2007

Os desafiso políticos do cinema

por Jean-Michel Frondon

Resumo

O tema  “Os desafios políticos do cinema” é para ser tomado, inicialmente, em dois sentidos: o cinema como o lugar de onde desafiar e interrogar a situação política, e a maneira como a política desafia e trabalha o cinema contemporâneo. Há uma dicotomia entre os filmes com tema político e as implicações políticas do próprio gesto de filmar.

A política da direção cinematográfica não pode ser separada de sua ética: ela transmite ou não dignidade ao que ela representa, assim como também acontece com todas as artes visuais. A maneira de filmar, de oferecer ao espectador a liberdade de exercer seu livre arbítrio ou, ao contrário, a vontade de guiar suas reações, de mandar nas suas emoções e através dessas nos seus pensamentos, está obviamente no cerne da reflexão política sobre direção cinematográfica.

Mas, o que que dizer a palavra política no cinema?

Quando se trata “filmes políticos”, pensa-se primeiro nos que se referem ao poder político. Mas encontram-se exemplos de filmes que tratam de relações de poder, que têm como pano de fundo o meio político mas não apresentam qualquer tipo de discurso político.

Por isso, é necessário devolver à palavra política seu sentido clássico do que “diz respeito à cidade”, do que organiza a vida coletiva num dado momento histórico.

Há também uma outra linha de clivagem, que passa entre os que atribuem à política o objetivo de construir o coletivo, de estabelecer as condições de uma vida em comum, os que concentram a maioria de seus esforços a construir vínculos e os que, ao contrário, consideram que a função principal da política é criticar o estado existente das coletividades humanas.

O cinema é um dos espaços em que, pela presença simultânea das palavras, dos corpos, das narrativas e das emoções, se elaboram confrontações e trocas aptas a fornecer materiais para uma reformulação ou uma reinvenção da política.


A questão das relações entre política e cinema é tão vasta que não se pode pretender, no âmbito de uma conferência, esboçar a totalidade das problemáticas teóricas nem descrever a totalidade de suas modalidades concretas no mundo contemporâneo. O que me proponho a fazer aqui[1] é em primeiro lugar tentar formular uma série de esclarecimentos teóricos a partir do vocabulário usado nessa área, a revelar o sentido ou os sentidos de fórmulas empregadas em volta do tema “cinema e política”, muitas vezes sem medir o que está em jogo, ou correndo o risco de criar confusões. Depois, num segundo momento, e à luz das precisões que, assim espero, terei fornecido, irei propor alguns elementos de descrição de uma parte do cinema contemporâneo, abordagem parcial, portanto, mas que diz respeito a uma fração do mundo que exerce sobre ele uma pressão considerável, já que se trata dos Estados Unidos e da Europa Ocidental.

Obviamente, este título “Os desafios políticos do cinema” é para ser tomado nos seus dois sentidos: o cinema como o lugar de onde desafiar, interrogar a situação política, e a maneira como, em resposta, a política desafia e trabalha o cinema contemporâneo. Esse primeiro desdobramento pede outros.

Para começar, é preciso lembrar a dicotomia bem conhecida que existe entre os filmes com tema político e as implicações políticas do próprio gesto de filmar, assim como da maneira de fazê-lo concretamente em cada filme. A reflexão teórica conduzida há mais de meio século nos Cahiers du cinéma vem privilegiando nitidamente a segunda abordagem: essa revista sempre concentrou seu trabalho nas escolhas dos diretores – conscientes ou não -, nas suas consequências e na sua evolução, quer o tema de determinado filme seja explicitamente relacionado a um tema político ou não.

Essa história é repleta de exemplos que mostram como filmes que defendiam ideias progressistas ou até revolucionárias podiam na verdade ser objetos contribuindo para a reprodução da ordem social e a submissão individual, pela recusa da possibilidade de qualquer participação da parte do espectador, pelo preenchimento de qualquer defasagem interior, de qualquer abertura crítica. Ao contrário disso, no entanto, saíram filmes com um discurso reacionário cuja direção era portadora de interrogação crítica das normas sociais dominantes: de Fuller a Rohmer, os exemplos são numerosos.

