrados e profanos, já que confundiam, então, mais facilmente, e não raro se deixavam permutar entre si, os alvos constantes da ambição e os da religião, tingindo-se uns e outros, muitas vezes, das cores da fantasia. Já sabemos, de fato, como o mesmo precioso metal de que se enfeita a vaidade mundana, não deixava de traduzir para os homens, em termos terrestres, um resplendor quase divino, e que, servindo para adornar altares e dourar templos inteiros, havia no seu brilho como que a sagrada auréola da Fé[7].

Novo mundo, mundo novo: para além da descoberta do que permanecera oculto, mas adivinhado nas obras de Mandeville, Marco Polo, Pierre d’Ailly, era também a promessa pitagórico-ovidiana da Idade de Ouro – a eterna primavera do mundo – e a de Sêneca quando, na Médea, escrevera:

Virá um tempo, nos últimos anos do mundo, em que o Oceano desfará os laços das coisas. Uma terra imensa se revelará, pois sobrevirá um navegador, tal como aquele que teve o nome de Tífis e foi guia de Jasão; e ele descobrirá um novo mundo. E Thule não será mais o fim das terras.

Podemos imaginar, num mundo em que o comércio marítimo domina e organiza o mercado e as cortes -, anunciando o mercantilismo e o monopólio dos reis, mas também num mundo onde a cobiça dos reis alimenta e é alimentada pela esperança de divinização do homem, Magnum Mysterium, o que a ideia de um mundo novo significou. Para alguns, sobretudo aqueles que haviam sido alimentados pelo neoplatonismo, pelo hermetismo e pela afirmação da dignidade do homem pelo intelecto e pela vontade, emergiu à superfície o continente perdido da Atlântida, a utopia da sociedade humana perfeita que as obras de Thomas More, Campanella e Francis Bacon iriam imortalizar. Para outros, alimentados em Ovídio, Séneca, Plínio, Pierre d’Ailly, nos viajantes reais ou imaginários (Marco Polo e Mandeville), em Joaquim de Fiori e nas Sagradas Escrituras, finalmente fora localizado o Paraíso Terrestre, descrito tanto nas Idades das Metamorfoses quanto no livro do Gênesis: jardim das delícias onde o ar é perenemente temperado (nem quente nem frio), a terra é abundante e fértil sem necessidade de cultivo, dor e pena, os rios têm seus leitos revestidos de ouro e prata, as montanhas guardam segredos de esmeraldas e rubis, as florestas abrigam feras dóceis e amigas e as gentes, em estado de inocência, vivem sem rei, sem lei e sem fé, no vigor de seus corpos destemidos, bronzeados e para sempre juvenis. O Novo Mundo é um topos do pensamento, da imaginação e do discurso.

Se Isaías projeta sua sombra sobre os primeiros navegantes, será sobretudo o profeta Daniel quem projetará a sua sobre os homens pensantes. De Bacon, último dos renascentistas, a Newton, último dos clássicos, perdura a esperança do tempo do fim, quando, no dizer de Daniel, “muitos esquadrinharão e o saber se multiplicará” (Dn 12,4).

A verdade é filha do tempo, repete Bacon em suas obras. O tempo presente, graças à navegação e à imprensa, tornou legível o livro da obra de Deus – céus, terras e mares, isto é, a Natureza – e o livro da palavra de Deus – a Sagrada Escritura. Neste “outono do mundo”, escreve o filósofo, cumpre-se a palavra de Daniel e assim deve ser, pois seríamos desgraçados se, “agora que foram abertos e explorados largos espaços do globo material” tivéssemos que suportar que “os limites do globo intelectual ficassem atados às estreitas descobertas dos antigos”.

No entanto, observa Bataillon,[8] a esperança dos primeiros missionários é frustrada. Embora batizem em massa (5 a 10 mil batismos por dia), a graça do Espírito Santo não parece eficaz, nenhum milagre acontece e as almas continuavam carentes de educação. Mais do que o Compellere intrare, é preciso conhecer a duplicidade e moleza dos índios, a ferocidade oculta, o misto de inocência e barbarismo. Será esta a imagem dos nativos e será esta a tarefa redentora dos missionários jesuítas, dos quais, sem dúvida, a figura-chave é o padre Vieira que, como os primeiros franciscanos e os primeiros homens da Companhia de Jesus, está imbuído do espírito profético e completa a construção da América como cumprimento das profecias das quais, agora, é Portugal e não mais a Espanha o portador da vitória final contra o anticristo.

No Advancement of Learning, lemos:

[…] pois deve ser dito, em honra destes tempos e numa virtuosa emulação da antiguidade, que este grande edifício do mundo nunca havia manifestado as luzes de que é feito, até nossa era. Na era dos nossos pais, ainda que tivessem conhecimento dos antípodes, só o sabiam por demonstrações e não por fatos, o que exigiu a viagem pela metade do globo. Mas circundar a terra como fazem os corpos celestes não foi dado empreender senão nos últimos tempos e, portanto, estes tempos podem trazer como insígnia o plus ultra dos tempos passados, e imitabile flumen em lugar do non imitabile flumen dos tempos passados, e imitabile coelum, com respeito às muitas memoráveis viagens à volta do globo à maneira dos astros. E esta proficiência pode enraizar esperanças de proficiência posterior e maior e o aumento de todas as ciências porque foram ordenadas por Deus para serem todas contemporâneas. Pois assim falou o profeta Daniel, referindo-se aos últimos tempos: “Quanto a ti, Daniel, guarda em segredo estas palavras e mantém lacrado o livro até o tempo do fim. Muitos esquadrinharão e o saber se multiplicará”, como se abertura e a travessia do mundo e o aumento dos conhe­ cimentos estivessem designados para acontecer na mesma época[9].

A estas palavras que, lembrando Ficino e Pico, abrem a modernidade, respondem ao fim e ao cabo, as Observations upon the prophecies of the Holy Writ particularly the prophecies of Daniel and the Apocalypse of St. John, de Isaac Newton. No entanto, o tom não será o mesmo. Entre os dois filósofos, a Inglaterra passa por duas revoluções, a de 1642-60 e a “revolução” Gloriosa de 1688. A primeira ampla e minuciosamente estudada por Hill[10] sob a perspectiva dos revolucionários radicais, é marcada pelo sentimento milenarista, inspirado particularmente pelas profecias de Daniel sobre a Quinta Monarquia, reino de Deus na terra com os justos e bons, depois da destruição do anticristo, agora figurado pelo rei e pelo papa.

A cartografia política nos séculos XVI e XVII traça um mapa inesperado, mas não surpreendente. As ideias populares radicais atravessam o mar do Norte, indo primeiro do continente para a Inglaterra, partindo das lutas daqueles que Kolakowski[11] denominou “cristãos sem igreja” para chegar aos levellers, diggers, ranters e quakers, vindo, com estes últimos aportar na América, quando o Mayflower navegar com os rebeldes de William Penn. Da Inglaterra, porém, antes de transpor o Atlântico, as ideias radicais retornam, pelo mar do Norte, ao continente: os Países Baixos, protestantes, livram-se do jugo espanhol e garantem à burguesia holandesa meios para competir com os ibéricos no comércio ultramarino. A “navegação” radical, assustando reis, nobrezas, Igreja, sínodos e burguesias, tem seus navios levados pelas velas e pelos ventos do entusiasmo profético-milenarista, cruzando o Atlântico e avançando pelas terras americanas: franciscanos e jesuítas, do México ao Paraguai; quakers, na Nova Inglaterra; huguenotes, na França Antártica; judeus luso-holandeses, em Pernambuco.

Simultaneamente, porém, a conquista, destruindo o Paraíso Descoberto, a instalação das monarquias constitucionais na Inglaterra e na Holanda, restaurando no trono reis popularmente destronados, o fortalecimento da monarquia absoluta na França, a queda do poderio das cidades italianas e de seu ideal republicano, o estreitamento dos laços entre Inquisição e monarquias ibéricas, no combate da Contra-Reforma contra os “alumbrados” místicos, os milenaristas “judaizantes” e os protestantes são as respostas do poder político para abafar e sufocar o entusiasmo profético-messiânico do século precedente, alumiado pela estrela dos primeiros navegantes. Tudo isso, talvez, explique o tom prudente e moderado de Newton, quando comparado ao de Bacon.

Que pretende Newton? O mesmo que Bacon, isto é, oferecer um sentido racional às profecias. O que os distingue é um século de revoluções políticas e de consolidações científicas, as primeiras contrabalançando o entusiasmo pelas segundas, de tal maneira que Newton, retirando das profecias todos os acréscimos interpretativos que haviam recebido nos últimos tempos, procura restaurá-las ou restituí-las em sua simplicidade bíblica originária. São meios para compreender o passado, não para prever o futuro, oferecidas por Deus para que conheçamos sua Providência.

Simultaneamente, porém, Newton não pode escapar à ideia, presente em Daniel e João, da abertura do livro dos segredos do mundo como um sinal do fim dos tempos. Os séculos XVI e XVII deram à ideia do livro tanto o das obras quanto o das palavras de Deus, Natureza e Bíblia – uma significação diversa (a Renascença decifra o texto; os Modernos o deduzem e demonstram), mas não saíram de seu recinto e Newton não pode deixar de ver seu próprio trabalho como parte dessa empresa gigantesca de abertura. Quanto mais não fosse, a peculiaridade de sua descoberta e as polêmicas teológicas por ela suscitadas o encaminhariam nessa direção. Com efeito, a ideia de uma força (invisível) de atração e repulsão universais, imersa na matéria e explicando igualmente os movimentos terrestres e celestes, torna homogêneos o céu e a terra (não era o que havia prometido Pico?). Além disso, por sua invisibilidade e universalidade, coloca a teoria filosófico-científica no limiar de um novo misticismo, próxima da imagem de forças secretas que regem o universo. Não por acaso, a teoria universal da gravitação vem exposta fora do corpo demonstrativo dos Principia, no grande Escólio Geral que conclui a obra, como se o conceito-chave da física moderna não pudesse entrar explicitamente no campo científico que acabara de descobrir e abrir.

Em 1501, Colombo, escrevendo aos reis, apresentara uma sequência de datas, cálculos, santos, teólogos que lhe permitem afirmar a vinda do milênio em 155 anos e colocar suas viagens no único campo em que parecem ganhar sentido: as profecias de Isaías e João. Na altura de 1690, Newton afirma que a autoridade de imperadores, reis, príncipes, concílios, sínodos e bispos é humana, enquanto a dos profetas é divina e que, de todos os profetas, “Daniel é o mais claro na ordem do tempo e o mais compreensível sobre as últimas coisas”, sendo por isso chave de todo o restante. Calcula as eras e tempos danielinos, interpreta as figuras e imagens das cinco monarquias, mas o faz de tal modo que o tempo do fim seja empurrado para um futuro longínquo “quando o povo de Deus habitará um reino para sempre duradouro” embora perceba que o padrão temporal está em desenvolvimento e que, nele, sua obra tem um lugar:

Entre os intérpretes da última era, raros são os que não fizeram alguma descoberta valiosa e por isso podemos supor que Deus está a ponto de abrir esses mistérios. O sucesso de outros faz-me considerar que, se fiz algo que possa ser útil aos próximos escritores, terei cumprido o meu propósito[12].

Navegadores e pensadores fizeram, assim, do Livro da Palavra de Deus a chave para abrir o Livro da Obra de Deus – alfa e ômega do empreendimento marítimo e do empreendimento do saber. Mencionamos a interpretação profética dada por Colombo (e, depois dele, por Vespúcio) às suas viagens. Mencionamos a interpretação milenarista dada por Bacon e Newton à empresa do conhecimento, das ciências e das artes, sob os efeitos das descobertas marítimas. Além dos navegantes e dos pensadores, resta mencionar o último volante do tríptico: os missionários e a interpretação da empresa da evangelização. Próximos de Colombo, Bartolomeu de Las Casas e Mendieta são os primeiros nomes obrigatórios na longa lista dos que acreditaram firmemente na dimensão profética das descobertas e, numa concepção salvífica da história, elaboram a “visão do paraíso”. Deixemos, porém, a palavra a Vieira, que completa o ciclo da construção da América como cumprimento das profecias.

Entre 1660 e 1667, Vieira é submetido ao tribunal do Santo Ofício, sendo condenado em 1667. O objeto da condenação é um escrito – Esperanças de Portugal – possivelmente parte de um inédito, a Clavis Prophetantm, e preparatório do livro, escrito entre 1653 e 1661, História do futuro ou do Quinto Império de Portugal. O conjunto dos textos elabora o tema profético-milenarista de Daniel: Portugal está destinado a ser o quinto império ou a quinta monarquia do tempo do fim. As Esperanças foram consideradas um texto estranho, escandaloso, temerário, ofensivo, herético e injurioso para a Igreja católica.

De que é acusado e por que é condenado Vieira? Sendo a sentença proferida é acusado de “judaizar” e condenado por considerar Bandarra um profeta, e suas trevas, profecias; por prever o retorno de d. Sebastião, o Encoberto e o Encantado, como imperador do mundo, vencedor do anticristo e fundador do Quinto Império. Após a queda do Quarto Império (no caso, o Império Romano, identificado com o Império Austríaco). A instauração do quinto império danielino exige que se cumpram, primeiro, as profecias de Isaías sobre o “resto de Israel”, a conversão de gentios e dos judeus, e a existência de “um só rebanho, um só pastor”. Esse cumprimento tem, portanto, como precondição a atividade missionária nas Índias Orientais e Ocidentais. Vieira é condenado por milenarismo e, mais grave, milenarismo judaizante, uma vez que “promete este reino [de Deus] nesta vida e muito cedo”, à maneira dos judeus que “o esperam também nesta vida presente do seu Messias e perpétuo para sempre na terra”[13]. Em face do messianismo católico que, desde santo Agostinho, considera terminada a missão do Messias e que o Reino de Deus (visível através da Igreja) é invisível e individual, o messianismo judaico possui um caráter público – o Reino é na terra -, coletivo – o Reino é do Povo Eleito – e imediato – o Reino deve vir aqui e agora. Eis por que a Inquisição acusará Vieira de “judaizante”. Além disso, o título da obra, Esperanças de Portugal, também trai o “judaísmo” de Vieira, pois esperança é um termo usado preponderantemente pelos judeus da Península Ibérica para referir-se ao Messias, ao término da diáspora, à liberação da Palestina e ao Reino de Israel. Esperança significa, simplesmente, crença na vinda do Messias. Por isso, na Península Ibérica, os judeus eram pejorativamente alcunhados de “o povo da esperança”.

De fato, Vieira não está só e a acusação de “judaizar” não é descabida, pois eram conhecidas suas relações amistosas com a comunidade judaico-portuguesa de Amsterdam e seus esforços para que a reintegração dos judeus a Portugal fosse feita em breve. Em 1647, Vieira encontra-se com um dos principais rabinos e humanistas de Amsterdam: Menasseh ben Israel. Se considerarmos a data provável de História do futuro (1653-61) e a obra que Menasseh publica em 1650 – Esto es la espereranza de Israel – podemos imaginar o assunto que teria sido objeto das conversas entre o jesuíta e o rabino. Enquanto Vieira prepara as Esperanças de Portugal, Menasseh redige as de Israel, inspirado, pelo relato, feito em 1644, por Antonio de Montezinos, judeu que estivera na América e chegara a Amsterdam com a notícia extraordinária: encontrara, na região de Cartagena, uma das tribos perdidas de Israel, a tribo de Ruben, e tivera notícia de que as outras nove, das dez perdidas, também se encontravam espalhadas pelo território americano, à espera dos sábios que as viriam resgatar e preparar a vinda do Messias para a reconstrução do Reino.[14] Assim, para Menasseh, também está em via de cumprir-se a profecia de Isaías sobre o “resto de Israel” e a comprovação de que fora cumprida sua primeira condição, “a dispersão do povo na direção dos quatro ventos”.

