2007

Política como moralidade: A banalização da ética

por Franklin Leopoldo e Silva

Resumo

No livro “Eichmann em Jerusalém ou a banalidade do mal”, Hannah Arendt investe contra um lugar-comum. Não, Eichmann, o oficial nazista encarregado de organizar o transporte dos prisioneiros judeus, não era um sanguinário ou assassino frio. Antes, tratava-se de um funcionário do sistema que cumpria à risca as ordens que lhe eram transmitidas. Cioso de suas responsabilidades, desejava ascender na carreira burocrática não só para satisfazer suas ambições como para contribuir com o Estado e a sociedade em que vivia. A seu favor, foi mesmo alegado que nada tinha feito contra as leis do “Reich”; afinal, não passaria de “uma peça num maquinário”.

Nada impede, contudo, que se coloque a questão da consciência do ato, isto é, a capacidade de pensá-lo ou julgá-lo. Ora, qual era o tipo de juízo que Eichmann fazia do que praticava? Segundo a classificação kantiana, tratava-se de um juízo determinante. Este que, ao combinar condições estabelecidas “a priori” com observações empíricas – ou evidências de adequação –, resulta num objetivo previamente calculado – ou êxito técnico. E isso como se não houvesse mais do que uma diferença de grau entre administrar uma repartição pública e organizar um genocídio.

Do contrário, o que há é o juízo reflexionante, que é livre para produzir a norma que se considere aplicável à realidade. Nesse caso, a singularidade concreta deve ser avaliada em suas circunstâncias específicas, e não apenas submetida à lógica pura e simples, pois é essa a essência, autêntica e original, do ato de julgar. Nada, aliás, mais humano, uma vez que se confunde com a liberdade de escolher, buscar ou discernir critérios de valor. Da subjetividade à coletividade.

Eis o que faltou a Eichmann – e a todos que aderiram ao nazismo.

Mas isso não é privilégio dos totalitarismos.

A modernidade ocidental, por exemplo. Não estaria ela também fadada à renúncia ao julgamento ou ao pensamento comunitário?

Apesar de seu aspecto restritivo, eis mesmo o motivo pelo qual Arendt vê no modelo grego de democracia o ideal político. Por que ele? Porque se tratava de uma sociedade para a qual o advento político dispensava qualquer “episteme” ou “techné”. Nada que se precisasse aprender ou vir a saber para participar do confronto de opiniões tendo em vista o bem da cidade, circunstâncias nas quais, segundo Arendt, seria possível o “deslocamento” ou o respeito à opinião do outro, entendida em igualdade de condições com a própria, sem que isso viesse a implicar a perda da autonomia deliberativa, condição da experiência política em que se equilibram subjetividade e alteridade ou a generalização que se fundamenta no procedimento concreto da intersubjetividade.

Apenas a descrição dessa vida política já indica sua impossibilidade no contexto do individualismo moderno e da hegemonia do Estado. Com efeito, Marx já observava que o indivíduo sob o Estado burguês é um ente abstrato, exatamente por não estar enraizado numa vida comum autêntica. A opção moderna pelo indivíduo transforma a sociedade num agregado de elementos extrinsecamente relacionados a uma instância à qual o poder foi delegado ou transferido.

Na vigência da massificação e da manipulação ideológica, isso traz consequências graves, das quais se destacam a identificação maciça com projetos de poder totalitário e a indiferença política, quando não a hostilidade a ela. A falência da cultura humanista, enfim.

Decorre disso a banalização da ética. E, com ela, da política.

Por isso, já a partir de John Locke, o que se poderia chamar de dimensão pública identifica-se de tal forma com a regulação e articulação dos interesses individuais que os negar corresponderia a negar direitos anteriores à formação da própria sociedade – que se limita, então, a pano de fundo.

Eis mesmo o círculo vicioso: se, em ação ou julgamento, o indivíduo não distingue o interesse privado do público, não há conduta política. Assim, quando se trata da coisa pública — ou seja: de sua deterioração como experiência real —, a falência simultânea da política e da ética torna o discurso moralizante e a tentativa de substituição de uma pela outra uma forma de banalização ou estratégia de cinismo.


