1996

Por que tanta libertinagem?

por Adauto Novaes

Para certo gênero de moral, a leitura libertina não é mais do que um exercício de maledicência, um momento envergonhado, às escondidas, de impropriedades. Essa crença na hipocrisia ignora — ou faz de conta que ignora — que muitos libertinos foram homens engenhosos, de rara inteligência crítica profana e profunda, que souberam muitas vezes associar vício e virtude: homens que produziram alta fantasia, inventaram a linguagem que faz coincidir o sentido e o signo, espíritos livres, livres-pensadores que seguem o curso das palavras e dispensam as metáforas. Alguns pertenceram à efervescente geração da Revolução Francesa, excepcionalmente reunidos por algum acaso: aqui, os libertinos estão no centro da controvérsia política e revolucionária, de onde, certamente, a crueza de um Sade, o deboche de um Restif de la Bretonne e as ironias de um Diderot achincalharam o poder despótico, combateram as superstições e a moral esclerosada, atacaram a tirania literária e a pureza dos artifícios poéticos, dialogaram com os filósofos do seu tempo; outros foram pensadores da Enciclopédia. Mas todos eram, entre tantas coisas, até mesmo sensuais e eróticos (por que Eros deve esquecer Priapo?). Fecundaram espíritos, foram imitados, atravessaram fronteiras, mas nunca chegaram ao Brasil.

Não foi apenas por uma questão de moralidade que os libertinos jamais chegaram até nós. Materialista, dissidente em relação à ordem estabelecida, o libertino é, antes, um contestador: através do romance, tendo como tema central o prazer sexual e o prazer do conhecimento, ele é o filósofo discreto e também o provocador erótico. Ora transforma a libertinagem em ficção para poder ir além da ideologia do momento, ora transforma a ficção em reflexão filosófica: “Não é o romance que é libertino, mas a filosofia libertina que toma as aparências do romance”, escreve o conferencista Raymond Trousson. Romances libertinos são, pois, romances filosóficos (reação filosófica ao idealismo e ao conformismo, recusa dos códigos tradicionais da moral social e religiosa), ainda que nem todos os romances filosóficos do momento sejam libertinos. A relação dos libertinos com a filosofia está não apenas nas questões postas pelos personagens, muitas vezes de maneira insólita em plena orgia, mas principalmente na técnica narrativa. Ela privilegia a dialética, funda-se na arte de convencer: a arte do sedutor consiste, pois, em levar o outro a reconhecer a lei do prazer. Os propósitos filosóficos são ditos, muitas vezes, de forma explícita, como no caso do provocante livroTeresa filósofa, de autor anônimo do século XVIII: “Desejais um quadro onde as cenas de que vos falei, nas quais fomos atores, nada percam da sua lascívia, que os raciocínios metafísicos conservem toda a sua energia?”. Filosofia do efêmero, fundada nos sentidos e nas paixões do corpo, conceituam alguns comen­tadores, mas também filosofia perene, impressa em livros geniais. Valéry, leitor atento de Stendhal, não hesitou em escrever em várias ocasiões: “Releio inúmeras vezes Mr. Nicholas. Este Restif é verdadeiramente muito mais precioso do que Beyle… Além do mais, quem é verdadeiramente livre não é obsceno — não pode ser. Porque quem é livre está ‘além do bem e do mal’ — como o é o real”. Lemos ainda à margem de um dos seus famosos Cahiers: “Restif plus nourrissant que Stendhal”.