No entanto, um ponto separa Menasseh de Vieira. Podemos supor que foram as conversas com este último, assim como duas cartas que o rabino recebera do milenarista inglês, John Drury, sobre o relato de Montezinos, que levaram Menasseh a escrever seu livro. Vieira acredita, como é o caso de Drury, que as dez tribos perdidas de Israel estão na origem dos índios da América. Por outro lado, a referência contínua dos textos dos séculos XVI e XVII à tese, atribuída a Árias Montano, de que os índios descendem de Ofir, filho de Noé, reafirma de modo mais originário a fundação judaica da América e seu destino messiânico. Não é esta a posição de Menasseh. Pelo relato de Montezinos, os remanescentes das dez tribos se conservaram em sua pureza original; no entanto, aos índios, massacrados pela colonização, foi dito que os descendentes de Israel seriam liberados do cativeiro pelo Messias e que se se reunissem a eles, seriam salvos também. Esta é a tese de Menasseh. De todo modo, um ponto é comum ao rabino e ao jesuíta: a chave da interpretação messiânica da América encontra-se em Isaías. Por isso, se, nas Esperanças de Portugal, Vieira se demorara em Daniel, na História do futuro sua atenção volta-se predominantemente para Isaías, citado em latim da Vulgata e assim interpretado, palavra a palavra, pelo jesuíta. Alguns exemplos da hermenêutica de Vieira podem auxiliar-nos aqui:

Isaías:

Ei-los que vêm, muitos de terras distantes, uns do norte [terra australi] e do ocidente, outros das Terras do Sini […] Ó céus dai gritos de alegria, ó terra, regozija-te, os montes rompam em alegres cantos, pois Deus consolou seu povo, Ele se compadece de seus aflitos. [Is 49; 12-13]

Vieira:

O qual entendem Cornélio a Lápide e Árias Montano da conversão da China e o provam do original hebreu, o qual lê de terra Senin, como verte São Jerônimo […] e todos, e é o mesmo que de terra Sinarum, por ser este o modo de falar da língua hebreia, na qual os galileus se chamam de Celilim, e os judeus de Jehudim, e os assírios de Assurim, e assim também os chinas ou sinas Sinim. E se replicamos que a China não é terra austral, senão oriental, e que se não pode verificar dela o termo de terra australi, respondem os mesmos autores que aludiu o Espírito Santo, que governava a pena de São Jerônimo, aos Portugueses, os quais, quando vão para o oriente, fazem sua viagem direta ao Austro […] De maneira que como os Portugueses haviam de ser os que haviam de levar a fé à China, navegando do Austro ao Sua!, por isso chamo o Espírito Santo Austral à China, não pelo sítio da terra, mas pelo rumo da navegação.[15]

Novamente Isaías:

Quem são estes que vêm deslizando como nuvens, corno pombas de volta aos seus pombais? Em mim esperam as ilhas, os navios de Társis vêm à frente, trazendo seus filhos de longe, com sua prata, seu ouro, por causa do nome de Deus, por causa do Santo de Israel. [Is 60, 8-9]

Interpreta Vieira:

Nestas palavras está profetizada admiravelmente a conversão das Índias Ocidentais; assim se explicam o mesmo Cornélio, Bózio, Aldrovando e outros. Com bem notáveis propriedades chama o profeta às Índias Ocidentais, ilhas: “em mim esperam ilhas”, porque todas aquelas vastíssimas terras, enquanto se tem descoberto, estão rodeadas de mar, e bastava, para se chamarem assim, a imensidade de mares que as dividem do Mundo Antigo; além do que essas terras no princípio eram chamadas de Antilhas, como se lê na história de seu descobrimento. As nuvens que voam a estas terras para as fertilizar são os Portugueses pregadores do Evangelho, levados do vento corno nuvens; e chamam-se também pombas porque levam estas nuvens a água do batismo sobre que desceu o Espírito Santo em figura de pomba, que são dois termos que sempre andaram juntos na significação do batismo, desde o princípio do mundo[16].

Ainda uma vez, Isaías:

Ai da terra dos grilos alados, que fica além dos rios da Etiópia. Que envia mensageiros pelo mar em barcos de papiro, sobre as águas! Ide mensageiros velozes, a uma nação de gente de alta estatura e de pele bronzeada, a um povo temido por toda parte, a uma nação poderosa e dominadora cuja terra é sulcada de rios. [Is 18, 1-2)

Donde conclui Vieira:

Trabalharam muito os intérpretes antigos por acharem a verdadeira explicação deste texto: mas não atinaram nem podiam atinar com ela porque não tiveram notícia nem da terra, nem das gentes de que falava o profeta (…) que falou Isaías da América e do Novo Mundo, se prova fácil e claramente. Pois esta terra que descreve o profeta que está além da Etiópia e é terra depois da qual não há outra. Estes dois sinais tão manifestos só se podem verificar da América, que é a terra que fica da outra banda da Etiópia e que não tem depois de si outra terra senão o vastíssimo mar do Sul. Mas porque Isaías nesta descrição põe tantos sinais particulares e tantas diferenças individuantes, que claramente estão mostrando que não fala de toda a América ou Mundo Novo em comum, senão de alguma província particular dele; e os autores alegados nos não dizem que província esta seja, será necessário que nós o digamos […) Digo, primeiramente, que o texto de Isaías se entende do Brasil, porque o Brasil é a terra que direitamente está além e da outra banda da Etiópia (…). Diz mais o profeta que a gente desta terra é terrível e não pode haver gente mais terrível entre todas as que tem figura humana, que aquela (quais são os brasis) que não só matam seus inimigos, mas depois de mortos os despedaçam e os comem e assam, e os cozem com este fim (…)[17].

Vieira prossegue mostrando que o profeta foi mais particularista: terras sulcadas de rios não são todo o Brasil, mas o Maranhão. E os maranhães, por serem gente criada no meio das águas, são um povo náutico, criador da arte de navegar e inventor de uma embarcação, a “iguaruana”, canoa feita com casca de árvore que corresponde exatamente ao “papiro” da profecia. Diz o profeta que tais embarcações vão rumo ao mar. Explica Vieira que, novamente, se trata dos maranhães porque a região conhecida como Maranhão ou Grão-Pará tem estes nomes porque Pará significa mar, Grão ou Maranhão por ser de grandes proporções. Essencial também é o “ide mensageiros”, referência segura aos missionários portugueses, pregadores do Evangelho. E conclui nosso jesuíta:

Muito largos temos sido na exposição deste texto, mas foi assim necessário por sua dificuldade e por não estar até hoje entendido. Deixo muitos outros lugares do profeta Isaías, o qual verdadeiramente se pode contar entre os cronistas de Portugal, segundo fala muitas vezes nas espirituais conquistas dos Portugueses e nas gentes e nações que por seus pregadores se convertem à fé.[18]

Assim, latinizando Isaías e adaptando-o às necessidades de sua própria tese teológico-política, Vieira, no final do século XVII, torna mais evidente para nós por que, nó início do século XVI, escrevendo aos reis, suplicando-lhes que lhe concedessem recursos para uma nova (e última) viagem, Colombo lhes dissesse que “para a empresa das Índias não me aproveitou razão nem matemática nem mapas-mundo; plenamente cumpriu-se o que disse Isaías”.

O EXEGETA DO MUNDO NOVO

Estranho Colombo.

Entre seus escritos, encontramos papéis com o título Livro das profecias, no qual calcula as idades do mundo segundo o calendário judaico e o cristão, o que lhe permitirá afirmar aos reis que, a este mundo restam apenas 155 anos. Como o tempo do fim é antecedido pela batalha final entre Cristo e o demônio, preparada pelos combates iniciais entre o Imperador dos Últimos Dias e o anticristo, pela localização do Paraíso Terrestre, onde a Nova Jerusalém será edificada, e pela ação da ordem dos monges ativos que precedem a dos monges contemplativos, compreendemos por que o almirante no relato da primeira viagem tem tanta pressa em que os reis enviem sábios e missionários às Índias, no relato da quarta viagem recebam grandes quantias de ouro para a reconquista de Jerusalém e fique estabelecido no relato da terceira viagem que chegou aos “confins do Oriente”, onde os sagrados teólogos e filósofos, os santos e a Sagrada Escritura situaram no Paraíso.

Estranho Colombo.

Não sabemos seu verdadeiro nome. Cristóforo, Cristóvam, Cristóbal, Cristóvão? Colón, Collunus, Colonon, Columbo, Colombo? Depois da primeira viagem, o Almirante do Mar Oceano assina com as inicias gregas de Cristo e acrescenta, em latim, ferens- Christo ferens, o que transporta ou carrega Cristo, são Cristóvão. Ou seria o que leva Cristo a novas terras pela travessia de novas águas? Ou emissário-mensageiro de Cristo para o Segundo Advento e o tempo do fim, como sugerem, de um lado, as cartas a Juana de la Torre e aos reis e o relato da terceira viagem, e, de outro lado a colocação de “Christo” no caso dativo e, portanto, significando: o que leva ou transporta para Cristo? Mas, é isto um nome? Não seria mais apropriado chamá-lo símbolo? Depois da primeira viagem, o vice-rei e governador das Índias assina Colón. Para um joaquimita, não teria sido mais sugestivo manter Columbus, signo da pomba do Espírito Santo? Teria preferido, porém, indicar colono-colonizador, à maneira dos romanos? Ou, como querem alguns, foi esta a maneira disfarçada de fingir nobreza, associando seu nome ao de Coullen, almirante francês, justificando a enigmática afirmação que repetirá várias vezes: “não sou o único nem o primeiro da família”? Que tenha tentado enobrecer-se, um outro sinal o revela: sua assinatura completa, até hoje indecifrável (embora haja bibliotecas inteiras buscando a interpretação), forma um brasão, como se fosse membro de uma linhagem:

.s.

.S. AS.

XMY

Xpo FERENS

Sob muitos aspectos, não é surpreendente que inventasse um novo nome depois da proeza do novo mundo, novos céus, novos mares, novas terras, novas gentes. Os relatos dos anos de peregrinação às cortes ibéricas, de súplicas e humilhações, de dependência junto aos tesoureiros e teólogos régios e de submissão à boa vontade de mercadores como Pinzón, tornam compreensível que o vice-rei, numa sociedade hierárquica e estamental, desse a si mesmo um nome compatível com seu título e que pudesse, como aspirava todo homem da Renascença, imortalizar-se pela glória, isto é, os feitos memoráveis e exemplares. Mas que inventas­ se um brasão indecifrável, eis mais um enigma por ele deixado.

Estranho Colombo.

Desconhecemos a data precisa de seu nascimento. Até 1990, numerosos estudos propunham, no total, cerca de 235 lugares prováveis de nascimento até que, finalmente, durante o Quinto Centenário da América (1992), Gênova ficou definitivamente estabelecida[19] como local de origem do descobridor. Genovês, de uma família de cardadores e tecelões de lã, autodidata, marinheiro e, com o irmão Bartolomeu, cartógrafo, Colombo participou de viagens portuguesas à costa da Guiné (nome da costa africana, na época), à Islândia, a Gallway e às várias ilhas de domínio lusitano e espanhol. Vivendo no bairro dos italianos de Lisboa, primeiro, e no dos genoveses de Sevilha, depois, conheceu as narrativas dos marujos sobre as regiões mais afastadas da Europa; teria trocado correspondência com Toscanelli (que afirmava a possibilidade da viagem ao poente pelo nascente) e, a crermos em Las Casas, na primeira viagem teria levado o célebre mapa italiano, no qual Cipango Catai (Japão e China) localizavam-se onde, realmente, situa-se o México. Toscanelli e outros cosmógrafos e navegantes, inspirados em Aristóteles e Sêneca, negavam a existência da “zona tórrida” inabitada e intransponível e afirmavam a existência dos “antípodas”, contrariando, nos dois casos, a tradição apoiada em santo Agostinho que ainda fazia de Thule o fim do mundo, mesmo que ninguém soubesse onde Thule ficava. Segundo os especialistas nossos contemporâneos, estudiosos das “viagens à estima” (isto é, sem os instrumentos técnicos necessários, senão astrolábio e bússola), seus diários de bordo revelam um navegador exímio.

Isto, porém, é quase nada para quem deseje conhecer Cristóvão Colombo. Afora a biografia romanceada e providencialista, escrita por seu filho Fernando e por Las Casas, por ocasião do litígio com a Coroa espanhola, pouco podemos saber da personagem, não só porque, segundo depoimentos contraditórios das testemunhas durante o litígio e cartas­ relatórios de seus adversários, sua figura não possui contornos nítidos, como também porque nada deixou sobre sua vida nos anos que antecederam à primeira viagem. Desse período, oferece escassas informações, salvo quando narra seus anos de peregrinação e súplica junto aos reis portugueses e espanhóis, ou quando apresenta suas credenciais de navegante e cartógrafo nas disputas com Sagres e Salamanca, ou, enfim, após 1500, quando deixa transparecer de modo explícito o tom do profetismo milenarista joaquimita. Os vários documentos – cartas aos reis, ao papa, a religiosos, a administradores, ao filho; o testamento; disputas econômicas e legais; trechos dos diários de bordo; anotações em livros de cabeceira – revelam uma personagem enigmática: ora é o cientista e técnico, ora o místico iluminado, ora o administrador incompreendido (ou incompetente), ora o calculador ávido e mesquinho, ora o ambicioso, ora o bárbaro que pretende escravizar os índios, ora o primeiro “teórico” do bom selvagem.

Mesmo os diários de bordo são estranhos. Na primeira viagem, marca erradamente as distâncias, afirmando que o faz para não causar temor e pânico numa tripulação que esperaria um percurso mais curto e breve. Como escreve Las Casas, “descreveu essa viagem de duas maneiras: a menor foi a falsa e a maior, a verdadeira”, de sorte que, até hoje, não sabemos o dia em que efetivamente a terra foi vista, nem o lugar exato onde aportaram as caravelas. Receio dos marinheiros e de Pinzón, como as relações foram ruins desde o começo? Medição diferenciada para diferentes destinatários, o rei de Portugal devendo receber a verdadeira e Isabel, a falsa? Ou, simplesmente, dois mapas (o.de Toscanelli e o seu próprio) marcando diferentemente os graus de distância entre as latitudes e as longitudes? Quando a bússola, na terceira viagem, passa a marcar noroeste, em vez do norte apontado pela estrela polar, afirma (e isto, antes da obra de Copérnico!) que é a estrela que se move no céu e que a bússola continua exata. Capaz de tal discernimento, no entanto, quando atravessa o mar dos Sargaços (que ainda não recebera tal designação), anota nomes de plantas e de pássaros terrestres que ali não existem, afirmando que a terra está próxima, quando, em verdade, ainda está _distante. Chegado a terra, sua descrição do local é tão imprecisa que ninguém, até hoje, consegue saber aonde teria chegado nesse primeiro dia. Ao prosseguir no reconhecimento das terras e das gentes, tanto na primeira quanto nas viagens seguintes, sua conduta é das mais esquisitas: a descrição da fauna, da flora, da geografia, do terreno nos parece fantástica e não menos fantástica a descrição dos “índios” e de seus primeiros contatos com eles, num entendimento perfeito.

