1992

Política do céu (anti-Maquiavel)

por Antonio Alcir Bernárdez Pécora

Resumo

Em oposição a Maquiavel, o padre Antônio Vieira defende em seus Sermões que “não há fim sem meios” e que o caminho da salvação se faz por passos imperfeitos, porém perfectíveis. Os meios de que o homem dispõe são tanto naturais quanto providenciais, as palavras da Bíblia servem de guia para as resoluções práticas. Transpondo em linguagem cristã o topos ciceroniano da racionalidade e utilidade da moral, Vieira insiste na eficácia do fato moral: segundo ele, os maquiavélicos erram ao não considerar em seus cálculos o ganho da adesão à fé. É o temor de Deus e a boa consciência de um guerreiro, por exemplo, que o fazem perder o medo da morte e ter coragem. Vieira insiste também nas funções de justiça do reino, com seu duplo aspecto punitivo (que castiga os maus) e distributivo (que premia os bons), prega a universalidade dos impostos (“não carreguem os tributos somente sobre uns”), afirma que o ofício, na administração, deve ser “o pretendente do homem, sendo o homem sempre o mais digno”, e, na delicada questão indígena, propõe uma atitude que imite a paciência divina: tudo isso para mostrar que o exercício do poder obriga a uma prática virtuosa. Assim ele subtrai dos maquiavélicos, e transforma, o conceito de “razão de Estado”. O interesse é subsumido no Bem Comum, sendo possível até mesmo conciliar “as chagas de Cristo” e o “dinheiro de Judas” (numa alusão ao capital judeu que financiou os feitos portugueses). Ou seja, o antimaquiavelismo de Vieira é um modo de conciliar a arte política e o cristianismo.


Não há fim sem meios.

Antônio Vieira

O que cabe aqui é o levantamento de certas tópicas seiscentistas efetuadas pela oratória de Antônio Vieira que possam configurar, naquele momento histórico, os sentidos postos em jogo sob o título da ética. De maneira particular, escolhi tratar daqueles que ficavam evidentes nos anos imediatamente anteriores e posteriores à primeira volta de Vieira a Lisboa, mais de vinte anos depois que saíra de lá, ainda menino e sem letras. O período parece-me interessante porque, ao mesmo tempo (por assim dizer), curto para tão longa vida, e radicalmente longo se se tiver por medida a alteração fulminante que se passa aí: de jesuíta destacado apenas no cenário limitadíssimo da Bahia colonial, para o ilustre confessor do primeiro rei dos Bragança, e, logo mais, embaixador sem pasta nas cortes de Haia, Paris e Roma.

Também escolhi, para conduzir um pouco a discussão dos sentidos da ética em Vieira, tratar basicamente de temas que envolviam certa contrapartida ao obrigatório “maquiavelismo” do período, justamente porque, sob o genérico do nome, reúnem-se algumas das tópicas políticas mais relevantes tratadas então, de um lado e outro da trincheira contrarreformista. Se se tivesse de agrupá-las em uma fórmula poderiam talvez ser resumidas pela ideia de “separação” entre ética, domínio das práticas morais, e política, domínio das práticas necessárias ao governo eficaz da coisa pública.

Por essa época, o vocabulário dos autores de preceptivas e tratados relativos à educação dos príncipes e à organização do reino, assim como o que é incorporado em seus documentos oficiais, testemunha o emprego crescente de termos como política e políticos, Estado e razão de Estado, com a acepção de um domínio da vida pública que tenderia a constituir uma área autônoma de conhecimento e operação.[1] Sobretudo esta expressão, “razão de Estado”, convém que seja examinada de perto, ainda mais tendo em vista que ela, ao menos inicialmente, tendeu a resumir a posição dita amoral de Maquiavel — embora, como se sabe, ele próprio não a tenha criado ou mesmo empregado, mas sim seu contemporâneo Guicciardini, sendo posteriormente divulgada por Giovanni della Casa.[2] Disse inicialmente porque, com a entrada em cena de Giovanni Botero e da “cavalaria ligeira”[3] dos jesuítas, o conceito de “razão de Estado” acabou passando por uma curiosa inversão, de que o próprio Vieira vai compartilhar, e que, em linhas gerais, passa a designar a posição daqueles que a combatiam e, ao mesmo tempo, a incorporavam à moralidade cristã: tal é o sentido do anti, assumptivo e dialético, aposto ao nome do velho Nicolau, recendendo a enxofre. A partir daí, não tem mesmo faltado estudioso que visse nessa incorporação formas duplicadas do próprio maquiavelismo de origem, com a agravante de que se perderia certo senso trágico do florentino na formulação da incompatibilidade prática, no imperfeitíssimo mundo dos homens, entre a bondade genérica dos fins e a “flexibilidade moral”[4] de que o príncipe deve dispor em defesa da autonomia de seu Estado.[5]

Mas, enfim, que argumentos dispõe Vieira em torno destes tópicos? Aos sermões, para sabê-lo.

1

Quando a 19a dominga post pentecosten, de 1639, celebrou na mesma data — nunca por acidente — a festa mensal do Santíssimo Sacramento, Antônio Vieira julgou apropriado lembrar a seu auditório, a partir da parábola do rei que convida seus súditos para as bodas de seu filho (Mt 22, 1ss.), que verdadeiramente Deus convoca a todos, sem exceção, para o banquete da Glória, mesa posta tão pública quanto as ruas. Entretanto, adverte, não se pode descurar do banquete da terra para que o Céu seja possível: é exatamente do comportamento diante da oferta temporal que se definem as possibilidades de se ter posse, afinal, da Bem-Aventurança. De resto, aqui Vieira constrói uma de suas frases mortíferas, importantíssimas para este estudo em ética: “não há fim sem meios”.[6]

Enunciada aqui sobretudo como louvor dos meios que a Igreja institucional dispõe para salvação dos fiéis, a frase aponta, entretanto, para o quadro mais amplo em que esses meios eclesiásticos, e outros que se vão ver, inserem-se na argumentação do jesuíta. A partir daí, levantam-se ao menos duas direções para exames. A primeira é exatamente a que admite a distinção entre fins e meios, ao tempo mesmo em que os condiciona entre si: a Glória Celestial define-se imediatamente no âmbito dos fins, como esperança e destinação originária, natural, mas necessariamente mediatizada pelos instrumentos muito mais próximos fornecidos no âmbito terreno, operativo (não contemplativo) e institucional. Estabelece-se aí o topos da indisponibilidade dos meios (as obras, como instâncias decisivas da salvação, têm, a rigor, o mesmo estatuto irrevogável dos fins a que visam), e, genericamente, a admissão dos passos imperfeitos com que se anda a via salvífica, desde que se entenda que isso significa, também, a crença na perfectibilidade deles.

As consequências desses lugares contrarreformistas para a ética são imediatas: de saída, não há como circunscrever o seu âmbito fora de uma certa prática, isto é, não há como pensar a ética em termos de princípios que não se particularizem como ocorrência: as potências não cumprem integralmente sua substância ética sem que a efetuem atos, que são, neste caso, tanto circunstancial quanto ontologicamente relevantes. A “casuística” jesuítica, tão citada quanto mal conhecida, tem aí o seu embasamento ético-teológico.

Compreende-se, a partir desses pontos, que às considerações de natureza ética não repugna absolutamente, antes a isto obriga, sob pena de omissão, a existência ou o exame de uma “política de obras”, dimensão rigorosamente constitutiva da via salvífica do homem. E, no caso de Vieira, ainda mais isso vale, já que ressalta a natureza social, coletiva, que a escolástica aristotelicamente atribuiu à plenitude humana. Desde os seus primeiros sermões encontram-se exemplos dessa posição; é de citar um trecho do que dedicou a são Sebastião, ainda em 34, quando elogia no santo a sua combinação modelar de fé profunda e habilidade política. Ele, como o diz Vieira, “encobriu a verdade da fé com a política das obras e encobriu a política das obras com a dissimulação da fé”;[7] e, em outro trecho, ainda referindo-se a são Sebastião: “Toda a sua vida era uma dissimulação da vista, toda era um enigma da opinião, e toda era uma metáfora do que não era, porque, parecendo que toda se empregava em dar a César, só dava a Deus o que era de Deus”.[8]

Isso sobre aquela primeira direção contida na máxima assinalada, “não há fim sem meios”. Há uma segunda tão necessária quanto a primeira para um mapeamento verossímil dos sentidos da ética compreendida nos sermões vieirianos. Se é inevitável a existência de meios para que se atenda a um fim, também é preciso levar em conta que essa existência é natural, sim, mas é, por isso mesmo, efeito e participação de uma natureza transcendente, divina, que a ordena providencialmente para o fim presente, desde o início, na Causa de toda existência. Ou seja, na perspectiva neoescolástica adotada por Vieira, os meios de que o homem dispõe não são apenas naturais, vale dizer, ordenados segundo uma determinada razão e grau análogos de ser, mas igualmente providenciais, isto é, objetos de uma orientação essencial que os dirige para seu fim próprio, que é o mesmo para o qual Deus os cria. A natureza do universo criado é, em si mesma, no funcionamento regular de sua máquina, finalista e providencial.