Se os primeiros libertinos surgiram no século XVI — movimento entendido muito mais como libertinagem espiritual, “religiosidade herética” contra o processo de acumulação primitiva segundo as bases ideológicas defendidas por Calvino —, a libertinagem vai se constituir como força sistematizada apenas no século XVIII, desta vez através da filosofia e da literatura libertinas contra os costumes e a velha moral. Pode-se dizer, entretanto, que ela nunca perdeu sua marca de origem, isto é, sua relação com a religião. A primeira vez que lemos a palavra libertino — libertin — é em 1554, escrita por Calvino, que, um ano depois, redige o seu tratado Contre la secte phantastique et furieuse des libertins que se nomment spirituels. Nesse tratado, Calvino acusa os dissidentes anabatistas de considerarem as religiões reveladas como imposturas, defenderem a moral natural como a única possível, e ainda praticarem a “escandalosa liberdade de costumes baseada na negação do pecado”. Aliados a essa anarquia moral, os libertinos defendiam ainda a criação de uma comunidade com a divisão dos bens. Mas eles eram também acusados de praticar o hermetismo (de Hermes Trimegisto, que quer dizer “três vezes grande”, divindade representada entre os gregos como o mestre das artes, da ciência, dos números e dos signos, assimilado originalmente ao deus egípcio Thot, considerado fundador da alquimia). É evidente a tentativa de relacionar os libertinos desse período ao ocultismo. No comentário de Trousson, “o deviacionismo religioso vê-se assim muito cedo associado à depravação dos costumes e à promiscuidade, e até mesmo a tendências anarquistas, demolidoras da ordem social”.

A Igreja, o padre, o monge depravado continuam sendo personagens de ficção na literatura do século XVIII. Mas isso em história: as festas pagãs da Idade Média dentro das igrejas (Festa do Asno, Festa de Baco e outras) eram verdadeiras orgias libertinas. Na Festa do Asno, por exemplo, realizada durante alguns dias do ano, os valores morais e cristãos, e até mesmo a liturgia, eram postos de ponta-cabeça. Nem mesmo as coisas e os ritos mais sagrados eram poupados. Nesses dias, o baixo clero tinha direito à palavra. Padres fantasiados entravam na igreja cantando e dançando músicas licenciosas. Depois de uma “missa” debochada e pagã, cada padre e diácono se entregava à maior libertinagem. Alguns ficavam completamente nus. Tais festas eram não apenas toleradas, mas até mesmo teorizadas por teólogos. Lemos, por exemplo, em um texto da Faculdade de Teologia de Paris, de 1444, este comentário sobre a Festa do Asno: “Nossos eminentes ancestrais permitiram esta festa. Por que ela nos deveria ser proibida? […] Pelo menos uma vez por ano entregamo-nos à loucura, que é nossa segunda natureza e nos parece ser inata. Os tonéis de vinho explodiriam se não fossem abertos para respirar de tempos em tempos”.

Ainda que a palavra libertino não seja comum, o espírito libertino vai se constituindo no final da Idade Média, se o entendermos nas várias nuances semânticas: “desregramento de costumes”, “indiferença às coisas da religião”, “aquele que não respeita as interdições e segue as inclinações do corpo e do espírito”, “liberdade sexual”, “o ímpio ou ateu”, ou o livre-pensador.