A descrição dos nativos – belos, altos, destemidos, bronzeados, robustos, de indescritível formosura – bem como a narrativa dos diálogos que com eles entabula em toda parte (pois, a não ser nos primeiros dias, a linguagem não é a dos gestos, mas de complicado protocolo e longas explicações sobre os reis de Espanha e a cristandade) parecem implausíveis, tal a quantidade de informações detalhadas e precisas que deles recebe sobre os canibais, as minas de ouro, os rios de pérolas, os costumes dos reis locais. Desses primeiros contatos, ficarão, porém, os dois traços que, durante cinco séculos, regerão as relações complicadas e contraditórias entre o etnocentrismo europeu e os nativos da América: de um lado, a descrição positiva pelo negativo (sem lei, sem rei, sem fé, sem armas mortíferas, sem cobiça e sem mercado), de outro lado, a avaliação do mercador de escravos (mão-de-obra farta, barata, dócil, inteligente para as coisas manuais, mas sem verdadeiro espírito, adaptável às condições europeias e braço forte para a colonização). Entre ambas, o momento fugaz em que o encontro poderia ter sido possível e se perdeu: o relato em que os “índios” chamam os recém-chegados de “habitantes do céu”, na verdade (como a etnologia do século XX mostraria, tarde demais), de “filhos do sol”, isto é, o duplo, outra metade que todo ser humano possui e que chegara até eles como o seu outro há muito esperado. Porque a fala e o gesto foram interpretados à maneira cristã, os que “vieram do céu” julgaram-se reconheci­ dos tais como se viam a si mesmos, isto é, como superiores.

As obsessões contidas nos relatos das viagens chegam a exasperar: Colombo mede obsessivamente os céus e os mares, indica, sem cessar, que navega do austro para o poente; incessantemente, busca rios e prova suas águas, descrevendo-as sempre como suaves, doces, salubres, mesmo quando julga estar no mar. Fala ininterruptamente em ouro, pedras preciosas, pérolas; refere-se sem cessar a Társis, Ofir, Setim. As terras ora são propensas ao cultivo de tudo quanto se queira nelas plantar, ora são espontaneamente férteis, oferecendo frutos e flores semelhantes aos mais belos lugares da Espanha na primavera. A temperatura, embora em certos momentos descrita como intoleravelmente quente, é sempre apresentada como amena e perfeita; “nem fria nem calor”. Ouve rouxinóis e pardais. Percebe, ao longe, dragões e sereias. Vê canibais. Navega num dos quatro rios do Éden. Pesca peixes “iguais aos de Castela”.

Porém, mais estranho de tudo é o ato que realiza a cada vez que aporta em terra nova. De fato, tendo partido da Espanha para levar mensagens dos Reis Católicos ao grão-cã de Catai e de Cipango e para fazer os primeiros contatos político-econômicos com os governadores das Índias, no entanto, ao aportar nas ilhas, Colombo finca o estandarte dos reis espanhóis no solo e, em nome deles, toma posse das terras descobertas. Ora, jamais poderia ele fazer isso, uma vez que, se chegara aonde imaginara haver chegado, aportara em reinos governados e possuídos. Mesmo que aceitasse a teoria medieval do rei como imperador de seu reino (rex in regno suo imperator), não poderia fincar estandartes e tomar posse de terras, pois a teoria aplicava-se apenas aos reis do mundo cristão. Assim, parece estranho que os reis, nas Capitulações, lhe outorgassem, já antes de partir, o título de vice-rei e governador-geral das terras “que descobrisse, como se não fossem impérios governados e com os quais manteria rela­ ções diplomáticas e econômicas. Sob esta perspectiva, a descrição dos “índios” como “sem rei, sem lei e sem fé” torna-se ainda mais incompreensível, pois, sendo índios, estavam sob a lei e a fé de seus reis, com os quais o almirante, supostamente, deveria firmar tratados.

Essas obscuridades e estranhezas da vida e do comportamento de Colombo levaram muitos a julgá-lo charlatão, louco e ambicioso além do permitido. Suas rixas com Pinzón, primeiro, e com Bobadilla, depois, levaram a tomá-lo por um homem sedento de poder e, ao mesmo tempo, irresponsável. Suas descrições fantásticas das novas terras acabaram, nos séculos XIX e XX, por torná-lo um homem anacrônico, um medieval com cabeça de Marco Polo em plena Renascença. Suas cartas aos reis e ao papa, ora aconselhando a vinda de sábios para estudar as novas terras e evangelizadores para cuidar das novas almas, ora propondo sem rebuços a escravização pura e simples e a exploração predatória da terra, fizeram supor que se tratava de um homem de má-fé, hipócrita e mesquinho. Esquecido e olvidado nos anos seguintes à descoberta, suplantado na memória pela figura de Américo Vespúcio que lhe roubaria até o direito de deixar o nome à posteridade do novo continente, Colombo ressurgiu, no período das guerras de libertação e independência da América, como referencial mítico de unidade continental, para sucumbir, hoje, às mais impiedosas críticas que o responsabilizam pela conquista e suas violências.

Seria preciso, no entanto, decifrá-lo com as contradições do mundo católico em crise, às vésperas da Reforma e da Contra-Reforma: do nascimento dos impérios marítimos e do mercantilismo; da economia extrativista e escravista, já praticada por portugueses e espanhóis na África e nas ilhas atlânticas. Seria preciso, sobretudo, não ler seus textos com olhos anacrônicos. Se lêssemos suas cartas e relatos de viagem – preferencialmente indo dos últimos para os primeiros e centrando a atenção no rela­ toda terceira viagem – talvez pudéssemos perceber, por meio das convenções literárias, das figuras e trapos de linguagem, das contradições perante a nova terra e as novas gentes, das obsessões com as medidas dos céus e mares, das fantasiosas descrições do novo mundo, dos pedidos feitos aos reis e ao papa, aquilo que para seu contemporâneo, Las Casas, aparecia como óbvio: o almirante havia, como ele próprio dissera, cumprido a profecia de Isaías e encontrado o Paraíso Terrestre. Lidos desta perspectiva, os textos colombinos revelam que, do primeiro ao último, Joaquim de Fiori ali se encontra: no relato da primeira viagem, pela referência aos mouros e a luta contra o Islã e na afirmação de que a viagem é feita em nome da Santíssima Trindade; na segunda, ainda uma vez pela referência à Santíssima Trindade e aos recursos que as novas terras trarão para a reconquista de Jerusalém; na terceira, pela afirmação de haver chegado ao Paraíso Terrestre e pela menção explícita ao “abade Joaquim”; na quarta, pela referência, ainda uma vez, à Santíssima Trindade e, explicitamente, a Joaquim de Fiori sobre a missão da Espanha. Nas cartas – ao papa, aos reis de Espanha e Portugal, a amigos, ao filho – Colombo é explícito sobre o significado de sua missão e de sua condição de mensageiro, sobre o cálculo do tempo até o final dos tempos e sobre o lugar especial de Isabel em sua empresa e em sua vida (real ou imaginária).

Assim; o que muitos chamaram de cosmografia fantástica e geografia quimérica do último dos medievais, pode receber uma outra interpretação, se lidas de um outro lugar, isto é, da perspectiva do milenarismo joaquimita, de um lado, e da organização do cosmos desenvolvida pela filosofia hermética da Renascença, de outro.

Dos medievais, Colombo recebe, além da influência dos espirituais franciscanos, a Ymago Mundi de Piere d’Ailly, a Historia Rerum, de Plínio, o Livro das maravilhas e a Descrição do mundo, de Marco Polo, as Viagens maravilhosas, de Mandeville. Dos renascentistas, recebe a esfera de Sacrobosco, os mapas de Toscanelli, a releitura dos animais, das plantas e da experiência, do pseudo-Teofrasto, o mito da Idade de Ouro, de Ovídio e a crença da filosofia hermética no Eldorado.

Como cristão católico romano, recebe, dos padres da Igreja, a geografia e astronomia de Ptolomeu, Beda, Sêneca e Aristóteles. Dos navegantes, relatos de viagens, técnicas de navegação, instrumentos novos. A mescla de textos de Joaquim de Fiori e de Pierre d’Ailly explica a preocupação com a contagem do tempo e a figura do mensageiro, de um lado, e a certeza de haver encontrado a ilha de Társis (a que deu o nome de Hispaniola), de outro[20]

Milenarismo: um gênero teológico-literário

Mescla de tradições lendárias judaicas, iranianas, helênicas, romanas, celtas e germânicas, o milenarismo – crença de que o tempo ou o século findará ao término dos mil anos de felicidade que antecedem ao Juízo Final – é um gênero literário e teológico que, quando articulado à ideia do Messias, pertence ao universo judaico-cristão. Deste podemos indicar fontes, símbolos principais e traços distintos, em face de outros gêneros quiliásticos.

Se considerarmos como sua formulação mais acabada a elaborada no século XII por Joaquim de Fiori, a partir de Raul Glauber e Anselmo de Havelberg, suas principais fontes são:

  • do Velho Testamento: o Livro das Revelações de Daniel (particularmente as cinco monarquias ou os cinco reinos, a contagem do tempo, a elaboração da figura do Messias como Filho do Homem e a abertura do livro dos segredos do mundo); as profecias de Ezequiel (particularmente, a visão do carro de Deus, a construção da Nova Jerusalém e a batalha entre Gog e Magog); as de Isaías (particularmente, sobre o resto de Israel, a dispersão e reunião do povo, a descoberta de novas terras e nações e a elaboração da grande imagem do Messias como Servo Sofredor) e as de Joel (sobre a ruína do mundo);
  • do Novo Testamento: as Epístolas de Paulo aos Romanos (sobretudo no capítulo 11) e aos Tessalônicos (sobretudo os capítulos 4 e 5, referentes ao Segundo Advento); nos Evangelhos Sinóticos, os pequenos apocalipses ou revelações finais em Marcos (capítulo 13), Mateus (capítulos 14 e 25), Lucas (capítulo 21); e o Grande Apocalipse de João de Patmos (que, além das revelações de Daniel, Isaías e Ezequiel, inclui as mitologias babilônicas, o combate final entre o Cordeiro e a Besta, a figura da Mulher, prostituta da Babilônia e Esposa do Cordeiro, que vence a Serpente, e a cerimônia completa do Juízo Final, desde a abertura dos Sete Selos e o soar das Sete Trombetas);
  • a partir da Idade Média, do lado judaico, é introduzida a Kaballah, em suas duas grandes versões, a popular messiânica do reino de Deus na terra e a intelectualizada, para a qual a salvação é individual, uma ascese através do conhecimento que prepara a vinda final do Messias cuja missão é reunir as centelhas de luz dispersas e restaurar o vaso do universo, restituindo-o à unidade inefável do Ein-Sof,
  • a partir da Idade Média, do lado cristão, há absorção da figura latina da Sibila de Eritreia (vinda Eneida de Virgílio e que profetiza o salvador nascido de uma virgem), da figura celta do mago Merlim (do qual provém a imagem da primavera do mundo pelo casamento do Messias com a Terra, o Messias imaginado como rei cavaleiro, portador de uma espada encantada e do cálice contendo o sangue de Cristo, recolhido por José de Arimateia, forma pela qual os cristãos incorporam em sua mitologia o antigo Graal dos celtas); a astrologia árabe (que inventa o astrolábio e afirma que Deus fala aos homens por dois meios: pela palavra profética e pelo curso dos astros, o que permitirá aos cristãos a interpretação astrológica dos sinais oferecidos sobretudo por Ezequiel e João).

O milenarismo pertence ao gênero apocalíptico,[21] isto é, das revelações dos segredos divinos feitas pela própria divindade, gênero que é literário porque a divindade ordena sempre que aquele que recebe a revelação registre num livro cuja abertura será fixada pelo próprio Deus. Eis por que os profetas do Velho Testamento e João afirmam, no momento em que se apresentam, que receberam a ordem de escrever, ou que receberam um livro que lhes foi ordenado devorar, ou que viram livros nas mãos de Deus ou dos anjos e arcanjos. Quais as características desse gênero literário? Em primeiro lugar, é uma escatologia uma soteriologia (escháton +, do grego, os acontecimentos finais ou tempos finais; ta escbata: as coisas finais. Soter, em grego, salvador) e possui forte conteúdo profético. Em segundo lugar é esotérico e a revelação se dá por meio de um anjo, de uma visão ou de uma viagem do visionário aos céus. Em terceiro lugar, possui uma estrutura dramática ternária: crise, julgamento e salvação, sendo marcado por uma divisão ou por um dualismo profundo que separa de modo absoluto o bem e o mal, o puro e o impuro, o justo e o injusto, tendo como fonte da divisão a dicotomia luz e treva. Sobretudo, em quarto lugar, é dominado pelo sentimento da iminência do fim dos tempos que tanto pode ser imanente, isto é, interno ao desenvolvimento dramático, quanto transcendente e impendente, isto é, uma ruptura súbita na ordem das coisas, percebi­ da por meio de sinais (fome, guerra, peste, cataclismas, corrupção dos costumes) e com a chegada repentina do salvador. Seja num caso como noutro, o tempo do fim é a batalha cósmica entre Cristo e o anticristo que será vencido para sempre. O milenarismo expressa, assim, o sentimento do caráter unitário do tempo e seu desenlace final, pondo uma conclusão ao mal e à treva e efetivando o término da temporalidade. Esotérico por seu caráter, dramático por seu conteúdo, literário pela forma, o gênero milenarista é simbólico por seu conteúdo.

Há símbolos da ordem histórica, isto é, da separação entre saeculum (tempo profano) e aeternum (tempo divino), expressa na contagem dos dias e noites, das semanas, das gerações, das horas (tempo da metade do tempo, sete noites e sete manhãs, setenta semanas, 1360 dias de sofrimento do povo etc.) ou pelo curso dos astros e o Zodíaco, operando, aqui, as imagens de conjunção e disjunção astral a partir dos sete planetas (entre os quais, o Sol e a Lua). Há símbolos do conflito ou o bestiário fantástico (dragões, serpentes aladas, leões alados, basilisco, grifos, gárgulas, animais mistos, cordeiros de onze chifres, a Besta, cujo número é 666 etc.); símbolos do horror presente ou os “dias de abominação, de desolação” (peste, fome, guerra, cativeiro, tirania, sofrimentos a que os escolhidos são submetidos, erupções vulcânicas, tufões, furacões, terremotos, incêndios). E há os símbolos do triunfo (o Cordeiro e a Esposa, o Papa Angélico, o Imperador dos Últimos Dias, o Rei Encantado ou Encoberto, a paz entre homens e feras, a descrição da Jerusalém Celeste-Terrestre, o Paraíso Terreal).

Embora, hoje, considere-se o milenarismo a expressão política das classes populares, pois elas o incorporaram em seu ideário de catástrofes e esperanças, o gênero milenarista origina-se nas camadas da intelligenzia judaica e cristã, sendo extremamente sofisticado e complexo em sua elaboração. Sua absorção por parte das classes populares não é inexplicável. Além de oferecer uma interpretação imagética e simbólica para um mundo que aparece como sem sentido, as promessas da esperança milenarista possuem ressonância imediata para os sofredores do século:

  • perspectiva salvífica, referida não ao indivíduo, mas à coletividade constituída como comunidade dos justos e santos;
  • perspectiva terrena, pois a Nova Jerusalém e o Reino de Deus devem realizar-se neste mundo e não noutro;
  • a salvação total, uma vez que o tempo do fim será a transformação completa de toda a vida na terra, a nova realidade não sendo aperfeiçoamento do existente, mas sua derrubada para que, das ruínas, qual Fénix renascida, haja nova criação;
  • messiânica, visto que a criação do Reino dos Justos e Santos exige a vinda do Messias (para os judeus) ou a Segunda Vinda de Cristo em “glória e majestade” para “vingar os vivos e os mortos”;
  • cósmica: a mudança não diz respeito a este ou àquele aspecto do mundo humano ou do mundo em geral, mas envolve a transformação radical e absoluta de toda a Terra e de todos os Céus, da realidade por inteiro. O reinado do anticristo é visto como conflagração universal, luta final entre a treva e a luz, e o Reino dos Mil Anos, que precederá o Juízo Final, só poderá ser um reino de perfeição, pois instala-se após o combate último entre as forças do bem e do mal;
  • o milênio é anunciado por sinais dos tempos (os símbolos da catástrofe e do conflito), e exige profetas que preparem a vinda do Messias. O primeiro sinal é a presença do anticristo e da chegada de seu primeiro adversário (Papa Angélico, Rei Encoberto, profetas e mensageiros) cuja tarefa é dupla: por um lado, formar a comunidade dos justos que antecipa, em sua organização, o Reino dos Mil Anos (a reunião dos pobres, fracos, oprimidos, separados dos ricos, fortes e opressores); de outro lado, iniciar o combate, enquanto aguarda a vinda do Messias, preparando-se para lutar ao seu lado e receber o trono do Reino dos Mil Anos, até o dia do Juízo.