Daí que pensar conceitos de ética dispostos pelos sermões de Vieira implique, simultaneamente, considerar a maneira como se cumpre a necessária instância militante, operacional, coletiva, em suma, política, e aquela com que se cumpre a necessária instância finalista, providencial, teleológica, subordinada a uma natureza que se dirige para a perfeição do Ser que a criou. O conceito de “mundo perfectível” ou “perfectibilidade”, tão grato aos moralistas do Barroco — melhor compreendido contemporaneamente, talvez, se confrontado com o vocábulo (entretanto, laico) de “aperfeiçoamento” —, indica certamente essa dimensão dúplice indecomponível no homem.[9]

É importante também notar que, se, no primeiro caso, os meios implicam circunstâncias e demandam uma política, no segundo, o plano divino para o mundo dos homens não a enseja menos: é dele que se pode extrair, proporcionalmente, o modelo de uma política verdadeiramente adequada, isto é, ao mesmo tempo, justa, racional, moral e eficaz. Dizer que existe uma providencialidade de meios significa, aqui, afirmar que a sua disposição orienta-se por uma “política do céu” — essa a expressão utilizada por Vieira, por exemplo, em seu belo sermão da Terceira Dominga do Advento, de 44.[10] Desse ponto de vista, ele argumenta que a providência divina para as coisas humanas, inscrita nos signos das Escrituras, assinala o melhor e mais reto modelo para a política inevitável do “mundo”. De outra maneira: tanto mais será favorável à via salvífica a política das obras, quanto mais ela se espelhar na política divina.

Mais uma vez, será anacrônico distinguir-se como autônomos, em Vieira, o que é ético e o que é político, mas seria anacrônico também simplesmente entender que isso se dê pela subordinação direta do segundo ao primeiro; não pode haver autonomia de domínio aqui porque são ambos atributos naturais, providencialmente dados e conciliados no universo analógico da criação: potencialmente harmônicos, portanto. Simplesmente não se cogita atingir um puro ético, sem as alternativas e os arbítrios dos casos. O céu, ele próprio, pensado em clave dirigida ao homem, é modelo tanto de prática moral, quanto de arte política: técnica justa e racional de operação de meios. Assim Cristo, na oratória triunfante de padre Vieira, é sempre “supremo monarca, e exemplar de todo o bom governo”.[11]

Com isso, a política temporal sempre ganharia em atender ao modelo celeste, seja no tocante ao funcionamento da máquina de Estado, tema caro aos escolásticos, seja no que diz respeito às virtudes necessárias ao príncipe para a condução de seu governo, tema em geral mais debatido pela tradição retórica e humanista.[12] Nesse segundo caso, para dar um exemplo muito próximo da orientação maquiavélica, não fora o evidente lastro teleológico inexistente nela, eis o que diz Vieira, no sermão de são Pedro, de 44, sobre as advertências celestes a propósito dos males da irresolução do príncipe — a passagem bíblica de que tira a lição é a do legado divino das chaves a Pedro, primeiro papa:

E qual há de ser o ofício ou o exercício destas chaves? Fechar e abrir? Não diz isso o Senhor. As chaves que abrem e fecham podem abrir para dentro e fechar para fora. Por isso vemos os tesouros tão estreitos e tão fechados para os outros, e tão largos e tão abertos para os que têm as chaves. Que havia logo de fazer com elas são Pedro? Atar e desatar, diz Cristo: Quodcumque ligaveris, erit ligatum, quodcumque solveris, erit solutum. — A peste do governo é a irresolução. Está parado o que havia de correr, está suspenso o que havia de voar, porque não atamos nem desatamos. Não debalde escolhe Cristo para o governo de sua casa um homem tão resoluto como Pedro. Se Cristo lhe não mandara embainhar a espada, bem necessárias lhe eram as ataduras para as feridas. Assim há de ser quem há de obrar, e não homens que nem atam nem desatam.[13]

Em relação, desta vez, não à virtù do príncipe, mas às operações de Estado, Vieira vai buscar nas escrituras modelo para todas elas, incluindo obviamente aquelas relativas ao Tesouro, tratadas em geral com o estatuto de res quasi sacra.[14] Pode-se exemplificar com o que Vieira observa de política econômica embutida na parábola das dez virgens que aguardam, com maior ou menor vigilância, a chegada do Senhor (Mt 25, 1ss.):

Muitas vezes tenho buscado em que consistiu a loucura das virgens néscias, porque à primeira vista eu não vejo mais milagres nas prudentes. Se as prudentes ornaram as lâmpadas, também as néscias as ornaram; se as prudentes saíram a receber o Esposo, também as néscias saíram; e, se as néscias adormeceram, também as prudentes não vigiaram: Dormitaverunt omnes et dormierunt. — Pois, em que esteve a loucura tão canonizada? Esteve em que as néscias, tendo menos cabedal de azeite que as companheiras, não souberam poupar com a indústria o que as outras gastavam na abundância. Quiseram luzir quando haviam de poupar, e vieram a mendigar quando haviam de luzir: Date nobis de oleo vestro: quia lampades nostrae extinguitur. — Apagaram-se-lhes as luzes, porque não souberam estreitar os cintos; não souberam poupar antes, não puderam luzir depois.[15]

Prédica moral, piedade cristã e prática econômica são perfeitamente harmônicas quando dão com o modelo justo:

Que bem emendou esta ignorância das virgens néscias a prudência e a Providência de São Roque! Contentou-se com satisfazer à necessidade, e não ao apetite; à natureza, e não à vaidade; por isso pôde resplandecer em obras de caridade tão excelentes, e servir ao rei com tanta liberalidade e grandeza […].[16]

Considerada nesta dupla direção, de “política de obras” e de “política do céu”, ambas necessárias no exame das questões éticas, é justo observar que a oratória de Vieira opera em gramática cristã termos amplamente formulados na invenção clássica, como, exemplarmente, o topos ciceroniano da racionalidade e utilidade (utilitas) da moral.[17] Desde que se adicionem aí os devidos critérios teleológicos e salvíficos de excelência cristã, não resta dúvida de que para Vieira a moral é sobretudo efeito da razão, e, como tal, capaz de operar adequadamente em direção ao fim proposto. O caso é que Antônio Vieira estima grandemente, ao contrário dos maquiavélicos, a eficácia — vale dizer, a possibilidade de estabelecimento de uma “política” bem-sucedida — do fato moral.[18]

Certo pragmatismo suposto na razão moral está dado também naquilo que Vieira chama, em geral, de “conveniência da fé”, expressão que tende a resumir alguns dos argumentos fundamentais com que dispõe na mesma sala de tesouros os bens celestiais duráveis e os temporalia efêmeros. Se trocar a estes pelos primeiros já é lucro,[19] garantir a posse de ambos é privilégio exclusivo detido por essa razão moral cristã, assentada naquela dupla política. Daí que os “políticos”, os adeptos da “separação” maquiavélica, para Antônio Vieira, erram quando deixam de considerar em seus cálculos o ganho terreno da adesão às práticas da fé.[20]

2

Até agora falou-se sobre os sentidos mais gerais necessariamente envolvidos nas questões de ética ponderadas pela oratória de Vieira, isto é, considerou-se que qualquer procedimento ético que se pense aí admite o exame de seu lugar em uma política de obras, no seio de uma prática coletiva, e que esta, por sua vez, deve orientar-se por sinais teológicos, que, entretanto, não a destroem como política e eficácia terrenas. Nesse sentido preciso, talvez seja razoável falar-se de uma razão ética mista proposta pelos sermões de Antônio Vieira, o que, de resto, está perfeitamente de acordo com as razões de hábito do Barroco, tão atentas ao mistério quanto ao seu impacto, à doutrina quanto à ocasião. Vieira o diz, aliás: “Não sou de fazer mistérios dos acasos, mas folgo de fazer doutrina da ocasião”.[21]

Mas já é hora de especificar um pouco mais os pontos gerais observados até aqui, o que pretendo fazer, como ficou dito, em torno dos argumentos de Vieira relativos aos bens da res publica, às virtudes implicadas no fortalecimento do Estado cristão. A discussão individual ou subjetiva desses temas é sempre muito menos relevante em Vieira, ou, por outra, jamais se autonomiza da esfera pública, o que, desde logo, torna anacrônica qualquer distinção nítida em seus sermões entre ética (moral) e direito — relativa (como proporia, apenas ao final do século XVII, um pensador como Cristiano Tomásio) à distinção entre uma instância de “intenção”, de “foro interno”, e outra referente ao “foro externo” das ações —,[22]isso além, como se viu, da impossibilidade de dissociar os domínios da ética e da teologia.