Pesquisas recentes nos revelam uma Idade Média de ideias radicais na crítica ao amor conjugal, à fidelidade, na defesa de liberdade sexual, e até mesmo uma “teologia da luxúria”, o que põe em questão, mais uma vez, as velhas imagens e estereótipos da História como “progresso” linear. Lemos, por exemplo, nos ensaios de Alain de Libéra — Penser au Moyen Age — uma sofisticada análise daquilo que pode ser interpretado como a pré-estreia do movimento libertino. Confirmando a ideia de que, na sua origem, não se pode pensar a libertinagem fora dos postulados da Igreja, De Libéra inicia o capítulo dedicado ao sexo e lazer fazendo uma breve análise de temas que vão da “misoginia divina” ao “corpo cristão”. Isto é, uma Idade Média que é teológica, que condena o corpo e a sexualidade mas que, aos poucos, vai sendo obrigada a resolver suas contradições no interior da própria teologia. Como o homem é carne e desejo e, mais ainda, como ele precisa perpetuar a espécie, do contrário estaria indo contra as leis da natureza e a vontade de Deus, são Paulo fez uma doutrina matrimonial, formulada na Epístola aos Coríntios. Na análise de De Libéra, o casamento e as relações sexuais no casamento formam um “imperativo hipotético”, uma atitude de prudência que permita ao homem resolver seus impulsos naturais mas, ao mesmo tempo, o leve a “salvaguardar o essencial: um tempo para a prece, uma liberdade necessária à realização do ser do homem, entendido como ‘ser-para-Deus’ “. Através do comércio sexual no casamento, o que estava em jogo era muito mais a tentativa de salvar uma liberdade interior, ameaçada “mais pelo desejo da incontinência do que pela incontinência do desejo”. O casamento trazia em si, entretanto, nova contradição: como, ao mesmo tempo, cuidar do “outro” e continuar agradando a Deus sem uma cisão interior, um dilaceramento da alma? Como pensar em Deus se o “outro” pode ser causa de perturbação da alma e fonte de emoções, volúpias, dores, angústias, entusiasmos, desejos, ódios, preocupações? O casamento paulino poderia acabar em uma “terapêutica infernal” com resultados inversos aos pretendidos. Alain de Libéra analisa ainda o que ele chama de “ideologias impuras”. Descreve a pluralidade de mentalidades intelectuais em torno de escritos libertinos e licenciosos e mostra de que maneira o adultério foi posto acima do casamento, em nome da “soberania de um amor que o casamento não podia realizar, nem mesmo autorizar parcialmente”. Um dos textos clássicos do século XVII, L’académie des femmes, retoma, como muitos outros no século seguinte, o tema do adultério: uma das per­sonagens centrais, Tullie, a matrona que sabia tudo das coisas mundanas, adverte Octavie, a noiva ingênua, sobre os limites do amor e do prazer que o casamento traz para as mulheres: o justo equilíbrio do prazer só é encontrado no adultério. Tullie ensina: “O marido me domina; eu domino o outro. Meu marido tem o gozo de meu corpo, e eu, do corpo do meu amante”. Nessa mesma linha de argumentação, De Libéra comenta alguns dos textos mais difundidos na Idade Média, entre eles Abelardo e Heloísa, que, sem abandonar a teologia, mescla-se a uma abrasadora aven­tura carnal, como nos mostra Maurice de Gandillac no ensaio O amor na Idade Média, do livro O desejo: Abelardo enfatiza o caráter natural do desejo, ainda que o objeto seja “uma bela fruta do jardim vizinho” ou a esposa do guerreiro ausente: mais vale a liberdade do que os laços e freios do amor legítimo. Ao desvendar o segredo dos amantes Abelardo e Heloísa — narra Gandillac — Fulbert a princípio imagina lucrar com o caso levando a sobrinha a se casar com o mestre ilustre (Abelardo), mas “nem Abelardo e muito menos Heloísa querem tal solução fácil, o estado matrimonial já lhes parecendo, assim como a muitos dos nossos contemporâneos, incompatível com a liberdade criadora do escritor”. Para o amor — completa De Libéra em comentário a outro texto medieval — há coisa melhor do que a esposa: a amiga, a concubina, a puta. A vida conjugal mata o amor. Aos olhos do filósofo, é o triunfo da sensibilidade (a vida cotidiana) sobre o intelecto (a vida do espírito). O casamento não é um refúgio ou um lugar protetor, nem mesmo um laboratório das paixões, é um “interruptor de pensamento”. À mesma conclusão chegaram os teóricos libertinos do século: trepar livremente é bom para o pensamento. Ajuda a pensar. Outro argumento a favor do adultério é dado também no De amore, de André Le Chapelain. À questão “Pode haver amor entre casados?” responde uma condessa: mais vale ser amantes do que cônjuges, isto é, submetidos ao mesmo jugo. Para parte do pensamento e dos romances noir da Idade Média, a ternura no casamento é dívida, uma obrigação legal (per rationem necessitatis et ex debito); já entre dois amantes a ternura é dádiva gratuita (gratis omnia largiuntur). Mais do que simples jogo de palavras, há aqui um abismo entre dívida e dádiva: sabemos que a dádiva amorosa (largiuntur em latim, largesse em francês, “largueza”, liberalidade, generosidade em português) só pode circular entre iguais em sentimentos, o que acontece apenas na liberdade. “E na libertinagem”, con­cluiria Restif da la Bretonne. No final do século mil, o amor livre não se confunde com a débauche: os predicados do amante ou da amante, escreve De Libéra, são os mesmos que os modernos cristãos zeladores do “sexo conjugal” atribuem ao marido e à mulher: respeito de si, nobreza, probidade, valor pessoal. Alain conclui que isso equivale a dizer que “é preciso dormir fora do casamento com aquelas e aqueles que parecem dignos de serem casados e que justamente o são, o foram ou o serão… com outros. Amar fora do casamento uma pessoa ‘conveniente’ é a máxima que funda uma cultura noturna do amor da qual o ‘amor cortês’ é a face diurna”.

