2010

Pensar o mal hoje. Ensaio sobre o apocalipse nuclear

por Jean-Pierre Dupuy

Resumo

O mal está tradicionalmente relacionado com as intenções de quem o comete. Os horrores do século XX mostraram que tal afirmação é uma ilusão. O absurdo – que continua a perturbar todas as categorias que ainda no servem para julgar o mundo – é que um mal imenso possa ser causado por um completa ausência de malignidade; que uma responsabilidade monstruosa possa caminhar junto com uma total ausência de más intenções.

Quando Hannah Arendt, em Eichmann à Jerusalém, simplesmente condena Eichmann por sua “vista curta” (thoughlessness), provocou a incompreensão completa da comunidade judaica internacional. Amigos próximos como Hans Jonas e Gershom Scholem romperam com ela por entenderem que, de certa maneira, Hannah desculpabilizava Eichmann de todo crime. O que não foi compreendido é a expressão utilizada a propósito de Eichmann: a “banalidade do mal”.

E, no entanto, não é um lapso o fato de que hoje, para designar o extermínio industrial de seus pais, à palavra holocausto – por demais carregada de religião – os judeus da Europa prefiram a palavra shoah, que significa, unicamente, catástrofe natural, tsunami. Como se, a partir dali, a matança programada de milhões de inocentes passasse por fato da natureza. Mas como poderia ser diferente? Nada do que chamamos de moral ou ética é suficientemente forte para suportar o peso da enormidade do mal que se manifestou no século XX.

Para Günther Anders, o teórico da era atômica, embora a dissuasão nuclear tenha mantindo o mundo em paz por um certo tempo, ela o fez projetando o mal para fora da esfera dos homens, tornando-a uma exterioridade maléfica sem má intenção, sempre pronta a abater-se sobre a humanidade, porém sem maldade maior do que um terremoto ou um tsunami, embora com um poder destruidor maior do que o da própria Natureza. Essa ameaça suspensa ensinou às grandes potências a prudência necessária para evitar a abominação da desolação que teria sido uma guerra termonuclear, a destruir uns ao outros e o mundo junto com eles.

Como as grandes catástrofes morais do século XX, a catástrofe ecológica maior com que nos deparamos em nosso horizonte e que põe em perigo a própria sobrevivência da humanidade será menos o resultado da malignidade dos homens, ou mesmo de sua estupidez, do que de sua ausência de pensamento (thoughlessness). Embora apresentem-se como destino inelutável, não é que ela seja uma fatalidade. É que um sem número de decisões de toda ordem, caracterizada mais pela miopia do que pela malícia ou pelo egoísmo, compõem um todo que paira sobre elas, segundo um mecanismo de auto-exteriorização ou de auto-transcendência. O mal não é nem moral nem natural – esse mal do terceiro tipo pode ser chamado de mal sistêmico.


INTRODUÇÃO: UM NOVO REGIME DO MAL

Toda a história da filosofia e do pensamento ocidentais pode ser interpretada como um enfrentamento permanente ao problema do mal. A existência do mal na Terra é um verdadeiro escândalo. É um escândalo para todo o pensamento religioso porque, se Deus existe, sendo ele benevolente e onipotente, como explicar que sua criação seja aparentemente tão imperfeita, pelo menos do nosso ponto de vista, pobres humanos perdidos no nosso vale de lágrimas? Mas o mal também não é menos escandaloso para aqueles pensamentos humanistas que colocam o homem no lugar de Deus. Porque, como justificar que os progressos extraordinários da força de nossa ação sobre o mundo, por meio da ciência e da técnica, não sejam acompanhados de uma redução da miséria, das injustiças, da violência e das guerras? Como é possível que a humanidade, tendo adquirido o poder de destruir-se a si mesma, ao contrário de se afastar dessa possibilidade monstruosa, avance cada dia mais por um caminho suicida?

O mal foi frequentemente interpretado em termos de essência. Haveria uma essência do mal. E dele se fabricou, então, um sujeito: Satã, que quer dizer, em hebreu, o Acusador; ou o Diabo, que significa, em grego, aquele que desune (diábolos). Seu nome também é Mefistófeles, que Goethe, no século XVIII, definiu desta forma: “uma parte desta força que quer sempre o mal e faz sempre o bem”; ou Belzebu, que quer dizer, em hebreu, o senhor das moscas – as moscas que, como uma multidão de linchadores, pululam e se fartam do cadáver de sua vítima.

Nikolai Ge, pintor russo do fim do século XIX, pintou um quadro de uma força extraordinária, Gólgota, que representa um braço acusador que aparece do lado esquerdo da tela e que aponta na direção do Cristo, que está em andrajos. A violência da acusação se reflete na humilhação extrema sentida por Cristo. Um dos ladrões prefere desviar seu olhar, enquanto o outro fixa a cena, horrorizado. A genialidade desse quadro reside no fato de que o Acusador não tem um rosto. Ele poderia ser qualquer pessoa, ou ninguém. Pode-se admirar esse quadro na Galeria Tretiakov; em Moscou.

Sob a influência judaico-cristã, durante muito tempo nós atribuímos o mal às intenções daqueles que o cometiam. Todos os sistemas jurídicos modernos repousam sobre o pressuposto segundo o qual para se cometer um crime é preciso ter a intenção de fazer o mal. Quando esta intenção está ausente, por qualquer que seja a razão, nós pensamos que não houve um crime. Os horrores do século XX nos ensinaram que tudo isso era uma ilusão.

O escândalo que não cessou de subverter as categorias vigentes para julgar o mundo consiste em um mal imenso que pode ser causado pela ausência completa de malignidade; que uma responsabilidade monstruosa pode estar acompanhada de uma ausência total de más intenções. Nós fizemos a experiência trágica, mas nos resta ainda pensar sobre ela.

Sabemos que a filósofa judeo-alemã Hannah Arendt, aluna de Heidegger, imputou a Adolf Eichmann, no seu livro Eichmann em Jerusalém, publicado em 1963, o que denominou de “visão limitada” (thoughtlessness); quer dizer, a incapacidade dele de se colocar no lugar dos outros e de antecipar as consequências de sua ação. A comunidade judaica internacional manifestou sua incompreensão e seu completo desacordo com a filósofa. Amigos próximos de Hannah Arendt, como Hans Jonas e Gershom Scholem, romperam com ela. Entenderam que Arendt, dessa maneira, desculpava Eichmann de todo crime. No entanto, ela repetiu incessantemente que Eichmann era mil vezes responsável pelos horrores que ele havia provocado e que ele merecia mil vezes a morte; que não havia nenhuma contradição entre sublinhar, ao mesmo tempo, a mediocridade das intenções de Eichmann e o caráter monstruoso dos seus crimes. O que particularmente não foi compreendido é a expressão que Arendt utilizou a propósito de Eichmann: a “banalidade do mal”. Entendeu-se que Arendt fazia a Shoah perder toda a sua especificidade de horror. Arendt precisou o sentido que ela dava a essa expressão numa carta magnífica que escreveu a Gershom Scholem, em julho de 1963:

O mal não é nunca “radical”, ele é simplesmente extremo. Ele não possui nenhuma dimensão demoníaca. Ele pode invadir e devastar a terra inteira precisamente porque ele se espalha como um cogumelo na superficie. Ele escapa ao pensamento porque o pensamento sempre busca a profundidade, se esforça por atingir a raiz, mas no momento em que o pensamento tenta entender o mal ele não chega a nada porque não há nada a entender. Tal é a “banalidade” do mal.

Em outros termos, o mal não é nem uma essência, nem um sujeito. Ele não tem nenhuma profundidade, na verdade o mal não é nada.

