2007

Políticas do esquecimento

por Adauto Novaes

Para onde vão as ideias rejeitadas, o projetos esquecidos, as crenças arruinadas?

A árvore está imóvel, permanece parada no seu banho de luz.

Mas ontem mesmo ela se agitava com todas as suas folhas, ramos e galhos, até mesmo seu potente tronco, cor de pedra e quase pedra.

Onde estão seu entusiasmo, sua agitação, suas torções de braços e mãos?

Paul Valéry, “Poésie perdue”

Para evitar mal-entendidos, talvez fosse prudente, de início, esclarecer que este livro não trata do fim da política, mas de seu esquecimento. A observação é necessária porque é comum se dizer que os séculos XIX e XX foram os séculos das utopias, das promessas comunitárias, da política do futuro, ideais que teriam chegado ao fim. O século XXI, que começa sob a hegemonia do pensamento único, seria o abismo que se criou para a própria política, e, assim, saímos do sonho para cair no sono, como observa o filósofo Francis Wolff. É certo que o esquecimento sempre acompanhou a política e impediu a rememoração de acontecimentos trágicos — a tortura, por exemplo — em nome de uma anistia ampla, geral e irrestrita. Mas o que vemos hoje é uma laboriosa construção do esquecimento, não exatamente dos acontecimentos, mas da própria origem da política, como se ela viesse de nenhum lugar, fosse destituída de qualquer fundamento.

Outras considerações sobre as grandes transformações na civilização do Ocidente nos advertem para o fato de que abandonamos o espaço das revoluções políticas para entrar no espaço das revoluções técnicas e mentais. Em um texto chamado Apocalipse, Karl Kraus nos lembra que hoje “a alma é despossuída pela técnica, o que nos torna frágeis e belicosos”. Há um processo completamente autônomo e cego da técnica que age sem política e muitas vezes contra ela. É verdade que o enfraquecimento de instituições, práticas e ideais antes profundamente enraizados, assim como o desaparecimento de algumas formas da política, solidamente estruturadas na tradição – uma tradição de séculos põe em perigo a própria ideia de política. Ouvimos sempre dizer que um mundo novo está em gestação. O problema é que, entre o fim de uma experiência e o começo de outra, nenhuma criação nova no campo da política ganhou expressão. Marx dizia que muitas vezes pode haver rupturas sem que elas sejam pensadas como tais por seus agentes. Em síntese, vivemos um momento de incerteza e desordem. Em qualquer domínio da atividade humana — esferas do saber e do poder, costumes, mentalidades, sensibilidade ética, valores — notamos transformações sem precedentes. A política é parte dessas mutações, que se expressam na ausência de conceitos mais ou menos precisos, mais ou menos provisórios, que serviam de pontos de referência para a prática. Esse saber politico, que procurava dar conta da ideia de totalidade que a política pede, decompõe-se hoje em expedientes parciais, realizados pelos especialistas da atualidade e, portanto, voláteis e puramente instrumentais.

As questões suscitadas pelo tema deste livro são evidência de um novo mal-estar.

No prefácio à edição das Pesquisas filosóficas de 1945, Wittgenstein deseja que, “na indigência e nas trevas desta época, (o livro) lance alguma luz em um ou outro cérebro”. No comentário do filósofo Jacques Bouveresse, Wittgenstein não pretendia dissipar as trevas da época, mas esclarecer um pequeno número de espíritos. É essa a intenção de O esquecimento da política.

Partimos de uma evidência: há uma desordem generalizada da memória política que se desdobra em lembranças sem importância. Se o trabalho do pensamento é uma reconstrução, somos postos, de início, diante de um dilema: retorno às coisas políticas ou restauração daquilo que antes se entendia por política? Depois das experiências totalitárias, que pretendiam pôr fim à política, ou melhor, depois da oposição binária e aparentemente fácil entre democracia e totalitarismo, somos chamados a construir caminhos inéditos a partir da presença de um terceiro termo, o Estado autoritário, ou autoritarismo, comum a todas as democracias. Sigamos, pois, um fragmento de Feuerbach de Necessidade de uma reforma da filosofia: “Uma nova filosofia que surge do mesmo fundo histórico que aquelas que a precederam é uma coisa, mas uma filosofia que surge de uma era radicalmente nova da história humana é outra coisa.”

Em um texto célebre, o poeta e ensaísta Paul Valéry escreveu que o mundo moderno aboliu duas das maiores invenções da humanidade, o passado e o futuro. Quando põe em discussão as ideias de passado e futuro, ele está pensando no destino da civilização do Ocidente e escreve a célebre frase. “Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais… Toda civilização tem a mesma fragilidade de uma vida.” Com a morte da civilização, entramos em uma era de transformações rápidas e profundas trazidas pelo desenvolvimento técnico-cientifico. Estamos em um momento de mutação que é a passagem de regime de funcionamento que conhecemos a outro, que ainda não sabemos nomear. “Entramos no futuro de costas”, escreve Valéry.