Pois bem, em se tratando de estabelecer o lugar da ética na constituição e operacionalidade da res publica, fixei-me estrategicamente na observação das “funções reais” estabelecidas a partir da Baixa Idade Média. A possível pertinência da estratégia está em que, com isso, chega-se a um lugar mais preciso, que pode responder apropriadamente a argumentos levantados em relação à Monarquia absoluta — mas que exige, também, em contrapartida sistemática, a consciência de que, historicamente, tal regime não significou, de modo algum, poder ilimitado.[23]

De qualquer maneira, vale lembrar aqui, com Courtine, a larga adoção pelos preceptistas reais seiscentistas das formulações canônicas a propósito da síntese única operada pela cabeça do organismo hierárquico.[24] Igualmente, em Vieira, o rei é “alma do reino”,[25] e, juntamente com a “Fé” e a “Lei”, ocasião natural (com origem, portanto, em Deus) da ordenação política do Estado.[26]

Por ora, entretanto, basta tratar tão somente de alguns aspectos éticos básicos implicados nas funções próprias do rei, definidas já ao final da Idade Média, quando ao ofício das Armas acrescentam-se, cada vez com maior peso, os da Justiça e da Administração.[27] Primeiramente, pensando na guerra, acontecimento-chave da construção da soberania no século XVII, Vieira tem inúmeras passagens dedicadas a ela, dos primeiros aos últimos de seus sermões. Apenas para exemplificar, na década de 30, “guerra”, para Vieira, refere-se sobretudo aos ataques quase cotidianos sofridos pela Bahia por parte da Marinha holandesa. A tendência básica de seus sermões diante dessa situação é a de afirmar tanto a relevância dos esforços efetivos dispensados na organização militar da cidade, quanto a de ressaltar o papel da Graça divina no êxito de sua defesa. Essa Graça, entretanto, está longe de ser abscôndita: oferece-se concretamente nos instrumentos de piedade e caridade cristãs fornecidos pela Igreja institucional. É corrente nos sermões o louvor desses instrumentos, cuja adoção coletiva, aliada aos méritos da iniciativa temporal, haveria de sustar a vitória inimiga sempre iminente — inimigos que, por sua vez, para Vieira, não o são apenas da Bahia, mas da cristandade enquanto corpo, e, portanto, de Deus.

Assim é que Vieira vai insistir, por exemplo, no tópico do valor de combate das orações, a que ele vai mesmo atribuir o epíteto de “instrumentos bélicos”:

A milícia de nossos inimigos e a nossa — ó companheiros — segue mui diferentes máximas: eles põem o seu poder e toda a sua confiança na multidão da sua cavalaria e nas máquinas dos seus carros. Porém, nós, que temos outra fé e outra experiência, posto que com as armas nas mãos, não pomos a confiança nelas, mas todo o nervo da nossa guerra consiste em outros instrumentos bélicos, muito mais fortes, que são as orações e preces com que invocamos a Deus […].[28]

O próprio Rosário, tão singelo à vista contemporânea, em Vieira ganha foro e divisão militar:

Os romanos ordenavam os seus exércitos repartidos em três linhas: na primeira, os soldados que chamavam rosários; na segunda, os que chamavam acentos; na terceira, os que chamavam triários; e na mesma forma ordenou a Senhora o seu rosário, repartido nas três partes a que nós chamamos terços. Assim como nos exércitos romanos a cada dez soldados presidia e assistia um cabo, chamado por isso decurião, assim vemos nas contas do Rosário que cada fileira de dez Ave-Marias preside e precede um Padre-Nosso. Tão composto e tão ordenado é este poderosíssimo exército da Senhora, e por isso terrível e formidável: Terribilis ut castrorum acies ordinata.[29]

O mesmo diz Vieira a respeito das propriedades da Casa da Misericórdia —[30]com sua assistência a doentes, feridos e pobres, prática caridosa que refigura como verdadeira bandeira de guerra contra o inimigo ímpio e, por isso, imoral — e de tantas outras atividades pias e religiosas desenvolvidas pela Companhia de Jesus e pela Igreja hierárquica.

Vieira, igualmente, no que se refere à relação essencial das práticas morais e religiosas com o campo de guerra, vai considerar a importância delas na formação da virtù do soldado: é o “temor de Deus” e a “boa consciência”, mais do que qualquer outro exercício ou arte, que fazem com que o guerreiro perca o medo da morte e ganhe coragem:

Se quereis, senhor, alcançar vitória de vossos inimigos, fazei capitão dos vossos exércitos o medo de Deus. — Parece paradoxo, para vencer fazer capitão o medo. Mas o mesmo santo dá a razão do seu dito, e não por um, senão por dois fundamentos. O primeiro porque o temor de Deus, que consiste na observância de sua lei e na boa consciência dos soldados, não só faz pelejar com valor, que não basta para vencer, mas com valor e ventura: com valor, porque quem tem boa consciência, não teme a morte; e com ventura, porque quem teme e obedece a Deus, ajuda-o Deus […].[31]

Contrariamente, o ato imoral do pecado corrompe as forças dos soldados, como o diz Vieira a partir do episódio vétero-testamentário da fuga de Davi de seu filho Absalão (S1 3, 1):

Foge de Absalão Davi, aquele que por nome e por antonomásia era o valente: David, idest, manu fortis. — E por quê? Quia peccatum illum imbellem fecit: Porque o seu pecado, de valente o fez fraco, de animoso o fez covarde, de guerreiro e belicoso o fez imbele.[32]

Mas, se a ética, compreendida aqui pelas práticas da moralidade cristã, reforça a virtù bélica, é preciso considerar agora como Vieira argumenta sobre as coisas que se passam no âmbito da função real de aplicação da Justiça — esta que era tomada tradicionalmente como “rainha das virtudes”.[33] E é na tradição aristotélica que Vieira vai levantar a primeira de suas distinções a propósito da Justiça a ser exercitada pelo príncipe, a “punitiva” e a “distributiva”,[34] que de ambas, segundo argumenta, dependia a paz interna do Reino. Em 1640, no Hospital da Misericórdia da Bahia, Vieira afirmava o seguinte diante do recém-empossado vice-rei do Brasil, o marquês de Montalvão:

A enfermidade do Brasil, Senhor, é, como a do menino Batista, pecado original. — santo Tomás e os teólogos definem o pecado original com aquelas palavras tomadas de santo Anselmo: Est privatio justitiae debitae. Falta da devida justiça. — Bem sei de que justiça falam os teólogos, e o sentido em que entendem as palavras, mas a nós, que só buscamos a semelhança, servem-nos assim como soam. É pois a doença do Brasil privatio justitiae debitae. Falta da devida justiça, assim da justiça punitiva, que castiga maus, como da justiça distributiva, que premia bons. Prêmio e castigo são os dois polos em que se revolve e sustenta a conservação de qualquer monarquia, e porque ambos estes faltaram sempre ao Brasil, por isso se arruinou e caiu. Sem justiça não há reino, nem província, nem cidade, nem ainda companhia de ladrões que possa conservar-se.[35]

Quanto à justiça distributiva, Vieira insiste sobre a importância de sua aplicação em várias situações concretas da vida política, por exemplo, no que diz respeito ao prêmio do exercício meritório de serviços e ofícios, ou do pagamento devido de impostos pelo conjunto dos “estados” do Reino. Sobre esta última questão, crucial para o equilíbrio das finanças reais, Vieira defende em sermões memoráveis a “universalidade” dos impostos, princípio de justiça a tornar suportável a carga fiscal;[36] seja, para exemplo, um trecho do sermão de santo Antônio, de 42, quando toma por análogo principal de suas agudezas a alegoria do “sal”:

Queremos, senhores, que o sal, qualquer que for, não seja desabrido? Queremos que os meios de conservação pareçam suaves? Non pro una gente, sed pro universo mundo: Não sejam os remédios particulares, sejam universais; não carreguem os tributos somente sobre uns, carreguem sobre todos. Não se trata de salgar só um gênero de gente: Non pro una gente — reparta-se, e alcance o sal a terra: Vos estis sal Terrae.[37]

Mas, se a equidade fornece um fundamento moral seguro para o direito, a aplicação da justiça supõe o comando capaz de fazer cumprir a lei —[38]o que, em Vieira, tem ao menos uma dupla decorrência: de um lado, reforça a intervenção do poder do Paço sobre os tradicionais foros locais, vale dizer, justifica e incentiva a emissão centralizada da lei, desde que fundada sobre razão; de outro, acentua as virtudes da Justiça punitiva, condição da sobrevivência do organismo inteiro da nação. Essa questão toma acentos alarmantes nos sermões pregados no Brasil, quando a distância e o isolamento em relação à Metrópole afrouxam a vigilância e retardam o castigo dos coloniais que se esquivam do cumprimento das disposições legais por ela ordenadas. Falando, em 40, dessa situação, agravada pelos distúrbios provocados pelas escaramuças holandesas, Vieira afirma:

Houve roubos, houve homicídios, houve desobediências, houve outros delitos muitos e enormes, que não sei se chegaram a tocar na religião, mas nunca houve castigo, nunca houve um rigor que fizesse exemplo. Muitos bandos se lançaram muito justos, muitas ordens se deram muito acertadas, mas, como disse Aristóteles, as leis não são boas porque bem se mandam, senão porque bem se guardam. Que importa que fossem justos os bandos, se não se guardavam mais que se se mandara o que se proibia? Que importa que fossem acertadas as ordens, se nunca foi castigado quem as quebrou, e pode ser que nem repreendido?[39]