* * *

Nas conferências que dei neste mesmo ciclo em 2006 e 2007, mostrei, de um modo similar, que a catástrofe ecológica maior, que demarca nosso horizonte e coloca em perigo a própria sobrevida da humanidade, será menos o resultado da malignidade dos homens – ou mesmo de sua tolice – do que de sua visão curta (thoughtlessness). Se ela se apresenta como um destino inelutável, não é porque seja uma fatalidade: é porque uma multitude de decisões de todas as ordens, caracterizadas mais pela miopia do que pela malícia ou egoísmo, compõem um todo que ultrapassa os homens – como se o mal tivesse saído de uma transcendência, embora não passe de uma emergência, um efeito de composição.

Eu gostaria de tentar o mesmo gênero de análise sobre o que permanece como a ameaça mais terrível que pesa sobre o futuro da humanidade: a ameaça nuclear. Vou mostrar que Hiroshima abriu a possibilidade de uma destruição total da aventura humana, sem que se reconheça a partir desse momento nada que seja semelhante à maneira pela qual se concebia o mal há apenas alguns decênios.

O mundo se aproximou mais dois minutos do apocalipse

Em 17 de janeiro de 2008, dois dos maiores cientistas de nosso tempo, ambos ingleses, o físico Stephen Hawking, descobridor dos buracos negros, e o astrônomo real Sir Martin Rees, que ocupa a cadeira de Isaac Newton em Cambridge, adiantaram o ponteiro dos minutos do relógio do apocalipse em dois minutos. Nós estamos apenas a cinco minutos de meia-noite, meia-noite significando, convencionalmente, o momento em que a humanidade será aniquilada por ela mesma.

O relógio do Apocalipse (Doomsday clock) foi colocado em funcionamento, em 1947, por um grupo de físicos atômicos chocados com o lançamento das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki; eles editaram, em 1945, uma revista de reflexão sobre a arma de destruição em massa por excelência, o Bulletin of Atomic Scientists, que ainda existe hoje. Em 1947, esse grupo de físicos posicionou o ponteiro dos minutos a sete minutos antes de meia-noite. Era o início da era nuclear. Desde então, o ponteiro foi adiantado e atrasado 17 vezes. Foi em 1953 – quando a América e a União Soviética testaram a bomba de hidrogênio com nove meses de intervalo uma da outra – que o ponteiro mais se aproximou da meia-noite, ficando somente a dois minutos dessa hora.

Depois da queda do muro de Berlim, do desmoronamento da União Soviética e do fim da guerra fria, o ponteiro distanciou-se 17 minutos, para voltar a sete minutos em 2002, depois dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001.

Em 1984, nós nos aproximamos perigosamente da meia-noite, ficando a três minutos somente. Naquele ano, um avião de linha sul-coreano foi abatido por um caça soviético e o presidente Reagan declarou que a União Soviética era o “Império do Mal”.

Quando a América decidiu lançar o que se chamou a “Guerra nas Estrelas” [Star Wars], uma corrida armamentista completamente louca resultou no início do desmoronamento da União Soviética.

Em 1962, nós nos aproximávamos sem dúvida a menos de um minuto da meia-noite. Foi a crise dos mísseis de Cuba. Jamais, durante toda a guerra fria, a humanidade ficou tão próxima de um holocausto nuclear. Mas tal crise durou apenas 14 dias. O relógio do Apocalipse não é sensível o bastante para reagir a crises agudas que se resolvem em pouco tempo.

Hoje nós estamos, então, dois minutos mais perto da meia-noite do que estávamos em 1947. Os argumentos avançados pelos cientistas para justificar seu prognóstico sinistro merecem reflexão. Primeiramente, entramos em uma segunda idade nuclear, marcada pela proliferação de artefatos nucleares e pelo terrorismo. E o tabu que se estabeleceu depois de Hiroshima e Nagasaki sobre o uso da bomba está perdendo sua força; o tempo e o esquecimento estão fazendo o seu trabalho. Mas, pela primeira vez na história do relógio do Apocalipse, um argumento que nada tem a ver com a ameaça nuclear foi colocado à nossa frente: os riscos ligados às mudanças climáticas. Os maiores cientistas do momento reconhecem, então, que a humanidade pode recorrer a dois tipos de método para eliminar a si mesma: a violência pura, a guerra civil em escala mundial e também a destruição do meio ambiente necessário à sua sobrevivência. Estes dois métodos não são, evidentemente, independentes. As primeiras manifestações trágicas do reaquecimento climático não serão a elevação do nível dos oceanos, as grandes ondas de calor, a frequência de acontecimentos meteorológicos extremos, o ressecamento de regiões inteiras, mas sim os conflitos e as guerras provocadas pelas migrações maciças que a antecipação desses acontecimentos provocará.

A destruição da natureza engendra a violência e, reciprocamente, a violência destrói a natureza. Os homens não destroem a natureza porque eles a odeiam. Eles a destroem porque, odiando-se uns aos outros, não tomam cuidado com os terceiros inocentes que os seus golpes atingem de passagem.

E a natureza aparece em primeiro lugar nesses terceiros excluídos. Frequentemente, a indiferença e a cegueira matam muito mais do que o ódio.

Deve-se notar que os cientistas mencionam uma outra ameaça que pesa sobre a sobrevivência da humanidade: a corrida sem controle e solta às tecnologias avançadas e às suas convergências, em particular à convergência entre as nanotecnologias e as biotecnologias. Um desses cientistas concluiu: “Os cientistas não deveriam se furtar ao dever de se colocarem como portadores de más notícias. Ao se comportarem de outro modo, eles dão prova de uma negligência condenável”.

BIN LADEN E HIROSHIMA

Um dos teóricos contemporâneos mais notáveis das Ciências Humanas se chama Osama Bin Laden. É preciso ler seus escritos, que acabam de ser publicados em coletânea.

Todo mundo sabe que o lugar onde estavam as torres gêmeas do World Trade Center se chama agora “Ground Zero”. Desde a noite de 11 de setembro de 2001 essa denominação entrou na linguagem comum, espontaneamente adotada por jornalistas da imprensa e da televisão, pelos nova-iorquinos comuns e, além disso, por todos os norte-americanos, antes que o mundo inteiro, por sua vez, também dela se apropriasse. Mas qual é a origem dessa denominação?

“Ground Zero” evoca, inevitavelmente, no espírito de todo norte-americano culto, o ponto preciso do lugar (chamado Trinity) onde explodiu a primeira bomba atômica da história da humanidade, no dia 16 de julho de 1945, em Alamogordo, no Novo México. Foi o próprio Oppenheimer que escolheu essa denominação, na agitação febril da preparação das bombas que iriam pulverizar Hiroshima e Nagasaki. Imediatamente, então, os norte-americanos compararam o ataque terrível do 11 de setembro aos ataques nucleares pelos quais eles fizeram o Japão imperial ceder. Ora, era exatamente isso que queria Osama Bin Laden.

Em maio de 1998, Bin Laden foi interrogado por um jornalista do canal ABC sobre a fatwa que conclamava todos os muçulmanos da Terra a exterminar os norte-americanos toda vez e em todos os lugares onde fosse possível. O jornalista pergunta se o alvo estava limitado aos militares ou se estaria estendido a todo norte-americano. Bin Laden declarou: “Foram os norte-americanos que começaram. A réplica e o castigo devem se aplicar seguindo escrupulosamente o princípio de reciprocidade, sobretudo quando se trata das mulheres e das crianças. Aqueles que lançaram as bombas atômicas e recorreram às armas de destruição em massa contra Nagasaki e Hiroshima foram os norte-americanos. Essas bombas podiam fazer a diferença entre os militares e as mulheres e crianças?”. Sabe-se hoje que, nos meses que precederam o 11 de setembro, os norte-americanos receberam numerosos sinais que anunciavam a catástrofe. Um desses sinais, uma mensagem proveniente da Al Qaeda, captado pela CIA, era particularmente assustador. A mensagem vangloriava-se de que a organização de Osama Bin Laden estava planejando “uma Hiroshima contra a América”. A utilização generalizada da expressão “Ground Zero” é mesmo o sinal de que os norte-americanos, sem nenhuma dúvida, receberam a mensagem que Bin Laden lhes destinou.