Mas essas transformações acontecem de maneira desigual no conjunto das coisas humanas.

Enquanto na vida material elas são velozes e visíveis e afetam nossa vida cotidiana (clonagem, alteração das concepções de espaço e tempo, biotecnologia, computadores, celulares etc.), o mesmo não acontece com as “convenções fundamentais da sociedade”: os costumes, as leis civis, o direito público, os conceitos, as entidades e aquilo que Valéry chama de mitos essenciais do mundo moderno, que são a Moral, a Política e a História, que permanecem quase que intactas na aparência. Em um texto clássico chamado A politica do Espírito — nosso supremo bem, Valéry explicita esta contradição: “O mundo moderno, em toda sua potência, de posse de um capital técnico prodigioso, inteiramente penetrado de métodos positivos, não soube, no entanto, estabelecer uma política, uma moral, um ideal, nem leis civis e penais que estivessem em harmonia com os modos de vida que criou, nem com os modos de pensamento que a difusão universal e o desenvolvimento de certo espírito científico propõem pouco a pouco a todos os homens.”

Vivemos, pois, um paradoxo: se o passado foi quase que inteiramente abolido pela ciência e pela técnica na ordem da vida material, este mesmo passado, no entanto, não pode ser esquecido nas dimensões humanas da sociedade, muito menos na ordem política. Em síntese: para estabelecer o seu domínio, a técnica precisa esquecer o passado; já as convenções fundamentais da sociedade não podem viver sem a tradição e sem o passado. Imaginemos o que aconteceria se esquecêssemos tudo o que foi escrito, filosofias, tragédias, as pinturas, os clássicos, enfim, as obras de arte e as obras de pensamento, imaginemos o que aconteceria se a cultura acompanhasse a lógica veloz de destruição e criação operadas pela tecnociência, como acontece com a vida material de hoje?

Já a ideia de futuro está sendo posta à prova: vivemos um presente eterno, e tudo segue as leis do fugaz, do veloz e do volátil, eterna mudança do mesmo. Poucos pensam em permanência de alguma coisa. Isso acontece não apenas em nossa vida cotidiana, mas também como uma espécie de falência da imaginação criadora, incapazes que somos de formar uma representação homogênea do mundo, que incorpore dados antigos e novos da experiência.

Ora, são as dimensões do passado e do futuro que dão profundidade As coisas políticas, ou melhor, a profundidade só pode ser alcançada através da lembrança e dos projetos.

Vivemos um paradoxo: como esquecer a política se a própria tradição nos faz lembrar a cada momento o seu lugar de origem e suas formas de criação, a começar pelas palavras: tirania, monarquia, aristocracia, democracia? A própria palavra política tem origem helênica. São muitas as noções de política criadas pelos gregos, mas duas ou três delas bastam para definir a origem e a natureza da política, ou a “invenção da política”, como escreve o helenista Moses Finley:

Comecemos com a invenção da ideia de uma “constituição” de um “regime”, isto é, como escreve Aristóteles, “certa ordem instituída entre os que habitam a cidade”. É essa constituição que organiza, estrutura e ordena as relações entre as partes. A ideia de partes é fundamental em Aristóteles porque é através dela que ele estabelece que a política não é o exercício do poder apenas, mas um modo de relação entre as partes. É o que ele diz no Livro III da Política: o cidadão é aquele “que participa do fato de comandar e de ser comandado”. Toda a política se resume nessa relação específica, e é o sentido desse “fazer parte” que é preciso interrogar. Esse conceito de “fazer parte” foi retomado por muitos pensadores, o mais recente deles o filósofo Jacques Rancière, em seu livro sobre o Dissenso.

A segunda ideia é sobre o objetivo mais alto da política, que, para Aristóteles, consiste no “viver bem”, “ser feliz”, viver da melhor maneira possível. Que a cidade tenha como causa final o bem supremo – e isso se alcança através da autarquia ou do governo dos próprios cidadãos que vivem em comunidade. Como nos lembra o filósofo Francis Wolff no seu livro Aristóteles e a política, uma comunidade é um grupo de homens unidos por um fim comum e, portanto, ligados por uma relação afetiva chamada “amizade” e segundo as relações de justiça:

“Eis por que na sua Ética Aristóteles estuda com precisão as relações entre tipos de comunidade e tipos de amizade — na qual não se deve ver apenas uma relação afetiva, mas um sentimento de co-pertencimento a um ‘nós’ (mesmo que provisório, contingente e convencional) que opõe, por um tempo ou para sempre, esse ‘nós’ a todos os outros, e separa assim o amigo e o inimigo. Mas, desde que haja diversos indivíduos e algo de comum entre eles, põe-se um problema que é o da justiça. Com efeito, ‘tudo o que é posto em comum funda-se sobre a justiça’ (Ética Nicômaco).

Eis por que a justiça não é uma virtude como outra qualquer, mas a virtude da comunidade, aquela que regula as relações entre seus membros, graças à qual uma comunidade existe ou pode continuar a existir.”