No âmbito do ius gentium, isto é, do direito comum das gentes, incluídas aí as nações indígenas, considerado então como expressão abreviada do ius naturalis,[40] a posição de Vieira é bastante estudada, mas ainda, a meu ver, muito mal compreendida. Em outro lugar, gostaria de me deter um tanto mais sobre este tópico que, para dizer o mínimo, rendeu a Vieira o simpático epíteto de “papai grande” dos índios do Brasil. Entretanto, já aqui não é possível deixar de dizer que os argumentos propostos por Antônio Vieira não podem ser interpretados de maneira alguma sem o apelo à maneira como a segunda escolástica de dominicanos e jesuítas reinterpretou, no século XVI e no XVII, à luz das epopeias dos descobrimentos, da vocação evangelizadora da Companhia de Jesus, e dos onipresentes conceitos aristotélicos,[41] antigos escritos patrísticos e escolásticos a propósito das relações de vassalagem e de escravidão. E, mesmo sem discutir neste momento o conceito importante de “guerra justa” e sua implicação na redução do indígena, gostaria de salientar aqui apenas certa virtude pública, isto é, a imagem de um dever moral implicado no exercício do poder, que Vieira associa ao “ofício” doméstico do senhor perante o serviçal, e, em particular, o escravo. Ele diz, por exemplo: “O mesmo Tertuliano, a quem há pouco interpretávamos, disse com igual juízo, que assim como Deus, quando dá o poder, delega no homem a representação da sua divindade, assim com o mesmo poder delega nele a imitação da sua paciência […][42]E depois:

De sorte que o exemplo e imitação da paciência de Deus é uma segunda delegação com que Deus delega no homem, não a sujeição, senão a autoridade da paciência: Patientiae auctoritatem — para que entendam os que mandam e governam, que tão fora está a paciência de os desautorizar, que antes por ela cresce e se lhes dobra a autoridade nesta segunda delegação: uma vez delegados de Deus no poder da sua divindade, e outra vez delegados do mesmo Deus na imitação e autoridade da sua paciência: Patientiae auctoritatem delegat.[43]

Ou seja, o exercício de um poder delegado divinamente obriga naturalmente à adoção de uma prática virtuosa, sem a qual rompe-se o compromisso suposto na delegação e faz com que esta perca legitimidade. Ser portador de um poder significa imediatamente ter esse poder limitado por uma lei moral acima de si. Por sua vez — é fundamental que não se romantize a respeito —, a lei moral de que se trata é, em si mesma, fonte do direito do exercício do poder: adotá-la é confirmar o sublime hierárquico.

Fora do âmbito das práticas públicas de poder, a lei moral tem sentido relativamente menos coercitivo, ou menos imediatamente passível de julgamento punitivo: a pessoa pessoal pode ou não adotar a norma virtuosa, com a consequente responsabilização de sua quebra, mas a pessoa pública só se legitima verdadeiramente quando está obrigada a ela:

Pois, se Moisés era tão arrebatado e iracundo, e tão áspero de condição, como agora se mostra tão manso e tão benigno, que daí lhe começou o nome de vir mitissimus super omnes? — Porque então obrava em particular, agora como Deus de Faraó. Este nome de Deus era o santelmo, que na maior fúria das tempestades lhe serenava as ondas. Que havia de fazer aquele delegado de Deus, que debaixo do mesmo nome o representava, senão imitar a sua paciência?[44]

Finalmente, uma terceira atribuição real em que seria preciso examinar as relações admitidas por Vieira entre política e ética diz respeito à administração do reino. De imediato, é preciso ter claro que a argumentação de Antônio Vieira invariavelmente pressupõe a dimensão ético-religiosa como propriedade eficaz de racionalização das atividades administrativo-burocráticas do Estado. Um exemplo típico dessa posição é dado pela sua sistemática defesa da distribuição dos ofícios e cargos segundo os méritos com o consequente desmantelamento do sistema aristocrático de posse de privilégios e títulos de mercê, por vezes hereditários, que obviamente comprometiam, mais que o Tesouro, a soberania real — defesa, de resto, comum aos doutrinadores do absolutismo europeu. Eis o que diz Vieira:

E quanto ao concurso dos pretendentes e competidores, quando aos homens são os que pretendem os ofícios, e não eles aos homens, tão fora está esta multidão de acrescentar autoridade ao ofício, que antes se desacredita a si e a ele. E se não, digam os mesmos pretendentes por que pretendem os ofícios. Ou pela honra, ou pelo interesse. Se pela honra, mal a podem dar ao ofício os que se pretendem honrar com ele; e se pelo interesse, bem se vê que não querem o ofício para o servir, senão para se servirem dele; e onde ficará o ofício mais autorizado, onde servir, ou onde for servido? Pelo contrário, quando o ofício é o pretendente do homem, sendo o homem sempre o mais digno, na mesma dignidade do homem pretendido se conserva a autoridade do ofício do pretendente, e na exclusão dos indignos, sempre excluídos, fica sempre a autoridade segura de se arriscar ou perder.[45]

O critério aristocrático da “honra”, isto é, o reconhecimento público à virtude, mérito e gens,[46] bem como o suposto “maquiavélico” ou “político” do “interesse”, são ambos subsumidos pela instância soberana real devotada ao Bem Comum.

Aliás, a argumentação largamente tributária da segunda escolástica que Vieira adota a propósito das questões administrativas do Reino invariavelmente situa uma razão virtuosa acima dos interesses particulares das ordens; a virtù administrativa exige a consideração de uma Ordem capaz de equilibrar as demais, e que se repõe analogamente na função real da Cabeça que zela pela saúde inteira, a “concórdia”, do “corpo místico” do Reino.[47] Eis como Vieira o diz, incorporando ao “sal” da alegoria citada os “elementos” da ph´ysis:

Assim como o sal é uma junta de três elementos, fogo, ar e água, assim a república é uma união de três estados, eclesiástico, nobreza e povo. O elemento do fogo representa o estado eclesiástico, elemento mais levantado que todos, mais chegado ao céu e apartado da terra; elemento a quem todos os outros sustentam, isento ele de sustentar a ninguém. O elemento do ar representa o estado da nobreza, não por ser a esfera da vaidade, mas por ser o elemento da respiração, porque os fidalgos de Portugal foram o instrumento felicíssimo por que respiramos, devendo este reino eternamente à resolução de sua nobreza os alentos com que vive, os espíritos com que se sustenta.[48]

E continuando:

Finalmente, o elemento da água representa o estado do povo: —Aquae sunt populi — diz um texto do Apocalipse — e não como dizem os críticos, por ser elemento inquieto e indômito, que à variedade de qualquer vento se muda, mas por servir o mar de muitos e mui proveitosos usos à terra, conservando os comércios, enriquecendo as cidades, sendo o melhor vizinho que a natureza deu às que amou mais. Estes são os elementos de que se compõe a república. Da maneira, pois, que aqueles três elementos naturais deixam de ser o que eram, para se converterem em uma espécie conservadora das coisas: Ex eo quod fuit, in alteram speciem commutatur — assim estes três elementos políticos hão de deixar de ser o que são, para se reduzirem unidos a um estado que mais convenha à conservação do reino.[49]

Mas é preciso sempre lembrar que o Bem Comum, em Vieira, jamais se autonomiza — a menos que se trate de uma interpretação falsa, facciosa ou tirânica desse bem — do movimento providencial que orienta a história para sua finalidade cristã. Daí também que a unidade em torno do rei capaz de assegurar o Bem coletivo seja rigorosamente política e teológica — assim devem entender-se conceitos como o de “concórdia” ou “fraternidade”, que indicam não apenas princípios éticos como também efeitos de uma política eficaz de superação das facções e interesses particulares das ordens:

Só digo, por conclusão, e em nome da pátria o encareço muito a todos, que ninguém repare em dar com generoso ânimo tudo o que se pedir — que não será mais do necessário — ainda que para isso se desfaça a fazenda, a casa, o estado, e as mesmas pessoas, porque, se pelo outro caminho deixarem de ser o que são, por este tornarão a ser o que eram: Vos estis sal terrae. A água, deixando de ser água, faz-se sal, e o sal, desfazendo-se do que é, torna a ser água. Neste círculo perfeito consiste a nossa conservação e restauração. Deixem todos de ser o que eram, para se fazerem o que devem; desfaçam-se todos como devem, tornarão a ser o que eram.[50]

3

Esta ação real que subordina os interesses dos estados a valores políticos, éticos e teleológicos comuns e inseparáveis pode ser genericamente resumida pelo sentido que a segunda escolástica atribuiu ao conceito de “razão de Estado”, após subtraí-lo das mãos laicas dos “maquiavélicos”. É com ele que Antônio Vieira carrega o arsenal de sua inventio para dispô-la em elocuções suficientemente fortes, historicamente fortes, para mover o seu auditório de três estados. Aqui cabe imediatamente ver que a “razão de Estado” é definida de modo positivo, como possibilidade concreta de conciliação dos valores cristãos com a eficácia a obter-se nas operações temporais em que se joga a soberania do rei e Reino. Providência divina e prudência humana harmonizam-se nela, como se assentam, exemplarmente, na figura — sempre “política” em Vieira — de são José:

Resoluto são José a deixar sua esposa, diz o texto que andava o santo considerando: Haec autem eo cogitante. — Esta consideração de são José me dá muito que considerar e que reparar. Não estava já o santo deliberado e resoluto? Sim, estava, que isso quer dizer aquele voluit: deliberação da vontade. Pois, se a vontade estava deliberada e resoluta, que é o que considerava José? Considerar antes de resolver, isso fazem ou devem fazer todos; mas depois de resolver considerar ainda? Sim, porque as matérias de grande importância — qual esta era — hão-se de considerar antes e mais depois. Antes de resolver há-se de considerar o caso; depois de resolver há-se de considerar a resolução. Esta diferença acho entre a Filosofia natural e a moral e política: que a Filosofia natural pede um conhecimento antes da deliberação: Nihil volitum, quin praecognitum — a Filosofia moral e política pede um conhecimento antes e outro depois: um conhecimento antes, que guie a vontade a tomar a resolução, e outro conhecimento depois, que examine a resolução depois de tomada.[51]

Sem preocupação de exaustividade, e sim de rigor representativo, podem ser destacados aqui três componentes importantes do sentido com que Vieira entende a conciliação proposta pelo conceito de “razão de Estado” — a despeito de que, em várias oportunidades, por vezes com evidente ressentimento, ironize a sua aplicação ao meio português, em que a “razão de Estado” faltaria de todo. Santo Antônio, outro santo discreto e político, representante celeste nas Cortes portuguesas, a crer em Antônio Vieira, para chegar a conhecê-la teve de correr outras terras:

Na igreja de Santo Antônio se costumam cá fazer as eleições dos procuradores de cortes, e também no céu se fez a eleição na pessoa de santo Antônio. E foi a eleição do céu, com toda a propriedade, porque, ainda humanamente falando, e pondo santo Antônio de parte o hábito e o cordão, parece que concorrem nele com eminência as partes e qualidades necessárias para este ofício público. As qualidades que constituem um perfeito procurador de cortes são duas: ser fiel e ser estadista. E quem se podia presumir mais fiel, e ainda mais estadista que santo Antônio? Fiel, como português, santo Antônio de Lisboa; estadista, como italiano, santo Antônio de Pádua. Deu-lhe a fidelidade a terra própria, a razão de Estado as estranhas. Isto de razão de Estado, com ser tão necessária aos reinos, nunca se deu muito no nosso — culpa de seu demasiado valor — e os portugueses, que a usam e praticam com perfeição, mais a devem à experiência das terras alheias que às influências da própria.[52]

Pois bem, um primeiro ponto fundamental a ser considerado no emprego adequado do conceito de “razão de Estado” na perspectiva neoescolástica em que Vieira, em geral, inscreve-se supõe que essa razão atende perfeitamente a seu fim mediante o seguro exame e aproveitamento da “ocasião”. Essa é outra noção complexa, sobretudo se se pensa no contexto jesuítico, mas por ora basta lembrar que ela se estende duplamente ao campo das virtudes, quando aponta para uma ação oportuna segundo o exame das suas circunstâncias, e, juntamente, refere-se à desobstrução propriamente da vontade e, portanto, da ação livre;[53] e, uma vez aí, como é sistêmico na argumentação movida por Vieira, a “ocasião” aponta para um momento objetivo de reconhecimento da Ordem Providencial. Sob esse ângulo, a “ocasião” nunca é fortuita, mas, ao contrário, momento exato de ajuste entre a vontade histórica — o arbítrio — e a Vontade divina livre, de que a liberdade do primeiro é apenas participação análoga. Nesse sentido, Vieira diz, por exemplo:

Tinha decretado e disposto que o tempo da redenção fosse dali a trinta e três anos; e, se a providência divina, que tudo pode, espera pelas disposições e circunstâncias do tempo, quanto mais a providência humana, a qual o não seria, se com toda a atenção e vigilância as não observasse, aguardando pelas mais convenientes e oportunas, que Deus, e o mesmo tempo, lhe oferecesse.[54]

Ou:

E foi de tanta importância esperar pela oportunidade do tempo, que por esta dilação se veio a lograr aquela primeira máxima de toda a razão de Estado, assim da providência divina como da providência humana, que é saber concordar estes dois extremos: conseguir o intento e evitar o perigo.[55]

A razão de Estado é que, contrariamente à cegueira do Estado enfermo e corrupto, acerta com agarrar os cabelos e não a calva que classicamente a “ocasião” traz à nuca: “Muitas ocasiões há tido o Brasil de se restaurar, muitas vezes tivemos o remédio quase entre as mãos, mas nunca o alcançamos, porque chegamos sempre um dia depois. Como havia de aproveitar a ocasião a quem a tomou pela calva sempre?”.[56]

Um segundo tópico que condiciona o emprego vieiriano do conceito de “razão de Estado” refere-se a que ela atende ao fim segundo as circunstâncias de pessoa, o que, em geral, significa levar em conta a própria corrupção e ignorância das gentes a que diz respeito. Célebre passo nessa direção ocorre no sermão “pelo bom sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda”, de 40, quando Vieira faz observar ao Verbo (a partir certamente de suas antigas lições de retórica) que, em seus corretivos aos homens, cuidasse não do que sua sabedoria plena conhece, mas do que a ignorância e a heresia humana deixam de conhecer, a fim de que tais corretivos pudessem ser corretamente entendidos e interpretados. É assim que, alertava Vieira, em caso de castigo aos portugueses por erros cometidos contra a fé que professavam, outro podia ser o efeito e a murmuração entre os homens, que não a emenda dos vícios:

Olhai, Senhor, que dirão. — E eu digo, e devo dizer: Olhai, Senhor, que já dizem. — Já dizem os hereges insolentes, com os sucessos prósperos que vós lhe dais ou permitis, já dizem que porque a sua, que eles chamam religião, é a verdadeira, por isso Deus os ajuda, e vencem; e porque a nossa é errada e falsa, por isso nos desfavorece, e somos vencidos. Assim o dizem, assim o pregam, e ainda mal porque não faltará quem o creia. Pois, é possível, Senhor, que hão de ser vossas permissões argumentos contra vossa fé? É possível que se hão de ocasionar de nossos castigos blasfêmias contra vosso nome? Que diga o herege — o que treme de o pronunciar a língua — que diga o herege que Deus está holandês?[57]

E outras pessoas ainda têm de ser consideradas no estabelecimento da “política do céu” que orienta toda razão de Estado:

Olhai, Senhor, que vivemos entre gentios, uns que o são, outros que o foram ontem. E estes, que dirão? Que dirá o tapuia bárbaro, sem conhecimento de Deus? Que dirá o índio inconstante, a quem falta a pia afeição da nossa fé? Que dirá o etíope boçal, que apenas foi molhado com a água do Batismo, sem mais doutrina? Não há dúvida que todos estes, como não têm capacidade para sondar o profundo de vossos juízos, beberão o erro pelos olhos.[58]

Quer dizer, a ética cristã, justamente por propor-se entre homens, há de admitir uma política para vingar na história. A “razão de Estado” pode nomear justamente essa operação que, ao admitir o justo fim, considera imediatamente quais os meios capazes de atender a ele tendo em vista o seu impacto sobre o ânimo corrompido das gentes, situação recentemente agravada pela Reforma e pelos entraves de vária sorte à missão evangelizadora da Sociedade de Jesus.

Finalmente, um terceiro sentido que limita a aplicação vieiriana do conceito de “razão de Estado” supõe que ela busca atender aos seus fins tendo em vista uma reordenação dos meios historicamente utilizados para fins distintos e mesmo opostos. Nesse caso, a “razão de Estado” lança mão não de instrumentos naturalmente dispostos para a virtude, mas, ao contrário, daqueles que a prática tem dirigido contra ela e os propósitos da cristandade, subentendidos aí os objetivos formulados pelo Estado cristão. A esse respeito, o sermão de são Roque, pregado no primeiro aniversário do príncipe d. Afonso, na Capela Real de Lisboa, em 44, é exemplar: “Herdou são Roque por morte de seus pais um grande estado, e muitas riquezas, e quando os outros desejam larga vida, e muitos anos para as lograr, ele as repartiu aos pobres” — a proposição é absolutamente corriqueira na tradição hagiográfica, mas não os argumentos que extrai dela:

Oh! que grande política do céu esta! Fazer do perigo remédio, e vencer ao inimigo com suas próprias armas! As armas com que o mundo faz maior guerra aos homens são as riquezas. Pois, que fez são Roque às suas? Tirou estas armas da mão ao mundo, converteu-as outra vez contra ele, e desta maneira o venceu e meteu debaixo dos pés. Tirar as armas ao inimigo, e convertê-las contra ele, é fazer de um mal dois bens: um bem, porque se diminui o poder contrário; outro bem, porque se acrescenta o poder próprio. E de um mal fazer dois bens, é mal? Não é melhor que essas riquezas sirvam a são Roque contra o mundo, que servirem ao mundo contra são Roque?[59]

Duplo bem, portanto, quando o fim benigno se obtém com o meio usualmente vicioso, pelo fim que lhe é dado; a rigor, para Vieira, é como se houvesse certa inelasticidade dos meios terrenos, o que exigiria uma política de reversão de seus hábitos e não propriamente a simples recusa de sua utilização.

