1987

Por que tanta paixão?

por Adauto Novaes

Em 1985, o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Arte começou a promover cursos livres sobre cultura e arte no Brasil. O primeiro — “Cultura brasileira: tradição/contradição” — teve êxito além do esperado, o que levou o NEP a organizar outros cursos voltados para temas atuais, de um ponto de vista novo.
Em 1986, a Funarte preparou “Os Sentidos da Paixão”, com a participação de nomes importantes da inteligência brasileira. Promovido inicialmente no Rio e em São Paulo, e no ano seguinte em Curitiba (com apoio do Sesc) e na Universidade de Brasília, o curso toma agora a forma de livro.
Insinuando que se trata de mais um modismo intelectual, pergunta-se por que um curso sobre as paixões hoje. A própria pergunta já revela um sentido: o pensamento objetivo ignora o sujeito da paixão e não reconhece que ela pode ser também sujeito do conhecimento. Descreve os afetos “como se descreve a fauna de um país distante” sem perceber que o homem está todo inteiro nas suas paixões, como disse Fourier.
Pensar a paixão é, pois, uma exigência. Com um saber apaixonado, o curso descreveu o movimento das paixões, desfez a ideia de que elas são apenas um acontecimento — simples complemento do mundo — ou fonte de prazer e angústia, alegria e tristeza, e demonstrou, enfim, que elas podem ser também afirmação de liberdade.
O primeiro momento do curso consistiu, pois, numa crítica à maneira banal de lidar com as paixões, à história oficial que ora glorifica os feitos do poder (paixão que procura dar uma visão nobre do terror), ora condena os afetos, através de um moralismo ressentido. Um a um, do amor ao ódio, do medo à esperança, passando pela glória, inveja, ciúme, amizade e liberdade foram sendo desvendados os fios de silêncio que as enredam.
Busca-se, agora, uma explicação para o grande interesse despertado pelo tema da paixão. Entre as hipóteses possíveis — “carência latente”, “falas que mexem com a libido” etc. — preferimos três que nos parecem mais pertinentes.
As pessoas estão mais interessadas na reflexão do que propriamente na paixão. Ou melhor, buscam o trabalho do pensamento através da paixão, que é uma forma bem diferente dos modelos clássicos. Através da paixão, critica-se a visão intelectualista do pensamento; com a paixão, pode-se realizar uma reflexão por inteiro, uma vez que “espírito e corpo são uma só e mesma coisa”.
Ora, ao estruturar o curso “Os Sentidos da Paixão” a partir das grandes obras e dos grandes personagens passionais da história da arte, o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Funarte queria afirmar que, através da arte, do pensamento e da paixão pode-se pensar ideia e corpo não como uma relação de comando e obediência, mas como expressão recíproca e autônoma. Seguimos a trilha de Espinosa, que diz: “Nem o corpo pode determinar o espírito a pensar, nem o espírito pode determinar o corpo ao movimento, ao repouso ou a qualquer outra coisa”.
Pensamos que esta escolha — isto é, trazer a reflexão política para os domínios da arte e da paixão — é responsável pelo grande interesse pelo tema — assunto de debates nas TVs, rádios e jornais. Ao organizar o curso desta maneira, estávamos desfazendo, na prática, um equívoco sempre presente que opõe a paixão à razão, e criticamos, ao mesmo tempo, um pensamento de tipo positivista, que desconhece o inconsciente, e sua contrapartida, o irracionalismo, que cria um verdadeiro império dos movimentos irracionais para a sociedade. Daí a opção de discutir as paixões no interior das próprias paixões.
A paixão é o campo das nossas ações cotidianas e, por isso, todos temos uma ideia, ainda que difusa e deslizante, do que seja paixão. Mas a tradição nos leva a pensá-la de forma banal e grosseira. Basta ver os meios de comunicação de massa: quando não reduzem as paixões ao império de uma delas (a amorosa) tratam de desqualificá-las pela superficialidade. Com a indústria da cultura, observamos que há um deslocamento para o espaço público de temas que até pouco tempo estavam circunscritos ao domínio do privado ou a grupos fechados. O mercado cultural apropria-se de algumas ideias de paixão dando a elas um caráter difuso e homogêneo para que possam ser consumidas como objeto. A racionalidade do mercado traz em si a lógica da dominação dos sentidos. É uma violação comercial das paixões que transforma o sentido em não-sentido. O resultado mais imediato é que, no plano individual, a paixão amorosa, por exemplo, torna-se uma raridade. A crítica de Adorno, na “Dialética negativa”, vai nesse sentido: “As transformações universalmente conhecidas dos comportamentos eróticos dos jovens indicam a decomposição do indivíduo, que não tem mais a força necessária para a paixão — força do eu — e muito menos precisa dela porque a organização social que a integra encarrega-se de afastar as resistências manifestas que antigamente inflamavam as paixões e porque transfere o controle para o indivíduo, que deve adaptar-se a qualquer preço”. Ora, no mundo onde a paixão é tratada de maneira rarefeita e simplificada, um curso teórico sobre os sentimentos só pode provocar desejo de discussão.
Na construção dos grandes modelos teóricos e políticos que, na sua positividade, procuram dar respostas totalizantes às interrogações da sociedade, não há lugar para o sujeito da paixão. Sob o argumento de que todas as questões humanas já estão contidas na concepção metafísica da história, as paixões passam a ser, também, coisa abstrata e geral. A teoria política tornou-se um conjunto de normas e ideias intemporais, válidas para todos os momentos e circunstâncias e, portanto, separadas dos impulsos afetivos do pensamento e da ação. A busca do sujeito da paixão, a partir da crise dos grandes modelos explicativos e políticos, é um dado novo.
Procuramos mostrar, enfim, que, ao reconhecermos as particularidades das paixões, tentamos abrir um espaço à invenção do saber, ou melhor, a novos saberes que correspondem às experiências afetivas.
Com a palavra os conferencistas.