A política da direção cinematográfica não pode ser separada de sua ética: ela transmite ou não dignidade ao que ela representa, e por tabela a quem assiste, isto é, ao espectador. Essa problemática diz respeito a todas as artes visuais. Ela é presente desde o nascimento da pintura e do teatro, mas assume uma nova configuração no caso do cinema, pois este consiste na gravação em quatro dimensões (na duração, também) de seres reais: humanos, animais e coisas. A maneira de filmá-los, e a maneira, filmando-os, de oferecer ao espectador a liberdade de exercer seu livre arbítrio ou, ao contrário, a vontade de guiar suas reações, de mandar nas suas emoções e através dessas nos seus pensamentos, está obviamente no cerne da reflexão política sobre direção cinematográfica.

Essa dupla problemática (De que falam os filmes? Como falam?) continua pertinente hoje em dia.

É preciso acrescentar outra interrogação, outra clivagem, relativa desta vez não à palavra cinema, mas à palavra política. De que estamos falando quando a empregamos aqui? A confusão é real e, até certo ponto, desejável. Quando falamos em “filmes políticos”, pensamos primeiro nos que se referem explicitamente ao poder, aos dirigentes de grupos sociais, e, especificamente, dos nossos: se mostrássemos o que fazem presidentes, ministros, reis, ditadores, grandes empresários, partidos políticos ou grupos de pessoas organizadas para pesar sobre o funcionamento da sociedade, teríamos obrigatoriamente filmes com tema político. Mas, por exemplo, Diabo a quatro, de Leo MacCarey, com os Irmãos Marx, que trata de relações de poder, de diplomacia, em que uma potência declara a guerra a outra etc., é um filme político, então? Talvez não. Não porque se trata de uma comédia (O ditador de Chaplin também é, e seguramente é um filme político), mas porque não há nele nenhum discurso político, embora suas personagens tenham profissões e atividade no meio da política.

Pensamos também em apresentar na retrospectiva que acompanha esta conferência O andarilho do campo de Marte, de Robert Guédiguian, cujo protagonista é o presidente da República francesa, François Mitterrand, nos seus últimos anos no poder. Desisti de incluí-lo porque me parece que esse filme não possui nenhum discurso político. Ele aborda o tema de um homem diante da morte, sua problemática é psicológica e, numa certa medida, religiosa. Por sua vez, A comédia do poder, de Claude Chabrol, em que todos os protagonistas têm pessoalmente e profissionalmente a ver com a política, me parece caber totalmente nesse contexto, na medida em que o filme questiona nossa relação pessoal e, enquanto espectadores, de filmes com a narrativa política.

Na reflexão sobre o tema cinema e política, essa acepção digamos profissional ou técnica da palavra política não pode ser descartada em hipótese alguma. Porém, faz-se necessário e é mais importante devolver à palavra política seu sentido mais essencial e mais vasto, seu sentido clássico do que “diz respeito à cidade”, do que organiza a vida coletiva num dado momento histórico. Há que fazer aqui uma nova distinção, uma outra linha de clivagem, que passa entre os que atribuem à política o objetivo de construir o coletivo, de estabelecer as condições de uma vida em comum, os que concentram a maioria de seus esforços a construir vínculos e os que, ao contrário disso, consideram que a função principal da política é criticar o estado existente das coletividades humanas e que trabalham a colocá-la em crise.