A terceira ideia grega é a isonomia, isto é, a participação igual de todos na vida política. O que está em jogo nessa definição é a oposição central entre liberdade e servidão, igualdade política e tirania, cidadania e despotismo.

Mas, dando um grande salto, deve-se ressaltar a ruptura trazida pelo pensamento de Maquiavel. Para ele, a política não diz respeito justiça grega nem à graça divina dos medievais, mas ao exercício do poder. Toda sociedade, diz ele, é atravessada por uma divisão originária entre o desejo dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado — os grandes são movidos pelo desejo de bens, e o povo, pelo desejo de liberdade e segurança. A grande ruptura consiste, pois, em tomar como ponto de partida para pensar a político não a ideia clássica de comunidade, mas a ideia de sociedade dividida.

Como Maquiavel — diz Marilena Chaui no seu texto O que é política —, Marx parte da divisão social, isto é, da divisão de classes, e considera o Estado moderno o exercício da dominação, pois realiza, em linguagem maquiaveliana, o desejo dos grandes de oprimir e comandar, isto é, a propriedade privada dos meios sociais de produção e a repressão militar e policial.

“Dos contratualistas aos liberais, dos liberais aos marxistas, muito foi escrito e feito na política”, escreve Marilena, “mas sem perder de vista a divisão social, seja à maneira liberal para ocultá-la nas figuras do Estado e da Nação como unidade indivisa imaginária, seja à maneira revolucionária de reinvenção da política sem e contra o Estado.”

Por fim, consideremos a política como dissenso e não consenso, como a tomada de posição em relação à divisão social; pensemos a política como uma permanente criação de direitos. A política é o ato de saber fazer leis e, ao mesmo tempo, ter a capacidade de questioná-las.

Assim, a política não pode ser pensada como o exercício do poder ou a luta pelo poder apenas; se existe uma natureza política — ou uma razão política, como querem alguns teóricos —, ela “está inteiramente contida nessa relação que não é uma relação entre sujeitos, mas uma relação entre dois termos contraditórios” — como define Jacques Rancière: “a política é a reivindicação da parte dos que não têm parte”, ou a relação entre dois desejos: o desejo dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado — desejo de liberdade.

Estas breves definições servem de contraponto às várias formas de esquecimento da política hoje.
Ouvimos diariamente falar de economia política, poder político, poder teológico-político, ciência política, políticos profissionais, tecnocracia político etc. Perguntemos, a política é uma ciência ou uma prática da liberdade? A política pode ser medida como um valor econômico de mercado? Ora, além da fragmentação da ideia de política com a junção desses apostos, notamos uma incessante luta de cada um desses termos pela hegemonia na sociedade. Hoje, por exemplo, vemos o domínio hegemônico absoluto do que se define como economia política. Mais: essa fragmentação provoca uma cisão enorme entre “nossos hábitos políticos, nossas instituições, nossa legislação e mesmo nossa sensibilidade, e cisão maior entre aquilo que sabemos e o que podemos saber”. Assim, de fragmentação a fragmentação, a política acaba sendo reduzida a uma invenção de expedientes. Antes, a política concebia projetos de grande estilo, planos de longa duração, o que resultou em algumas potentes instituições. “Atribuía-se aos Maquiavéis uma sabedoria, uma previsão e uma estratégia.” Hoje, a história é outra: “Técnica, estudos, rigor, controle, ordem e precisão de um lado; de outro, expedientes, verbalismo, ilusões, superstições diversas de origem filosófica e histórica, profecias dos partidos, imaginários ingênuos, impulsões e sugestões, apelos mais ou menos disfarçados cupidez, à bestialidade… Enquanto as relações do homem com seu meio físico tornaram-se cada vez mais precisas e mais vantajosas, as relações do homem com o homem foram dominadas por um empirismo detestável e marcam mesmo, em diversos pontos, uma regressão muito sensível.”

Essas são algumas contradições do mundo contemporâneo, cheio de expedientes políticos, que resultam em esquecimento da política. Que expedientes são esses?

A primeira forma do esquecimento é a privatização da vida — o esquecimento da coisa pública em proveito do privado. Em um de seus ensaios, Robert Musil escreve que o capitalismo pode ser considerado “a mais gigantesca organização do egoísmo”. Não é difícil constatar hoje, na prática, uma desilusão no coletivo e a crença de que “a felicidade e o bem concentram-se no casal, na família e, quando muito, no pequeno grupo”, como nos lembra Wolff. A publicidade de mais um programa de televisão, o BBB, é exemplar: “Agora você tem mais um motivo para ficar em casa.” O elogio do individualismo e a desilusão do coletivo, hoje problemas universais, ganham força peculiar no Brasil. Nossa formação política criou um solo propício à sua fácil expansão. Um clássico, Raízes do Brazil, de Sérgio Buarque de Holanda, já nos advertia sobre essa formação: “a família patriarcal fornece o grande modelo por onde se hão de calcar, na vida política, as relações entre governantes e governados”. Sigamos o comentário da historiadora Lilia Schwarcz: essa forma de sociabilidade está inscrita em nossa história; “presente durante a escravidão, sobreviveu ao clientelismo rural e resistiu à urbanização, onde o princípio de classificação hierárquica manteve-se sustentado por laços pessoais”. Pergunta sem resposta de Lilia Schwarcz: “De que maneira pensar projetos de igualdade social nessa sociedade que trata a cidadania como fórum da intimidade e entende o exercício da política como uma prática restrita a biografias exemplares?”