Notemos que Bin Laden se refere ao “princípio de reciprocidade” como se ele citasse o célebre capítulo que o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss consagrou a esse suposto princípio na sua obra maior Les Structures élémentaires de la parenté[1]Por mais absurda que tal comparação possa parecer à primeira vista, sua pertinência obtém uma confirmação inesperada quando tomamos conhecimento dos seguintes propósitos do artesão do 11 de setembro, recolhidos da única intervenção televisionada que ele fez, em 5 de fevereiro de 2002, após aqueles acontecimentos. Interrogado sobre seu papel nos atentados, Bin Laden responde: ”A América lançou numerosas acusações contra nós e contra os muçulmanos do mundo todo. É absolutamente injustificado pretender que nós nos dedicamos a cometer atos de terrorismo”. E esclarece: “Se o fato de matar aqueles mesmos que matam nossas crianças é terrorismo, então, sim, que a história testemunhe que nós somos terroristas”. E mais tarde: “Se nós matamos os reis dos infiéis, os chefes das cruzadas e os civis infiéis, é em troca das nossas crianças que eles levaram à morte. Isto é permitido pela lei corânica e pela lógica”.

O jornalista quis estar certo de ter compreendido bem: “O que o senhor diz é que se trata de uma forma de reciprocidade. Eles matam nossos inocentes, então nós matamos seus inocentes, é isto?”. Bin Laden, por sua vez, respondeu: “Então nós matamos seus inocentes, e eu repito que nós estamos autorizados a isto tanto pela lei do Islã como pela lógica”.

Tal propósito é caracteristicamente espantoso. Assim, então, no debate “à francesa” constitutivo das Ciências do Homem, que foi aberto em 1924 pelo livro de Marcel Mauss, Essai sur le don[2]Alguns dos maiores intelectuais franceses – Lévi-Strauss, Pierre Bourdieu, Jacques Derrida, Michel Serres e muitos outros participaram do debate e Bin Laden, decidida e explicitamente, toma partido de Lévi-Strauss. A lei humana que impõe a reciprocidade da troca seria a manifestação de uma necessidade de ordem lógica e, por isso mesmo, mecânica. É preciso render homenagem à contribuição decisiva do responsável da Al Qaeda nesse debate. Bin Laden revela o que Pierre Bourdieu e outros foram incapazes de ver, a saber, que essa “lógica” é a lógica do mal, da violência e do ressentimento. Eis por que as sociedades tradicionais, dentre elas as sociedades islâmicas, contrariamente ao que diz Bin Laden, fazem tudo para dissimular a reciprocidade inerente a toda troca de bens, protelando-a de modo a afastar e preservar a boa reciprocidade de tudo aquilo que poderia evocar a reciprocidade violenta, essa de golpes trocados, que conduz apenas ao que Clausewitz, no seu livro Da guerra, denominou de “subida aos extremos”, e que nós denominamos hoje a “escalada”.

Por mais que pareça paradoxal ou escandaloso, o terrorismo islâmico aparece como o reflexo monstruoso do Ocidente cristão que ele repudia. Isso se manifesta na sua retórica vitimizadora. A universalização do cuidado com as vítimas revela de modo mais evidente que a civilização tornou-se única, e válida em todo o planeta.

Em toda parte, é em nome das vítimas que outros real ou pretensamente fizeram com que se perseguisse, se matasse, se massacrasse, se mutilasse. Em boa “lógica”, é em nome das vítimas de Hiroshima que os kamikazes islâmicos atacaram a América. O fato de que nós só tenhamos no nosso léxico essa palavra japonesa para designar os que cometem atentados suicidas ilustra bem, diga-se de passagem, que essa prática terrorista não se enraíza em quase nada na religião muçulmana. Foi o Ocidente e o Japão que forneceram o modelo, mesmo que sejam os grupos islâmicos que parecem, atualmente, reservar-se esse monopólio, no Oriente Médio e em outros lugares. Em todo o mundo, hoje, “luta-se para se tornar vítima”. Eis aí uma perversão abominável desse cuidado com as vítimas que, segundo Nietzsche, o mais anticristão dos filósofos, foi a marca do cristianismo e da moral de escravos que essa religião fez nascer. O que se pode contestar por meio das palavras do grande escritor católico inglês G. K Chesterton, para quem, com efeito, “o mundo moderno está cheio de ideias cristãs… que se tornaram loucas”.

Seja como for, Osama Bin Laden nos faz lembrar alguma coisa que nós, ocidentais, temos tendência a esconder sob o tapete. A eliminação dos princípios da guerra justa, que faziam da guerra, em teoria, um ritual ao mesmo tempo violento e contido, um ritual que controlava a violência pela violência, essa eliminação foi primeiramente um feito do Ocidente. O princípio de discriminação – que impõe atacar somente os combatentes do adversário e não os povos tidos como inocentes, particularmente as mulheres, as crianças e os velhos – e o princípio de proporcionalidade – que obriga a ajustar os meios violentos da guerra aos objetivos políticos e estratégicos que se quer alcançar, esses princípios morreram de uma bela morte em Hiroshima e seus cadáveres foram volatilizados na vaga de calor radioativo que pulverizou Nagasaki – o que não quer dizer que eles já não tivessem sido derrubados antes, por exemplo, por ocasião dos bombardeios a Dresden e Tóquio.

GÜNTHER ANDERS, O TEÓRICO DA ERA ATÔMICA

No dia 6 de agosto de 1945, uma bomba atômica reduziu a cidade japonesa de Hiroshima a cinzas radioativas. Três dias mais tarde, Nagasaki, por sua vez, foi também destruída. No intervalo entre esses dias, em 8 de agosto, o Tribunal de Nuremberg, por meio da Carta de Londres, declarou-se capaz de julgar três tipos de crimes: os crimes contra a paz, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade. No espaço de três dias, os vencedores da Segunda Guerra Mundial abriram uma era na qual o poderio técnico das armas de destruição massiva tornou inevitável que as guerras se transformassem em guerras criminosas – inclusive no que se refere às normas que eles próprios estabeleceram para o Tribunal de Nuremberg. Essa “ironia monstruosa” marcou para sempre o pensamento do filósofo alemão mais desconhecido do século XX, Günther Anders.

Com seu verdadeiro nome, Günther Stern, Anders nasceu em uma família judeo-alemã no dia 12 de julho de 1902, em Breslau (hoje a cidade polonesa de Wroclaw). Seu pai era o célebre psicólogo infantil Wilhelm Stern, a quem devemos a noção de Q.I. (Quociente de Inteligência). Na década de 1930, Bertold Brecht, editor do jovem Günther, aconselhou-o a assinar seu nome de maneira diferente daquela do seu patronímico de nascimento. Ele passou a assinar, então, “Anders”. Mas não foi somente por sua assinatura que ele se apresentou ao mundo de maneira diferente. Foi também e sobretudo por sua maneira de fazer filosofia – a filosofia que ele tinha estudado em Freiburg com os mestres que se chamavam Edmund Husserl e Martin Heidegger. Anders escreveu, em algum lugar, que fazer filosofia da moral em um estilo e em um jargão que só sejam acessíveis a outros filósofos é tão absurdo e desdenhoso como é, para um padeiro, fazer pão apenas para outros padeiros. Anders quis ser um filósofo de intervenções, um “filósofo de circunstâncias”, como ele mesmo se definiu. Mas que circunstâncias! A conjunção de Auschwitz e Hiroshima, quer dizer, a entrada no domínio do possível da destruição tecnológica e industrial da humanidade por ela mesma, eis a que – interrompendo todas as outras questões, pensando contra todos e combatendo mesmo sem esperança – o filósofo colocou-se a obrigação de dedicar todos os seus esforços e cada um dos minutos de sua vida ativa. E certamente não o fez no espaço fechado do mundo universitário: não se faz filosofia acadêmica sobre o apocalipse que se anuncia.