Mas é através da análise de algumas das 219 teses censuradas pelo bispo de Paris, Étienne Tempier, em março de 1227, que tomamos conhecimento de algumas das ideias libertinas que circulavam na França, muitas delas mais avançadas do que as defendidas pelo movimento libertino do século XVIII. Mas quase todas, certamente, mais avançadas do que as que circulam hoje. Ao lermos Teresa filósofa (século XVIII), é impossível não fazer analogias com algumas das 219 teses censuradas. Romance de amor, sexo e defloramento, Teresa filósofa tem também como temas o livre-arbítrio, o determinismo radical que explica tudo pela relação causa e efeito, razão e natureza, as noções de pecado, culpa e castigo, a Igreja e outros temas. Mas o tema central é o medo da gravidez. Para evitar filhos, dois meios básicos são descritos: a masturbação recíproca e o coito interrompido. No ensaio sobre Teresa filósofa, Renato Janine Ribeiro aponta três razões que levam ao medo da gravidez: a primeira é a recusa do modelo do casamento (“ser penetrada e ter, logo depois, filhos” é o que caracteriza o casamento); a segunda é o prazer, que se revela a cada etapa da longa iniciação (o que a gravidez e os filhos impedem); a terceira é a “filosofia do homem senhor de Si”: ao recusar-se a penetrar a amante ou a gozar dentro dela, o homem mostra que “domina todos os sentimentos e paixões”, o que é certamente o objetivo de toda essa filosofia praticada na alcova, como argumenta Janine Ribeiro. Ora, estes são temas teológicos centrais no século XIII, quando se discute “o mau uso do coito” através da masturbação, do homossexualismo (tema também de Teresa filósofa) e da sodomia, enfim, o vicium contra naturam. Na teologia medieval, o “pecado contra a natureza” é uma forma de luxúria que, ao mesmo tempo, é articulada à noção de família natural, “interseção exata da natureza (necessidade de procriação para a propagação da espécie) e da cultura (ne­cessidade da educação para a constituição de uma estrutura social nuclear estável)”. Nas indicações de Alain de Libéra, o “mau uso do coito” provo­ca dupla desordem: contra a reprodução biológica e contra a reprodução social, “pecado contra a natureza”, e “pecado contra as circunstâncias”. Mais ainda: as teses censuradas de 1277 já discutiam se a continência ou incontinência sexuais (filosofia do homem senhor de si) eram ou não vir­tudes essenciais. Citando Aristóteles e outros filósofos, as teses rivalizavam entre a defesa daqueles que dominavam o desejo de prazeres excessivos e daqueles que simplesmente resistiam à satisfação dos desejos naturais. Mais do que uma moral sexual, o que estava em discussão era uma ética filosófica.