Ao privatizar a vida, aquele que deveria ser o sujeito da política delega toda a sua ação aos profissionais — o deputado, o prefeito, o ministro, o vereador etc. Francis Wolff tem uma imagem dessa política do individualismo exacerbado: “É um teatro”, diz ele, “uma espécie de comédia com seus personagens que se vê na televisão, longe das preocupações reais das pessoas, longe da vida cotidiana de todos. Não se tem uma verdadeira hostilidade à política, mas antes indiferença desconfiada.” Wolff cita Tocqueville — autor de Democratie (1835) que vê na democracia de massa os males quase inevitáveis: “O individualismo é um sentimento refletido e tranquilo que leva cada indivíduo a se isolar da massa de seus semelhantes e a se retirar com sua família e amigos; de tal maneira que, após ter criado assim uma pequena sociedade para uso próprio, abandona voluntariamente a própria sociedade.” Tocqueville diz ainda: “Desta vez, os bárbaros não sairão dos gelos do Norte, eles se levantarão do seio de nossos campos e do meio de nossas cidades.” O individualismo é, pois, a essência do contemporâneo. O mundo, que sempre foi o centro de todas as controvérsias e de uma quantidade enorme de contrários, pode ser representado hoje em um único plano: consumismo desenfreado e vitória da ética do “cada um por si”. Ser “moderno” é estar inserido no mercado de consumo; quem está fora é qualificado de arcaísmo abstrato. No ensaio A colonização da política, Francisco de Oliveira define o indivíduo contemporâneo como uma mônada. Ora, mônada, dizem os dicionários, é uma unidade orgânica diminuta e muito simples, como um grão de pólen; mônada é definida também como um átomo inextenso que compõe qualquer realidade física, mas ao mesmo tempo imaterial e indivisível. Na química, uma mônada é um átomo univalente; em síntese, um número formado por uma figura apenas, único, solitário, isolado. É verdade que hoje não passamos de números nas estatísticas que servem para medir ou definir qualquer coisa: da política aos atos sexuais, das sondagens de opinião aos créditos bancários e altas e baixas da Bolsa de Valores, os números são o fetiche dos tempos atuais. Mônada épois, uma imagem forte para designar o individualismo moderno porque ele abole qualquer possibilidade de vínculo social — e sabemos que o vínculo (ou relação) é constitutivo de uma ética do mundo político, porque a política é algo que ocorre entre os indivíduos, no espaço comum da vida pública, como nos lembra Hannah Arendt. Ora, ao dizer que o indivíduo sob o Estado burguês é um ente abstrato, por não estar enraizado numa vida comunitária autêntica, Marx remete à noção de mônada, descrita posteriormente por Adorno e outros filósofos. A opção pelo individualismo exacerbado no mundo moderno transforma a comunidade em um aglomerado de elementos “extrinsecamente relacionados por uma instância” (que pode ser o Estado ou o político profissional) a quem o poder é delegado.

Lemos, por fim, em Francisco de Oliveira, que a primeira e a mais evidente forma de domínio do econômico veio com a mundialização. Estado-nação perdeu sua autonomia econômica e política: todas as relações internas são, agora, mediadas externamente: “A financeirização da economia mundial impõe regras estritas para os países nacionais, sobretudo para os menos desenvolvidos, e muito abriram indiscriminadamente suas contas de capital, através das quais o movimento especulativo entra e sai, quando quer, das bolsas nacionais.” É o Tesouro norte-americano que estipula a regra monetária de praticamente todas as economias nacionais. Deste modo, as soberanias política e econômica dos países menos desenvolvidos foram severamente postas em questão. Na realidade, são quatro os organismos internacionais que controlam a economia mundial: o FMI, a OMC, o Banco Mundial e o Tesouro norte-americano. Além das diretrizes da política de juros, há ainda os mecanismos que impedem os governos nacionais de utilizarem políticas fiscais diferenciadas e estabelecem limites para diversos gastos, em particular gastos de pessoal.

Francisco de Oliveira aponta ainda as grandes transformações tecnológicas como responsáveis também pelo enfraquecimento da política. “Ao modificar constantemente os modos de produção até a informatização, a técnica altera grande parte dos processos de trabalho, desloca, extingue mesmo categorias inteiras de trabalhadores, o que afeta sua organização e sua representação política. As centrais sindicais perdem a capacidade de mobilização e negociação.” Pensemos também no desdobramento dessas novas funções produtivas da era tecnológica. Os cientistas hoje, por exemplo, deixam de ser considerados teóricos e passam a se constituir em mão-de-obra. O conhecimento transforma-se em produto da “indústria da descoberta”, desfazendo identidades longamente trabalhadas pelos velhos processos.