Jacques Rancière faz dessa ideia o próprio sentido da palavra “política”, entre outros no seu recente livro La haine de la démocratie (O ódio da democracia, N.D.T), definida pelo excedente, o que excede o sistema: por esse ângulo, Platão não é um pensador político, nem Maquiavel ou Max Weber. Rancière, ainda ele, também mostrou em outro livro recente, Malaise dans l’esthétique (Mal-estar na estética, N.D.T.), como se pode dividir a criação artística, assim como a postura adotada pelos artistas desde o século XIXentre dois polos diferentes, dependendo se esses entendem ou não que suas obras não são meros objetos de beleza, mas exercem uma influência sobre o mundo. Uma dessas tendências atribui às obras a construção de possíveis maneiras de “estar juntos”, procurando suscitar o compartilhamento do espaço público pela criação de formas que aproximem os indivíduos, graças à comunidade de emoções compartilhadas; outra tendência, oposta, procura antes colocar em crise o que serve de referência comum, sempre considerado como herança de uma ordem social existente e má. Nessa tendência, a tarefa da arte é de criar um distúrbio, se possível abrindo um abismo. Para me limitar ao cinema, encontram-se sem dificuldades exemplos desses dois polos. Com meios estéticos e com ideias muito afastadas da sociedade e do lugar que nela a arte deve ocupar, aliás, dois grandes defensores da democracia que são John Ford e Jean Renoir, e também uma propagandista da ditadura como Leni Riefenstahl, fizeram filmes que tendem a estruturar e cimentar as coletividades, ao passo que Jean Vigo, Luís Buñuel ou Eric von Stroheim conjugaram encenação e questionamento como duas modalidades necessariamente simultâneas na prática artística do cinema.

Na história moderna do cinema francês, parece-me que os dois irmãos que se tornaram inimigos, François Truffaut e Jean-Luc Godard, podem ser tomados como as figuras emblemáticas dessa divergência, aquele que sempre procura como duas pessoas se aproximam o suficiente para formarem uma só e aquele que procura sem parar como um se divide em dois. Truffaut é exemplarmente o autor de um cinema de construção de um espaço conjunto e Godard, o autor de um cinema de crítica dos espaços comuns existentes. Ao meu ver, ambos pertencem à política, e essa chave de leitura pode ser usada para muitos filmes, inclusive para os realizados por autores muito menos inspirados do que esses dois. Lembro que nenhum desses dois “campos” considera o estado do mundo e das relações humanas como algo adquirido indiscutivelmente nem como algo óbvio: ambas as abordagens pressupõem uma insatisfação com a realidade. Para reintroduzir o vocabulário político, poderíamos dizer que um é reformista e o outro revolucionário. Em ambos os casos, trata-se de política.

Após essas generalidades, chego agora a um panorama da situação do cinema atual, como ela pode ser considerada à luz dos enquadramentos que tentei fazer há pouco. Só vou descrever de leve essa “situação atual” por falta de tempo e de competência em certas áreas. Vou me limitar de fato essencialmente à Europa ocidental e aos Estados Unidos. Evitarei concretamente falar da situação latino-americana em geral e da brasileira em particular, porque as conheço muito pouco. Se conheço melhor a situação asiática, entram tantos fatores singulares que seria preciso dedicar uma conferência inteira às manifestações da modernidade e da globalização nos cinemas do Extremo Oriente: seria um ótimo assunto.

Mas, para voltar à esfera político-cultural que estou evocando aqui, a relação entre cinema e política pode aparentemente ser modelizada a partir de reações diferentes a dois eventos. Estas duas regiões, Estados Unidos e Europa, assimilaram o que ficou simbolizado, de maneira nada inocente e até bastante perversa, pela queda do Muro de Berlim, mas que é muito mais do que isso: a queda da hipótese de vários grandes modelos concorrentes de organização social como esquema diretor da organização humana. O que desaba na Europa e nos EUA no decorrer dos anos 1990 é a crença em grandes modelos e a possibilidade de construí-los a partir de um modelo teórico e graças a uma vontade coletiva motivada. Essa relação é substituída por maciçamente uma abordagem empresarial de melhoras possíveis, de acertos de todos os tipos (humanitário, social, científico, jurídico etc.), com uma melhor governança, baseada na moral, no bom senso e na eficácia.

