2010

Os contornos indeterminados do moderno

por Claude Imbert

Resumo

Moderno é uma qualificação cuja origem é filosófica mas atravessou todo o campo da vida cultural que reivindicava a gestão do novo. Como testemunho, no século XVII, a disputa entre os Antigos e os Modernos, logo ultrapassada pela apropriação científica da modernidade: a ciência reivindicava ser a melhor candidata para definir e redefinir os limites da modernidade. Com a ciência, o século XIX encontrou seu equilíbrio ao relegar as ciências humanas à tradição das humanidades. Assim, o moderno desenhou uma trajetória que se queria gloriosa. Isso foi, no século XX, ironizado. Tempos Modernos era uma expressão de escárnio, tendo o filme de Chaplin dado o tom. Atualmente, o uso impôs a inversão do sentido: Jamais fomos modernos é o título de Bruno Latour que marcou época. Melhor se dizer intempestivo (Nietzsche) ou anacrônico (G. Didi Huberman). O pós-moderno deveria ter encerrado esse capítulo, mas tal marco, emprestado da arquitetura, não convence. Da mesma forma, recorre-se a uma configuração dramática: a da crise, que se trata de uma comodidade de linguagem da qual é preciso mostrar o caráter obsoleto, caso se queira abrir uma perspectiva totalmente diferente. É o que se fará em três tempos: esboçar um problema, apoiar-se em um passado recente, propor uma hipótese.

1. O moderno é um processo, um parafuso sem fim. No pós-guerra imediato, a revista fundada por Jean-Paul Sartre com o título Temps Modernes, propunha um desafio. O problema tomou forma nas décadas seguintes.

2. Merleau-Ponty e Lévi-Strauss foram solidários em um empreendimento audacioso na contracorrente. Trataram de livrar o pensamento de uma norma fenomenológica, restos de um helenismo exangue. Ambos denunciaram a impostura de uma subjetividade constituinte. Para Merleau-Ponty, tratava-se de uma percepção e de uma porosidade com relação ao ambiente que perturbava, de maneira audaciosa, as fenomenologias enlutadas e complacentes. Há que se recordar como, por meio da experiência da pintura, entrava-se na textura mutável do real. Para Lévi-Strauss, um método precipitadamente chamado de estruturalista erodiu as certezas e deu lugar a um saber antropológico. Esse conhecimento mostra-se complementar às tentativas de Marcel Mauss de compreender as trocas de inteligência simbólica, o que, enfim foi anunciado como uma promessa não cumprida no seu Ensaio sobre o dom. Nenhuma filosofia contemporânea pode ignorar isso.

3. Auguste Comte tinha a crise política por experiência. A geração do pós-guerra havia assumido um risco de uma experiência fundamental do pensamento com a qual o próprio pensamento é colocado à prova, renunciando à cartografia das faculdades e reconhecendo que a inteligência não precede a produção dos meios e figuras de inteligibilidade. De encontro à expectativa de uma história universal, a globalização exibe ritmos heterogêneos, o processo da modernidade não é redutível à invenção dos regimes de decisão, a linguagem universal é um mito do século XIX, o reducionismo dá lugar à complexidade. Não se falará mais de determinismo, mas de uma indeterminação positiva, animada por processos imaginários, entremeada de dimensões insólitas, que ilustra, quem sabe, o que Merleau-Ponty chamava de linguagens indiretas. Aqui o aleatório alimenta  a imanência, a micro história encontra a antropologia, configurações sociais mutantes manifestam um líquen de humanidade imprevisível e de modos de inteligência sem precedentes. Com eles, nossas instituições encontram suas especificações. Nossas artes reabilitam o desempenho. Somos convidados ao presente de uma antropologia em movimento.


I

O conceito de moderno entrou na berlinda. Ou então, para melhor renegá-lo, atiram ao mesmo tempo na época, no fracasso da empreitada e na amargura pelas esperanças decepcionadas. Seria melhor se livrar do moderno e para isso bastaria o pós-moderno. Ou nem teríamos chegado lá: Jamais fomos modernos (1989). Bruno Latour opunha nessa obra o galileísmo experimental de Boyle, o cansativo acerto da bomba de vazio, o tipo de argumentação indutiva e de assentimento coletivo que ela produziu, ao raciocínio político de Hobbes. Daí, concluímos que a maneira como os homens são governados e como isso é retratado na história passou longe da modernidade. Mas o Leviatã também era uma máquina galileana: ele propiciava a Hobbes uma entrada dedutiva, nem que seja para acompanhá-la de uma retórica de imagens retiradas da iconografia dos Juízos Finais. No século XVII e numa sociedade exposta às discórdias religiosas e civis, o galileísmo alimentara os contrários. Os tempos chamados de modernos mantinham sua ambiguidade.