No livro Eichmann em Jerusalém ou A banalidade do Mal, Hannah Arendt mostra que o oficial nazista encarregado de organizar o transporte de judeus para os campos de concentração não era de modo algum um homem tomado pelo ódio, um assassino frio ou alguém sedento de sangue. Era apenas um funcionário do sistema que cumpria com eficiência as ordens que lhe eram transmitidas, dando o melhor de si para que as coisas funcionassem da melhor forma possível na esfera de sua administração. Tinha plena consciência de suas responsabilidades e desejava ascender na carreira burocrática não apenas para satisfazer suas ambições, mas também para contribuir para o bem do Estado e da sociedade em que vivia. Foi mesmo alegado em sua defesa que nada do que fez era contrário às leis então vigentes no Estado alemão. Em suma, era apenas um elo na imensa cadeia burocrática e militar dotada de complexa funcionalidade.

Todavia, se é certo que a consciência está de algum modo presente em todos os atos, não apenas imersa na operação das condutas, mas também atuando reflexivamente, pode-se colocar a questão da consciência do ato no sentido de o sujeito pensar no que faz e ser capaz de julgar os próprios atos. A vinculação entre pensar (não necessariamente saber, no sentido objetivo) e fazer configura algo como um saber prático que Aristóteles denominava discernimento (sophrosine), e cuja versão moderna seria o juízo reflexionante kantiano tal como interpreta Arendt. Ora, que tipo de juízo fazia Eichmann dos atos que praticava e das responsabilidades que assumia? A maneira pela qual ele justifica suas ações não deixa dúvida: ele julgava seus atos de modo determinado, no sentido em que o juízo determinante e, para Kant, aquele que se formula a partir de condições de possibilidade dadas a priori, combinadas com dados empíricos, para a produção de resultados objetivos. Nesse sentido, a melhor ação é aquela que realiza a melhor síntese entre as possibilidades lógicas e a realidade.

É função do sujeito realizar essas operações, cujo fundamento geral é critério de eficácia técnica. Para isso, é necessário o conhecimento das possibilidades e da realidade, que proporciona o estabelecimento de uma rotina objetiva de ações e resultados. Dentro dessa lógica, é possível produzir, de forma ordenada e estável, soluções para vários problemas de diversas ordens, inclusive a solução final. Nesse sentido, o mal pode ser uma realização técnico-científica que ocorre a partir dos critérios de evidência na sua adequação e eficiência na sua aplicação.

Assim, haveria apenas uma diferença de grau entre administrar uma repartição burocrática e organizar a morte de milhões de seres humanos: trata-se da aplicação de diferentes regras do mesmo gênero e produzidas pela mesma racionalidade técnica. Essa hegemonia da determinação tem como efeito a exclusividade do juízo técnico determinante, ou um conjunto de ações determinadas pelas condições de uma eficácia susceptível de ser planejada e prevista. Como se vê, não há necessidade da interferência de uma reflexão que possa discernir o valor das ações e julgar o que seria melhor a partir de critérios objetivamente indeterminados, mas subjetivamente relevantes nessa espécie de juízo. A diferença é que tal juízo não poderia consistir apenas na aplicação de regras a priori para a determinação de casos. O principio do juízo reflexionante é a liberdade de produzir a norma que se considera aplicável à realidade. Nesse sentido a singularidade concreta deve ser avaliada nas suas circunstâncias especificas, e não apenas operacionalmente submetida a um sistema já logicamente completo no seu teor de funcionamento mecânico. O ato de julgar, no seu sentido mais autêntico e originário, exclui a determinação estritamente mecânica ou funcional. Trata-se de uma capacidade especificamente humana na medida em que se confunde com a liberdade de escolher, buscar e discernir critérios de valor. E que se exerce a partir da instância subjetiva, embora com alcance coletivo, ou melhor, comunitário.

O que teria faltado a Eichmann — e a todos aqueles que aderiram ao nazismo e aceitaram procedimentos e consequências do totalitarismo e do racismo tais como foram então praticados —, teria sido exatamente essa capacidade de julgar a partir de si mesmo, no interior de uma interação humana em que subjetividade e alteridade se constituem em regime de reciprocidade que se manifesta num certo sentido comum de juízos simplesmente fundados na existência de fato de uma comunidade humana. Nesse sentido, Eichmann não foi exceção, mas um exemplo do que se tornou, naquelas condições, a regra geral. Ora, se entendermos que o nazismo provém de condições históricas mais remotas do que a conjuntura política que engendrou o Reich, teremos que admitir um grau maior e mais grave de generalidade, tanto em relação ao passado quanto em relação ao presente. Isso significa que a incapacidade de julgar não foi regra geral durante o período nazista, mas vem sendo algo como um modo de vida desde há muito tempo — e a derrota do regime hitlerista não significou o fim dessa condição. O Ocidente estaria marcado por essa característica que consiste na renúncia ao julgamento ao pensar comunitariamente e — talvez o mais importante —, na renúncia à dimensão pública do sujeito moral e político — o cidadão, na sua efetividade. Por isso o modelo grego de democracia, apesar de suas características que para nós parecem tão restritivas, é visto por Arendt como a vida política na sua maior autenticidade, que somente teria retornado à cena histórica em episódios de lampejos revolucionários, possibilidades que são anuladas tão logo abertas.