Este último aspecto é decisivo, pois revela que o milenarismo não é esperança passiva, mas combativa e ativa, exigindo a oposição entre o novo século e o velho século opressor. Eis por que as comunidades milenaristas tendem a tornar-se antinomianistas ou anarquistas em face do “velho século”, criando outras leis e valores que antecipam a boa cidade do “novo século”. Donde as utopias milenaristas serem sempre ou a de cidades perfeitas ou a de jardins paradisíacos, arrastadas em dois sentidos contrários e complementares: a restituição do passado perfeito – o Paraí­ so Perdido – e a construção do porvir de felicidade – a Nova Jerusalém, ou Nova Atlântida, ou Cidade do Sol, ou, simplesmente, Utopia. Com isso, o elemento utópico organiza-se em seus dois grandes eixos, quais sejam, o do tempo perfeito (o reino de Deus) e o do espaço perfeito (a cidade de Deus). Em ambos, Deus se torna para sempre manifesto, orientando o saber e seu avanço, a justiça, a paz e a felicidade. A barreira entre o sagra­ do e o profano se dissolve tanto pela sacralização da vida quanto pela laicização do conhecimento. Essa dissolução significa o que a modernidade propunha no final da Renascença – o encantamento do mundo – e aqui­ lo de que se despediu à medida que a ciência avança, trazendo o desencantamento do mundo. Colombo, Las Casas, frei Martin de Valência, Menasseh ben Israel, Vieira são homens do encantamento do mundo. E beiram perigosamente a heresia.

A ortodoxia antimilenarista: a história teológica

O pensamento grego tomava o tempo sob duas grandes perspectivas: como “número do movimento”, no dizer de Aristóteles, isto é, como movimento incessante de geração e corrupção dos seres, transformação e alteração na qualidade e na quantidade de coisas, sucessão linear de instantes e conflitos dos contrários (o devir, em que o tempo é a linha reta, começo e fim dos seres imperfeitos); e o tempo pensado como ciclo, círculo e repetição periódica, imagem da eternidade, para uns, a própria eternidade, para outros. Fundamentalmente, o tempo grego é o tempo da Natureza da qual o homem participa, contado pela sucessão dos dias e das noites, das estações do ano, dos ciclos reprodutivos dos animais e das plantas, pela mudança dos ventos e, sobretudo, pelos acontecimentos da cidade (guerra e paz, jogos e torneios dramáticos, subida ou queda de governantes bons ou de tiranos, decadência de uma forma política e sua passagem para outra). Esse tempo é animado pelo não-tempo, isto é, pela origem ou pelo tetos último. Também naturalizado, o tempo dos romanos introduz na concepção grega um novo elemento, qual seja, a ideia de uma ligação interna entre o passado e o presente dos humanos (isto é, dos romanos). A ideia, essencialmente romana, do tempo político como fundação (situada no passado da cidade) e religião (vínculo interno entre o presente da cidade e seu passado fundacional), introduz o humano no tempo, pois a origem de Roma, a partir do ato da vontade heroica do fundador, separa dois momentos da temporalidade e levará Virgílio, na época clássica, à ideia de Roma como Cidade Eterna, porque seu presente e seu futuro estão em seu passado, em sua fundação, em sua antiguidade.[22] Companheira inseparável do tempo, a Fortuna, com sua roda de repetição e vontade caprichosa, introduz a contingência como pathos da ética, da política e da história, mas também força o médico e o político a associarem-se ao tempo como ocasião ou tempo oportuno, kairós, e o historiador a pensar nos grandes acontecimentos como movimento de equilíbrio ou de compensação (isa pros isa) no qual a Fortuna, ora girando a roda num sentido, ora noutro, garante a todos seu quinhão de glória e opróbrio. O tempo é memória e peripécia.

O judaísmo, porém, introduz uma concepção do tempo como algo dramático e humano[23]contado por genealogias e portador de três caracteres principais: é expressão da vontade de Deus e submete-se ao plano divino; é realização da vontade de Deus cujos instrumentos são os homens, de sorte que os acontecimentos narram a história do mundo como relação entre os homens e a divindade; pode ser decifrado porque Deus oferece a alguns homens o dom de interpretar os decretos e planos divinos e, por este motivo, o tempo é sempre profético, o futuro só ganhando relevância como cumprimento ou finalização do passado. Por ser um tempo humanamente referenciado – criação, queda e redenção -, o tempo é tecido pela promessa e por isso é sempre messiânico ou salvífico.

O cristianismo conservará a concepção judaica do tempo, a ela acrescentando, porém, elementos provenientes de duas concepções filosófico­ teológicas do helenismo, o neoplatonismo e o gnosticismo. Para ambos, o tempo será a linha reta descendente, no que se refere ao mundo, signo de queda, declínio, aumento crescente da imperfeição cuja sede é a matéria. Todavia, os neoplatônicos acrescentam à via descendente da processão, a linha reta ascendente da conversão, retorno à unidade perfeita e inefável do absoluto por meio do conhecimento e do êxtase. Por seu turno, os gnósticos afirmam a vinda de uma conflagração final em que o tempo se suprimirá a si mesmo e perdurará a perfeição da eternidade imaterial. Essa dupla concepção, aliás, não atinge apenas o cristianismo, mas também uma. das expressões intelectuais mais altas do judaísmo, a Kabballah[24].

O tempo como queda e ascensão ocupa santo Agostinho que, desde as Confissões, o interroga como enigma, pois é tempo pessoal – dramático e mutável – e tempo da ação providencial de Deus predeterminado e imóvel. Eis por que Agostinho, que será responsável pela ortodoxia da temporalidade cristã, separa o tempo como linha descendente do pecado e do homem sem Deus, e o tempo como linha ascensional de bondade e perfeição, tempo do mundo com Deus, isto é, tempo da Igreja. Por isso “só há salvação na ecclesia”, onde o tempo, através da liturgia, repete as, eras do mundo e se faz circular, sempiterno.

Afastadas heresias e heterodoxias, a Igreja, partindo de Agostinho, traça os sinais da história.

Internamente finalizada para realização do plano divino, a história é teologia:

  • é profética, possuindo dois sentidos simultâneos e tensos: de um lado, a profecia é rememoração (recorda a lei, oferece os sinais da transgressão e da cólera de Deus), mas, por outro lado, é promessa, “história do futuro”; tem uma face voltada para o que já foi e outra para o que será, e o cumprido se interpreta pelo prometido, enquanto o prometido é decifrado pelo que foi cumprido;
  • é providencial, unitária e contínua e, portanto, predeterminada, embora o plano da Providência só se deixe apanhar fragmentadamente pela interpretação de seus sinais secretos ou pelas revelações de Deus; os homens são suportes ou instrumentos da ação providencial transcendente;
  • porque profética, providencial e revelada, é uma teofania – revelação de Deus no tempo – e uma epifania – revelação da verdade no tempo; porque o tempo é constitutivo do plano e do saber deste plano, é uma teologia;
  • por ser providencial e drama da queda e da redenção, é soteriológica, promessa de salvação;
  • é apocalíptica, pois depende da revelação divina dos segredos finais do mundo;
  • é otimista, a linha ascensional da salvação significando progresso do espírito humano nos conhecimentos cuja totalização se dará no tempo do fim, quando “muitos esquadrinharão e o saber se multiplicará”, isto é, no dia do Juízo Final.

Aparentemente, portanto, tudo na concepção cristã da história convida ao milenarismo. Por que, no entanto, é ele transformado em heresia?

A oposição entre ortodoxia e heresia milenarista não é repentina nem se origina por um simples confronto na interpretação dos textos bíblicos, mas resulta de um processo longo, de natureza política, que se desdobra desde os antagonismos judeus e cristãos, de um lado, e entre os cristãos e o Império Romano, de outro. De modo grosseiro, podemos falar em três momentos principais da elaboração do tempo que, no caso dos heterodoxos, culmina no milenarismo joaquimita:

  • Período da disputa inicial do cristianismo com o judaísmo e com o helenismo romano, quando surgem os principais textos apocalípticos cristãos, sob os efeitos da certeza da iminência da Segunda Vinda do Messias. Na Primeira Vinda, Jesus teria cumprido a profecia do Servo Sofredor e do Filho do Homem, enquanto na Segunda cumprirá a do Rei da Glória, instalando seu Reino na terra, como previram Daniel (7, 13-14), os Atos dos Apóstolos (1,6) e o Grande Apocalipse de João 09 a 22). Esse período, marcado pelas perseguições e pelas crônicas sobre os mártires, pelo apostolado exigido por Pentecostes para a preparação do dia final; pelas polêmicas em torno da Santíssima Trindade, estende-se até o século III.
  • Período de institucionalização da Igreja no interior do Império Romano, consolidada tanto pela força adquirida da Igreja de Bizâncio quanto pela de Roma e, posteriormente, pela conversão de Constantino e a oficialização do cristianismo como religião de Estado, fazendo esmorecer a esperança milenarista (que começa, então, a ser julgada como heresia) ao mesmo tempo em que surge uma forma propriamente cristã de historiografia, a história eclesiástica de cunho apologético – a Igreja é uma nação e sua história, a única verdadeira, porque história da Providência Divina que vinga seus mártires, e a única e una história universal. A historiografia eclesiástica, que substitui a biografia dos heróis e estadistas pelas vidas dos santos, institui uma nova cronologia, na qual a sucessão de bispos e bispados é acrescentada às listas de reis e magistrados pagãos, apresentando, no dizer de Momigliano, “o quadro da administração divina no mundo”. Com Lactâncio e Eusébio, surge a diferença entre boa e má história (a primeira, é cronologia e crônica dos santos; a segunda, dos hereges e gentios). Santo Agostinho, distinguindo entre a má e a boa Cidade (a Roma injusta e a Igreja, Civita Dei), fará com que história, igreja e nação ou cidade dos santos exprimam a luta entre Deus e o diabo. Porque a história é universal e apologética, sua tarefa é a defesa dos cristãos contra o paganismo, o judaísmo e as heresias. Com isto, o cristianismo dá mais um passo: a história é uma doutrina. Finalmente, porque a história é salvífica, inaugura-se a prática da cronologia universal para determinar a data do Juízo Final. Neste quadro, o milenarismo aparecerá como perigoso para a institucionalização e para o poder da Igreja, passando à condição de heresia judaizante, oficialmente condenada no Concílio de Éfeso de 431. Aqui, o ponto mais combatido foi o caráter público e coletivo do milênio, dirigido ao corpo e ao espírito, salvação de um povo todo, aqui e agora. A esperança, codificada pela ortodoxia, torna-se virtude (como a fé e a caridade), desliga-se do messianismo profético, afasta-se das ações que deveriam engendrar mudanças na vida presente, esvazia-se de conteúdo político e desloca-se para o futuro celeste e individual.
  • Período medieval, quando as lutas contra a instituição eclesiástica e a imperial, as crises, a corrupção da Igreja e do Império, a perda dos ensinamentos do cristianismo primitivo (particularmente a pobreza, a equidade e o amor ao próximo) levarão ao ressurgimento do milenarismo. Agora, a elaboração salvífica do tempo já recebeu as contribuições de outras culturas cristianizadas (magos e sibilas), da astrologia e da alquimia árabes e da Kabballah judaica. Os símbolos do tempo presente e do tempo futuro se enriquecem: pedras preciosas, animais, cores, plantas, astros, lugares, horas, números, figuras geométricas introduzem um aspecto novo na elaboração milenarista, qual seja, a previsão do tempo do fim pelo deciframento de uma pluralidade imensa de sinais do presente. Metais (como o ouro), minerais (como o diamante, o rubi e a esmeralda), ervas, conjunções astrais, números (como o 3, o 4, o 5, o 7, o 10 e o 12), eclipses e cometas, cores (como o branco, o azul, o vermelho, o verde, o cinza-chumbo e o negro), formas geométricas (como o triângulo, o quadrado, o pentágono e o círculo), proporções de harmonia sonora e luminosa, calamidades meteorológicas e políticas, peste, fome, seca passam a integrar o imaginário profético e visionário na previsão do milênio. O mundo se torna um livro de mistérios a ser decifrado com a ajuda do Livro e dos livros.

Do lado da ortodoxia cristã, dois postulados fundamentais expulsam a visão milenarista. De acordo com o primeiro, o milênio já se realizou com a Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. De acordo com o segundo, a Jerusalém Celeste já existe na terra: é a Igreja como congregação dos bons e justos, não havendo salvação fora dela. O centro da história é a Encarnação e a Ressurreição, de sorte que a expressão “mil anos de felicidade” deve ser entendida no sentido metafórico e não literal. A cronologia apresenta duas grandes divisões. A primeira visa manter a continuidade entre os dois Testamentos, isto é, trata-se da semana cósmica, que acompanha os sete dias da criação, exposta no livro do Gênesis, as eras do povo hebraico, culminando na sexta era, Encarnação e Ressurreição de Jesus (ponto de intersecção entre o Velho e Novo Testamento) e fundação da Igreja, ponto de separação com os judeus “endurecidos”, enquanto a sétima era, ou o Dia do Jubileu, virá depois do Juízo Final e será o fim dos tempos porque passagem ã eternidade. Os cristãos entram individualmente na sétima era, após a morte, e o milênio é, para eles, uma experiência puramente individual, o Juízo Final simplesmente reafirmando em público, o juízo que Deus já pronunciara, em privado, para cada um, encerrando o tempo terrestre. A segunda divisão do tempo, estabelecida desde os primeiros padres da Igreja, distingue três eras que, em lugar de unir continuadamente, separam o Antigo e o Novo Testamento: ante legem [antes da lei], o tempo do Pai, dos judeus, indo da criação do mundo à doação da lei a Moisés; sub lege [sob a lei], da lei de Moisés ao Advento, quando se inicia a nova lei, a de Cristo; e sub gratia [sob a graça], tempo do cristianismo, no qual a lei está escrita pelo Espírito Santo no coração de cada homem, que dela toma conhecimento pela graça divina (o batismo).