Anders não parece ter sido muito amado. Ele o foi muito pouco, sem dúvida, por sua primeira mulher, Hannah Arendt, que lhe tinha apresentado seu condiscípulo de Freiburg, Hans Jonas – estes dois outros “filhos de Heidegger”, igualmente judeus, que se tornariam filósofos célebres e influentes de maneira diversa daquela que Anders foi.

Se acredito indispensável evocar a figura de Günther Anders aqui, é porque ele é um dos raros pensadores que tiveram a coragem e a lucidez de aproximar Hiroshima e Auschwitz, sem nada retirar do triste privilégio do segundo, de encarnar o horror moral incomensurável. Ele só pôde fazer isso porque compreendeu, como Hannah Arendt, e sem dúvida antes dela, que, passados certos limites, o mal moral se torna grande demais para os homens que, no entanto, dele são responsáveis; e que nenhuma ética, nenhuma racionalidade, nenhuma norma que os homens possam se dar é apropriada para avaliar o que aconteceu.

É preciso, então, coragem e lucidez para fazer a associação, porque Hiroshima representa ainda no espírito de muitas pessoas, e ao que parece da maioria dos norte-americanos, o exemplo mesmo do mal necessário[3]A morte recente de Paul Tibbets, o piloto do Enola Gay, o B-29 que lançou Little Boy sobre Hiroshima, despertou na América velhas feridas, e esse argumento foi retomado, não sem constrangimento. A América se concedia o poder de determinar, se não o melhor dos mundos possíveis, pelo menos o “menos ruim”, e colocava, num prato da balança, o lançamento das bombas sobre os civis japoneses e o aniquilamento de centenas de milhares deles, e no outro, uma invasão do arquipélago que teria custado, segundo se diz, a vida de meio milhão de soldados norte-americanos. Ela – a América – não podia deixar de escolher (necessidade moral) pôr fim à guerra de modo brutal, mesmo ao preço de colocar em pedaços, definitivamente, tudo aquilo que até ali tinha constituído as regras mais elementares da guerra justa. Esse argumento ético é chamado de consequencialista: quando o que está em jogo é imenso, as normas morais que se chamam deontológicas – no sentido de que elas exprimem o dever que se tem de respeitar os imperativos absolutos, custe o que custar, quaisquer que sejam as consequências – devem se apagar diante do cálculo das consequências. Mas que cálculo ético e racional poderia então justificar que se tenha enviado, dos quatro cantos da Europa, milhões de crianças judias para serem mortas pelo gás? É evidentemente essa a diferença, o precipício, o abismo moral que separa Auschwitz de Hiroshima.

Ora, no entanto, ao longo destes decênios, os vigilantes exigentes não deixaram de clamar contra a imoralidade intrínseca da arma atômica e a ignomínia que foi o lançamento das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki.

Leo Szilard, o físico de origem húngara que redigiu com Einstein a carta ao presidente Roosevelt, que deveria decidir sobre o lançamento do Projeto Manhattan, declarou em 1960, pouco tempo antes da sua morte: “Suponhamos que a Alemanha nazista tivesse feito a bomba atômica antes de nós, que ela tivesse bombardeado duas cidades norte-americanas e que, tendo esgotado seu estoque de bombas, ela tivesse, não obstante, perdido a guerra. Não é evidente que nós teríamos classificado o bombardeio nuclear das cidades entre os crimes de guerra e que teríamos, em Nuremberg, condenado à forca os responsáveis por esses crimes?”[4]

A grande filósofa católica de Oxford, Elizabeth Anscombe, em 1956, recorreu a uma comparação ainda mais esclarecedora. Suponhamos, diz ela, que os Aliados, no início de 1945, tenham pensado que, para quebrar a obstinação dos alemães e obrigá-los a capitular rapidamente sem condições, economizando assim a vida de numerosos soldados aliados, seria preciso que se tomasse a decisão de massacrar as centenas de milhares de civis, inclusive mulheres e crianças, que habitavam duas cidades do Ruhr. Duas questões:

1) em que, moralmente, isto teria sido diferente do que os nazistas fizeram na Tchecoslováquia ou na Polônia?; 2) em que, moralmente, isto teria sido diferente do bombardeio atômico a Hiroshima e Nagasaki?[5].

Diante do horror, a filosofia moral fica reduzida a proceder a analogias desse tipo, porque a ela resta, então, apenas a coerência lógica sobre a qual se fundar. Essa exigência mínima de consistência, no entanto, deveria ter sido suficiente para afastar a opção nuclear. Esse não foi o caso. Por quê?

Uma primeira resposta é que os norte-americanos ganharam a guerra contra o Japão e que foi a vitória deles que, retrospectivamente, os justificou. Não se deve tomar esse argumento como cinismo. Ele traz um nome em filosofia moral: a sorte moral (moral luck). O julgamento moral que se faz de uma decisão passada, tomada diante de um futuro radicalmente incerto, pode depender retroativamente daquilo que se produziu depois do que se agiu e que, na época, era completamente imprevisível, mesmo como probabilidade.

Eu gostaria de introduzir aqui a figura de um ser excepcional, que foi muito odiado, Robert McNamara. Ele morreu há algumas semanas, com a idade de 93 anos, e a imprensa americana cobriu-o de críticas ásperas, para não dizer de injúrias. McNamara foi secretário de Defesa do presidente Kennedy e, posteriormente, depois do assassinato deste, do presidente Johnson; e, como tal, foi o artesão, o mastermind, da Guerra do Vietnã. A ele é atribuída a responsabilidade pela morte de 58 mil soldados americanos, sem contar os três a quatro milhões de vítimas vietnamitas. Em 1995, em seguida à morte de sua mulher, McNamara redigiu suas memórias e qualificou a Guerra do Vietnã, essa guerra que ele tanto reivindicou como sua, de “errônea, terrivelmente errônea”. O The New York Times, longe de louvá-lo por esse arrependimento, publicou um editorial que dizia isto: “O senhor McNamara não deve escapar da condenação moral de seus concidadãos. É preciso que a cada momento de repouso ou de felicidade que ele experimente, escute os murmúrios incessantes de cada um desses pobres soldados rasos, os GI, agonizando nos campos do Vietnã, e isso para nada, para absolutamente nada. Essas vidas que ele sacrificou, não é o caso de que ele as resgate por meio de desculpas de propaganda e lágrimas de crocodilo, trinta anos mais tarde”.

Em 2003, o maior documentarista norte-americano, Errol Morris, fez uma entrevista extraordinária com McNamara, que ele intitulou, numa referência a Clausewitz, The fog of war (A neblina da guerra). Nesse filme, McNamara aprofundou seu exame de consciência de uma maneira incrivelmente lúcida e emocionante. Eu não saberia dizer se, desse modo, ele resgatou também as decisões, de pesadas consequências, que deve ter tomado na sua vida. Não é a Guerra do Vietnã que é o nosso tema, mas a Guerra do Pacífico. O jovem McNamara era, então, o conselheiro científico do general Curtis LeMay. LeMay foi o fundador e primeiro comandante do Strategic Air Command, o conjunto de forças aéreas americanas do Pacífico. Foi, portanto, o responsável pelo lançamento de milhares de bombas incendiárias sobre cerca de setenta cidades do Japão imperial, terminando com o lançamento das duas bombas atômicas, sobre Hiroshima e Nagasaki. Em uma única noite, de 9 para 10 de março de 1945, cem mil civis morreram carbonizados em Tóquio.