Por que essa espécie de juízo — que ocorre quando os homens se reúnem para tratar de seu próprio destino, julgando coletivamente, dialogicamente, acerca do melhor para si mesmos — teria desaparecido? A resposta está na simples compreensão das condições de possibilidade da vida política assim entendida. Aqueles que se reúnem na ágora não detêm qualquer saber específico acerca daquilo que irão desempenhar. A política não necessita, para o grego da pólis, de qualquer episteme ou techné, ou seja, nada que ele precisasse aprender e vir a saber. O único requisito é a disposição para o confronto das opiniões subjetivas, num procedimento que visa ao interesse da cidade. Isso significa que o sujeito político é aquele cuja opinião subjetiva não está vinculada à defesa do interesse particular: é esse despojamento que permite que a discussão das opiniões singulares se encaminhe para o estabelecimento de um resultado público desse confronto. A dimensão pública, verdadeiramente política, já é, desde o início do processo, o critério orientador. Por isso o cidadão ateniense não pode estar sujeito aos interesses particulares (que os gregos chamavam de o reino da necessidade) quando vai discutir o destino da cidade em regime público e em condições de total isonomia. Nessas circunstâncias, cada um pode realizar o que Arendt denomina deslocamento: a consideração da opinião do outro em igualdade de condições com a sua própria opinião, sem que isso signifique adotar o ponto de vista do outro, mas simplesmente compreendê-lo a partir de sua própria autonomia deliberativa. Essa é a condição da experiência política da relação entre subjetividade e alteridade. E, como todas as opiniões são consideradas dessa mesma maneira, o que resulta do processo é uma generalização que não se fundamenta em principio lógico, mas no procedimento concreto da intersubjetividade. Nessas condições, cada um pode reconhecer-se no geral a partir de sua singularidade. Esse vínculo interno entre universalidade e singularidade é o requisito fundamental da democracia e a possibilidade de seu exercício direto. A individualidade se define pelo seu lastro comunitário e pela isonomia da palavra compartilhada, que afasta a possibilidade da violência como componente do espaço público.

Isso significa que a universalidade do juízo político ocorre a partir da relação dialógica entre os juízos singulares, e a vida política fica assim dotada de uma generalidade construída pela reunião de homens livres. Trata-se de uma universalidade de consenso, especificamente política, que só pode ocorrer devido aos laços intrínsecos que vinculam indivíduos em comunidade no espaço público. Por isso Hannah Arendt afirma que a política não é uma qualidade dos indivíduos, essencial ou acidental, mas algo que ocorre entre os indivíduos, no espaço comum da vida pública. Esse entre — tão importante quanto às partes singulares que o constituem e são constituídas por ele — se define pela possibilidade de o indivíduo projetar-se na direção dos outros sem abandonar a si mesmo, o que quer dizer que a isonomia e a autonomia estão reciprocamente implicadas.

Apenas a descrição dessa vida política já indica suficientemente a sua impossibilidade no contexto do individualismo moderno e da hegemonia do Estado como configuração do poder. Marx já observava que o indivíduo sob o Estado burguês é um ente abstrato, exatamente por não estar enraizado numa vida comunitária autêntica. A opção moderna pelo indivíduo faz da comunidade um agregado de elementos extrinsecamente relacionados por uma instância a quem o poder foi delegado ou transferido. Assim se desenha a situação de submissão, que na pólis era a condição da parcela não-livre da população, daqueles que habitavam a cidade sem serem cidadãos. Nesse sentido, a cidadania como etos do mundo político se perdeu.