A esse fechamento do curso universal do tempo opõe-se, secreta e subterraneamente, o milenarismo que, no século XIII, ê trazido à superfície pela obra erudita do abade beneditino cistercence da Calábria, funda­ dor de uma nova ordem monástica, a das Flores, Joaquim de Fiori. Baseando-se no Apocalipse de são João, no livro das Revelações de Daniel, nas profecias de Isaías, nós oráculos sibilinos, na astrologia e nos visionários dos monastérios rurais da Itália, desenvolve uma visão pessimista do presente, cindido pelo cisma papal (um papa em Roma e outro na França), pela beligerância da Igreja nas cruzadas pela tomada de Jerusalém pelos mouros, pela invasão da Espanha por Saladino, pela corrupção dos costumes na Igreja e no Império, já contestados por são Bernardo e são Francisco de Assis. Joaquim de Fiori identifica Saladino como o anticristo, determina o ano de 1260 para o início do tempo do fim (que deve coincidir com o fim de Islã, cuja duração seria de seis séculos) e apresenta a primeira e duradoura teologia trinitária da história. Dividindo o tempo segundo a manifestação das três pessoas da Trindade, Joaquim de Fiori acredita que a natureza secreta de Deus tornar-se á manifesta no desdobramento dos períodos temporais. No fim dos tempos, sob a ação do Espírito Santo, as formas exteriores e legais do Evangelho (a letra) cederão lugar ao sentido interior (o espírito) e o significado místico das Sagradas Escrituras se fará plenamente conhecido no Evangelho Eterno, decifrado por Joaquim. No tempo do fim, o Espírito se manifestará na plenitude aos espíritos.

O milenarismo joaquimita[25]

Joaquim de Fiori não é o primeiro nem será o último teólogo a formular uma concepção milenarista, mas é, sem dúvida, o mais elaborado, o mais completo e o que deixou as marcas mais profundas na tradição cristã e na visão ternária da história, desenvolvida pelo ocidente europeu. Alguns chegam mesmo a considerá-lo “o mais significativo teórico da história na tradição ocidental” e não por acaso, Dante faz dele o único profeta cristão a entrar no Paraíso, depois de haver lançado no Inferno todos os outros como falsos, enviados do demônio que, enquanto vivos, não conseguem ver um futuro distante e, depois de mortos, são incapazes de ver o presente. Enquanto alguns de seus predecessores, como Rupert de Deutz, Raul Glauber e Anselmo de Havelberg desenvolveram concepções milenaristas serenas, em que o milênio se encontrava muito distante e vinha como decorrência natural do desenvolvimento espiritual da Igreja, Joaquim de Fiori, elaborando sua concepção no quadro das grandes conturbações religiosas e sociopolíticas dos séculos XII e XIII, oferece uma concepção pessimista que, justamente por isso, será mais duradoura, pois a esperança milenarista tenderá sempre a aparecer em épocas de crise.

Três são as preocupações de Joaquim: a interpretação das Escrituras, o mistério da Trindade e o significado do tempo. Como observa Marjorie Reeves,[26] Joaquim de Fiori busca resolver o problema medieval por excelência, isto é, como ligar os momentos móveis do tempo e a estrutura eterna e imóvel da realidade que é fundamento da fé. Resolveu o problema por meio de um intrincado e complexo sistema de diagramas e de imagens (símbolos, figuras, números, árvores, padrões) e pela afirmação de que a Santíssima Trindade é a estrutura do mundo e do tempo.

Os padrões são formados a partir dos números, símbolos ou místicos: 2 (símbolo da autoridade, donde dois Testamentos; duas Igrejas, a de Pedro – ativa, representando o Filho – e a de João – contemplativa, representando o Espírito Santo); 3 (símbolo da espiritualidade, donde a Trindade, as três eras do mundo); 5 (símbolo da atividade, donde as cinco igrejas que saem do tronco da de Roma, os cinco sentidos); 7 (símbolo da contemplação, donde os sete dons do Espírito Santo, os sete selos e as sete aberturas do céu, os sete planetas, as sete Igrejas que saem do tronco da Ásia, a Semana Cósmica); 12 (símbolo da missão, donde doze Patriarcas, doze Apóstolos e, no tempo do fim, doze Abades, as doze Igrejas, cinco saídas de Pedro-Roma e sete saídas de João-Ásia).

No padrão do 3, Joaquim de Fiori distribui as três grandes eras, mantendo a terminologia agostiniana, mas mudando-lhe o sentido: ante legem [antes da lei] é o tempo do Pai, dos homens casados, dos reis e cavaleiros, isto é, dos doze Patriarcas; sub lege [sob a lei] é o tempo do Filho, do Evangelho, dos eclesiásticos, da ação da Igreja, isto é, dos doze Após­ tolos; sub gratia [sob a graça] é o tempo do Espírito Santo, do Evangelho Eterno, da contemplação, dos contemplativos ou homens espirituais, isto é, os doze Abades do tempo do fim. O padrão do 5 simboliza a história em seus acontecimentos externos ou visíveis (são os cinco órgãos dos sentidos e a materialidade das coisas e dos eventos) enquanto o padrão do 7 simboliza a história em seus acontecimentos internos, invisíveis, espirituais (os sete dias da Semana Cósmica, os sete selos e as sete trombetas do Apocalipse, os sete dons do Espírito Santo). A soma de 5 e 7, isto é, o 12, representa a estrutura interna do tempo e este tempo é profético, pois o 12 significa missão (donde os doze pares de França, tão populares nos movimentos milenaristas brasileiros; os doze cavaleiros da Távola Redonda em busca do Graal; e os doze de frei Martin de Valência, na evangelização americana).

Cada padrão combina-se com os outros e juntos formam figuras (círculos, triângulos, quadrados, espirais) e árvores. Nestas, além de números e figuras, formam-se tríadas de idades, sentimentos e uma qualidade (uma cor, um metal, uma pedra, um vegetal, um perfume, uma hora do dia etc.). Esse conjunto qualitativo e quantitativo, referido à materialidade e à exterioridade, bem como referido à espiritualidade e à interioridade estabelece a estrutura total do tempo e o sentido da história como teofania e epifania que se encerra na terceira e última era, a do Espírito.

Joaquim de Fiori, nisto seguindo a tradição exegética rabínica, procura estabelecer as Concordiae, isto é, a concordância entre a letra e o espírito dos dois Testamentos (no caso dos rabinos, entre a lei escrita e a lei oral), entre eles a história eclesiástica oficial, entre esta e a história secular do presente e entre ambas e os conteúdos invisíveis do passado posto pela Bíblia. As Concordiae decifram o significado oculto dos textos e os reconciliam numa significação espiritual única. São elas o Quinto Evangelho ou o Evangelho Eterno, sabedoria suprema que se completará na plenitude do tempo, isto é, no tempo do fim. Assim, Deus possui os fios com que tece a história, fabricando estruturas e padrões internos, ou invisíveis para quem vê apenas a conexão casual externa.

Mais do que eras sucessivas, Joaquim de Fiori fala em status que se sobrepõem cumulativamente: o primeiro status, o do Pai e da Lei, é a scientia; o segundo status, do filho e da Graça, é a sapientia; o terceiro, do Espírito Santo e da Graça Plena, é o da plenitudo intellectus. A estrutura das eras e dos status é apresentada por duas figurae: a do alfa e a do ómega. Na primeira, o Pai, uno, não é enviado, mas envia dois, o Filho e o Espírito; na segunda, o Pai e o Filho, dualidade indivisível, enviam a unidade do Espírito. A primeira exprime a criação – o princípio – enquanto a segunda exprime o Reino de Deus – o fim. No primeiro status, o povo de Deus é uma criança que precisa da lei; no segundo, embora mais livre do que antes, o povo de Deus ainda precisa do auxílio exterior da graça; no terceiro, adulto, maduro e livre, o povo de Deus, espiritualizado e sábio, torna-se plenamente livre e autônomo. Alcança a perfeição. Adão, Uzias e são Bento figuram estes três status. Os homens espirituais ou contemplativos do terceiro status sucedem aos homens ativos do segundo, “como Salomão sucedeu David, João Evangelista sucedeu Pedro, Cristo sucedeu João Batista”. Assim, não sem motivo, no Diário da primeira viagem, Colombo escreverá aos reis que agradará a Deus que enviem às terras descobertas “homens doutos que verão a verdade de tudo”, os contemplativos sucedendo ao navegante ativo. Pela mesma razão, Savonarola dedica-se aos jovens florentinos, incitando-os à reforma moral e espiritual, pois serão eles os sucessores da reforma política que pretende realizar e essa pregação, como vimos, encontra um de seus resultados no jovem Alessandro Botticelli e sua Natividade mística. Também não por acaso, serão joaquimistas os Irmãozinhos Espirituais, radicalizando a reforma de são Francisco de Assis e tendo contra si a fúria inquisitorial de Bernardo Gui, tão bem retratado em O nome da rosa.

Joaquim de Fiori previra que o Reino dos Mil Anos começaria em 1260, com a vinda do papa Angélico, a destruição do Islã, a retomada de Jerusalém pelos cristãos e a reconquista da Espanha das mãos de Saladino. A profecia não se cumpriu. Muitos acreditaram que tal sucedera porque duas profecias de Isaías ainda não haviam sido cumpridas: a dispersão de Israel na direção dos quatro ventos e a reunião de todas as nações sob a mesma fé, profecia retomada por são Marcos, quando fala na evangelização de todas as nações. Os homens ativos ainda não haviam terminado sua missão para que os homens espirituais ou contemplativos pudessem manifestar-se.

Não bastavam as cruzadas. Era preciso cristianizar as Índias e a China, isto é, o Oriente. Por isso os Irmãozinhos Espirituais defenderão com ardor as viagens ao Oriente. Por isso, sob os auspícios do papa, viaja Marco Polo com a missão de avaliar as condições dessa evangelização, suposta tanto mais fácil quanto mais se acreditava na existência dos cristãos nestorianos do Preste João e do grão-cã, resultado do trabalho do apóstolo Tomé em terras orientais, na Árvore Seca, mencionada por Daniel no sonho de Nabucodonosor e que Marco Polo julgou ter visto, na Maçã Vermelha da estátua de Justiniano, em Constantinopla (maçã que simboliza o poder imperial perdido e que só será recuperado com a expulsão do inimigo das terras santas). Marco Polo acreditara que a retomada de Jerusalém seria feita com auxílio dos chineses e mongóis que, por esse motivo, seriam convertidos e auxiliariam na conversão de todo o Oriente para que, então, pudesse iniciar-se a terceira era, o tempo pleno e eterno do Espírito.

Joaquim de Fiori dissera ser necessário criar duas novas ordens religiosas para que o terceiro tempo pudesse começar: a ordem dos contemplativos (inicialmente a dos beneditinos cistercenses e agostinianos, depois a das Flores e, de acordo com os franciscanos, a sua própria) e a dos homens ativos, evangelizadores do Oriente. Esta segunda ordem, descrita por Daniel (14,14) com a imagem dos homens “sentados numa nuvem entre o céu e a terra”, feita de “justos que imitam perfeitamente a vida do Filho do Homem”, é retomada por Joaquim de Fiori numa visão extática, transcrita por ele na Exposição do Apocalipse:

pensamos naquele que estava sentado na nuvem branca e era como o Filho do Homem, significando uma ordem de homens justos aos quais será dado imitar perfeitamente a vida do Filho do Homem […] e ter uma língua instruída pregando o Evangelho do Reino e colhendo a colheita final do celeiro do Senhor […] Embora os que tivessem subido à nuvem branca da vida contemplativa fossem superiores aos que estavam envolvidos com os cuidados do mundo, os que subiram ao Templo que está no céu chegaram a uma forma de vida superior, pois a liberdade de ensinar e de pregar a doutrina espiritual na nuvem, é uma coisa, e a liberdade de amar a divina contemplaçào, outra […] Uma ordem se levantará que parecerá nova, mas nào é. Vestida em vestes negras e com um cinto por cima, aumentará e sua fama se espalhará por toda a parte […] pregará a fé e a defenderá até a consumação do mundo. Haverá também uma ordem de eremitas imitando a vida dos anjos. Sua vida será como um fogo ardente em amor e zelo de Deus para consumir e extinguir a má vida dos homens maus para que não abusem da paciência de Deus. Penso que, nesse tempo, a vida dos monges será como chuva regando a face da terra em toda perfeição e justiça do amor fraterno […] A primeira ordem [a dos contemplativos] será mais suave e agradável para recolher a colheita dos eleitos de Deus […]mas a segunda [a dos ativos] será como um fogo de amor no zelo de Deus e será mais corajosa e belicosa para colher a safra do mal no espírito de Elias.[27]

Essa nova ordem, feita de zelo e fogo, corajosa, belicosa e ativa na colheita dos eleitos, nascida na sexta era para preparar a sétima e última, foi interpretada por Inácio de Loyola como ordem divina para concretizar a visão profética de Joaquim, fazendo-o criar a Companhia de Jesus. Não nos surpreendemos, pois, com o texto da História do futuro, quando Vieira julga evidente serem os jesuítas a nuvem de Isaías, que paira sobre os mares, na América e no Brasil.

E não nos surpreendemos mais quando, desde o primeiro relato da viagem, Colombo insiste em que foi enviado “em nome da Santíssima Trindade”, embora somente na carta de 1501 mencione o abade Joaquim Calabrês, as eras do mundo e declare que sua empresa não careceu de “razão matemática e mapas-múndi” porque simplesmente “cumpriu-se a profecia de Isaías”.

Exegeta do Mundo Novo

Por calor nin por frio non perdie su beltat Siempre estava verde em su entegredat Non perdie la verdura nulla tempestat

Berceo, Milagros de Nuestra Señora

Sem dúvida, interesses econômicos, militares, políticos determinaram a formação do império ibérico ultramarino e seria faltar ao rigor histórico ignorá-los. Todavia, sabemos que, se as ideias jamais determinam o curso da história, pois são por ele determinadas, também é verdade que cada empreendimento histórico pede aos seus sujeitos que formulem um ideário que justifique e legitime sua ação para si mesmos e perante seus contemporâneos. É disto que estamos tratando aqui, do modo como a imaginação de Colombo, e as dos que vieram logo depois dele, buscaram compreender e justificar para si e para os outros as viagens ao “oriente pelo ocidente”. Se tivéssemos documentos do que pensava Martin Pinzón, por exemplo, talvez nossas considerações pudessem ser mais acuradas. Infelizmente, dele sabemos o que nos disse o almirante e nem sempre com boa vontade. Mesmo assim, teria sido difícil supor que a imaginação de Colombo tivesse sido contraditada por Pinzón e mesmo, por gente como Bobadilla ou Cortez, pois se Las Casas descreve a ação deste último como barbárie insuportável, o franciscano Mendieta não terá dúvida em considerá-lo novo Moisés, destinado a liberar os índios do “cativeiro asteca” para levá-los à Terra Prometida.

Nascido no mesmo ano que Lutero, escreve Mendieta, Cortez restauraria no Novo Mundo o que o reformador destruíra no Velho. A cidade do México, construída sobre os templos indígenas para soterrá-los e apagá-los da história, foi edificada para ser a Nova Jerusalém.[28]

Já assinalamos que Colombo parece ser uma figura contraditória, para não dizermos irresponsável e de má-fé. Gostaríamos, porém, de sugerir que a contradição não é de Colombo, mas da missão que deu a si mesmo e que se concentra numa palavra-imagem símbolo: o Oriente.

Oriente significa, de um lado, o conjunto de nações a serem convertidas e evangelizadas para que se cumpra a profecia do Reino de Mil Anos e possa acontecer o Segundo Advento, profecia que se encontra não só em Isaías, mas também no pequeno apocalipse de são Marcos; “Mas é necessário que, primeiro, o evangelho seja pregado a todas as nações” 03, 10). Todavia, simultaneamente, Oriente, desde a filosofia hermética, filosofia do sol, significa a pátria da perfeição e, na tradição judaico-cristã, o Paraíso Terreal, segundo sua localização no Génesis.