Um exemplo que fez escândalo pode deixar as coisas ainda mais claras:

Não houve no mundo dinheiro mais sacrílego que aqueles trinta dinheiros por que Judas vendeu a Cristo. E que se fez deste dinheiro? Duas coisas notáveis. A primeira foi que daquele dinheiro se comprou um campo para sepultura dos peregrinos: In sepulturam peregrinorum (Mt 27, 7) — assim o diz o evangelista, e assim o tinha Deus mandado pelo profeta. Houve no mundo maior impiedade que vender a Cristo? Nem a pode haver. Há no mundo maior piedade que sepultar peregrinos? Não a há maior. Pois, eis aqui o que faz Deus quando obra maravilhas: que o dinheiro que foi instrumento de maior impiedade passe a servir às obras da maior piedade. Serviu este dinheiro sacrilegamente à venda de Cristo? Pois sirva piedosamente à sepultura dos peregrinos.[60]

E aplicando a alegoria diretamente a Portugal, cujo rei e estados o ouviam, ecoa Vieira:

Há coisa mais sacrílega que os trinta dinheiros de Judas? Há coisa mais sagrada que as cinco chagas de Cristo? E, contudo, manda Deus ao primeiro rei português que componha as armas de Portugal das chagas de Cristo e mais do dinheiro de Judas, para que entendamos que o dinheiro de Judas cristãmente aplicado nem descompõe as chagas de Cristo, nem descompõe as armas de Portugal. Antes, compostas juntamente de um e outro preço, podem tremular vitoriosas nossas bandeiras na conquista e restauração da fé, como sempre fizeram em ambos os mundos.[61]

Apenas a “razão de Estado”, que tanta falta faz, segundo Vieira, aos portugueses de seu tempo, pode conciliar cristãmente as “chagas de Cristo” e o “dinheiro de Judas”, os desígnios do Estado cristão e, para dar um exemplo importante, o capital judeu. Mais que isso: a “razão de Estado” verdadeiramente exige tal conciliação, previdente contra o estrago que esse capital faria, e faz, quando não se é capaz de lhe dar um lugar na via salvífica, incorporá-lo como meio do reto fim, absorvê-lo na Justiça e Razão que conduzem a Deus, causa final de qualquer ética que se pretenda cristã.

Não se trata simplesmente, como se vê, de que o fim justifique o meio, mas de que não se atende jamais completamente ao fim, se não se cuida atentamente dos meios limitados, finitos, porém dispostos providencialmente para uso da cristandade histórica e institucional. Daí que, nos limites da concepção ética admitida por Vieira, não faz sentido pensá-la em termos de “princípios” como de “atitudes” ou “intenções” apenas, sem considerar, de um lado, as práticas, as circunstâncias de ocasião e pessoas, os hábitos que circunscrevem os meios, e, de outro, o projeto teleológico e finalista em que absolutamente todo o criado está inexoravelmente inserido. Realismo e providencialismo, casuísmo ou profetismo, em Vieira dizem o mesmo: dizem, justamente, que “não há fim sem meios”.

O pensamento de que participa Vieira, assim, no século do Barroco ibérico, é o de propor-se uma Política Moral que atenda às virtudes ensejadas pelo cristianismo, como o de propor-se a própria Cristandade como uma Política, isto é, como uma maneira de conquista real sobre os meios do mundo até o ponto de sua completa Restauração para a Bem-Aventurança. “Antimaquiavelismo”, aí, significa exatamente isto: que não se renuncia à formulação de uma Arte política que possa operar eficazmente as misérias do mundo como obtenção gradual das excelências do cristianismo, e, portanto, que não admite a ideia de uma contradição definitiva entre os dois domínios — que, mesmo, não admite nunca “dois” domínios, mas graduações e proporções de Ser entre eles. Vieira o diz melhor, dirigindo-se ao seu amado rei:

Não pode haver mais gloriosa indústria em um rei que saber passar à sua coroa o mesmo ouro que enriquece os ídolos. Este ouro está servindo à infidelidade: pois quero eu que sirva à minha coroa — diz el-rei Davi. — Qual é melhor: que o ouro sirva a Davi contra o ídolo, ou que sirva ao ídolo contra Davi? Se este ouro, posto da parte da infidelidade, está conquistando os reinos de Davi, e propagando neles a heresia, por que não passará Davi este ouro à sua coroa, para ajudar a restaurar seus reinos, e dilatar a verdadeira fé?[62]

E desempenha agudamente o quiasmo em que se espelha a perfectível harmonia, a política perfeição: “Servir a fé com as armas da infidelidade, oh! que política tão cristã! Alcançar a fé as vitórias, e pagar a infidelidade os soldados, oh! que cristandade tão política!”.[63]

Notas

[1] Ver, a propósito, o estudo de Martim de Albuquerque, “Política, moral e direito na construção do conceito de Estado em Portugal”, em Estudos de cultura portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1983, v. 1, Col. Temas Portugueses. À página 180 dessa edição, Martim de Albuquerque justamente observa que, no século XVII, em Portugal, “[…] os políticos, os estadistas, reclamam como suas as coisas do governo. Ao mesmo tempo, passa-se a falar no estudo destas matérias como algo de especializado, de distinto”.

[2] Sobre a autoria da expressão “razão de Estado” e sua divulgação europeia até tornar-se um topos da discussão política do século XVII, ver, uma vez mais, o estudo citado de Martim de Albuquerque, especialmente a página 176 e seguintes, quando historia um pouco a posição da crítica europeia a respeito e conclui, com Rodolfo de Mattei, que “Guicciardini possui, assim, uma praesumptio (ilidível a todo o tempo) que legitima a seu favor o registro literário relativo ao conceito de razão de Estado. Não foi, porém, através de sua obra que tal conceito se divulgou ou generalizou […] Deve-se o fato antes a Monsenhor Giovanni della Casa (1503-1559) na sua Orazione a Carlo V (1547), escrita em favor da restituição de Piacenza a Ottavio Farnese […]” (p. 177).

[3] O epíteto se deve a René F. Miller em seu conhecido Os jesuítas e o segredo do seu poder, Porto Alegre, Globo, 1935 (ver, por exemplo, p. 349). Quanto a Giovanni Botero, e seu célebre livro Della ragion di Stato, saído em Veneza, em 1589, e traduzido para o espanhol já em 1593, é com ele que tal concepção passa a ser repensada em linha contrarreformista (cf. Antiguos y modernos, de José Antônio Maravall, Madri, Alianza, 1986; pp. 526-7); aí, como também o diz Martim de Albuquerque, o tema da razão de Estado “logra toda a sua riqueza. Contestando o Florentino e os princípios por este apregoados como critério de ação política, Botero pretendeu inverter a resolução da equação” (op. cit., p. 179). A partir de sua contribuição é que a “razão de Estado torna-se um dos topoi do século XVII […]” (idem, ibidem).

[4] Remeto aqui à interpretação da virtù maquiavélica proposta por Quentin Skinner em seu livro Maquiavel, edição brasileira da Brasiliense, 1988. À página 65, por exemplo, Skinner diz que “Deste modo, virtù passa a denotar precisamente a qualidade da flexibilidade moral que se requer de um príncipe: ele deve ter uma mente pronta a se voltar em qualquer direção, conforme os ventos da Fortuna e a variabilidade dos negócios o exijam”.

[5] Lê-se, por exemplo, em Miguel Angel Granada: “[…] en el ámbito de la Contrarreforma católica (Botero, Zuccolo), se asistia al curioso fenómeno de la elaboración de la doctrina de la ragione di stato, en la cual — con un silencio prácticamente absoluto sobre Maquiavel, incluído en el Index en 1559 — se legitimaba de hecho la praxis del príncipe maquiaveliano en aras del valor supremo del interés estatal, a la vez que se establecía una relación de subordinación ocasional de la ética a la política que permitia tanto la condena general de Maquiavelo como la pérdida — en un movimiento espiritual íntimamente vinculado con el casuismo jesuítico — del sentido trágico de la escisión irreparable entre moralidad y necessidad política presente en la obra de Maquiavelo”. O artigo em questão é “La filosofia política en el Renacimiento: Maquiavelo y las utopías”, em Historia de la ética (ed. Victoria Camps), Barcelona, Editorial Crítica, 1988.

[6] Cito os trechos dos Sermões de Antônio Vieira pela edição paulista, em 24 volumes, lançada pela Edameris, em 1957. A frase em questão aparece à página 297 do volume V.

[7] V. XXIII, p. 28.

[8] V. XXIII, p. 29.