Volto ao tema da “sorte moral”. McNamara exprime essa ideia com uma rara força dramática, relatando – e aprovando – esta afirmação espantosamente lúcida de LeMay: “Se tivéssemos perdido a guerra, teríamos sido julgados como criminosos de guerra”.

À questão que eu colocava acima – por que o horror do recurso à arma nuclear não foi percebido? -, uma outra resposta possível, ainda mais cínica, é de que a moral consequencialista só serviu como álibi. A escola histórica americana, dita “revisionista”, tendo à frente Gar Alperovitz, defendeu essa tese com muita convicção, demonstrando que, em julho de 1945, o Japão estava prestes a capitular[6]. Teria sido suficiente colocar apenas duas condições para que a rendição fosse obtida sem demora: que o presidente Truman aceitasse que a União Soviética imediatamente declarasse guerra ao Japão; que a capitulação do Japão fosse acompanhada da promessa americana de deixar o imperador vivo e desempenhando sua função. Sabendo perfeitamente disso, Truman recusou uma e outra condição. Foi no dia 17 de juJho de 1945, na Conferência de Potsdam, um subúrbio de Berlim. Na véspera, o presidente tinha recebido a “boa notícia”: a bomba estava pronta, o teste de Alamogordo, no Novo México, coroado com êxito, demonstrava isso muito bem. Na sua volta, no dia 7 de agosto de 1945 – véspera, portanto, da Carta de Londres -, Truman deu esta declaração triunfal: “Fizemos a aposta científica mais ousada de toda a história humana, uma aposta de dois bilhões de dólares, e nós ganhamos”[7].

Gar Alperovitz concluiu que Truman queria pegar de surpresa os soviéticos, lançando a bomba antes que eles entrassem em ação. Os norte-americanos usaram as armas nucleares não para obrigar o Japão a se render mais facilmente, mas para impressionar os russos. Uma iniciação à guerra fria e uma abominação ética. Os japoneses foram rebaixados ao lugar de cobaias. A bomba não era necessária para se obter a rendição. Outros historiadores consideram, além disso, que ela não era suficiente.

Esse aspecto é colocado por Barton J. Bernstein na sua “nova síntese”[8]. A argumentação desse historiador se fundamenta nessa mística da destruição mútua absoluta praticada pelos militaristas japoneses, na qual a honra está do lado do assassino. No dia seguinte a Nagasaki, o chefe da marinha nipônica propõe ao seu imperador o lançamento de “ataques especiais”, ao custo anunciado de vinte milhões de mortos. Para essa conta, nos diz Bernstein, uma ou duas bombas não seriam suficientes. Os norte-americanos estavam tão convencidos disso, diz ele, que não só estavam prontos a lancer uma terceira bomba, como foram eles os primeiros a se supreender com a rendição de 14 de agosto! Rendição que, segundo Bernstein, resultou do acaso e de mudanças das alianças no mais alto nível do poder japonês, mudanças estas ainda mal conhecidas pelos historiadores. Mas Bernstein vai mais longe na sua análise. Das seis opções de Guerra à disposição dos americanos para obter a rendição japonesa sem invasão do arquipélago, cinco foram devidamente pesadas, combinadas, analisadas e, depois, rejeitadas por Truman e seus conselheiros: continuar os bombardeios e o bloqueio; negociações oficiosas com o inimigo; modificação dos termos da rendição; entrada dos russos na guerra; lançamento nuclear de “demonstração”. A sexta opção, esta não foi discutida um só instante. Foi a opção da bomba. Sua utilização nas cidades de Hiroshima e Nagasaki estava inscrita na sua própria existência. De um ponto de vista ético, as conclusões de Bernstein são ainda mais terríveis do que as de Alperovitz: lançar a bomba atômica, talvez a decisão mais grave da história moderna, não foi nem mesmo uma decisão.

Essas interpretações “revisionistas” não exaurem uma dupla interrogação:

  1. Como, entretanto, dar sentido ao bombardeio a Hiroshima e, mais perturbador ainda, a Nagasaki, essa obstinação absurda na infâmia?
  2. De que forma a veste moral consequencialista pôde funcionar como álibi, ela que, ao contrário, deveria ter sido considerada a mais execrável das justificativas?

A obra de Günther Anders responde não somente a essas questões, como também o faz deslocando-as para outro terreno. Ele, o judeo-alemão, que emigrou para Paris e depois para a América, que voltou à Europa em 1950 e se tornou cidadão austríaco, exilado em todo os lugares, judeu errante, reconheceu que, no dia 6 de agosto de 1945, a história humana havia entrado em uma nova fase, a última. Ou melhor, que o 6 de agosto foi apenas o ensaio, no sentido teatral do termo, do 9 – o que ele denominou “síndrome de Nagasaki”: a catástrofe, uma vez produzida, tendo feito entrar o impossível na realidade, chama necessariamente réplicas, como um terremoto[9].

A história, nesse dia, tornou-se “obsoleta”[10]. A humanidade tornou-se capaz de destruir-se a si mesma, e nada jamais fará com que ela perca essa “onipotência negativa”, seja um desarmamento geral, seja uma desnuclearização total do mundo. O apocalipse está inscrito como um destino em nosso amanhã, e o que nós podemos fazer de melhor é retardar indefinidamente o seu vencimento. Nós vivemos em sursis. A partir de agosto de 1945, entramos na era do tempo determinado [die Frist] e da “segunda morte” de tudo o que existiu: pois o sentido do passado depende dos atos que ainda virão; a obsolescência do amanhã, seu fim programado, significam não que o passado não tenha mais sentido, mas, sim, que ele jamais terá tido[11].

Interrogar-se sobre a racionalidade e sobre a moralidade da destruição de Hiroshima e Nagasaki é, ainda, tratar a arma nuclear como um meio a serviço de um fim. Mas um meio se perde no seu próprio fim, tal como um rio é completamente absorvido no oceano. A bomba excede todos os fins que se possa dar ou encontrar para ela. A questão de saber se o fim justifica os meios tomou-se obsoleta, como tudo o mais. Por que a bomba foi utilizada? Porque ela existia, simplesmente. Sua simples existência é uma ameaça, ou melhor, uma promessa de utilização. Por que o horror moral de sua utilização não foi percebido? Por que essa “cegueira face ao apocalipse?”[12]. Porque, ultrapassados certos limites, nosso poder de ação excede infinitamente nossa capacidade de sentir e de imaginar. E essa distância irredutível, Anders a chama de “decalagem prometeica”. Arendt diagnosticou a enfermidade psicológica de Eichmann como “falta de imaginação”. Anders mostrou que essa não é uma enfermidade de um homem em particular, mas sim de todos os homens, quando a capacidade de fazer, de destruir, toma-se desproporcional à condição humana. Quando Claude Eatherly, um dos pilotos da frota de bombardeiros que destruiu Hiroshima[13], achando insuportável ser tratado como herói por seu país, quando ele próprio estava atormentado pela culpa, passou a cometer pequenos furtos para reivindicar seu “direito a ser castigado”, as autoridades americanas o fizeram passar por um louco irresponsável. Anders iniciou uma correspondência com esse anti-Eichmann, tentando provar a ele que, reagindo segundo as normas da moral ordinária a uma situação que excedia todos os recursos morais, ele se mostrou alguém de espírito são e responsável por seus atos. A analogia de estrutura com a análise que Arendt faz de Auschwitz é evidente. Um grande crime é um atentado mortal à ordem das coisas. A análise do que conduziu a isso revela, no entanto, um encadeamento de atos dos quais cada participante pode, quando muito, ser acusado de “visão curta, negligência” (thoughtlessness).