Um segundo esquecimento da política é a fraqueza da esfera pública. Em política, a opinião de todos deve se equivaler, e é na esfera pública que as opiniões divergentes sobre economia, cultura, política, ecologia, questões sociais etc. devem exprimir-se. Ora, o que é feito do espaço sindical, da imprensa livre, das reuniões políticas, dos grandes comícios, das associações de classe? Enquanto a política foi relevante, a opinião pública era a manifestação pública das reflexões dos interesses de grupos e classes sociais. Em geral, as decisões políticas resultavam dessas reflexões. Hoje, vivemos noções vagas e grosseiras de uma política que se alimenta da nossa ignorância. “O que sabemos, nós o sabemos pela operação daquilo que não sabemos.”

Os acontecimentos recentes da campanha eleitoral à presidência da República servem de exemplo: sem debate público sobre projetos e programas de governo, assistimos mais uma vez à produção fantasiosa da política. O marketing procurou não apenas vender a imagem do politico como pessoa privada, dotada de atributos pessoais, mas também transformar o cidadão na figura de “empresário”. “Somos 180 milhões de patrões”, dizia a propaganda oficial do Tribunal Superior Eleitoral, e vamos escolher o nosso trabalhador. Pior: o que conta são os hábitos cotidianos do político, sua vida em família etc., e não possíveis concepções políticas. A privatização das figuras do político e do cidadão privatiza também o espaço público.

Mas assistimos hoje a uma forma muito mais devastadora de evaporação da esfera pública. As novas tecnologias estão pondo em xeque as formas da sociabilidade ao acolher e reforçar o individualismo exacerbado, esvaziando o convívio social e inviabilizando os sujeitos da ação política, como apontam alguns autores deste livro. “As formas da política”, escreve Francisco de Oliveira, “que ancoram nas formas de sociabilidade, entram em colapso, sobretudo a relação entre classe e representação.”

O enfraquecimento do espaço público produz ainda uma situação perversa e paradoxal, como observa com ironia Paul Valéry: “De inicio, a política torna-se a arte de impedir as pessoas de se ligarem àquilo que lhes diz respeito. No momento seguinte transforma-se na arte de forçá-las a decidir sobre aquilo que elas não entendem.”

Assim, chegamos ao nosso terceiro ponto do esquecimento da política, que é o predomínio da moral, ou melhor, do moralismo.

Quando se fala de normas morais — leis imperativas que repousam inteiramente na submissão da vontade humana a um princípio superior — tendemos a pensar que elas são naturais, isto é, que sempre existiram, naturalmente. Ora, o pensamento antigo não tinha a mínima ideia de lei moral, nem mesmo encontramos nas línguas grega e latina os termos fundamentais da moral moderna que são dever, obrigação, responsabilidade. A ideia de virtude define-se de maneira diferente se nos pomos do ponto de vista moderno ou antigo. Para os antigos, a virtude consistia na busca da vida feliz, e por vida feliz entendia-se a vida presente. Para os modernos, a virtude é o hábito de obedecer a uma lei. Se para os antigos a moral consistia na busca da felicidade, da justiça e da liberdade, para os modernos ela passou a ser definida pelas ideias de dever (culpa), obediência e responsabilidade. Alguns comentadores relacionam essas ideias modernas ao pensamento cristão:

“Muito antes de os filósofos sonharem em especular sobre a conduta humana, as religiões já tinham instruído os espíritos a derivar os preceitos morais de uma vontade divina e a figurar esta vontade em analogia à vontade de um legislador ou de um rei. Que a ideia de dever seja uma ideia essencialmente religiosa, ou de forma religiosa, é o que parece difícil de ser contestado… Deus, por intermediários ou diretamente, faz conhecer suas ordens. E ele se encarrega de recompensar ou punir, segundo se as ordens foram observadas ou transgredidas. dever, assim pensado, repousa sobre um contrato: é uma divida, e este é o sentido verdadeiro e original da palavra dever” (Victor Brochard).
Eis uma mudança radical com implicações na política: se a moral antiga estava relacionada aos ideais de liberdade, justiça, e felicidade, procedimentos que visavam necessariamente ao bem comum, portanto resposta política às questões morais, para os modernos dever, obediência e responsabilidade passam a vincular a moral a interesses privados. Ou melhor, a ideia de indivíduo substitui a de comunidade dos cidadãos.

“O apagamento dos valores políticos em favor dos valores morais marca-se de maneira simples”, escreve Wolff, “porque há um abismo entre estes dois tipos de valores quando eles se aplicam à ação política: os valores políticos são positivos, porque mobilizam tendo em vista um fim; os valores morais são negativos, porque impedem em nome de um interdito. Em síntese, a política visa a um bem, a moral desvia do mal… O esquecimento da política em proveito da moral consiste no fato de que não se espera que a política faça politicamente o bem, mas apenas que ela não faça o mal.”