Não se pode negar, entretanto, que a política e a ética permanecem como preocupações relevantes no mundo moderno e na nossa contemporaneidade. Devemos, porém, observar as diferenças na nova configuração dessas preocupações. Do ponto de vista ético, podemos dizer, de modo simples e resumido, que a passagem à modernidade traz, entre outras características morais, a predominância dos interesses sobre as paixões. O herói homérico, o conquistador romano, o cavaleiro medieval têm como marca característica viver as paixões, tanto quando se submetem a elas como quando as dominam. O homem moderno tem seu centro de gravidade moral no interesse, seja ele exacerbado ou regulado pela razão. O advento do capitalismo como modo de vida, no sentido weberiano, explica a mudança, ou essa passagem da subjetividade heroica à individualidade empreendedora. Por interesse não se entende mais, na modernidade, a simples satisfação de necessidades, mas o cultivo de valores, algo que tem a ver com as grandes transformações econômicas. Podemos dizer então, apoiando-nos em Albert Hirschman, que, assim como na antiguidade e no medievo a moralidade estava vinculada às paixões, na modernidade ela estará ligada, sobretudo, aos interesses. Isso traz, naturalmente, consequências no que concerne à questão do significado da ética e do alcance da regulação das condutas como expansão das potencialidades humanas.

Se pudéssemos aprofundar a oposição entre a vida heroica das paixões, mítica e mágica, e a vida prosaica dos interesses no contexto de um mundo desencantado — tal como essa dicotomia aparece, por exemplo, nos romances do século XIX (pensando principalmente nas literaturas francesa e portuguesa) —, provavelmente encontraríamos na vitória do prosaico, mais precisamente no significado social desse desfecho, as raízes daquilo que nos permitimos chamar de banalização da ética. Na impossibilidade de desenvolver essa análise, contentemo-nos com a afirmação consequente de algo que parece evidente: as condições do mundo prosaico configuram a cena histórica em que se consolidará a hegemonia da vida privada regida pelos padrões do individualismo possessivo, para usar a expressão de MacPherson, o que consideramos aqui o equivalente da vitória, ou do advento histórico, da moral do interesse.

Ora, se aceitamos as considerações de Hannah Arendt, já mencionadas, acerca da ausência do interesse próprio como condição para o exercício da política na pólis, e se concordamos com a autora quanto à afirmação de que a vida autenticamente democrática perdurou enquanto vigorou essa condição, então teremos que convir que a passagem à modernidade significa também a transição da autenticidade para a inautenticidade na política. A consequência é que o exercício moderno e contemporâneo da política, enquanto governado pelo interesse, ocorre em regime de inautenticidade. Em outras palavras, a defesa do interesse significa o desaparecimento da política. Mas dessa forma também somos levados a afirmar que a ética do interesse e o desaparecimento do sentido autêntico da política estão inteiramente vinculados. Podemos definir essa vinculação, de forma aproximada, como uma relação negativa entre ética e política, entendendo por isso que haveria uma oposição entre a conduta governada pelo interesse e a vida pública.

Entretanto, Max Weber mostrou, através de uma análise preciosa de um texto de Benjamin Franklin, no segundo capitulo da Ética protestante e o espírito do capitalismo, que o interesse se instala como eixo diretor do modo de vida moderno precisamente porque ganha estatuto moral, qualidade que não possuía em épocas anteriores. É claro que esse fenômeno decorre da vinculação intima entre a ocupação (o trabalho e o lucro) e a preocupação ética. Num contexto moral e religioso, essa relação expressa a espiritualização do interesse, condição necessária para a fundamentação de novos critérios éticos, compatíveis com a sociedade de produção. Assim, o interesse como centro de gravidade do modo de vida passa a estar como que subjacente à relação moderna entre ética e política, se entendermos que a organização política na modernidade está intrinsecamente ligada à ideia de sociedade como associação de indivíduos para a defesa dos seus interesses, já consolidados num estágio logicamente anterior à associação civil, como está exemplarmente exposto na apresentação que faz Locke da gênese da sociedade e do significado do governo civil.