Iahweh Deus plantou um jardim em Éden, no oriente, e aí colocou o homem que modelara. Iahweh Deus fez crescer do solo toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer, e a árvore da vida no meio do jardim, e árvore do conhecimento do bem e do mal. Um rio saía do Éden para regar o jardim e de lá se dividia para formar quatro braços. O primeiro chama-se Fison; rodeia todo o país de Hévila, onde há ouro; é puro o ouro desse país no qual se encontram o obdélio e a pedra ônix. O segundo rio chama-se Geon; rodeia todo o país de Chuch. O terceiro rio chama-se Tigre; corre pelo oriente da Assíria. O quarto rio é o Eufrates. [2, 8-14]

Portador de dois significados excludentes – terra de comércio, habitada por gentios e infiéis, e paraíso terrestre feito de inocência, riqueza e abundância-, o Oriente impõe a Colombo uma dupla missão contraditória: chegar às Índias e à China, de um lado, localizar o Paraíso Terrestre, de outro. E é isto que o almirante não cessará de buscar. Sua ambiguidade com relação aos índios – ora descrevendo-os em estado de inocência e formosura, ora descrevendo-os como aptos à evangelização, ora propondo aos reis que sejam escravizados -, as obscuridades enigmáticas das medidas que pratica como cartógrafo e astrônomo, o aspecto fantástico de suas descrições dos lugares, da fauna, da flora e das gentes e o estilo de sua linguagem são sinais da dificuldade que o símbolo Oriente lhe impõe.

A suposição, levantada por muitos, de que o lado místico do almirante aparecera na velhice, quando carecia de fortes argumentos para convencer aos reis e ao papa a lhe concederem o direito de novas viagens às ”Índias”, não tem fundamento. No dia 21 de fevereiro de 1492, quando de regresso à Europa e enfrentando dificuldades com comandantes portugueses das ilhas dos Açores que lhe barram o caminho, forçando-o a bus­ car, sob tempestade, um porto e não encontrando qualquer um que lhe pareça conveniente, no Diário de Bordo registra:

Estava assombrado como todo esse mau tempo que fazia nessas ilhas e paragens, porque nas Índias andou meses a fio sem necessidade de ancorar, e sempre encontrava tempo bom e que em nenhuma ocasião se deparou com um mar que não pudesse navegar, e que nessas ilhas havia passado por tão grave temporal, o mesmo tendo-lhe acontecido, durante a ida, até às ilhas Canárias; mas que, além delas, sempre encontrou clima e mar de grande temperança. Concluindo, diz o almirante que bem disseram os sagrados teólogos e os sábios filósofos ao afirmar que o Paraíso terrestre está nos confins do Oriente, porque é um lugar temperadíssimo. De modo que as terras, agora descobertas, são os confins do Oriente.[29]

A diferença entre o relato da primeira e da terceira viagem encontra­ se apenas na cautela de Colombo. Na primeira, produz um curioso silogismo onde há premissas, mas não há conclusão aparente, pois, sem afirmar que encontrou o Paraíso Terrestre, afirma, todavia, ter descoberto as terras dos “confins do Oriente”, temperadíssimas e, nas quais, os “sagrados teólogos e filósofos” acertaram em localizar o Paraíso. Na terceira, Colombo é explícito:

[…] e eu afirmo que esse rio [o 0renoco] emana do Paraíso Terrestre e de terra infinita, pois do Austro até agora não se teve notícia, mas a minha convicção é bem forte de que ali, onde indiquei, fica o Paraíso Terrestre, e em meus ditos e afirmações me apoio nas razões e autoridades supracitadas[30].

A maioria dos intérpretes dos documentos colombinos sente-se perplexa diante dos textos e costuma optar por uma entre duas alternativas: ou o almirante é uma cabeça cheia de fantasias medievais com mãos que usam técnicas modernas, ou o almirante é um visionário que inventa uma cosmografia e uma história natural fantásticas. Ora, não estamos diante de duas alternativas, pois as duas interpretações são corretas e não se excluem. A elas faltaria, apenas, acrescentar que estamos também diante de um homem da Renascença e que isto acarreta duas consequências.

Em primeiro lugar, a presença, em seus textos, de, pelo menos, três traços renascentistas: o desejo da glória pelos feitos memoráveis, como os dos Argonautas e os de Salomão, com os quais Colombo se compara; a busca da origem como perfeição e não como queda originária, isto é, o renascer como restitutio e instauratio, restituição e restauração da primavera do mundo e da dignidade do homem na Natureza, contra o envelhecimento e a caducidade do tempo presente, ânsia por um mundo novo onde o homem possa regenerar-se, à espera do Dia do Juízo (ânsia que transparece nos planos grandiosos de Colombo para a ocupação das novas terras); e a percepção do mundo segundo a organização da filosofia hermética, portanto, como mundo natural (onde o homem opera com a magia natural – donde a preocupação de Colombo em fazer vir ao novo mundo sábios que possam conhecê-lo e melhor aproveitá-lo), o mundo celeste (onde o homem opera com a matemática mística donde os estranhos cálculos e medidas do almirante) e o mundo supraceleste (onde o homem opera em consonância com a inteligência e a vontade divinas – e que, no caso de Colombo, dependerá de que se cumpram as profecias para que o homem entre no status final da plenitudo intellectus.)

Em segundo lugar, sendo um medieval e um renascentista, Colombo usa os textos medievais à maneira da Renascença. Em outras palavras, Colombo decifra, interpreta, realiza a hermenêutica de um mundo que já é livro e já está contido em livros. Colombo é o exegeta do novo mundo, ou do “outro mundo”, como ele próprio escreveu. O Mundo Novo já existe como texto e como livro antes da viagem que, justamente, apenas o descobre, retirando o véu do que estava encoberto. Antes que, no dia 3 de agosto de 1492, enfunadas as velas, Colombo parte de Palos e antes que, dobradas as velas, no imaginário dia 12 de outubro de 1492, alcance um porto, o Mundo Novo já está escrito. Usando a literatura disponível, Colombo não faz senão retomar seus topói, não faz senão comentá-la e interpretá-la pelos signos que sua experiência lhe vai mostrando. Em lugar de a experiência ensinar-lhe mais do que os livros ou invalidar os livros, é submetida a eles, pois somente eles podem torná-la inteligível. Isto não o faz um medieval. Quando Bacon, por exemplo, critica magos e alquimistas, seus contemporâneos, por deixarem-se guiar pelos livros, ídolos da tribo e do teatro, situa-se no ponto final da cadeia renascentista e no início da modernidade. Quando Kepler afirma, contra Fludd, que sua astronomia se faz more mathematico e não more hermetico, isso não lança Fludd no medievalismo, e sim empurra Kepler para a modernidade.

Para Colombo, o livro do mundo foi escrito duas vezes: por Deus, ao criá-lo, nomeando a criação; e pelas criaturas que interpretaram a obra divina. A Colombo resta a tarefa das concordiae, isto é, interpretá-lo, produzindo a conformidade entre os dois livros e seu olhar de navegante. Colombo olha, mas em lugar de ver, lê. Leitura que é comentário, deciframento e adequação entre as palavras e as coisas. No entanto, porque também deseja a glória imortal dos novos feitos, Colombo deixa que sua experiência tenha força e prestígio para negar e contestar os textos, dando-lhe o lugar almejado: o do descobrir que é conquistador, vencendo os preconceitos da tradição.

Qual é a biblioteca que guia o olhar de Colombo? De Plínio, sabe, por exemplo, que as plantas se classificam em ervas de vaso, ervas medicinais, cereais, legumes, flores, capim, ervas daninhas e árvores. É assim que seleciona e descreve a flora americana. Da mesma fonte sabe que os animais se dividem em comestíveis e não comestíveis, ferozes e mansos, úteis e inúteis, aquáticos, aéreos e terrestres, raros e comuns. É desta maneira que descreve a fauna americana. De Beda, Aristóteles, Sêneca, Ovídio e da Bíblia, possui informações sobre os seres mistos e por isso verá sereias, sílfides, dragões, serpentes com chifres, nas brumas distantes dos mares e montanhas. De Marco Polo, possui as descrições sobre o grão-cã, a Árvore Seca, o Preste João, a Maçã Vermelha e por isso procura signos de sua localização e tenta encontrá-los. Dos navegantes, possui a descrição e a narração sobre a história das Canárias e Cabo Verde, da Mina e dos cristianizados por são Tomé. Deles, sob a influência de Plínio, Beda e outros autores cristãos, possui a descrição das Ilhas Afortunadas, daquele Brasil de que falavam os mitos irlandeses, e as cosmografias cristãs que fazem delas o portal do Paraíso. De Pierre d’Ailly, recebe a certeza da existência dos antípodas, das riquezas incalculáveis das ilhas do mar das Índias, que as águas do mundo são mais escassas do que as terras e que por isso é muito fácil e rápido passar da Espanha às Índias. Eis por que Colombo insiste, já na primeira viagem, em haver encontrado muito ouro, pedras preciosas, prata, pérolas e sobretudo, ao realizar suas medidas, afinal, oferecia duas, das quais, como observou Las Casas, uma, a maior, era a verdadeira – sua experiência real – e a outra, menor, era a falsa – a teoria de D’Ailly e Aristóteles.

Por que insiste na temperatura amena, na terra fértil, nas águas doces e copiosas, nas gentes belas e saudáveis?

Sempre os mesmos elementos se tinham apresentado como distintivos da paisagem do Éden ou que pareciam denunciar sua proximidade imediata: primavera perene ou temperatura sempre igual sem a variedade das estações que se encontra no clima europeu, bosques frondosos de saborosos frutos eprados férteis, eternamente verdes ou salpicados de flores multicoloridas e olorosas, cortados de copiosas águas (usualmente quatro rios, segundo o padrão bíblico), ora em lugar elevado e íngreme, ora numa ilha encoberta em que mal se conhece a morte ou a enfermidade ou mal algum.

Desses elementos, sabemos que muitos viriam encontrá-los os navegantes quando aportassem nas terras mais chegadas à linha equinocial, em particular o das folhas sempre verdes. E não lhes pareceria de má filosofia concluir que, existindo nelas algumas dessas virtudes, não haveriam de faltar todas as mais, que pudessem completar o panorama edênico.[31]

Por que a obsessão do almirante em repetir ad nauseam que vai ao poente pelo austro, senão porque a cartografia teológica, inspirada num Isaías traduzido para o latim, situa o Paraíso na terra australis? Por que insiste em fazer da Hispaniola a redescoberta de Társis, Ofir e Setim, senão porque são ilhas bíblicas mencionadas na profecia da reunião das naçôes e porque são as Ilhas Afortunadas, limiar do Paraíso? Por que a certeza de haver chegado ao Paraíso ao encontrar a foz do Orenoco, senão porque o texto do Gênesis recorta o Éden com quatro rios que a tradição fará atravessar a terra inteira, enlaçando-a, e porque D’Ailly descreve os rios edênicos como rios de copiosa opulência que correm com ferocidade e estrondo (haveria estrondo maior do que a pororoca que Colombo presencia na foz do Orenoco)? Que outra razão haveria para que anotasse nos diários das várias viagens o gosto agradável das águas, mesmo quando sabe que está no mar, senão porque, em sua biblioteca cristã, os quatro rios do Paraíso correm por sob a terra e, portanto, onde quer que se vá, no Oriente, forçoso será encontrá-los?

Por que insiste Colombo na descrição das embarcações em que os índios vinham ao seu encontro, senão porque correspondiam aos “papiros” da profecia de Isaías? Por que, na terceira viagem, relata que os índios vinham cobertos de ouro e de pérolas e “mostravam como os colhiam”, senão porque, segundo o próprio almirante:

[…] se as pérolas, como diz Plínio, nascem do orvalho que cai nas ostras abertas, há muita razão para havê-las porque ali cai muito orvalho e há infinitíssimas ostras e muito grandes e porque ali não há tormenta, mas um mar sempre sossegado, sinal do que é haver árvores até entrar no mar que mostram nunca haver tormenta e cheias de infinitas ostras pregadas em seus ramos[32].

Por que, no relato da terceira viagem, ao descrever a chegada aos confins do Oriente e a visão direta do local onde se situa o Paraíso, Colombo fala em “desconformidades nos céus”, vê sereias e serpentes aladas, encontra um “calor tão forte e sol tão ardente que pensei que fosse me queimar, e por mais que chovesse e o céu estivesse muito nublado, sempre me sentia cansado[33] senão porque está a oferecer todos os sinais com que a tradição cercara o fim do mundo para proteção do Paraíso, rodeado de montanhas intransponíveis e de muralhas de fogo?

No entanto, em honra ao descobridor, é preciso vê-lo ainda (o que também é um traço do homem renascentista) contestando a tradição. Não apenas aquela que impusera obstáculos para chegar às Índias navegando pelo Ocidente, mas também aquela, contraditória, que, por um lado, lhe impunha encontrar riquezas fabulosas, se houvesse chegado às ilhas das Índias e às dos mares que rodeiam o Paraíso, e, por outro lado, lhe impunha aceitar que o Paraíso era inatingível. Em outras palavras, a tradição que lhe impediria alcançar a glória do Descobrimento.

Assim, a ruptura com a primeira face da tradição – a que o força a descrever e prometer: aos reis riquezas inexistentes – surge no relato da quarta e última viagem quando, finalmente, são descobertas as primeiras minas de ouro reais. Colombo pode, agora, escrever:

Quando descobri as Índias, disse que era o maior repositório de riquezas do mundo. Falei de ouro, pérolas, pedras preciosas, especiarias, com os comércios e as feiras, e como tudo não apareceu com a rapidez esperada, fui alvo de insultos. Essa lição me ensinou a falar só no que ouço dos nativos da terra. Por isso, agora, ouso afirmar, porque há muitos testemunhos, que vi nes­ ta terra de Verágua maiores indícios de ouro nos dois primeiros dias do que na Hispaniola em quatro anos […] Jerusalém e o Monte Sião hão de ser reconstruídos por mãos cristãs. Quem há de ser, é Deus, pela boca do profeta do décimo quarto salmo, quem diz. O abade Joaquim achou que deveria sair da Espanha.[34]

Sintomaticamente, nessa quarta viagem, Colombo, enfim, declara ser uma pena que não pudesse conversar com os índios, mas a barreira da língua é considerada intransponível. A certeza de haver encontrado ouro permite-lhes, agora, submeter-se aos dados da experiência.

A ruptura com a segunda face da tradição surge no relato da terceira viagem, quando Colombo altera a forma e o lugar do Paraíso.

Que dizia a tradição?

Indagou o frade itinerante sobre o Paraíso Terrestre, e lhe disseram os homens sábios que se achava ao alto de montanhas, tão elevadas que atingiam o círculo da lua. “E ninguém”, acrescentaram, “pode vê-lo completamente, pois umas vinte pessoas que lá foram não chegaram a divisá-lo mais de três, e jamais se soube de alguma que tenha escalado as ditas montanhas. Afirmam uns que o viram do levante e outros do poente. Declararam também que, entrando o sol em Capricórnio, passam a vê-lo para o lado do leste e, quando entrou em Gemini, vêem-no para o sul.”

Ajuntaram ainda que estão aquelas montanhas inteiramente circundadas de mares profundíssimos, e que da água desses mares saem quatro rios, os maiores do mundo. Chamam-nos Tigre, Eufrates, Gion e Ficxion, e regam a Núbia e a Etiópia. Tamanha bulha fazem as suas águas que podem ser ouvidas a uma distância de quatro dias de viagem. Todos aqueles que moram em suas proximidades são surdos, e não poderiam escutar uns aos outros por causa do barulho que fazem as torrentes. A todo tempo bate o sol nas montanhas e é dia ou noite em um ou outro lado. Isto porque metade deles fica aquém e a outra metade além do horizonte, de sorte que não há no topo jamais frio, nem trevas, nem calor, nem secura, nem umidade, mas reina constantemente uma temperatura igual[35].