No âmbito artístico e especialmente na área da criação de narrativas e de formas cinematográficas, uma relação desse tipo com o mundo social impede o surgimento de grandes formas, de grandes narrativas, de uma visão épica. O grande espetáculo não some por isso, mas as grandes narrativas estão desaparecendo. A explosão concomitante dos efeitos especiais substitui o fôlego da narrativa épica pelo deslumbramento com as pirotecnias, a serviço de tribulações fragmentadas, desarticuladas, e que muitas vezes nem escondem que são mero pretexto a essas demonstrações de explosões visuais e sonoras. Um contra-exemplo significativo é o do maior sucesso comercial de todos os tempos no mundo inteiro, que foi realizado nesse período: Titanic é uma “grande narrativa” no sentido de Jean-François Lyotard, mas é a grande narrativa de um naufrágio. O filme de James Cameron é a ampla lamentação melancólica dedicada à catástrofe que inaugura um século que termina no momento em que o filme é realizado. Catástrofe que culmina no afogamento do jovem herói portador dos sonhos dos fundadores do futuro. Essa relação com a política como desvalorização das grandes narrativas fundadoras e das escatologias políticas, que modelizou o cinema dos anos 1990 na esfera europeia e norte-americana, continua dominante na Europa hoje. Não é exatamente a mesma coisa nos Estados Unidos por causa do 11 de setembro.

Esse evento afetou profundamente os Estados Unidos e muito pouco a Europa, a julgar pelo que vemos nas telonas, pelo menos até hoje. A destruição das torres do World Trade Center transformada em ícone (assim como a destruição do Pentágono pelo terceiro avião do 11 de setembro, recalcada, escondida na encenação da memória coletiva pelo poder) marcou o início de uma nova era no imaginário americano, que pode ser caracterizada por três elementos:

1) Reinseriu brutalmente o país num mapa do mundo complexo e perigoso, onde verdadeiros inimigos podiam atingir a nação mais diretamente, mais visivelmente, que os dois inimigos reais e fantasmáticos ao mesmo tempo que os Estados Unidos se deram sucessivamente jamais tinham conseguido. Inimigos graças aos quais vinham se construindo como coletividade há setenta anos: os do Eixo na Segunda Guerra Mundial e depois os “vermelhos” (mistura do império russo como grande potência inimiga e dos comunistas, de onde quer que sejam, como entidade difusa) durante a guerra fria. O 11 de setembro evidenciou que havia verdadeiros inimigos lá fora, e que, além do mais, não se entendia muita coisa, o que não era previsto nos grandes esquemas ideológicos em vigor. Nada como um “grande inimigo” para fabricar uma “grande narrativa”.

2) Efeito colateral do 11de setembro, a guerra no Iraque e sobretudo o fracasso americano numa vitória completa, rápida e “limpa” traziam de volta os ecos do Vietnã, notadamente da produção de imagens e de ficções que essa guerra tinha inspirado. Na época, quase inteiramente depois do fim da guerra; dessa vez, a quente. Diretores, roteiristas, produtores: a maioria das pessoas que participaram da construção de imagens e de narrativas no momento da guerra do Vietnã continua em atividade em Hollywood. Syriana, Munique, As Torres Gêmeas, mas também de maneira mais metafórica Marcas da Violência, de David Cronenberg, ou O Novo Mundo, de Terence Malick, por exemplo, ou então filmes de gênero (horror e fantástico), constam entre as primeiras manifestações recentes dessa reação.

3) É preciso acrescentar um fenômeno concomitante: o duplo trancamento político e midiático do país. O controle do processo eletivo pela diarquia Republicanos/Democratas e a perda de credibilidade do sistema, em que menos da metade dos eleitores vota, sem contar o domínio sobre as grandes mídias audiovisuais, que tinham desempenhado na época do Vietnã um papel de contrapoder hoje desaparecido, enquanto CNN e à sua direita Fox News estão remodelizando o tratamento da atualidade por todos os grandes canais, fazendo do cinema documentário um refúgio para a expressão de outros pontos de vista. Num sistema mais democrático, Michael Moore seria candidato a um cargo de governador ou de senador, Greenberg e os outros diretores dos numerosos documentários críticos sobre o roubo que provavelmente foi a primeira eleição de Bush, as pseudo-armas de destruição maciça de Saddam Hussein, as cadeias de Abu Ghraib e de Guantánamo, estariam trabalhando para a televisão.