Ousemos mais um passo. Quando questionam o moderno hoje, o que é almejado que não se consegue esquecer? Se ele foi uma ilusão, por que é remanescente a tal ponto que seja preciso polemizar? E se o pensamento em si for uma experiência, então o tema que nos reúne hoje talvez possa ser o verdadeiro lugar deste moderno contestado. Nem dispositivo técnico manipulador de coisas, nem evento da história, ambos se conjugando para exercer sua tirania sobre nossa impotência: tratar-se-ia do que testa uma inteligência confrontada com uma incessante reconfiguração do real.

Modernidade, a palavra vem de Balzac, para uma comédia humana na qual ele distribui papéis e cenas, final grandioso de um esquema clássico, trabalhado desde Dante e até Molière e os trágicos franceses. Vida moderna é provocador, antecipando o enxerto paradoxal de uma moda sobre uma fisiologia. Beaudelaire pedia desculpas por ela, que não nos espanta mais hoje. Fica uma consequencia imediata, que lhe dava um tom de injunção: ninguém é habilitado a desprezar sua época. Menos de um século mais tarde, Merleau-Ponty a transformou no seu protesto: temos apenas as palavras da filosofia de ontem, nada para hoje nem para amanhã, dizia ele. Porém, já estamos neste amanhã. Experiência de pensamento é um escândalo para alguns cartesianos, que contrapõem uma realidade substancial e uma cadeia de ideias claras e distintas. Para outros cartesianos, fazer justiça às operações do primeiro modernismo consiste em primeiro lugar em não temer modificá-las. Foi nisso que se envolveram no pós-guerra, em meados do século passado, alguns filósofos franceses, entre eles Lévi-Strauss e Foucault. Estes ficam lhes devendo a estada que passaram no Brasil. Aproveito com gratidão a ocasião que vocês me dão de voltar sobre este passado e de torná-lo atual.

Quando o pensamento fica preocupado com seus próprios mecanismos, há muito em jogo para a filosofia. De meados do século XX até suas últimas décadas, esses filósofos alongaram a lista dos adjetivos cujo uso Baudelaire começara a deturpar. Queriam relegá-los, decretando se tratar de virtuosismo de escritores, quando eram na verdade dissidências meditadas, fora de uma norma que os gregos chamaram filosofia, o século XVII chamou pensamento e o neoclassicismo – entre Lambert e Kant -, fenomenologia. Um século e meio mais tarde, chegara a hora de deixar sem volta uma expressão de primeira ordem, um comércio controlado dos conceitos e das coisas, outrora fixado como experiência. Em 1945, uma revista, Les Temps Modernes, fixou exatamente isso como desafio, que ia demorar a ser alcançado. Como, de fato, dentro de um pensamento clássico no qual os protagonistas Sartre e Merleau-Ponty foram criados e escreveram seus primeiros livros, confessar um desgaste, descobrir um enquadramento desalinhado, dimensões inadequadas e, para começar, se recusar a se perder em reclamações tristonhas? Nas duras condições do pós-guerra, sabendo que o desastre fora pressentido nos anos 1930 sem que se soubesse como preveni-lo, será que haveria uma saida entre a afasia de uma filosofia incapaz de pensar a história, como ela tinha proposto fazer, e a retomada de topoi sobre a existência, a angústia e o absurdo, que não enganavam mais ninguém? Assim concluía a Fenomenologia da percepção. Antes da Segunda Guerra Mundial, um romance de Raymond Queneau, Le chiendent (1933), traduzira Heidegger usando a veia cômica. Nos anos 1940, a ficção romanesca já não bastava mais. De Entre quatro paredes até Os sequestrados de Altona, o teatro de Sartre descreveu o confinamento mental que a sua geração havia herdado. O ser e o nada dizia no próprio título o quanto o pêndulo filosófico estava fora de compasso.

A empreitada do moderno ia ter de enfrentar sua renegação, nas palavras e nos temores. Quanto aos temores, houve uma retração forte em relação a uma primeira evidência. Ocorreu ou uma desconstrução, levada até seu ponto de inércia: a nominação de um Ser sem qualidades nem movimento, indiscernível do niilismo, ou uma busca, a de uma fórmula elementar, substituindo na lógica kantiana apenas o necessário para dar continuidade ao criticismo. O programa russelliano sofreu desde então todas as consequências e decepções por ter sido usado num sentido deturpado[1]. Quanto à palavra em si, moderno, seria preciso desconsiderar uma opção ainda dominante, que remetia ou à natureza ou à história. A dicotomia conheceu, porém, algumas exceções perturbadoras. Falou-se em crise, termo empregado para um processo natural, hipocrático ou cíclico, cuja resolução é aguardada nos mesmos moldes naturalistas, acrescentando no máximo fatores meteorológicos. Acontece que o diagnóstico foi muitas vezes decepcionante, e não vale a pena se deter nisso. Pós-moderno quis despachar este naturalismo de maneira barata. Tudo isso poderia, dizem, ser colocado no calendário de uma história universal qualquer, a qual já viu passar muitas outras noções. Tudo poderia se resolver como um simples caso sucessório, a crise desempenhando a função de Purgatório.