O vínculo entre moral e interesses privados traz consequências danosas para a ética e para a política. A hegemonia da vida privada regida pelos padrões do individualismo possessivo.., leva ao advento histórico da moral do interesse, como podemos ler nas análises do professor Franklin Leopoldo e Silva sobre A banalidade da moral: “vemos que o interesse se instala como eixo diretor do modo de vida moderno precisamente porque ganha estatuto moral, qualidade que não possuía em épocas anteriores.., a organização política na modernidade está intrinsecamente ligada à ideia de sociedade como associação de indivíduos para a defesa dos seus interesses… Se compreendermos esta legitimação moral do interesse privado, compreenderemos a relação que existe entre banalização da ética e desaparecimento da política. Pois o enaltecimento do interesse individual privado tem como consequências colocar em plano secundário o significado autônomo do interesse público, uma vez que este possuiria apenas uma realidade emprestada e não seria nada mais do que a simples resultante da articulação racional de interesses privados”. É difícil contestar a ideia de que vivemos hoje a hegemonia do interesse em quase todas as áreas da atividade humana que, ligada a estratégias de massificação, leva destruição da comunidade. Ao confinar o indivíduo à sua individualidade sagrada, a “moralidade privada aparece como único critério de julgamento de qualquer conduta, inclusive daquelas que em principio deveriam ser definidas como públicas.., e como consequência não se tem propriamente conduta política nem se faz qualquer juízo político sobre as condutas”. É o prego que se paga com a progressiva destruição da esfera pública e da dimensão pública das instituições.

Outra forma do esquecimento da política está na religião. Francis Wolff nos lembra que, inicialmente, existem governos que são “abertamente teocráticos, como a Arábia Saudita e o Irã; mas existe também um empreendimento cada vez maior das posições religiosas radicais nas políticas dos governos mesmo democráticos, como os Estados Unidos”. No Brasil, os vínculos entre religião e política são evidentes, mas vemos também um deslocamento importante: a Teologia da Libertação e as comunidades eclesiais de base, “engajadas na Cidade dos homens e nas ideias de justiça social, dão lugar hoje às igrejas evangélicas, que, ao mesmo tempo que brigam pelo voto, defendem a despolitização dos fiéis, a adoração mística e a salvação individual”. A força da religião sobre a política pode ser avaliada na questão posta pelo filósofo Cornelius Castoriadis: “Como se pode questionar a lei quando esta lei é dada por Deus; como se pode dizer que o que é dado por Deus é injusto?”

O filósofo Sérgio Paulo Rouanet descreve um dos sintomas de recuo da política, o fundamentalismo religioso — verdadeira doença da cultura —, que, entre outros males, recusa-se a aceitar a separação entre Igreja e Estado, aqui, os preceitos da fé transformam-se em políticas governamentais, escreve Rouanet: esse recuo é, em parte, uma reação à perda de autonomia induzida pela globalização e pelo neo-imperialismo.., O fundamentalismo é a negação mais radical da democracia, porque a lei — seja ela a Shariah islâmica, a Halachá judaica ou a Bíblia cristã — emana diretamente de Deus e não da vontade do povo soberano. Como o fundamentalismo não aceita a separação entre a Igreja e o Estado, os preceitos da fé transformam-se em políticas governamentais”.

A crise dos ideais republicanos é outro tema tratado neste livro. A ideologia dominante tende a confundi-los com o liberalismo. Essa discussão nos leva a questionar a ideia de que seria preciso diferenciar uma “autêntica política liberal” de seu simulacro, ou mesmo do neo-liberalismo. Aqui, nos ensaios de Marcelo Jasmin e Jean-Fabien Spitz são discutidos os princípios liberais, e o principal deles é o que define a política como consenso, denegação da divisão constitutiva do social e, portanto, recusa do conflito decorrente dessa divisão. Ora, sabe-se que é o conflito que permite dar sentido à política, entendida como uma criação permanente de direitos. Em um livro recente, La haine de la démocratie, publicado em 2005, Jacques Rancière mostra que a democracia jamais se identifica a uma forma jurídico-política: isso quer dizer, escreve ele, que o poder do povo está sempre aquém e além dessas formas. “A palavra república não pode significar simplesmente o reino da lei igual para todos. República é um termo cheio de equívocos, trabalhado pela tensão que implica a vontade de incluir nas formas instituídas do político o excesso da política.” Ao tentar colar essa tensão, decorrente de uma pretendida homogeneidade entre Estado e sociedade, inerente ao projeto republicano, Rancière conclui que é na realidade a própria política que a ideologia neo-republicana apaga.