A Europa e o cinema europeu não vivenciaram o 11 de setembro como uma reviravolta na sua relação ao mundo. É por isso que continua prevalecendo lá a relação com a política inaugurada pelo fim dos grandes modelos alternativos, tenham sido eles projetados naquela época sobre situações existentes (na URSS, na China, em Cuba etc.) ou esboçados unicamente nos mapas da utopia. Esse campo foi abandonado pelas grandes representações, mesmo que ainda vaguem lá fantasmas às vezes simpáticos do período anterior: penso, por exemplo, no filme que ganhou a Palma de Ouro no último Festival de Cannes, O Vento que Balança a Cevada, de Ken Loach, filme que só quer falar de política e é desprovido de qualquer problemática política contemporânea. Ao vão filme de Loach eu gostaria de contrapor o melancólico e obstinado Homem Sem Passado, de Aki Kaurismaki, que com humor e generosidade mantém acesa a chama da ideia atrás dessas construções hoje abandonadas. Esse espaço não está vazio, aliás, mas desestruturado: o belo Caimão, de Nanni Moretti mapeou recentemente esse território desolado. Nesse ambiente em estado calamitoso, eu gostaria, para terminar, de salientar duas categorias de filmes, uma majoritária, outra minoritária, pelas quais a questão política, no entanto, perpassa.

O primeiro grupo, o mais importante, é aquele que, após o desabamento dos discursos e das ambições coletivas, transformou a família na metáfora minimalista de um grupo humano estruturado. A família é uma estrutura política, uma das mais arcaicas, e volta a ser uma referência quando os outros modelos de relações humanas perdem sua credibilidade. E, de fato, as famílias são as personagens essenciais do cinema atual, e, dentro da família, o tema arquidominante não são as relações de casais nem de irmãos, mas as de pais e filhos. A relação de filiação é por excelência o vínculo social não-político no sentido de Rancière, no sentido em que ela não é objeto de debate: ela se impõe, e se for rompida só se tratará de restabelecê-la. Ela é o que vem da natureza, o que supostamente “seria óbvio” pelas leis do sangue e as da tradição. Antes do 11 de setembro, o diretor mais poderoso do mundo, Steven Spielberg, tinha feito do horizonte da recomposição familiar o motor essencial de todos os seus filmes sob várias configurações, mostrando na ocasião que é muito possível realizar um “grande espetáculo” com esse assunto íntimo.

A partir daí, o questionamento dessa relação, vivida e apresentada por tantos filmes como indiscutível e a ser restabelecida com urgência se porventura um acidente ou qualquer loucura a rompeu, se torna um marcador político poderoso. Entre os filmes franceses importantes desses últimos anos, Léo Reis e Rainha, de Arnaud Desplechin; O Intruso, de Claire Denis; Clean, de Olivier Assayas, oferecem exemplos fortes e muito diferentes desse questionamento do vínculo adquirido e indiscutível. É também o que fazem, por exemplo, os irmãos Dardenne em A Criança ou Ingmar Bergman em Saraband. Observar hoje como os filmes usam o recurso da família se tornou um critério muito eficiente de apreciação de sua relação com a política.