Anders escreveu: “Entre nossa capacidade de fabricar e nossa capacidade de representar abriu-se um fosso, fosso que aumentará dia após dia”.[14] “O ‘muito grande’ nos deixa frios”,[15] ele sublinha, ilustrando essa afirmativa assim: “Não existe ser humano capaz de representar a si mesmo uma coisa de tão grande atrocidade: a eliminação de milhões de pessoas”[16]. A sequência do filme The fog of war, conseguiu representar, de modo emocionante e terrível, essa impossibilidade de se representar o irrepresentável. Trata-se do bombardeio a Tóquio por meio de bombas incendiárias. Vocês verão ali duas coisas importantes, entre várias outras: por um lado, o embaraço com que McNamara, à maneira de Eichmann, responde a uma interpelação de Errol Morris: eu era uma simples engrenagem em uma megamáquina; por outro, o espantoso retorno da doutrina consequencialista praticada pelo general Curtis LeMay.

A FRAQUEZA DA DISSUASÃO

Da janela do seu compartimento, um homem tinha por hábito jogar um pó caça-elefantes na ferrovia. Quando perguntavam a ele por que fazia aquilo, já que não havia elefantes sobre a via, ele respondia: “Vejam vocês como meu pó é eficaz!”. A lenda segundo a qual a dissuasão nuclear teria, durante meio século, evitado que a humanidade desaparecesse sob um fogo de artifício atômico procede da mesma lógica absurda, como vou tentar mostrar, inspirando-me tanto na filosofia pós-heideggeriana de Günther Anders como no pensamento estratégico o mais analítico.

Um pacifista diria: o melhor meio para a humanidade evitar uma guerra nuclear não seria não dispor de nenhuma arma nuclear? Esse argumento que beira a tautologia era incontestável antes de os cientistas do Projeto Manhattan construírem a bomba atômica.

Lamentavelmente, ele não é mais aceitável hoje. As armas existem e, mesmo supondo que elas cessassem de existir graças a um desarmamento geral, não mudaria em nada o fato de que nós saberíamos reproduzi-las em alguns meses.

No seu documentário The fog of war, Errol Morris pergunta a McNamara o que, segundo ele, explicaria que a humanidade não tenha chegado ao holocausto nuclear durante quase meio século de guerra fria, quando as duas grandes potências nucleares ameaçavam-se permanentemente de destruição mútua. A dissuasão? Que brincadeira! A resposta de McNamara ilustra a extraordinária inventividade na concisão que a língua inglesa manifesta: “We lucked out!”. Nós nos saímos bem por sorte. Vinte e cinco, trinta vezes durante esse período, nós passamos a um fio de cabelo do apocalipse, a um minuto da meia-noite.

Nas minhas próprias pesquisas, tentei dar continuidade às análises de Günther Anders quanto à questão da dissuasão nuclear. Durante mais de quatro décadas de guerra fria, a situação dita de “vulnerabilidade mútua” ou “destruição mútua assegurada” deu à noção de intenção dissuasiva um papel maior, tanto no plano da estratégia como no plano da ética. A essência da intenção dissuasiva está inteiramente contida na seguinte reflexão, feita da maneira mais natural do mundo por um estrategista francês: “Nossos submarinos são capazes de matar cinquenta milhões de pessoas em meia hora. Nós pensamos que isto seja suficiente para dissuadir qualquer que seja o adversário”[17]. Ora, o recurso à categoria da intenção revelou constituir-se como o principal obstáculo à compreensão da dissuasão nuclear.

Em 6 de junho de 2000, em Moscou, Bill Clinton, então presidente dos Estados Unidos, fez a Vladimir Putin mais ou menos este discurso, que, no início de 2007, a secretária de Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice, repetiu: “O escudo antibalístico que nós vamos construir na Europa do Leste destina-se apenas a nos defender contra os ataques de Estados párias (rogue states) e de grupos terroristas. Fiquem tranquilos: mesmo que nós tomássemos a iniciativa de atingi-los com um primeiro ataque nuclear, vocês poderiam facilmente atravessar o escudo em questão e exterminar nosso país, os Estados Unidos da América”.

Essa extravagância revela que as condições nascidas da queda da potência soviética não subtraíram em nada o caráter insensato da lógica da dissuasão. Esta implica que cada nação ofereça sua própria população em holocausto às possíveis represálias da outra nação. Nisto, a segurança é filha do terror. Se uma das duas nações se protege, a outra poderia acreditar que a primeira se acredita invulnerável e, para prevenir um primeiro ataque, deveria atacar primeiro. Essa lógica recebeu um nome apropriado: MAD (“louco”, em inglês), para Mutual Assured Destruction. As sociedades nucleares apresentam-se, ao mesmo tempo, como vulneráveis e invulneráveis. Vulneráveis porque elas podem morrer devido à agressão de um outro; invulneráveis porque elas não morrerão antes de matar seu agressor, um feito do qual elas sempre serão capazes, qualquer que seja a força do ataque que as faça sucumbir.

A doutrina que consiste em utilizar a arma nuclear de modo cirúrgico contra o potencial nuclear do adversário, protegendo-se por meio de um escudo antimíssil, recebeu o nome não menos apropriado de NUTS (“amalucado”, em inglês), para Nuclear Utilization Target Selection. É claro que MAD e NUTS são perfeitamente contraditórias. Aquilo que dá valor a um tipo de armamento ou de vetor em um caso é o que o desvaloriza em outro. Assim, os submarinos permitem tão somente tiros sem precisão e são dificilmente localizáveis. Eles são de pouco interesse para NUTS mas perfeitamente adaptados à MAD, pois têm boas chances de resistir a um primeiro ataque e sua imprecisão faz deles instrumentos de terror.

O problema é que os norte-americanos dizem querer continuar a jogar MAD com os russos e talvez com os chineses, mas praticando NUTS com os norte-coreanos, com os iranianos ou, como já ocorreu, com os iraquianos. Eles precisam mostrar que o escudo que ambicionam construir seria permeável a um ataque russo, mas deteria os mísseis de um estado fanático ou pária.

Que essa loucura, MAD, acoplada ou não a essa extravagância que é NUTS, tenha podido passar como o cúmulo da sabedoria, e que se possa creditar a ela o fato de ter assegurado a paz do mundo durante todo esse período, do qual alguns hoje chegam mesmo a sentir falta, isso ultrapassa o entendimento. Raros, entretanto, são os que se comoveram com isso[18]. É preciso que uma vez mais nos coloquemos a questão: por quê?

Uma resposta frequentemente admitida tem sido a de que se trata aqui, precisamente, apenas de uma intenção, e não de uma passagem ao ato; e, ainda, de uma intenção de um gênero tão particular, que é pelo fato de essa intenção ser explicitada que as condições que levariam a pô-la em execução não estão reunidas. Sendo o adversário, por hipótese, dissuadido, não é o primeiro a atacar – e também aquele que promove a dissuasão não ataca nunca em primeiro lugar, o que faz com que ninguém se mexa. Forma-se uma intenção dissuasiva com o fim de não colocá-la em execução. Os especialistas falam de intenção autoinvalidante (self-stultifying intention)[19]o que apenas dá um nome ao enigma, sem resolvê-lo.