No século XVIII, o pensamento religioso retoma o tema do “pecado contra a natureza”. Um pensador não ateu como Mirabeau procura conci­liar fé e razão, uma fé esclarecida contra as superstições, e escreve Erotika biblion. A edição original de 1783 foi condenada à destruição pela corte real de Paris em 1796, quatro anos depois da morte do autor. Em carta a Sophie de Monnier, ele pergunta: “Você crê que se pode fazer na Bíblia e na Antiguidade pesquisas sobre o onanismo, homossexualismo feminino etc., enfim sobre as mais escabrosas matérias […] e tornar tudo isso legível e semeado de ideias filosóficas?”. Foi, portanto, com ironia que Mirabeau criticou os preconceitos do tempo ao recorrer ao Gênesis e à história da criação do homem e do mundo para tornar naturais o incesto, o homossexualismo e o amor livre. Depois de criar o mundo, a natureza, Deus criou o homem no sexto dia, escreve Mirabeau. Só no sétimo criou a mulher. Seis dias para ele são seis espaços de tempo. Seis intervalos de duração que nada têm a ver com nossos dias atuais. Mirabeau quer dizer, portanto, que houve um enorme intervalo entre a criação do homem e a da mulher, de onde se deduz que, até a aparição da mulher, o homem era andrógino. A criação da mulher é, portanto, a separação de dois princípios, até então indissociavelmente unidos, o que provocou a atração mútua, a procura eterna do homem e da mulher: “Nada mais simples: esta é a origem do fato de o sexo fêmea, separado do sexo macho, ter conser­vado um amor ardente pelos homens e de que o sexo macho aspire sem cessar a reencontrar sua terna e bela metade”. Os encontros nem sempre são bons, daí a necessidade de outras experiências sexuais, naturalmente, do mesmo modo como o homossexualismo é natural: “Existem mulheres que amam outras mulheres? Nada de mais natural ainda: são metades dessas antigas fêmeas que eram duplas. Da mesma maneira certos machos, duplos de outros machos, conservaram o gosto exclusivo pelo seu sexo”. Como nota ainda Restif de la Bretonne, o incesto só poderia ter sido o princípio da humanidade: os filhos de Adão e Eva não tinham outra alternativa a não ser se relacionarem sexualmente entre si.

Religião, materialismo, natureza, liberdade sexual são, pois, temas privilegiados dos libertinos antigos e modernos, como nos lembra o teórico Peter Nagy em seu livro Libertinage et révolution. Nagy cita A arte de gozar, de La Mettrie: o livro começa pela “evocação dos prazeres etéreos da alma” mas, como bom materialista, La Mettrie não concebe o prazer da alma sem a participação do corpo. Como ele mesmo diz: “O voluptuo­so ama a vida porque tem o corpo são, o espírito livre e sem preconceitos: amante da Natureza, ele adora suas belezas porque ele conhece suas dádivas: inacessível ao desgosto, ele não entende como o veneno mortal vem infectar nossos corações”. Aqui, onde predomina a experiência dos sentidos, o diálogo é, certamente, com Descartes. Quando um libertino escreve natureza ele está pensando nas paixões e na intemperança que fazem a virtude e a felicidade do corpo e da alma; todas as outras coisas, regidas apenas pelas leis e pela moral, são convenções humanas contrárias a essa mesma natureza.

Os libertinos são, portanto, o centro das grandes controvérsias metafísicas, da ciência da natureza às paixões, da liberdade política aos prazeres do corpo.