[9] Ver, a respeito da noção de “perfectibilidade” no seio do pensamento barroco católico, a discussão que dele faz José Antônio Maravall, especialmente tendo em vista a obra de Baltazar Gracián, este outro jesuíta a que o Barroco ibérico deve bons quilates de seu ouro. À conclusão de seu Antiguos y modernos, Maravall afirma, por exemplo: “Es cierto que predomina en Gracián, a través del conjunto de su obra, una idea de perfectibilidad de las cosas humanas que se diría tipicamente barroca y que poco tiene que ver con una clara idea de progreso” — e depois, citando: “Las cosas — nos dice Gracián — comienzan por la naturaleza y acaban de perfeccionarse con el arte”. “Ciertamente, la naturaleza no deja terminadas las cosas desde el primer momento, ni tampoco logra el arte o industria humana darles plenitud en su comienzo, sino que paso a paso las mejoran hasta llevarlas a perfección.” “No conduce la naturaleza, aunque tan próvida, sus obras a la perfección el primer día, ni tampoco la industriosa arte; vanlas cada día adelantando, hasta darles su complemento.” “Ese adverbio ‘hasta’ expesa claramente un término repetido en cada caso: una perfección lograda en su tiempo determinado, después de la cual ya no se pasa a más. Se trata, por tanto, no de un proceso continuo de mejora, sino de una marcha hacia un fin que se logra en un momento dado, en cada cosa singularmente considerada, consiguiéndose su módulo prefijado de perfección” (p. 609). A tal módulo cabe exatamente o nome técnico de “providência”.

[10] A expressão aparece muitas vezes neste sermão, mas cite-se, por exemplo, a que se dá a página 388 do v. XIII.

[11] Idem, p. 386.

[12] Nos capítulos iniciais do primeiro volume de seu The foundations of modern political thought, especialmente em Rhetoric and liberty e Scholasticism and liberty, Quentin Skinner discute os contrastes entre as tradições retórica e escolástica no trato da política nos primórdios do Renascimento. À página 60, por exemplo, diz Skinner: “So the scholastic writers spend little time on the favourite rhetorical pursuit of advising rulers and magistrates and how best to speak, write and generally comport themselves in the most persuasive style. They tend instead to devote their main attention to the machinery of government. They present themselves less as moralists than as political analysts, pinning their hopes less on virtuous individuals than on efficient institutions as the best means of promoting the common good and the rule of peace”.

[13] Sermão de são Pedro (1644), v. XVI, p. 17.

[14] Ver, por exemplo, o que diz João Adolfo Hansen a propósito do tratamento da questão do Tesouro por parte do Senado da Câmara da Cidade da Bahia, no século XVII: “[…] o Tesouro, na medida em que pertence à potência pública, é res quasi sacra, coisa quase sagrada que constitui e mantém a vida da República como corpo dinamicamente integrado: o Tesouro é sua alma e substância, nela circulando como o sangue, que é sagrado e que ocorre como sua metáfora” (A sátira e o engenho. Gregorio de Matos e a Bahia do século XVII, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 93).

[15] Sermão de são Roque (44), v. XX , p. 211.

[16] Idem, ibidem.

[17] Para a discussão a respeito da presença desse topos nas formulações políticas da época renascentista, ver o citado Maquiavel, de Quentin Skinner, em especial o capítulo dedicado à “herança clássica” nos livros de aconselhamento de príncipes (pp. 39 ss.).

[18] Ver, como discussão da “eficácia” da moral na prática política, as Lições de filosofia do direito de Giorgio del Vecchio (Coimbra, Armênio Amado, 1979, Col. Studium, números 58 e 59), especialmente o capítulo “A filosofia do direito na Idade Moderna”, pp. 77 ss.

[19] É assim que Vieira interpreta, por exemplo, a razão oculta que teria determinado, na alegoria do banquete da Glória, que fossem lavradores e mercadores os seus “convidados”: “De ninguém se podia recear menos esta desatenção, que dos mesmos a quem o rei mandou chamar. Mandou chamar lavradores, que são os que foram para a sua lavoura, e mercadores, que são os que foram para a sua negociação. E por que mais lavradores e mercadores que gente de outro trato ou de outros ofícios? Porque assim o lavrador como o mercador são homens que têm por exercício e profissão acrescentar o cabedal. O lavrador semeia pouco para colher muito; o mercador compra por menos para vender por mais. E por isso mesmo assim aos lavradores como aos mercadores os devia trazer à mesa do rei o seu próprio interesse” (Sermão da dominga XIX depois de Pentecoste (1639), v. V, p. 299, op. cit.).

[20] A questão é apresentada em vários sermões de Vieira, alguns deles citados mais à frente; ressaltaria, entretanto, o interesse extraordinário da argumentação desenvolvida no Sermão do Santíssimo Sacramento, de 45, especialmente no trecho em que Vieira elege como “adversário” de sua pregação justamente a figura do “político” e propõe-se a demonstrar-lhe, com a potência única da “razão”, sem apelo a quaisquer critérios de fé, o “interesse” das práticas católicas na “conservação” do Estado cristão (ver volume i da edição citada, pp. 178 ss.). O décimo número da revista Estudos Portugueses e Africanos (Campinas, iel/Unicamp, 1987) inclui um estudo meu sobre esse sermão (“O mistério eficaz”).

[21] Sermão de são Roque (44), op. cit., v. XX, p. 197.

[22] Ver a propósito da filosofia do direito de Tomásio, no tocante à delimitação entre moral e direito, o estudo que lhe dedica Giorgio del Vecchio; página 107 e seguintes da obra citada. Mais particularmente, quanto ao anacronismo, no século XVII, da distinção, que postula contradição, entre “direito público” e “direito privado”, remeteria ao texto de Antonio Manuel Hespanha que abre a coletânea Poder e instituições no antigo regime (Lisboa, Gulbenkian, 1984); ali, à página 29, o autor afirma: “Na verdade, a teoria social e jurídica da Idade Média e da Época Moderna, embora distinga o interesse dos particulares do interesse geral, considera-os como componentes harmônicas duma unidade mais vasta: o bem comum”.

[23] Perry Anderson, por exemplo, considera que “o próprio termo absolutismo era uma designação errada. Nenhuma monarquia ocidental jamais gozou de um poder absoluto sobre os seus súditos no sentido de um despotismo sem entraves” (“Classes e Estados: problemas de periodização”, in Poder e instituições no antigo regime, op. cit., p. 132). Para Bartolomé Clavero, igualmente, há uma “extrema inadequação de termos como Monarquia Absoluta ou Estado Moderno” que fica evidente com o estudo das relações complexas das entidades senhoriais, mesmo no período final do antigo regime (“Senhorio e fazenda em Castela nos finais do antigo regime”, pp. 169 ss. do citado Poder e instituições…). G. Oestreich, no mesmo volume, em seu “Problemas estruturais do absolutismo europeu”, observa que a tendência da moderna historiografia é investigar “os elementos não absolutistas do absolutismo” (op. cit., p. 185), e que “devemos ficar por aqui e não falar de mais do que de uma tendência para uma tal autonomia do poder do Estado” (op. cit., p. 182).

[24] Em seu “L’héritage scolastique dans la problématique théologique-politique de l’âge classique” (in L’État baroque, ed. Henri Méchoulan, Paris, Vrin, 1985), Jean-François Courtine observa a “transposição”, a favor do rei, levada a cabo pelos legistas do século XVII, de formulações canônicas que tinham originariamente em vista a determinação do lugar único do papa no topo da hierarquia eclesiástica. O papa, segundo os canonistas — vale dizer, o rei dos juristas absolutistas dos Seiscentos — “est en effet souvent défini comme le chef ou l’âme (caput, anima) qui procure à l’Église tout entière, comme corps mystique, son unité” (op. cit., p. 94).

[25] Sermão de Quarta-Feira de Cinzas, apenas escrito, v. XIII , p. 314, op. cit.

[26] Ver, por exemplo, o Sermão de Dia de Reis, de 1641, quando observa a ausência de “honra” e “autoridade” da América anterior à descoberta: “Como cada uma das outras partes do mundo mandou um rei por embaixador, e a América não tinha rei que mandar, que nem fé, nem lei, nem rei havia nestas partes, não quis ir com as companheiras a Belém, por não aparecer lá com menos autoridade” (v. XXIII, pp. 157-8, op. cit.). A mesma observação é retomada mais tarde, em um passo muito mais conhecido do Sermão da Epifania, de 62, quando Vieira a transpõe para a gramática tupi: “A língua geral de toda aquela costa carece de três letras: F, L, R: De F, porque não tem fé, de L, porque não tem lei, de R, porque não tem rei: e esta é a polícia da gente com quem tratamos” (v. VII, p. 350).

[27] Tais funções definiam-se, em Portugal, pelo menos, desde o século xv; examinando o Regimento da Casa de Suplicação, Eduardo d’Oliveira França destaca o seguinte trecho: “Statui autem regis necessaria sunt cultus justitiae, regimen populis, et defensio patriae”; e especifica: “Já d. Henrique, por ocasião do litígio em torno da Regência, ao propor a partilha do governo do Reino entre a rainha, o infante d. Pedro e o conde de Arraiolos, distinguia seis ramos na administração, a educação do rei e seus irmãos, a gerência da fazenda régia, o conselho do rei, a justiça, a defesa do Reino e regime militar e a conservação de Ceuta. Excluídos os problemas temporários, do momento, verifica-se que eram, para o infante, três os encargos permanentes: a defesa militar, a justiça e a administração (finanças e conselho). Discrime idêntico faz d. Duarte, ao dizer que d. João, para se dedicar inteiramente aos preparativos da expedição contra Ceuta, entregou-lhe os encargos do conselho, da justiça e da fazenda” (O poder real em Portugal e as origens do absolutismo, São Paulo, usp, 1946 — Boletim da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, p. 68).