Aqueles que se puseram a examinar o estatuto da dissuasão, tanto do ponto de vista estratégico como moral, encontraram nele uma figura extremamente paradoxal. O que pode fazer a dissuasão escapar da condenação ética é exatamente a mesma coisa que a faz nula em relação ao plano estratégico, pois sua eficácia está diretamente ligada à… intenção que se tem de verdadeiramente colocá-la em execução. Quanto ao ponto de vista moral, como as divindades primitivas, a intenção dissuasiva parece reunir a bondade absoluta, pois graças a ela a guerra nuclear não aconteceu, e também o mal absoluto, pois o ato do qual ela é a intenção constitui uma abominação sem nome.

Ao longo de todo o período da guerra fria, dois tipos de argumentos foram debatidos, argumentos que pareciam mostrar que a dissuasão nuclear sob a forma MAD não podia ser eficaz. A primeira razão correspondia ao caráter não crível da ameaça dissuasiva: desde que o sujeito que ameaça seu adversário de desencadear uma escalada mortal e suicida – se seus “interesses vitais” forem colocados em perigo – seja dotado de uma racionilidade mínima, uma vez que ele seja colocado contra a parede – digamos, depois de um primeiro ataque que destruiu uma parte do seu território -, ele não executará sua ameaça. O princípio mesmo de MAD é a confiança em uma destruição mútua, caso se afaste do equilíbrio do terror. Que chefe de Estado, vítima de um primeiro ataque, não tendo nada mais do que uma nação devastada a defender, assumiria, por meio de um segundo ataque vingativo, o risco de colocar fim à aventura humana? Em um mundo de Estados soberanos dotados dessa racionalidade mínima, a ameaça nuclear não é absolutamente crível.

Entretanto, outro argumento, de natureza muito diferente, foi apresentado. Esse argumento concluía igualmente pela fraqueza da dissuasão nuclear. Para ser eficaz, a dissuasão nuclear deve ser absolutamente eficaz. Com efeito, nenhum fracasso deveria ser admitido, pois a primeira bomba lançada seria a bomba que ultrapassa todos os limites. Mas se a dissuasão nuclear é absolutamente eficaz, então ela não é eficaz. Em geral, uma dissuasão só funciona se ela não funcionar cem por cento. (Pensemos no sistema penal: as transgressões são necessárias para que todos fiquem convencidos de que o crime não compensa. Mas, aqui, a primeira transgressão é a transgressão excessiva.) Portanto, a dissuasão nuclear não é eficaz por uma segunda razão: uma dissuasão que fosse absolutamente eficaz se autoaniquilaria.

O sinal mais flagrante de que a dissuasão nuclear não funcionou é que ela não impediu em nada uma fuga suicida na direção do futuro, com o superarmamento das potências. Ora, na condição de funcionar, a dissuasão nuclear deveria ser o grande nivelador. Como no estado de natureza segundo Hobbes, o mais fraco em número de ogivas nucleares está exatamente no mesmo ponto que o mais forte, pois o primeiro sempre pode causar perdas “inaceitáveis” ao segundo, por exemplo visando deliberadamente suas cidades. A França, sozinha neste caso, fez disso uma doutrina pública, a da “dissuasão do fraco ao forte”. A dissuasão é, dessa maneira, um jogo que se pode jogar – ou que deveria poder ser jogado – com poucas munições de cada lado.

Tardiamente, alguns compreenderam que não é preciso intenção dissuasiva para tornar a dissuasão nuclear eficaz[20]. A simples existência de arsenais se enfrentando, sem que a menor ameaça de os utilizar seja declarada ou mesmo sugerida, seria suficiente para que os gêmeos da violência se mantenham imóveis. O apocalipse nuclear não desapareceria, por isso, da paisagem. Sob o nome de dissuasão “existencial”, a dissuasão apareceu, a partir desse momento, como um jogo extremamente perigoso, consistindo em fazer do extermínio mútuo um destino. Dizer que ela funcionava significava simplesmente o seguinte: desde que não se desafiasse levianamente o destino, haveria uma chance de que este nos esquecesse – por um tempo, talvez longo, possivelmente muito longo, mas não infinito. Como Günther Anders já havia compreendido e anunciado – situando-se, entretanto, num quadro filosófico antípoda do pensamento estratégico -, a partir desse momento nós entrávamos na era do sursis.

Em resumo, acreditando-se na teoria da dissuasão existencial, se a dissuasão nuclear manteve o mundo em paz por um tempo, foi projetando o mal para fora da esfera dos homens, fazendo do mal uma exterioridade maléfica, mas sem má intenção, sempre pronto a liquidar a humanidade, porém, sem mais maldade que um terremoto ou um tsunami, no entanto com tamanha força destruidora que poderia chegar ao ponto de fazer a natureza empalidecer de inveja. Essa ameaça suspensa sobre suas cabeças teria dado aos príncipes do mundo a prudência necessária para evitar a abominação da desolação que teria sido uma guerra termonuclear, destruindo-os uns aos outros e o mundo com todos eles.

Para concluir, gostaria de reler essa teoria, expondo o paradoxo que a constitui e que faz da arma atômica uma espécie de substituto do sagrado.

Retomemos os dois motivos invocados para justificar a fraqueza da intenção dissuasiva. Primeiro, a ameaça não é crível: se a dissuasão fracassasse, não se executaria a ameaça. Em seguida, uma dissuasão perfeitamente eficaz se anularia no paradoxo de autorrefutação: nunca o dissuadido teria a prova de que o dissuasor leva a sério a sua ameaça, no sentido de que ele a colocaria de verdade em execução, se a dissuasão viesse a falhar.

Nenhuma das potências nucleares tem, então, o poder de dissuadir as outras. E, no entanto, todas elas têm interesse em ser dissuadidas. A solução consiste em que, juntas, elas criam uma entidade fictícia, terrível entretanto, um tigre simbólico, disposto a dilacerá-las a qualquer momento, sem nenhuma justificativa ou motivo particular. Esse tigre é, evidentemente, a violência delas mesmas, exteriorizada, coisificada. Podemos chamá-lo Satã, se quisermos, mas este Satã nada mais é do que a projeção, no exterior do mundo humano, de um mal que é propriamente humano. Para escapar do paradoxo da autorrefutação, é preciso que a realidade do apocalipse nuclear seja como um acontecimento inscrito no amanhã, tal como uma fatalidade ou como um destino. É assim que raciocinam os teóricos da dissuasão existencial, usando essas palavras surpreendentes, tratando­se como pensadores ou estrategistas “racionais”. Ora, imaginemos: se esse programa fosse realizado, quer dizer, se o aniquilamento nuclear fosse verdadeiramente o nosso destino, ele também se destruiria na autorrefutação. A condição que torna a dissuasão eficaz contradiz o objetivo que se persegue, que é o de que o apocalipse nuclear não aconteça!

Para sair do paradoxo, é preciso levar a sério, mais do que ele mesmo o fez, aquilo que nos diz Robert McNamara nas suas Memórias ou no documentário The fog of war: muitas dezenas de vezes durante a guerra fria, foi por muito pouco que a humanidade não desapareceu em vapores radioativos. Fracasso da dissuasão? É justamente o contrário: são precisamente essas incursões nas proximidades do buraco negro que deram à ameaça de aniquilamento mútuo seu poder dissuasivo. “We lucked out”, mas foi esse flerte repetido com o apocalipse que, num certo sentido, nos salvou. É preciso acidentes para precipitar o destino apocalíptico. Contudo, contrariamente ao destino, um acidente pode não se produzir.

No coração da dissuasão existencial encontra-se a dialética do destino e do acidente. Trata-se de tomar o apocalipse nuclear como um acontecimento ao mesmo tempo necessário e improvável. Esta figura é assim tão nova? Podemos reconhecer nela facilmente a figura do trágico. Quando Édipo mata seu pai na encruzilhada fatal, quando Meursault, o “estrangeiro” de Camus, mata o árabe sob o sol de Argel, esses acontecimentos surgem na consciência e na filosofia mediterrâneas ao mesmo tempo como acidentes e como fatalidades: o acaso e o destino acabam por se confundir.