Se nos for permitido considerar que, a partir de Locke, o que poderíamos chamar de dimensão pública se identifica com a regulação e a articulação de interesses individuais, e que contrariar esses interesses seria idêntico a negar direitos fundamentais e prerrogativas individuais anteriores à própria formação da sociedade, talvez nos seja concedido também definir — a partir dessa hierarquia entre indivíduo e sociedade — a esfera pública como algo que poderíamos denominar forma associativa, destituída de realidade efetiva. Como já indicado, o público não poderia ser nada mais do que o cenário de acomodação racional do privado. Dessa maneira, qualquer sentido de vida em comum só poderia ser pensado como subsidio para a manutenção e o fortalecimento da vida individual. É nesse sentido que a organização da sociedade em todos os aspectos (principalmente o econômico) só pode ser concebida como liberalização dos interesses individuais e privados.

É neste livre jogo (laissez-faire) que se constituem a possibilidade e a realidade do corpo social como agregação de interesses, forças que movem os indivíduos e, em consequência, a coletividade.

Observe-se que o estatuto moral do interesse, que mencionamos há pouco, passa a defini-lo como valor, fundamentando assim sua legitimidade moral no plano da vida individual e, consequentemente, garantindo também a valorização social e política dos compromissos morais assumidos individualmente. É nessa direção que uma inserção social positiva do indivíduo será sempre pensada como decorrente de sua integridade moral como indivíduo. Trata-se de uma consequência natural da moralização do interesse privado. E, assim, se torna óbvio e coerente afirmar que a sociedade perfeita é mera consequência de indivíduos moralmente perfeitos.

Se compreendermos essa legitimação moral do interesse privado, compreenderemos a relação que existe entre a banalização da ética e o desaparecimento da política. Pois o enaltecimento do interesse individual privado tem como consequência colocar em plano secundário o significado autônomo do interesse público, uma vez que este possuiria apenas uma realidade emprestada e não seria nada mais do que a simples resultante da articulação racional dos interesses privados. Paradoxalmente, o percurso da modernidade em termos da preponderância do interesse privado passa pela proclamação dos direitos “universais”, presente nas grandes revoluções modernas. Hannah Arendt analisa essa espécie de constante histórica de que os princípios orientadores das revoluções não sobrevivem a elas e são dotados de valor concreto apenas na fase em que sustentam as expectativas de transformação da sociedade e do mundo, ocorrendo um enorme retrocesso quando se passa da esperança às possibilidades de realização. A impossibilidade da universalização concreta dos “direitos do Homem” certamente se vincula ao vetor individualista da experiência histórica moderna. Essa seria a causa de que a “paixão” revolucionária, isto é, o empenho na realização concreta das finalidades humanas, recaia sempre no jogo de interesses em que a causa pública acaba desaparecendo sob a instauração de uma ordem de meios necessários à realização dos fins particulares.

Algo mais grave, no entanto, ocorre quando a articulação dos interesses privados e a inserção dos indivíduos na instância do coletivo se traduzem em manipulação ideológica e massificação. Nesses casos, o coletivo não pode ser identificado como comunidade política, mas como identificação maciça com projetos de poder totalitário. A experiência histórica do século XX foi, nesse sentido, profundamente marcada pelo nazismo e pelo stalinismo como formas de destruição da comunidade por meio de estratégias de massificação. Castoriadis (“A dissimulação da ética” in As encruzilhadas do labirinto, vol. IV) assinala que essas violentas castrações da autonomia coletiva teriam provocado algo como um sentimento de inviabilidade da busca de soluções para os problemas humanos na esfera do social, tornada heterônoma por força do totalitarismo. Este seria a atitude que desemboca na indiferença política ou mesmo na hostilidade em relação à política como o lugar das instâncias institucionais que deveriam articular os aspectos individuais e sociais da existência. O autor também menciona, nesse mesmo sentido, a instituição moderna da ciência como “possibilidade de soluções universais para os problemas da humanidade”, perspectiva na qual se deixou de acreditar a partir da utilização dos prolongamentos tecnológicos da ciência como meios de destruição. Assim, a falência do significado humanista das duas grandes instituições modernas que em principio estariam voltadas para a organização da vida em comum teria trazido uma profunda descrença nas possibilidades institucionais de articulação das relações humanas, de modo que o recolhimento do indivíduo à esfera do privado apareceria então como a única forma de garantir a sua autonomia.