A outra forma de esquecimento, também objeto de ensaio, é a servidão voluntária: mais do que uma manipulação externa sobre os dominados, deve-se ver o esquecimento também, e até certo ponto, como uma construção dos próprios dominados, isto é, a permanente busca do desejo de servir. Os dominadores recorrem a várias formas para subjugar as multidões, a mais forte delas, como mostra La Boétie, consiste em transformar o dominado em artesãos ativos de sua própria dominação. Mas, em seu texto, Miguel Abensour não se limita às interpretações clássicas da servidão voluntária e vai além: critica as análises contemporâneas do Discurso da servidão voluntária que procuram ocultar a revolução de La Boétie ao evidenciar apenas o lado passivo do povo e ao não considerar a hipótese fundamental que entende os homens como seres-destinados-à-liberdade. A visão passiva, segundo Abensour, é um dos momentos do esquecimento da política.

Com os ensaios aqui publicados, podemos dizer com Miguel Abensour que a política hoje é o princípio do sem-princípio, que resulta na condição trágica descrita por Hannah Arendt: parecemos condenados a oscilar “entre democracias apáticas, comandadas exclusivamente pelas forças do mercado, e regimes autoritários”. Uma frase enigmática do filósofo alemão Martin Heidegger, sujeita a muitas e contraditórias interpretações, dá a pensar: “É para mim uma questão decisiva hoje: como um sistema político — e qual — pode, de uma maneira geral, ser coordenado na era técnica. Não sei responder a essa questão. Não estou convencido de que seja a democracia.”

Mas existe outro tipo de crença muito mais devastadora da ideia de política, uma vez que, em geral, não temos consciência dela: é a crença na palavra. Na democracia — regime da fala ou dos efeitos da fala —, escreve Paul Valéry, tudo se torna “politico”. E “político” na democracia significa mais ou menos “dramático”. Tudo é relativo às impressões de um público. “Nela, são as leis do teatro que se aplicam. Simplificação, ilusão perpétua…tudo no momento… o que é difícil de se exprimir não existe. O que pede longos preparativos, uma atenção prolongada, uma memória exata, a indiferença em relação ao tempo e ao esclarecimento faz-se impossível.”

Como ensaísta, Valéry dedicou o melhor de sua reflexão ao poder da palavra, mais particularmente a duas delas: crença e fidúcia. Lemos, por exemplo, um dos fragmentos escritos por ele em seus famosos Cahiers: “A autoridade é o poder de ser obedecido sobre a única injunção // sobre palavra // obedecido fisicamente, ou intimamente, isto é, acreditado”… “Poucas interdições sociais (…) suportam ser enunciadas com toda evidência.” Mais: “Não se deve crer — porque não se deve dar às afirmações que se faz ou que nos são propostas outros valores que não seus valores. O bilhete de banco. Moeda fiduciária. (…)

“Crer: dar mais do que se recebe — Receber palavras e dar atos. (…) “Que o homem possa ‘afirmar’ sem ‘saber’ — ver sem ter visto — fiar-se em algo que contradiz o que ele vê — não ser submetido ao valor atual de seu conhecimento… É uma propriedade que lhe permite construir tanto uma ciência quanto uma religião.”

Não se pode negar que discursos e práticas políticas estruturam-se hoje a partir destas duas instâncias: crer e fazer crer, o que dá à política consistência e fragilidade ao mesmo tempo: qualquer análise que se faça deve partir de um paradoxo: o poder se utiliza da palavra para dominar, mas, para isso, ele precisa destituir a palavra do seu sentido originário. O primeiro movimento feito pelo poder consiste em fazer esquecer as operações através das quais uma palavra se constitui, introduzindo de forma velada outros “valores”. Como escreve Jean-Michel Rey, “é que a linguagem tende a impor, sem jamais dizer, uma forma de expressão que tem como único modelo o aspecto mais inconsequente da fidúcia”. Em um ensaio dedicado às formas da dependência criadas pela palavra, Rey cita Peguy, pensador da política que, de alguma maneira, dialoga com Valéry: “Assim, a força da palavra substitui a força da coisa; da ideia, do fato, da própria hipótese, e mais realidade falta à coisa, mais a palavra é necessária para compensar, reino da violência artificial (…) Através de que jogo curioso e perverso de semântica esta palavra mal formada adquiriu tão rápida e esfuziante fortuna?” Valéry retoma a questão: “Mas como fazer para pensar — quero dizer: para repensar, para aprofundar o que parece merecer ser aprofundado — se consideramos a linguagem como essencialmente provisória, como é provisório o bilhete de banco ou o cheque, dos quais o que designamos ‘valor’ exige o esquecimento de sua verdadeira natureza(…) Mas as palavras passaram por tantas bocas, por tantas frases, por tantos usos e abusos que as precauções mais atentas se impõem para evitar uma grande confusão nos nossos espíritos entre aquilo que pensamos e procuramos pensar, e o que o dicionário, os autores e, de resto, todo o gênero humano, desde a origem da linguagem, querem que pensemos…”