O acidente, que aponta para o acaso, é o contrário do destino, que aponta para a necessidade; mas, sem este contrário, o destino não viria a se cumprir. Um discípulo de Derrida diria que o acidente é o suplemento do destino, no sentido em que ele é ao mesmo tempo seu contrário e sua condição de possibilidade.

O que complica o esquema é que, aqui, se trata de um destino que nós não queremos em nenhuma hipótese e que é necessário afastarmos de nós.

O acidente, instrumento do destino ao mesmo tempo que sua negação, nos oferece os meios de o fazermos.

Se nós negamos o Reino, quer dizer, a renúncia completa de todos à violência, resta-nos este jogo arriscado que consiste em jogar constantemente com o fogo: nem muito perto, por medo de morrermos carbonizados; mas também não muito longe, por medo de nos esquecermos do perigo. É necessário, ao mesmo tempo, nem acreditar demais no destino nem recusar excessivamente de nele acreditar: é preciso acreditar no destino exatamente como acreditamos em uma ficção.

A dialética do destino e do acaso nos permite, em princípio, nos mantermos a distância justa – nem perto demais, nem longe demais – do buraco negro do apocalipse. Não podemos perder de vista que esse é o nosso destino, pois é isso que nos dá a motivação e a energia para vigiar – uma vez que não sabemos quando o fim acontecerá, “se à tarde, à meia-noite, ao cantar do galo ou ao amanhecer” (Evangelho de Marcos, 13,35). A necessidade do acidente para que o destino se cumpra é o que nos mantém suficientemente afastados dele.

Ora, essa estrutura é exatamente a estrutura do sagrado primitivo, tal como destacou René Girard[21]: não se deve aproximar demasiado do sagrado porque ele desencadeia a violência. Mas não devemos também nos afastar muito dele, pois o sagrado nos protege da violência. O sagrado contém a violência, nos dois sentidos da palavra.

Entretanto, todo esse edificio repousava sobre premissas que não são mais satisfeitas atualmente, em particular a hipótese hobbesiana de que, nesse estado de natureza que é a pretensa “comunidade internacional”, cada um possui essa racionalidade mínima que constitui o cuidado de manter-se vivo (self-preservation). Na perspectiva de um mundo multipolar, onde dezenas de agentes disporão de armas de destruição massiva e onde alguns dentre eles não hesitarão em “sacrificar-se” para maximizar o mal em torno de si próprios, todo o edifício intelectual, simbólico e institucional que permitiu à humanidade, até o momento, não se autoeliminar na violência essencial deve ser repensado em novas bases.

Em 1958, Günther Anders foi a Hiroshima e a Nagasaki para participar do 4º Congresso Internacional Contra as Bombas Atômicas e as Bombas de Hidrogênio. Durante sua estadia ele manteve um diário[22]. Depois de numerosos contatos com os sobreviventes da catástrofe, ele escreveu: “A constância com que eles não falam sobre os culpados e se calam quanto ao fato de que este acontecimento foi causado pelos homens, não nutrindo o menor ressentimento, mesmo tendo sido as vítimas do maior dos crimes – é demasiado para mim, ultrapassa a minha compreensão”.

E ele acrescenta: “Eles falam constantemente da catástrofe como de um terremoto ou de um maremoto. E utilizam para expressar isso a palavra japonesa tsunami”.

O mal que habita a “paz nuclear” não é produto de nenhuma intenção maligna. No seu livro Hiroshima está em toda parte[23]Anders usa fórmulas terríveis, que nos dão calafrios: “O caráter inacreditável da situação é simplesmente de tirar o fôlego. No mesmo momento em que o mundo se torna apocalíptico, e isto por nossa causa, ele oferece a imagem… de um paraíso habitado por assassinos sem maldade e por vítimas sem ódio. Em nenhum lugar há traços de maldade, só há escombros”. E Anders anuncia: ”A guerra que virá, por teleassassinatos, será a guerra mais desprovida de ódio que jamais existiu na história. […] Esta ausência de ódio será a ausência de ódio mais desumana que jamais existiu; ausência de ódio e ausência de escrúpulo serão apenas uma”.

A violência sem ódio é tão desumana que se torna uma transcendência – talvez a única que nos reste.

Traducão de Ana Maria Szapiro

Notas

  1. Em português: As estruturas elementares do parentesco. Rio de Janeiro: Vozes, 1976, (N.T.) 
  2. Em português: Ensaio sobre a dádiva, Lisboa, Edições 70, 2008. (N. T.l 
  3. Ironia ou cinismo, o bombardeiro B-29, que, em 6 de agosto de 1945, transportou a equipe de cientistas encarregados de estudar as condições e os efeitos da explosão da bomba se chamava Necessary evil (Mal necessário) 
  4. Entrevista de Leo Szilard publicada no U.S. News World Report. em 15 de agosto de 1960, pp. 68-71, sob o título: “President Truman did not understand”. 
  5. G. E. M. Anscombe, “Mr. Truman’s Degree·, in Collected Philosophical Papers, vol. 3, Ethics, Religion and Politics, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1981. pp. 62-71. Texto escrito depois que o presidente Truman recebeu um diploma honorífico da Universidade de Oxford, onde a srta. Anscombe ensinava. 
  6. Ver Gar Alperovitz, The Decision to Use the Atomic Bomb and the Architecture of an American Myth, Knopf, 1995. Ver também Barton J. Bernstein, “A Post-War Myth: 500,000 U.S. Lives Saved”, Bulletin of the Atomic Scientists 42, nº 6. jun.-jul. 1986, pp. 38-40. 
  7. New York Times, 7 de agosto de 1945. 
  8. Ver, por exemplo, Understanding the Atomic Bomb and the Japanese Surrender: Missed Dpportunities, Litt/e-Known Near Disasters, and Modem Memory, Diplomatic History, vai. 19, nº 2. 1995, pp. 227-273. 
  9. Discurso de Frankfurt, 1983, por ocasião da entrega do Prêmio Adorno: Gegen ein neues und endgultiges Nagasaki (“Contra um novo e definitivo Nagasaki”). 
  10. Günther Anders, Die Antiquiertheit des Menschen, Beck, Munich, 1956. 
  11. Günther Anders, Die Atomare Drohung, Beck, Munich, 1981. Aos que possam pensar que é evidente a inspiração sartriana desta proposição, convém indicar que a influência aconteceu em sentido inverso, como Sartre, honestamente, reconheceu. 
  12. Ver Die Antiquiertheit des Menschen. op. cit. 
  13. Ele pilotava o primeiro B-29 da frota de Hiroshima e estava encarregado de verificar se as condições méteorológicas permitiam o lançamento da bomba. 
  14. Estas duas citações encontram-se em Wir Eichmannsiihne, Munich, Beck, 1964, 1988; traduzido para o francês por Sabine Cornille e Philippe lvernel, Naus, fils d’Eichmann, Payot & Rivages, 1999, p. 50. 
  15. Ibid., p. 54. 
  16. Ibid., p. 65. 
  17. Dominique David, então diretor do lnstitut de Stratégie Militaire, citado no Christian Science Monitor, de 4 de junho de 1986. 
  18. Citemos os padres americanos e… o presidente Reagan. 
  19. Gregory Kavka, Moral Paradoxes of Nuclear Deterrence, Cambridge University Press, 1987. 
  20. Bernard Brodie, War and Politics, New York: Macmillan, 1973. 
  21. René Girard. La Violence et le sacré, Paris: Grasset, 1972. 
  22. Hiroshima ist uberall (Hiroshima está em toda parte), Munich, 1982. 
  23. Ibid. 

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