Lemos em A invenção da liberdade, de Jean Starobinski, que a libertinagem é uma das experiências possíveis da liberdade. Mas Starobinski vai além: para ele, sem os libertinos, o trabalho sério da reflexão no século XVIII não teria podido se desenvolver: “Este século (pelo menos em seus mais qualificados representantes)”, escreve ele, “desejava ser livre, tanto para buscar a felicidade como para conquistar a verdade. Livre gozo mas também livre exame. Libertinos e libertários”. É certo que com sua forma pouco dissimulada, nada oblíqua, degenerada, desregrada, os libertinos foram parte importante das aventuras da liberdade no século. O século XVIII descobre, pois, todas as interrogações suscitadas pelo prazer, fez do prazer “tanto um objeto de reflexão séria quanto de experiência leve”. A esse movimento, Starobinski dá o nome de “experiências da liberdade”: ao longo do século, escreve ele, “a ideia de liberdade é submetida à experiência ao mesmo tempo no capricho abusivo e no protesto contra o abuso. O gosto da vida livre toma ora o aspecto do gozo sem freio ora a forma de um apelo à moralidade renovada e, em alguns homens (um Fielding, um Restif), perceber-se-á uma confusa mistura dessas duas tendências”. Pelo menos para boa parte dos libertinos, livre-pensamento e prazer do corpo andam juntos: “Sentir, e sentir profundamente, é uma forma de acesso à consciência de nossa existência”. Encontramos, pois, nos textos libertinos a mais radical das críticas à visão cartesiana de que a alma pensa sempre, age sobre o corpo, e de que na relação corpo/alma um dos termos (o pensamento) compreende, envolve e domina o outro (o corpo) e todo o universo. Era exatamente esse imenso poder que estava sendo posto em questão. Locke adverte que a alma somente pensa a partir das sensações, e que só pode haver pensamento “em material fornecido pela experiência sensível”. É certo que esse enunciado foi muitas vezes lido de maneira incorreta, pondo problemas metafísicos: é evidente que não existe sentido capaz de ver com olhos a substância e a essência das coisas. Libertino de espírito, Giordano Bruno, que sempre invocou o testemunho dos sentidos, nos lembra que sentido e imaginação podem nos enganar se não recorrermos ao testemunho da razão. Ele pergunta: para que nos servem, então, os sentidos? E responde: “Somente para excitar a razão; para, em parte, tomar conhecimento, indicar e testemunhar, não para testemunhar tudo; não servem para julgar, nem condenar. Porque nunca, por mais perfeitos que sejam, são isentos de alguma perturbação. Por conseguinte, a verdade em mínima parte brota desse débil prin­cípio, que são os sentidos, mas não reside neles”. É este o grande alargamento proposto pelos libertinos de espírito e de corpo: a verdade está tanto na razão, sob o aspecto da argumentação e do discurso, quanto no objeto sensível. As paixões estão não apenas na alma, isto é, nos pensamentos, como quer Descartes, mas também no corpo. Mais ainda: como livre-pensadores, os libertinos nos induzem a um problema bem mais complexo: se as paixões só existem em oposição ao livre-pensamento, isto é, se o apaixonado é aquele que se submete a uma força exterior, é certo que o libertino jamais pode agir por paixão, e muito menos por emoção. Isso não quer dizer que os libertinos, na luta contra as superstições e as paixões, neguem as paixões; na realidade, o que acontece é que eles reconhecem a existência material delas; para eles, portanto, nada misterioso e fatal, apenas turbulências do corpo e do sangue. Na natureza cega das paixões, os libertinos encontram passagem através do movimento do corpo, uma vez que, para eles, tudo se passa nessa máquina de nervos e músculos. Pensar assim é negar a força do espírito? Certamente não. O que eles querem dizer é que as paixões dependem dos movimentos do corpo mais do que dos pensamentos. Mas atenção: eles não advogam a superioridade do corpo sobre o pensamento; apenas postulam a experiência e o movimento do corpo como ponto de partida para o controle das paixões. Ou melhor, a ação contra a paixão. Não são poucos os teóricos que atribuem a uma moral que interdita o livre gozo causas que alteram a estrutura física e mental do organismo. Na sua tese médica sobre A história do tratamento da melancolia, Jean Starobinski relata de que maneira os autores médicos se dedicaram a dar minuciosas explicações físicas para diagnosticar fenômenos da melancolia: “Traduções somáticas permitem associar as situações morais a equivalentes fisiológicos precisos”, conclui Starobinski, que dedica boa parte da tese a Claudius Galenus, o mais importante médico da Antiguidade depois de Hipócrates, para quem um amor desiludido obriga a uma continência anormal, que será “prejudicial ao cérebro pelos efeitos da retenção do líquido seminal: essa substância, retida em demasia no organismo, degenera e envia ao cérebro vapores tóxicos, análogos por seus malefícios aos vapores atribuídos à estase da atrabilis nos hipocôndrios”. Galenus não ignorava a melancolia amorosa. Starobinski chega a afirmar que autores médicos da Idade Média, do Renascimento e da Idade Barroca são, em sua maioria, apenas uma estudiosa paráfrase de Galenus: “No capítulo da melancolia, quase todos os autores que vieram depois abordaram a questão do papel terapêutico do coito. Outros, como Rufus de Éfeso, lhe atribuirão maravilhas. E isso será, para médicos mais castos e guardiães da moral, ocasião para longas refutações. Os excessos, a débauche, não seriam causa de constante melancolia?”. Com ou sem moralismo, o que vemos é a versão antiga do “fornicare aude ut sapias” [ousa trepar para ousar saber pensar] de que nos fala Bento Prado Jr.