[28] Sermão da visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel (38), pregado na igreja da Misericórdia da Cidade da Bahia; v. XVI, p. 322, op. cit.

[29] Sermão XII da série do Rosário, pregado em 39 na Sé da Bahia; v. IX, pp. 171-2, op. cit.

[30] “[…] O que fez diz a mesma Senhora que foi instituir nela, e com ela, e por ela, uma ordem chamada da caridade, que é a Irmandade da Misericórdia: Ordinavit in me charitatem. — E que mais? Admiravelmente o texto hebreu: Vexillum posuit in me charitas: Essa mesma Ordem da Caridade e Irmandade da Misericórdia levantou em mim a sua bandeira, sendo eu na mesma bandeira a sua insígnia. — E essa bandeira é de paz ou de guerra? De guerra, e militar, dizem todos os expositores da palavra ordinavit” (Sermão da visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel, 38, op. cit., v. xvi, p. 349).

[31] Sermão da Santa Cruz, de 1638, op. cit., v. XIV, p. 251. O santo a que alude é Isidoro Pelusiota.

[32] Idem, p. 250.

[33] Ver, por exemplo, as citações de época copiladas por Oliveira Martins (Os filhos de d. João I, 6a ed., Lisboa, A. M. Pereira, 1936 — apêndice III, pp. 409-11); também julgo interessante a remissão à alegoria da “justiça” na célebre iconologia seiscentista de Cesare Ripa, em que ela aparece coroada e regiamente vestida: “The personification of Justice is a blindfolded woman robed in white and wearing a crown, who is seated at a table. She supports a pair of scales in her lap with one hand. Her other hand holds a bared upright sword, and rests on a bundle of lictor’s rods, from around which a serpent is unwinding. A dog lies at her feet. On the table are a scepter, some books, and a skull. She is robed in white, for the judge must be without moral blemish which might impair his judgement and obstruct true justice. She is blindfolded, for nothing but pure reason, not the often misleading evidence of the senses, should be used in making judgments. She is regally dressed, for justice is the noblest and most splendid of concepts” (Barroque and Rococo pictorial imagery, Nova York, Dover, 1971 — alegoria 120).

[34] A respeito dessa vertente aristotélica de reflexão na filosofia do direito, ver Giorgio del Vecchio, op. cit., pp. 44 ss. No que diz respeito à justiça distributiva, ela basicamente “preside à distribuição das honras e dos bens e tem por fim obter que cada um receba daquelas e destes porção adequada ao seu mérito” (p. 45). Entretanto, para evitar possíveis anacronismos, Del Vecchio destaca o fato de que Aristóteles tinha em mente a desigualdade de mérito das pessoas, o que implicava que, para serem justas, as recompensas não deveriam ser iguais: “A Justiça distributiva consiste, portanto, em uma relação proporcional que Aristóteles, não sem algum artifício, define como uma proporção geométrica” (pp. 45-6).

[35] Sermão da visitação de Nossa Senhora, 1640, v. XIV, op. cit., pp. 328-9.

[36] Tal princípio de justiça para compreender-se supõe, penso, a lembrança do conceito aristotélico da “equidade”, como do aequitas do direito romano, o que implica uma dupla preocupação presente em Antônio Vieira: a ideia de que as leis gerais precisam ser consideradas à luz de suas circunstâncias de aplicação, e, também, de que estejam de acordo com os retos princípios da lei divina e natural. Ver a propósito dessas noções a obra citada de Giorgio del Vecchio, especialmente p. 47 e pp. 56-7.

[37] Op. cit., v. XIX, p. 28.

[38]Sob esse aspecto, a posição defendida por Vieira é próxima da de Jean Bodin, salientando-se, é claro, aí, os limites impostos pela lei natural ao comando real — ver a propósito a discussão das ideias de Bodin conduzida por Perry Anderson no citado “Classes e Estado: problemas de periodização” (op. cit., p. 132); para a discussão delas em relação a Portugal e Espanha, ver Jean Bodin na península Ibérica (Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1978) e “Bodin e Camões” (pp. 245 ss. de A expressão do poder em Luís de Camões, Lisboa, Imprensa Nacional — Casa da Moeda, 1988), ambos de Martim de Albuquerque.

[39] Sermão da visitação de Nossa Senhora, 1640, op. cit., v. XIV, p. 330.

[40] Inicialmente, como o coloca Giorgio del Vecchio, o tus gentium do direito romano remetia à simplificação de suas normas para aplicação aos estrangeiros. Posteriormente, vai prevalecer a acepção que interessa mais de perto considerar aqui: a de que esse conjunto mais simples é, não mais tosco que o ius civile, mas, ao contrário, superior a ele, uma vez que “considerou-se como expressão das exigências primordiais e comuns de todos os povos, como a revelação mais direta da razão universal. Então entendeu-se por ius gentium o direito positivo comum a todos os povos” (op. cit., p. 58). É importante considerar, entretanto, que Vieira, nas pegadas da segunda escolástica, entende a razão universal sempre como participação análoga e proporcional da lei divina na natureza racional do homem: o ius gentium é o conjunto dos elementos comuns dos direitos positivos, mas apenas legítimos quando conciliáveis com a lex naturalis.

[41] Ver o obrigatório El prejuicio racial en el nuevo mundo. Aristóteles y los indios de Hispanoamérica (México, Sep/Setentas, 1974) de Lewis Hanke; além dos estudos de Richard M. Morse (“Pré-História”, in O espelho de Próspero, São Paulo, Companhia das Letras, 1988) e Quentin Skinner (“The revival of Thomism”, in The foundations of modern political thought, Londres, Cambridge University Press, 1978, v. I).

[42] Sermão da segunda Quarta-Feira da Quaresma, pregado na igreja da Misericórdia da Bahia, em 1638. Op. cit., v. XVI, p. 100.

[43] Idem, pp. 100-1.

[44] Idem, p. 102.

[45] Sermão da terceira dominga do Advento, 44, op. cit., v. XIII, p. 398.

[46] Ver a respeito do aspecto social, político e marcadamente hierárquico da “honra” no “Siglo de Oro” o conhecido Poder, honor y élites en el siglo XVII (Madri, Siglo XXI, 1979), de José Antonio Maravall; sobre a origem desses aspectos no honos latino, ver “A honra no drama românico dos séculos XVI e XVII”, nos Ensaios de filologia românica I, de Harri Meier (Rio de Janeiro, Grifo/MEC, 1973).

[47] Sobre as concepções neoescolásticas da sociedade política como organismo místico, ver o capítulo “The revival of Thomism”, do citado The foundations of modern political thought, v. II, The age of reformation, de Quentin Skinner (pp. 135 ss.). Sobre as decorrências absolutistas delas, ver o capítulo seguinte, “The limits of Constitutionalism”, especialmente sua segunda parte (“The absolutist perspective” — pp. 178 ss.). Para uma discussão mais pormenorizada dos termos monárquicos postos por Suárez e Vitoria, os dois maiores expoentes da segunda escolástica, ver o importante “Suárez, jurista” de Manuel Paulo Merêa (Revista da Universidade de Coimbra, 6, 1917).

[48] Sermão de santo Antônio, pregado em 1642 na igreja das Chagas, em Lisboa; op. cit., v. XIX, pp. 32-3.

[49] Idem, p. 33.

[50] Idem, p. 48.

[51] Sermão do Esposo da Mãe de Deus, são José, pregado possivelmente em 1643, na Capela Real, em Lisboa; op. cit., v. XVI, pp. 425-6.

[52] Sermão de santo Antônio, 42, op. cit., pp. 15-6.

[53] João Adolfo Hansen, em seu A sátira e o engenho, chama a atenção para a “virtude política da prudência” manifesta no conceito escolástico da “ocasião” (op. cit., p. 31). Resume-a da seguinte maneira: “Escolasticamente, a ocasião é uma circunstância ou um conjunto de circunstâncias que favorecem a ação de uma causa livre. Diferencia-se da condição, pois esta se refere a qualquer causa eficiente. Supõe-se que a ocasião atua sobre a vontade do agente de modo imediato, uma vez que remove obstáculos interpostos em sua ação e, ainda, porque induz a vontade a cooperar positivamente. A ocasião é um incentivo para a ação. No século XVII, é um conceito político, com o sentido de ‘concurso de causas que abre caminho à grandeza’” (idem, p. 402).

[54] Sermão dos bons anos, pregado em 1641, na Capela Real; op. cit., v. XIX, p. 382.

[55] Idem, pp. 382-3.

[56] Sermão da visitação de Nossa Senhora (40), op. cit., v. XIV, p. 323.

[57] Op. cit., v. V, p. 318.

[58] Idem, p. 319.

[59] Op. cit., v. XX, p. 229.

[60] Idem, p. 230-1.

[61] Idem, p. 231.

[62] Idem, p. 230.

[63] Idem, ibidem.

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