Essa espécie de rejeição ética da política configura a profunda contradição em que estamos enredados. Pois se definimos o indivíduo como social, não em termos de essência, mas como condição histórica efetiva, então a separação entre ética e política configura a ruptura entre indivíduo e sociedade, o que no limite significa a ruptura do indivíduo com ele mesmo. Essa divisão ou fragmentação, como perda da integridade, pode ser considerada a primeira causa da heteronomia, entendida como impossibilidade de o indivíduo reconhecer-se na sua identidade social e, assim, poder atuar como sujeito político. Nessas condições, a ética ganha uma autonomia de caráter ideológico na medida em que aparece como a ilusão da preservação de uma subjetividade que já não encontra no plano social as possibilidades de realização, uma vez que a instância do social, precisamente por ter-se tornado apenas o lugar de manifestação do interesse privado, mostra-se despida de qualquer caráter político-comunitário. Acontece que, nas sociedades massificadas, esse recolhimento de cada um à sua individualidade restrita, se permite ao indivíduo manter-se alheio à sociedade, não impede que cada indivíduo permaneça rigidamente submetido a um controle social exercido pelos múltiplos instrumentos que o poder tem à sua disposição. Por isso não é surpreendente que o individualismo exacerbado conviva perfeitamente com a massificação e a uniformidade de comportamentos. Dessa forma, o cultivo da individualidade coincide com a alienação — e a liberdade torna-se cada vez mais abstrata. O grande trunfo da democracia formal e a condição de preservação do sistema consistem exatamente em induzir os indivíduos a praticarem a indiferença política como realização da liberdade individual.

No entanto, como já vimos, o recolhimento do indivíduo à sua individualidade coincide, no mundo moderno, com a preservação do interesse privado e a manutenção das suas garantias. É nesse sentido que a moralidade privada aparece como único critério de julgamento de qualquer conduta, inclusive daquelas que, em principio, deveriam ser definidas como públicas. Instala-se então o seguinte circulo: nas suas ações, os indivíduos não distinguem o interesse privado do interesse público; no julgamento dessas ações, também não se separa a esfera pública da vida privada. Como consequência, não se tem propriamente conduta política nem se faz qualquer juízo político sobre as condutas. Aqueles que agem e aqueles que eventualmente julgam essas ações estão igualmente comprometidos com o mesmo critério, ou com o mesmo “valor”. Mas o compromisso fundamental é com a rejeição ou o ocultamento da política. Dai decorre que os “juízos de valor” — seja para justificar, seja para condenar as condutas postas em questão — orientam-se sempre pela apreciação ética dessas condutas, em sentido privado, como se a moralidade privada fosse o fundamento da vida política. O que não é surpreendente, tendo em vista a prerrogativa da individualidade e sua preponderância em relação à dimensão pública.

Disso decorre o caráter formal desses juizos: como não se vê a dimensão pública das ações, a realidade política como cenário concreto — condição do agir e conteúdo da ação — necessariamente escapa do alcance dos julgamentos. Para isso contribui, em consonância com a progressiva destruição da esfera pública, o ocultamento da dimensão pública das instituições, dos seus objetivos e de tudo que nelas se faz. E assim se busca e se discute toda sorte de motivações para as ações ditas “políticas”, exceto a condição política dessas ações e o seu significado público. Portanto, a questão não está na inadequação que consistiria em julgar ações públicas com critérios privados; o fundamental é que as ações ocorrem de modo caracteristicamente privado nas suas causas e consequências, embora mascaradas pela forma de ação pública, e são julgadas de modo privado no contexto de um espetáculo público. Tanto no caso das ações quanto no caso de seus julgamentos, predomina a relação de presença e ausência de interesses, que são os fatores determinantes em ambas as instâncias. A condição de possibilidade das ações é a determinação dos interesses; a condição de possibilidade dos juízos é a avaliação dos interesses em jogo. A pergunta é se poderíamos esperar outra coisa numa situação em que a democracia é formal, em que as instituições estão esvaziadas de significado político e em que a dimensão pública está reduzida à publicidade.

Enfim, podemos dizer que, quando a vida política é autêntica, sua moralização é desnecessária porque o verdadeiro sentido da vida pública está na reciprocidade entre ética e política. Quando a vida política é inautêntica, sua moralização é inútil porque a quebra de reciprocidade desde logo compromete o sentido dos dois elementos e de sua vinculação intrínseca. Nesse caso, a falsidade da política já determina que as apreciações éticas girem em falso. Em outras palavras, quando falamos de coisa pública — de sua deterioração como experiência real —, a falência simultânea da política e da ética torna o discurso moralizante, ou a tentativa de substituição da política pela ética, um procedimento de banalização e uma estratégia de cinismo.

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