La Mettrie escreveu um tratado anticartesiano — O homem mais que máquina — para nos demonstrar que alma e corpo dormem juntos, pensamento tão simples mas por tanto tempo ignorado. “À medida que o movimento do sangue se acalma”, escreve La Mettrie, “um doce sentimento de paz e de tranquilidade se expande em toda a máquina; a alma sente suavemente entorpecer-se com as pálpebras e abaixar-se com as fibras do cérebro… os músculos do corpo não podem mais suportar o peso da cabeça; [a alma] não pode mais suportar o fardo do pensamento.”

São essas as questões postas pelo pensamento libertino e é nesse sentido que Starobinski nos convida a voltar ao século das Luzes e toda sua complexidade porque “atrás de todos os nossos empreendimentos atuais, atrás de todos os nossos problemas, encontramos sua presença”. E não se pode pensar o século sem que se retomem as ideias de prazer, virtude, sabedoria.
Ora, ao mesmo tempo em que Montesquieu exclama, em tom de espanto, “Quem diria, a própria virtude precisa de limites!”, ouvimos também a resposta contundente de Etienne Pivert de Senancourt: “Goza, não há outra sabedoria; faze gozar, não há outra virtude”.
Com rara precisão, Senancourt sintetiza em uma frase as questões que dominam a literatura libertina: o prazer, o materialismo, a sabedoria; mas, o que é mais importante, ao mesmo tempo atribui à palavra virtude sentido diferente, um sentido novo defendido pela fração mais emanci­pada da burguesia, em oposição à ideia de virtude da aristocracia. Aqui, a palavra virtude concentra nela o sentido de transformação social e política, e é isso que a filosofia libertina teoriza, e os romances libertinos procuram expressar. Para a sociedade feudal, esclarece Starobinski,

onde tudo deveria ter sido submetido a Deus, através da hierarquia das suseranias temporais, a procura do prazer é um sinal de devassidão. Quando um nobre se torna um “voluptuoso” e se isola em seu prazer, quando os prazeres, cessando de ser para ele um divertimento ocasional, chegam a consistir na única finalidade da existência, está renegando toda a estrutura espiritual que justificava o privilégio da categoria social… Para o burguês, em compensação, o prazer não implica nenhum esquecimento de um dever ou de uma função: é um ato de posse pelo qual o homem afirma o interesse dominante que o leva para as riquezas deste mundo.

Esta é uma das positividades atribuídas à reabilitação do sensível: o libertino do século XVIII vive no prazer e vive no pensamento do prazer: “O gosto pelo prazer, o amor a si mesmo são os primeiros princípios admitidos por uma moral na qual a partir de agora tudo surge do homem (sob o olhar de um deus abstrato ou de uma natureza generosa)”. Nesse sentido prazer não é dissipação: seguindo a análise de Robert Darnton — que mostra que o amor livre promove o livre-pensamento e que o prazer se­xual não apenas faz pensar, mas ajuda a pensar a igualdade e dá o que pen­sar (a pornografia do século XVIII usava o sexo para exprimir as ideias-chave do Iluminismo: natureza, felicidade, liberdade, igualdade, afirma Darnton) Starobinski escreve também na sua Invenção da liberdade que o prazer libertino está ligado ao despertar do ser, “energia conquistadora através da qual a consciência se apreende, se concentra, se consagra ao mundo e aos outros”. É como se a velha rivalidade entre o sensível e a razão encontrassem uma síntese ideal nos prazeres do corpo e do conhecimento. Mas é certo também que a velha ideia moral de virtude cede lugar à moral burguesa — já degenerada do sentido proposto originalmente pelos libertinos e agora ligada às ideias de rendimento e atividade produtiva.