Mas pensemos também no seu contrário, isto é, o trabalho da palavra contra o esquecimento. É próprio da natureza da palavra querer significar mais do que ela é, e é nesse sentido que se pode dar a ela uma dimensão verdadeiramente política. Uma palavra jamais pode ser saturada porque, através de um sistema de relações, ela atesta ao mesmo tempo nossa potência de descobrir cada vez mais e nossa impotência de realizá-la inteiramente. Palavra, política, linguagem e cultura vivem deste paradoxo: a dimensão ética apontada por Valéry resume a contradição: dizer é antes de tudo fazer sem saber, muitas vezes, o que se fez. Isso se dá porque, queiramos ou não, a palavra nos impõe o pensamento dos outros. Para ele, a linguagem “é o meio mais forte do Outro — alojado em nós mesmos”. Mas o antídoto está na própria palavra: “O que há de excitante nas ideias não são ideias; é o que não foi pensado ainda; é o que é nascente e não o nascido que excita. São necessárias portanto palavras com as quais jamais se chegue ao fim — e que jamais sejam anuladas por uma representação qualquer…”

Para que se tenha consciência da palavra é preciso, portanto, saber dizer. A palavra do sujeito falante é contingente, utópica, jamais imparcial ou neutra como quer a política. A palavra não subordinada à tagarelice dos políticos é um corpo de pensamentos errantes e em permanente construção, ainda que expressa de maneira mais ou menos imprecisa e mais ou menos diferente. É isso que o filósofo define como trabalho livre do pensamento. “A intenção de significar não está fora das palavras ou ao lado delas. Ao falar, realizo constantemente a fusão interior da intenção com as palavras. A intenção, por assim dizer, anima as palavras, e o resultado dessa animação é que as palavras e toda fala encarnam, por assim dizer, uma intenção e, uma vez encarnada, trazem nelas seu sentido” (Husserl, Lógica formal e transcendental). Enfim, para nós, mais do que tratar “objetivamente” uma palavra dada, o importante é reconhecer o sujeito falante e não permitir o domínio da fala do outro sobre nós. Como escreve Merleau-Ponty, para saber o que é linguagem é preciso, antes de tudo, falar. “Não basta”, diz ele, “refletir sobre as línguas tais como elas são, tais como a história e os documentos nos revelam. Devemos frequentá-las, reformá-las, falá-las.” Só assim, através da palavra em ato, podemos ter certa clareza do mundo das ideias, da política e dos objetos culturais. Assim, a palavra deve tornar-se, essencialmente, um meio de conhecimento. “Existe entre os homens e em cada um deles”, conclui Merleau-Ponty, “uma incrível vegetação de falas cujos ‘pensamentos’ são a nervura… Enfim, se a fala é outra coisa que ruído ou som é porque o pensamento deposita nela uma carga de sentido — de início sentido gramatical e lexical — de sorte que jamais existe contato a não ser do pensamento com o pensamento.” Contato mudo do pensamento com o pensamento que pede novos sentidos e novas expressões.

Não é por acaso que Wittgenstein e Paul Valéry — dois críticos da língua como “acabada e fechada” e do insidioso domínio da palavra na política — comparam a expressão linguística a uma projeção geométrica. Entenda-se por geometria em Valéry uma questão de ponto de vista: “euclidianas ou não-euclidianas, são apenas maneiras de ver o mundo e de representar certas relações infinitamente variadas que podemos descobrir entre os elementos que as compõem”. Aqueles que romperam com a geometria ingênua, conclui Valéry, deram um passo enorme em direção ao conhecimento. Ele dá um exemplo que nos pode ser útil. “Tendemos sempre a esquecer que o que designamos ‘coisa’ é, na realidade, um conjunto extremamente complexo de variáveis diferentes que podem ser vistas compondo um número quase ilimitado de sistemas diferentes, se considerarmos desse ou daquele ponto de vista: Coisas — A água, por exemplo, não é a mesma coisa se penso na química, na poesia, na mecânica, na psicologia, na necessidade, na fisiologia, na metafísica, na pintura. É a mesma palavra. É, em parte, a mesma representação — mas não é a mesma função.” Enfim, trata-se de pensar, na política, o papel unicamente transitivo da palavra, situá-la em contextos precisos, retraçar suas sucessivas significações, mostrar, por exemplo, que ela pode estar sempre à deriva e que um termo adequado a um sistema científico dado pode ser captado em um campo semântico inteiramente diferente. Essa ideia transitiva aproxima-se da geometria da linguagem de Wittgenstein como a “lógica do vago”, que tem, segundo um de seus comentadores, o uso sempre flutuante de uma linguagem da qual devemos reconhecer e preservar a imprecisão: “Quando consideramos o uso real de uma palavra”, escreve Wittgenstein, “vemos algo de flutuante. Em nossas considerações, opomos algo de mais firme a esta flutuação, da mesma maneira que, em um quadro, é fixado um aspecto sempre cambiante de uma paisagem.”
Se os politicos utilizam-se da palavra para dominar, é preciso também um trabalho político da palavra para resgatá-la das armadilhas, tirá-la do estado flutuante e fixá-la em estados de realidade. Isto é, tirar da palavra a ideia de valor e dar a ela sentido.