Que diz o almirante? Embora longo, seu texto merece ser citado quase integralmente:

Quando naveguei da Espanha para as Índias logo verifiquei, ao passar cem léguas a Poente dos Açores, uma enorme diferença no céu e nas estrelas, e na temperatura do ar e nas águas do mar, e de muito me valeu a experiência[…]

Sempre li que o mundo, formado por terra e água, era esférico, e as autoridades e experiência de Ptolomeu e tantos outros, que descreveram essa região, comprovavam isso, quer pelos eclipses da Lua e outras demonstrações que fazem de Oriente para Ocidente, como da elevação do pólo em Setentrião em Austro. Agora vi tanta desconformidade, como já disse, que passei a considerar o mundo de maneira diversa, achando que não é redondo do jeito que dizem, mas do feitio de uma pêra que fosse toda redonda, menos na parte do pedículo, que ali é mais alto, e que essa parte do pedículo seja mais elevada e como uma esfera muito redonda, como um seio de mulher e mais elevada ou próxima do céu, e se localize abaixo da linha equinocial, neste mar Oceano, nos confins do Oriente. Eu chamo de confins do Oriente o ponto onde acabam toda a terra e as ilhas, e para isso acrescento todas as razões já descritas sobre a linha que passa ao Ocidente das ilhas dos Açores a cem léguas de Setentrião em Austro, que, ao passar dali ao Poente, já vão os navios erguendo-se suavemente para o céu, e então se goza da temperatura mais branda e se muda a bússola de navegação por causa da brandura dessa quarte de vento; e quanto mais se avança e se ergue, mais noroeste ia, e essa altura causa a alteração do círculo que a estrela do Norte descreve· com a constelação da Ursa Menor; e quanto mais eu me aproximar da linha equinocial, mais :alto subirão e maior será a diferença entre as referidas estrelas e seus respectivos círculos.

A Sagrada Escritura atesta que Nosso Senhor criou o paraíso terrestre, nelecolocando a árvore da vida, e de onde brota uma fonte de que resultam os quatro maiores rios deste mundo: o Ganges na Índia; o Tigre e o Eufrates, que separam a serra, dividem a Mesopotâmia e vão desembocar na Pérsia, e o Nilo, que nasce na Etiópia e acaba no mar, em Alexandria. E não encontro nem jamais encontrei nenhuma escritura de latinos ou gregos que indique, com segurança, o lugar em que se situa neste mundo o Paraíso terrestre; nem tampouco vi em nenhum mapa-mundi, a não ser localizado com autoridade de argumento. Alguns o colocavam ali onde ficam as fontes do Nilo, na Etiópia; mas outros percorreram todas essas terras e não encontraram nenhuma correspondência na temperatura do ar, na altura até o céu, pela qual se pudesse compreender que era ali, nem que as águas do dilúvio houvessem chegado até lá, as quais cobriram tudo, etc. Alguns infiéis tentaram provar, com argumentos que ficava nas ilhas Fortunatas, ou seja, as Canárias […] Creio que, se eu passasse abaixo da linha equinocial, ao chegar lá, mais alta, encontraria temperatura muito maior e diferença nas estrelas e nas águas; não porque creia que ali onde a altura seja máxima seja também navegável ou haja água, nem que se possa subir até lá, mas porque creio que ali é o Paraíso terrestre, aonde ninguém consegue chegar, a não ser pela vontade divina. E creio ainda que esta terra que Vossas Majestades agora mandaram descobrir seja imensa e tenha muitas outras no Austro, de que jamais se ouviu falar.

Sei perfeitamente que as águas do mar levam seu curso do Oriente para o Ocidente, junto com os céus, e que ali, nessa região, quando passam, fazem rota mais rápida, e por isso devoraram tanta parte da terra. Porque por isso existem aqui tantas ilhas e elas mesmas prestam testemunho disso, porque todas, sem exceção, são largas de Poente a Levante e de Noroeste a Sudeste, que é um pouco mais alto e mais abaixo; e aqui, em todas elas, nascem coisas maravilhosas, por causa da amena temperatura que lhes emana do céu, por estar na parte mais alta do mundo […]

[…] do rio e do lago que ali encontrei, tão grande que seria mais justo considerá-lo mar, pois “lago” é lugar de água e, sendo grande, se diz “mar”, como se chamou ao mar da Galileia e ao mar Morto -, e eu afirmo que esse rio emana do Paraíso terrestre e de terra infinita, pois do Austro até agora não se teve notícia, mas a minha convicção é bem forte de que ali, onde indiquei, fica o Paraíso terrestre.[36]

No entanto, se quiséssemos levar às últimas consequências os mal­entendidos da descoberta – não chegou aos “confins do Oriente”, não foi descoberta, mas conquista – talvez devêssemos lembrar a ironia do tempo numerado. Mesmo que admitíssemos que a América teria sido descoberta no dia que Colombo registrou em seu diário de bordo, portanto, 12 de outubro de 1492, ainda assim, teríamos que afirmar que tal não aconteceu e que a data correta seria 23 de outubro de 1492, pois Colombo usara o calendário juliano e nós usamos o gregoriano. Sendo o cálculo do tempo decisivo na perspectiva profético-milenarista, por erro nas datas, o almirante, afinal, não aportou, de fato e deveras, no Paraíso Terreal.

O PARAÍSO DESTRUÍDO

Quién puede dudar que la pólvora

contra los infieles es incienso para el Señor’

Oviedo, História general y natural de las Índias

Primeiro Las Casas, depois Montaigne, a seguir Vieira e, às vésperas da Revolução Francesa, o abade Reynal, foram algumas vozes que, impo­ tentes, ergueram-se contra o legado de Colombo: a conquista, o Paraíso destruído. Em 1975, uma mulher iroquesa afirmou:

Agora, eles começam a se reunir para o desastre seguinte e para a destruição do homem branco por obra de suas próprias mãos […] O tempo está próximo. E somente o índio conhece a cura para o mal. Somente o índio pode interromper esta praga. E, neste tempo, o invisível se fará visível, os surdos ouvirão e nós veremos e nos lembraremos.[37]

Para que avaliemos o que foi a obra da conquista, basta lermos alguns trechos de Oviedo, Las Casas e Sepúlveda, deixando de lado, por exemplo, o pavor de um Nóbrega diante da diferença religiosa, ou o sepultamento das cidades incas e astecas pelas edificações de Cortez ou Pizarro, sem mencionarmos o episódio de Potosí.

Comecemos com Oviedo:

O almirante Colombo encontrou, quando descobriu esta ilha de Espanhola, um milhão de índios e índias […] dos quais, e dos que nasceram então, não creio que estejam vivos, no presente ano de 1535, quinhentos, incluindo tanto crianças como adultos, que sejam naturais, legítimos e da raça dos primeiros índios […] Alguns fizeram esses índios trabalhar excessivamente […] Outros não lhes deram nada para comer, como bem lhes convinha. Além dis­ so, as pessoas desta região são naturalmente tão inúteis, corruptas, de pouco trabalho, melancólicas, covardes, sujas, de má condição, mentirosas, sem constância e firmeza que vários índios, por prazer e passatempo, deixaram­ se morrer com veneno para não trabalhar. Outros se enforcaram pelas próprias mãos. E quanto aos outros, tais doenças os atingiram que em pouco tempo morreram […] Quanto a mim, eu acreditaria antes que Nosso Senhor permitiu, devido aos grandes, enormes e abomináveis pecados dessas pessoas selvagens, rústicas e animalescas que fossem eliminadas e banidas da superfície terrestre […][38]

Quando a escravização e a taxa de assassinatos e suicídios dos índios assumem proporções de genocídio, Las Casas, que não admite culpar Colombo, recorda passagens do almirante sobre a beleza, coragem, simplicidade, pureza e cordialidade das gentes por ele encontradas. Retomando o esboço colombino do bom selvagem, Las Casas lança um grito de horror e de desespero contra a barbárie espanhola:

Deus criou todas essas gentes infinitas, de todas as espécies, mui simples, sem finura, sem astúcia, sem malícia, mui obedientes e mui fiéis a seus Senhores naturais e aos espanhóis a que servem; mui humildes, mui pacientes, mui pacíficas e amantes da paz, sem contendas, sem perturbações, sem querelas, sem questões, sem ira, sem ódio e de forma alguma desejosos de vingança. São também umas gentes mui delicadas e ternas; sua compleição é pequena e não podem suportar trabalhos; e morrem logo de qualquer doença que seja[…] Têm o entendimento mui nítido e vivo; são dóceis e capazes de toda boa doutrina, são muito aptos a receber nossa santa Fé Católica e a serem instruídos em bons e virtuosos costumes, tendo para tanto menos empecilhos que qualquer outra gente do mundo. E tanta que começaram a apreciar as cousas da Fé são inflamados e ardentes, por sabê-las entender: e são assim também no exercício dos Sacramentos da Igreja e no serviço divino que verdadeiramente até os religiosos necessitam de singular paciência para suportar. E, para terminar, ouvi dizer a diversos espanhóis que não podiam negar a bondade natural que viam neles. Como essa gente seria feliz se tivesse o conhecimento do verdadeiro Deus!

Sobre esses cordeiros tão dóceis, tão qualificados e dotados pelo seu Criador como se disse, os espanhóis se arremessaram no mesmo instante em que os conheceram; e como lobos, como leões e tigres cruéis, há muito tempo esfaimados, de quarenta anos para cá, e ainda hoje em dia, outra cousa não fazem ali senão despedaçar, matar, afligir, atormentar e destruir esse povo por estranhas crueldades (como vos farei ver depois); de tal sorte que de três milhões de almas que havia na ilha Espanhola e que nós vimos, não há hoje de seus naturais habitantes nem duzentas pessoas […. ]

Podemos dar conta boa e certa que em quarenta anos, pela tirania e diabólicas ações dos espanhóis, morreram injustamente mais de doze milhões de pessoas, homens, mulheres e crianças; e verdadeiramente eu creio, e penso não ser absolutamente exagerado, que morreram mais de quinze milhões.

Aqueles que foram de Espanha para esses países (e se tem na conta de cristãos) usaram de duas maneiras gerais e principais para extirpar da face da terra aquelas míseras nações. Uma foi a guerra injusta, cruel, tirânica e sangrenta. Outra foi matar todos aqueles que podiam ainda respirar ou suspirar e pensar em recobrar a liberdade ou subtrair-se aos tormentos que suportam, como fazem todos os Senhores naturais e os homens valorosos e fortes.[39]

A denúncia de Las Casas chega, afinal, às Cortes e uma disputa acirrada se instala entre ele e Sepúlveda[40] , que se encarrega de realizar a operação ideológica legitimadora, para os séculos vindouros, da escravização e mesmo do extermínio indígena. Sepúlveda lança mão de dois argumentos. O primeiro deles, tirado de Suárez, defende a tese da servidão voluntária: a liberdade é uma facultas da vontade humana, isto é, um poder escolher, um poder agir ou não agir, um poder fazer ou não fazer; sendo uma faculdade, é alienável, isto é, transferível voluntariamente para um outro, de sorte que a servidão, sendo voluntária, não é injusta, ilegal ou ilegítima. Parte dos índios, assegura Sepúlveda, se dispôs a essa servidão. O segundo argumento, muito mais forte e poderoso que o anterior, e que Sepúlveda mobiliza somente depois de vencido no primeiro por Las Casas, é retirado da teoria aristotélica do escravo natural ou por natureza:

Constata-se essa mesma situação entre os homens; pois há os que, por natureza, são senhores e os que, por natureza, são servos. Os que ultrapassam os outros pela prudência e pela razão, mesmo que não os dominem pela força física, são, pela própria natureza, os senhores; por outro lado, os preguiçosos, os espíritos lentos, mesmo quando têm a força física para realizar todas as tarefas necessárias, são, por natureza, servos. E é justo e útil que sejam ser­ vos, e vemos que isso é sancionado pela própria lei divina. Pois está escrito no livro dos provérbios: ”o tolo servirá ao sábio”. Assim são as nações bárbaras e desumanas, estranhas à vida civil e aos costumes pacíficos. E sempre será justo e de acordo com o direito natural que essas pessoas sejam submetidas ao império de príncipes e de nações mais cultivadas e humanas, de modo que graças à virtude dos últimos e à prudência de suas leis, eles abandonam a barbárie e se adaptam a uma vida mais humana e ao culto da virtude. E se recusam esse império, é permissível impô-lo por meio das armas e tal guerra será justa, assim como o declara o direito natural […) Concluindo: é justo, normal e de acordo com a lei natural que todos os homens probos, inteligentes, virtuosos e humanos dominem todos os que não possuem essas virtudes[41].

A conquista, violência e barbárie que se transmite de geração a geração, numerando o tempo como história sangrenta da provação e da catástrofe, fazendo de todos os dias “dias de abominação e desolação”, é a face sombria do milênio. Para Colombo, o mar Oceano abrira os portais do Paraíso. Para os índios, o mar cerrara as portas da felicidade, mal maléfico, não somente porque através dele vieram os conquistadores, mas sobretudo porque foi ele o obstáculo intransponível para a concreção de um outro milênio, o da Terra sem Males.

Como num eco à voz perdida e esquecida de Las Casas, Pierre Clastres resgata o milênio Guarani, retirando-o do contexto etnocêntrico que o descrevia como superstição, bruxaria, rebeldia e até mesmo como “macaquice”, no dizer de Nóbrega, imitação da religião cristã:

Os Thévet, os Nóbrega, os Anchieta, os Montoya traem, sem o querer o silêncio censor, reconhecendo a capacidade sedutora da palavra dos feiticeiros, principal obstáculo, dizem eles, à evangelização dos selvagens. Com isto, malgrado eles mesmos, deixavam aparecer a confissão de que o cristianismo reencontrava no universo cultural dos Tupi-Guarani, isto é, dos homens “primitivos”, algo fortemente articulado para opor-se com sucesso, e como que num plano de igualdade, à intenção missionária. Surpresos e amargos, os zelosos jesuítas descobrem sem o compreender, na dificuldade de sua pregação, a finitude de seu mundo e a irrisão de sua linguagem. Constatam com estupor que as superstições diabólicas dos índios podiam se elevar às regiões supremas daquilo que se chama religião[42].

Mas, afinal, o que os missionários e visionários cristãos encontram no Novo Mundo? O que, no universo dos guarani, se interpunha à realização das profecias e do milênio? O milênio dos próprios guarani. A promessa e a esperança da Terra Sem Males.

Aquele que os jesuítas chamavam de feiticeiro, não o era. Era o karai, o profeta guarani, profeta errante que ia a toda parte estimulando os índios à purificação e preparação para a grande viagem que os levaria à Terra Sem Males. O karai é duplamente subversivo. Em primeiro lugar, por sua simples existência, pois a sociedade guarani é patrilinear e o profeta se apresentava como não tendo pai, nascido de mulher e da divindade. Enunciando a ausência do pai, afirmava não pertencer a linhagem alguma e, portanto, à própria sociedade. Mais do que isso, negava a ossatura da sociedade indígena, organizada pelos laços de sangue e parentesco. Em segundo lugar, pela enunciação de seu discurso profético, que rompia com o discurso interno a sociedade e com seus valores, proclamando o fim das suas normas.