Esses filmes com problemáticas familiares condensam uma interrogação mais vasta, que é a do destino já traçado, do papel programado (questão que vem da tragédia antiga, do fatum, e que se reescreve no presente através dos modelos dominantes da propaganda e das séries televisivas – mais previsíveis do que os antigos deuses – e sobretudo do software, versão contemporânea e industrial-comercial do destino). A escapada de jovens em direção à arte depois do fracasso da insurreição de Maio de 68 em Os Amantes Constantes, de Philippe Garrel; as duas mulheres juízas da Comédia do Poder, de Claude Chabrol, desamorçando ao mesmo tempo as manobras dos poderosos que elas atacam e as expectativas programadas do espectador de uma palhaçada política; o insustentável papel de herói de um romance de aprendizagem que incumbe ao Pequeno Tenente no filme homônimo de Xavier Beauvois; a incerteza e a reversibilidade que presidem a Traição – até o sentido da própria palavra que serve de título ao filme de Philippe Faucon: são outros exemplos desse questionamento da obediência a um modelo preestabelecido ou de busca de um outro possível – quer este tome a forma de uma ruptura ou de uma melhor recomposição do lugar compartilhado, repito isso.

Terminarei mencionando brevemente um outro grupo de filmes, importante para mim, mesmo que não agregue muitas produções, e que coloca seu questionamento – ou seja, também sua narrativa – na encruzilhada de duas problemáticas: a problemática da confrontação com o outro e a problemática da linguagem. O exemplo mais claro é evidentemente A Esquiva, de Abdel Kechiche, que faz representar por marginalizados pelo sistema – adolescentes franceses de periferia, em sua maioria oriundos da imigração árabe – essa dupla relação com a língua francesa através da gíria dos conjuntos habitacionais e da língua rebuscada do século XVIII numa peça de Marivaux. Kechiche faz trabalhar juntos, sem antagonismo predeterminado, com uma abertura devolvida ao espectador, essa diferença essa semelhança. Um questionamento muito similar pode ser encontrado em Instantes de Audiência, o documentário de Raymond Depardon sobre a justiça, em que estão em jogo diversas estratégias de expressão. Outros filmes recentes importantes (penso, por exemplo, em Ferida, de Nicolas Klotz) também trabalharam esse duplo questionamento, que reinjeta política na aproximação da defasagem, da diferença e da palavra como meio de construção de um espaço comum.

A questão da família e a questão do “outro”, na maneira como a relação com a língua o modeliza, não são os únicos horizontes políticos do cinema contemporâneo, é claro. Vejo nela, no mínimo, linhas de reflexão particularmente fecundas, seguidas por um número significativo de filmes. Essas duas abordagens têm em comum não poder usar muito a herança do discurso político, que se construiu em grande parte nos séculos XIX e XX, a partir de outras premissas. Talvez seja para esta reflexão uma oportunidade de poder recomeçar com bases relativamente novas. Digo isso com toda a modéstia necessária: se falta à Europa hoje um projeto político de grandes ambições, motivador, isso não quer dizer que o cinema possa lhe dar um – aliás, não é seu papel. Mas o cinema é pelo menos um dos espaços – e talvez até o espaço por excelência – em que, pela presença simultânea das palavras, dos corpos, das narrativas e das emoções, se elaboram confrontações e trocas aptas a fornecer materiais para uma reformulação ou uma reinvenção da política.

Tradução de YveA Bergougnoux

Notas

  1. Lembrete: essa conferência, apresentada no quadro de um ciclo proposto por Adauto Novaes sob o título geral “O esquecimento da política” em agosto-setembro de 2006era acompanhada de um programa de nove filmes, mostrados em cinco capitais brasileiras, programa que também concebi. Os filmes apresentados e aos quais me refiro abaixo são:

    A Comédia do Poder, de Claude Chabrol,

    Os Amantes Constantes, de Philippe Garrel,

    A Esquiva, de Abdelatif Kechiche,

    A Traição, de Philippe Faucon,

    Reis e Rainha, de Arnaud Desplechin,

    O Pequeno Tenente, de Xavier Beauvois,

    Instantes de Audiência, de Raymond Depardon,

    A Criança, de Luc e Jean-Pierre Dardenne e

    O Homem Sem Passado, de Aki Kaurismaki.

    O conjunto dessa operação não teria visto a luz sem o ágil e cúmplice apoio do Consulado Geral da França no Rio e do adido audiovisual francês, Christian Boudier. 

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