Pensando assim, qual a diferença, para o burguês, entre vício e virtude? Como não dar razão a Sade, que antecipa genialmente no livro Justine, ou les malheurs de la vertu:

[…] é indiferente, no plano geral, que este ou aquele seja antes bom do que mau. Se a desgraça persegue a virtude e a prosperidade acompanha o crime, sendo estes iguais diante da Natureza, vale muito mais tomar o partido dos maus que prosperam do que o dos virtuosos que fracassam. É pois importante evitar estes sofismas perigosos de uma falsa filosofia… É sem dúvida cruel ter de pintar um monte de infelicidades se abatendo sobre a mulher doce e sensível, que respeita profundamente a virtude, e de outro lado a influência da prosperidade sobre os que massacram e mortificam essa mesma mulher. Mas, se do quadro dessas fatalidades nasce um bem, haveria remorso em tê-los oferecido?

Muitas razões nos levam pois a propor uma discussão sobre os libertinos. A tradição da cultura brasileira vive no esquecimento dessa importante corrente de pensamento: cita-se, com frequência, Sade, Restif de la Bretonne, Laclos, Diderot, mas poucos conhecem La Mettrie, La Mothe Le Vayer, D’ Holbach, Crebillon Fils, Charles Duclos, Andrea de Nerciat, Boyer D’Argens, Fougeret de Monbron e tantos outros. É preciso revelar a existência desses autores. Mas o principal motivo para voltar aos libertinos está na permanência das grandes questões postas por sua filosofia e pela literatura: os limites da razão, o domínio das paixões, o combate â superstição, a cisão corpo e espírito, o prazer, a felicidade, a virtude e a liberdade política. Permeando todas essas discussões está a ideia de transgressão. Sabemos que são as interdições que criam as sociedades. É a necessidade de interdição que funda o humano, mas com sua igual necessidade de transgressão. Sem transgressão não há liberdade nem erotismo.

Historicamente situado, é certo que o movimento libertino, tal como se deu, não é mais possível. Mas, a partir dele, alguns problemas postos hoje podem ser esclarecidos: a corrupção dos costumes ligada à corrupção política, a fé como superstição, a repressão sexual etc. Como entender, por exemplo, o domínio do pornográfico sobre o erótico? Os dicionários nos dizem que pornografia é a descrição pura e simples dos prazeres carnais. Já o erotismo é essa mesma descrição com algo mais, com certa arte de falar dos prazeres. D. W. Lawrence, perseguido muitas vezes pela censura inglesa com a publicação de O amante de Lady Chatterley, tem razão ao afirmar que os que atacam o erotismo não passam de hipócritas: “Metade dos grandes poemas, quadros, obras musicais e histórias deste mundo tem sua grandeza no apelo sexual. Em Ticiano ou Renoir, no Cântico de Salomão ou em Jane Eyre, em Mozart ou em Anne Laure, a beleza surge impregnada de apelo sexual…”. Lawrence aponta, enfim, para o grande problema moral do nosso tempo. O povo, moralizado, passou a ser a unidade de medida para definir o que é moral e imoral, erótico e pornográfico. Os moralistas se aproveitam disso como o axioma: vox populi, vox Dei. Perde-se assim o discernimento entre sentido-massa e sentido individual; ou melhor, o indivíduo não pode mais exercer a sua capacidade de julgar: “O hábito-massa de condenar todas as formas de sexualidade é excessivamente forte para deixar que a tomemos como coisa natural”. Lawrence pergunta: ao qualificar uma obra ou uma ação de pornográfica, erótica ou obscena, estou tendo uma reação individual ou estou agindo conforme o senso comum? É uma questão delicada quando se sabe que o erotismo está associado tanto ao imaginário individual quanto às atividades cerebrais: o espírito livre qualifica como sexuais objetos, seres e até mesmo momentos que em si nada têm de sexuais. Só uma moral positivista pode tentar dominar a imaginação erótica. Um bom exemplo de reação-massa é a ideologia criada em torno do moralista assédio sexual.

Convidamos, pois, o leitor destes ensaios à experiência do julgamento individual, sem preconceitos. Seguindo a tradição dos prefácios libertinos, pedimos ao leitor indulgência pelos erros e pelas situações às vezes um pouco fortes que, “por amor à verdade, formos obrigados a pôr sob seus olhos”.