O discurso dos karai pode-se resumir em uma constatação e uma promessa. Por um lado, afirmavam sem cessar o caráter intrinsecamente mau do mundo e, por outro lado, exprimiam a certeza de que era possível conquistar um mundo bom (…] O discurso profético dos karai não se apresentava aos índios como discurso doente, um delírio de demente, pois repercutia neles como a expressão de uma verdade à espera da qual se encontravam, como uma prosa nova que dizia o novo semblante, o semblante mau do mundo. Em suma, doente não era o discurso dos profetas, mas sim o mundo do qual falavam, a sociedade em que viviam […] O discurso dos karai, muito anterior à invasão branca cristã, nào era resposta aos conquistadores, nem contraponto de mitos indígenas cristianizados, mas discurso autóctone referido à experiência da própria sociedade Guarani. Qual o mal, qual a doença que os karai haviam percebido e sobre os quais alertavam os demais? Através do efeito conjugado de fatores demográficos (forte crescimento populacional), sociológicos (tendência à concentração em grandes aldeias, em vez da dispersão) e políticas (emergência de chefias poderosas) eclodia, nessa sociedade primitiva, a inovação mais mortal: a da divisão social, da desigualdade. Um mal-estar profundo, sinal de crise grave, agita­ va essas tribos e foi desse mal que os karai tomaram consciência e, para reconhecê-lo e enunciá-lo, falaram na maldade do mundo, na feiura da vida e no cansaço da terra. Por isso os índios não os ouviam como se delirassem. Havia concordância profunda entre eles e o profeta que lhes dizia: é preciso mudar o mundo […] Que remédio propunham os karai? Exortavam os índios a abandonar a terra má e dirigir-se ã Terra Sem Males, lugar de repouso dos deuses, onde as flechas partem sozinhas ã procura da caça, onde o milho cresce sem que ninguém cuide dele, território dos adivinhos, do qual toda alienação está ausente, território que foi, antes da destruição da primeira humanidade pelo dilúvio universal, o lugar comum aos humanos e aos divinos[…] A radicalidade da promessa não estava nela apenas, mas no fato de que com ela toda a norma e toda a regra eram abandonadas numa sub­ versão da antiga ordem.[43]

Porque possuíam seu próprio milênio, que os fez migrar das zonas centrais do continente rumo ao litoral leste e oeste, os guarani conseguiram não sucumbir à promessa dos cristãos. Porque tinham a promessa de seus deuses, não precisavam das promessas do cristianismo. E porque a ida à Terra Sem Males encontrou um obstáculo imponderável, o mar, aprenderam, de um lado, a fazer “viagens interiores”, uma especulação metafísica sobre a origem do mal e sobre seu fim pela destruição pelo fado e pela onça celeste. E, por outro lado, aprenderam também a fazer os preparativos purificadores para a grande viagem através do mar: a dança, que os tornará leves e os elevará sobre as águas até a Terra Sem Males, onde aguardarão a destruição da velha terra má e o renascimento da nova terra boa.

As viagens interiores, ou a metafísica guarani, e os ritos de purificação, ou a teologia guarani, exprimem-se no canto matinal e vespertino, na prece que cada guarani repete, à espera da Grande Palavra que virá resgatá-los:

Meu pai, Ñamandú,

faze com que eu de novo me levante e me adorne,

[…]

E, no entanto, as palavras, Tu não as pronuncias,

Karai Ru Ete: nem para mim, nem para teus filhos destinados à Terra Indestrutível,

à terra eterna que pequeneza alguma altera.

[…]

Pois, em verdade, existo de maneira imperfeita.
É de natureza imperfeita meu sangue; minha carne, desprovida de toda

[excelência.

[…]

Por isso me inclino, dobro os joelhos e me curvo, Mas tu não pronuncias as palavras.

[…]

O mar maléfico, o mar maléfico!

Tu não o fizeste de modo a que eu pudesse atravessá-lo.

É por isso, em verdade, é por isso

que meus irmãos ficam cada vez em menor número, cada vez menor o número de minhas irmãs.

[…]

Mas tu pronunciarás em abundância as palavras, as palavras da alma excelente,

para aquele cuja face não está marcada por nenhum sinal.

Tu pronunciarás as palavras em abundância para todos os destinados à Terra Indestrutível, à terra eterna que pequeneza alguma altera. Tu.

Vós.

NOTAS

  1. Cristóvão COLOMBO, “Carta a los reyes, 1501”, Cristóbal Colón textos y documentos completos, Madri, Alianza Editorial, 1984, p. 281.
  2. Idem, “Relación del quarto viaje”, op. cit., p. 326.
  3. Idem, “Relación del tercer viaje”, op. cit., p. 203.
  4. Idem, “Carta a Juana de la Torre”, em Marianne MAHA-LOT, Retrato histórico de Cristóvão Colombo, Rio de Janeiro, Zahar, 1992, p. 137.
  5. Idem, “Carta a los reyes, 1501”, op. cit., p. 279.
  6. Lewis MUNFORD, Tbe Condition of Man, Nova York, Harcornt, Brace and Word Inc.,1944.
  7. Sérgio Buarque de HOLANDA, A visão do paraíso, 2ª ed .. São Paulo, Nacional, 1969, p. 204 (grifos meus).
  8. Ver M. BATAILLON:-.:, “Novo Mundo e fim do mundo’·, Revista de História, ano v, vol. VIII, s.d.
  9. Francis BACON: The Advancement of Learning, Londres, J. M. Dent and Son, 1973. pp. 79-80. No mesmo espírito, Campanella escreve na introdução ã Cidade do sol: “Há mais história nestes cem anos do que teve o mundo em quatro milênios; e se fizeram mais livros nestes cem anos que em cinco milênios”.
  10. Ver Christopher HILL, O mundo de ponta-cabeça, São Paulo, Companhia das Letras, 1987.
  11. Ver L. KOLAKOWSKI, Les chrétiens sans Église, Paris, Gallimard, 1969.
  12. Isaac NEWTON, ·’Observations upon the Prophecies of the Holy Writ particularly of Daniel and St. John”, em Opera Omnia, Londres, Horsley, 1779-85, t. 5, p. 450.
  13. Sentença do Santo Ofício contra o padre Vieira, citada por Maria Leonor BUECU, “Introdução”, em Antônio Vieira, História do futuro – Do Quinto Império de Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, s. d., p. 13.
  14. Em 721 a. C., Sargon, rei da Assíria, invade a Samaria, desmantela o Reino de Israel (menos as tribos de Judá e Benjamin, que formam o Reino da Judeia), deportando e dispersando as outras dez tribos, que desaparecem da história. Durante séculos elas serão buscadas, não só porque os judeus (os da Judeia) imaginam que elas se conservaram com suas tradições e religião, como eles o haviam feito, mas também porque a profecia de Isaías sobre o Messias exige, primeiro, a dispersão de todo o povo nas quatro direções dos ventos, para depois haver a reunião do “resto de Israel”, formando um só rebanho sob um só pastor. Para Menasseh ben Israel, o relato de Montezinos é decisivo, sobretudo quando, em 1656, chega a Amsterdam a notícia do aparecimento do Messias, Sabbatai Sevi, em Smirna. Sobre as relações entre Menasseh e Vieira, veja-se A. SARAIVA, “Antônio Vieira, Menasseh ben Israel et le Cinquiéme Empire”, Studia Rosenthaliana, vol. VI, nº 1, jan. 1972; H. MECHOULAN, “Introduction”, em Menasseh ben ISRAEL, Espérance d’Israel, Paris, Vrin, 1979. Sobre a tese de Menasseh veja-se Esto es la esperança de Ysrael, Amsterdam, 1650 (há um original na Biblothéque Nationale de Paris, no Britsh Museum, na Library of Congress, em Washington, e na Biblioteca Rosenthaliana de Amsterdam). Para o messianismo judaico do século XVII em Amsterdam, veja-se, entre outros, G. SCHOLEM, Sabbatai Sevi the Mvstical il1essiah 1626- 1676, Princenton, Princenton University Press, 1973.
  15. A. VIEIRA, op. cit., p. 203. Terra australi: o Ocidente, as Índias Ocidentais na interpretação de Colombo e de Vieira, a partir de Isaías em latim, e do mapa de Toscanelli.
  16. Idem, ibidem, p. 204.
  17. Idem, ibidem, pp. 210-1 (grifos meus).
  18. Idem, ibidem, p. 219.
  19. M. MAHAN-LOT, op. cit.; Kirkpatrick Sale, The Conquestof Paradise- Christopber Columbus and tbe Columhian Legacy, Nova York, Alfred Knopf, 1990.
  20. Eis a descrição da Hispaniola (São Domingos): “Lançou âncora num rio não muito grande que banhava planícies e campos de maravilhosa beleza. Levou redes para pescar e, antes que chegasse à margem, uma liça saltou para dentro do barco, semelhante às que existem na Espanha. Até então, não haviam visto peixe algum parecido com os de Castela. Os marinheiros pescaram e mataram ostras, linguados e outros como os de lá. Caminhou um pouco pela terra, que é toda cultivada, e ouviu cantar o rouxinol e outros passarinhos como os de Castela. Encontrou murta e outras árvores iguais às de Castela, assim como são iguais a terra e as montanhas […] A ilha é grande e muito bem cultivada. O Almirante acha que os povoados devem ser longe do mar, de onde enxergam a chegada das caravelas e por isso todos fugiam espavoridos […] Em frente ao porto há várzeas, das mais lindas do mundo e quase semelhantes às terras de Castela, mas com mais vantagens do que elas e por isso chamou a ilha de Ilha Hispaniola”. Cristóbal Colón, op. cit., pp. 76 e 77. Na carta de fevereiro de 1502, ao papa, escreve: “Esta ilha é Társis, Setim, Ofir, Ofaz e Cipango e a chamamos Hispaniola”. op. cit., p. 311. Colombo unifica, assim, as ilhas bíblicas salomônicas (Társis, Ofir, Ofaz, Setim), a descríçào de Marco Polo e a localizaçào de Cipango no mapa de Toscanelli.
  21. A este respeito veja-se Bernard MC GINS, Visions of the End, Nova York, Columbia University Press, 1979; Michel AVI-YONAH, The jews of Palestine: a Political History from Bar-Kobhkba to the Arab Conquest, Nova York, Schonken, 1976; Michel BARKU, Disaster and the Millenium, New Haven, Yale University Press, 1974; Norman COHN, Na senda do milênio, Lisboa, Presença, 1970; E. BLOCH, Le príncipe Espérance, Paris, Gallimard, 1969; E. R. CHAMBELIN, AntiChristi and the Millenium, Nova York, Dutton, 1975; G. DUBY, O Ano Mil, Lisboa, Edições 70, 1980; Robert E. LERNER, “Medieval prophecy and Religious Dissent”, Past and Present, nº 72, 1976; Henri de LUBAC, Exégese médiévale: les quatre sens l’Ecriture, Paris, Aubier, 1959-64, 4 vols.; “Memória e História”, Enciclopédia Einaudi, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984.
  22. A este respeito veja-se Georges HUPPERT, L’idée d’histoire parfaite, Paris, Gallimard, 1975: Claude LEFORT, Le travail de l’oeuvre, Paris, Gallimard, 1972; Hannah ARENDT, Entre o passado e o futuro, São Paulo, Perspectiva, 1972; Quentin SKINNER, Foundations of the Modem Political Thougth, Cambridge. Cambridge University Press, 1978; Victor GOLDSCHMIDT, Le systeme stoicien et l’idée de temps, Paris, Vrin, 1953; Pierre AUBENQUE, Le problème de l’être chez Aristote, Paris, Presses Universitaires de France, 1966; J. P. VERNANT, Mythe et pensée chez les Grecs, Paris, Maspéro, 1968; A. H. N. COCHRANE, Christianity and Classical Culture, Oxford, Oxford University Press, 1977; E. PANOSFSKI, Essais d’iconologie, Paris, Gallimard, 1967.
  23. A este respeito veja-se E. AUERBACH, “La cicatrice d’Ulysse”, em Mimésis, Paris, Gallimard, 1968.
  24. Ver G. SCHOLEM, The Messianic Idea in]udaism, Nova York, Schonken, 1971; Kahallah, Nova York, Meridian Books, 1978.
  25. As principais obras de Joaquim de Fiori são Concordia Novi et Veteris Testamenti (ou, como é mais conhecido, Liber Concordiae), Expositio in Apocafypsim e Psalterium Decem Chordarum. A primeira impressão dos manuscristos foi feita em Veneza, no século XVI, e há cópia fotográfica desta edição, feita em 1964 pela editora Minerva G. M. B. H. de Frankfurt (existem exemplares disponíveis). Sobre Joaquim de Fiori veja-se Marjorie REEVES, The Influence of Prophecy in late Middle Ages: a Study in Joachimism, Oxford, Clarendon Press, 1969; Joachim de Piori and Prophetic Puture, Londres, S. P. C. K., 1976; Bernard Mc GINS, “The Abbot and the Doctors: Scholastic reactions to the Radical Eschatology of Joachim of Fiore”, Church History, nº 40, 1971; Francesco Russo, Gioachino da Piore e !e Pondazioni Plorensi in Calahria, Nápoles, Fiorentina, 1959; Leone TONDELLI, Il libro delle figure del’Abbate Gioachino da fiore, Turim, S. Editrice Internazionale, 1953.
  26. Marjorie Reeves, Tbe Influence of Prophecy, op. cit.
  27. Joaquim de FIORI, Exposito in Apocalypsim (edição de Frankfut, 1964), pp. 175-6.
  28. Valeria a pena ler as análises dos estudiosos mexicanos sobre a estrutura arquitetônica da Cidade do México de Cortez ou a de Sete Povos das Missões, mas, agora, soh a perspectiva profético-milenarista, isto é, o predomínio do quadrado (e do retângulo). em conformidade com a visão da Nova Jerusalém descrita por Ezequiel e que inBpirou. junta­ mente com as descrições do Corpus Hermeticus. a organização do espaço nas utopias de Campanella e de Bacon, isto é, a Cidade do sol e a Nova Atlântida. Sobre Colombo, Campanella escreveu: “Mais viu Colombo, genovês. com os olhos e mais com o corpo correu, do que o fizeram os poetas, filósofos e teólogos, Agostinho e Lactâncio. com a mente. que negaram os antípodas”. Cit. por Paolo Rossi. Os filósofos e as máquinas. São Paulo. Companhia das Letras, 1989, p. 90.
  29. C. COLOMBO, “Relacion del primer viaje”, op. cit., p. 132 (grifos meus).
  30. Idem, ibidem, p. 219 (grifos meus).
  31. S. B. de HOLANDA, op. cit., p. 170.
  32. C. COLOMBO, “Relación del tercer viaje”, op. cit., p. 209.
  33. Idem, ibidem, p. 208.
  34. Idem, “Relación del quarto viaje”, op. cit., p. 326.
  35. S. B. de HOLANDA, op. cit., p. 177.
  36. C. COLOMBO, “Relación del tercer viaje”, op. cit., pp. 211, 213-6, 218.
  37. Cit. por Kirkpatrick SALE, op. cit., p. 369.
  38. G. F. Oviedo, História geral e natural das Índias, em O Paraíso destruído, Porto Alegre, L&PM, 1984, p. 22.
  39. Bartolomeu de LAS CASAS, Brevíssimo relatório da destruição das Índias Ociden­tais, em O Paraíso destruído, op. cit., pp. 26-9.
  40. Sobre a disputa envolvendo Aristóteles veja-se Lewis HAWKE, Aristóteles e os índios, São Paulo, Martins, s. d.
  41. SEPÚLVEDA, Resposta ao Brevíssimo Relatório, em O Paraíso destruído, op. cit., p. 23.
  42. Pierre CLASTRES, La société contre l’Etat, Paris, Seuil, p. 12.
  43. Idem, ibidem, p. 13.

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