De que moderno estavam falando, afinal? De um moderno acreditado pelas “grandes descobertas”, por empreendimentos civis nos quais ciências e indústria coincidiram durante um tempo, ou destes Tempos Modernos evocados por Charlie Chaplin, que a revista de Sartre reforçava com suas provocações? Moderno não designa nada, ele qualifica. Baudelaire falou isso sobre a vida em si, Merleau-Ponty sobre a pintura de Cézanne, e Descartes desta álgebra que distinguia os matemáticos gregos de seus contemporâneos: Viete, Desargues ou Mersenne. Que um pintor, um poeta ou um cientista seja necessário e isso envolve um estilo, um método, uma efetividade, um programa onde se constrói o inteligível. Quando a arquitetura nova-iorquina do fim do século XX foi qualificada de pós-moderna, era para singularizar um design, que estaria substituindo por motivos ecológicos as construções de vidro e aço, do mesmo jeito que essas tinham rivalizado com os projetos cenográficos de arquitetos formados pela École des Beaux-Arts. Ver nessa singularidade um período histórico seria uma contradição, ao desviar uma invenção ligada às exigências de uma economia urbana para avalizar o último espírito da época nos trajes da desordem e da ausência de método, ou seja, o oposto da intenção inicial.

Qualificativo aderente, moderno indica uma negociação afetiva, com trocas entre o inteligível e o real. Ele abre um direito de continuação e é aí que toma sua dimensão filosófica. Foi para isso que Valéry mobilizou muito cedo seu Monsieur Teste, que teria desistido do critério cartesiano da evidência, um Leonardo da Vinci que teria lido Poincaré, um Degas conversando com as crônicas de Mallarmé[2]. Todos conspiravam a favor de um realismo solidário de seus mediadores: imagens, diagramas e linguagens heterogêneas, que são mais numerosas que o previsto, o que é melhor para nós. Qualquer equação fenomenológica entre as palavras e as coisas ficava marcada pelo arcaísmo; a apreensão do real exigia filtros mais sofisticados. Renunciava-se a fixar este moderno incessante em algum lugar do calendário histórico, para entrar na produção do inteligível, isto é: uma sobrevivência pautada pelos três humanismos propostos por Lévi-Strauss[3]. Nela, Baudelaire, o poeta maldito, mudara de identidade.

Proponho-me a estudar esta adjetivação do moderno através de alguns casos, a fim de identificar intervenções locais, criações oportunas, pontos de não retorno, e de não ceder à técnica como a um novo “argumento dominador”. (Os estoicos tinham na sua época refutado o fascínio do destino, que funcionava então nos termos de um argumento dominador que também chamavam de argumento preguiçoso.) Alguns nomes próprios, familiares e clássicos, nos ajudarão. Empreenderam, com resultados diferentes, uma operação à qual nos cabe dar prosseguimento. Wittgenstein também poderá nos ajudar na demonstração[4].

II

Para os matemáticos, moderno é um qualificativo endógeno, quase redundante. Seu saber se estabelece no seu próprio presente; desde o século XVII, ele serviu de norma não contestada do moderno, como se dele fosse o provedor e o operador eminente. Descartes associa a análise dos antigos à álgebra dos modernos. Nada que seja interno à matemática; ele não dependia de nenhuma outra instância que julgaria de sua validade. Quando Cavailles se debruça sobre a gênese da teoria dos conjuntos, o lado dramático da crise das ciências está dissolvido, explicitado em algumas operações atribuíveis, “com os meios comuns dentro da disciplina”.

Em ambos os casos, novos pensamentos eram solidários com novas maneiras de escrever, perfeitamente controláveis, chamadas para resolver problemas recentemente propostos. No século XX, porém, as consequências cruas do galileísmo se impuseram. Se, como dizia o físico florentino, a natureza está escrita em signos matemáticos, a teoria dos conjuntos e seus princípios de extensão pediam mais cedo ou mais tarde uma sintaxe que recusaria a simples equivalência com uma língua predicativa. Estavam sendo afastados a maneira como os Elementos euclidianos acompanhavam suas construções de uma demonstração discursiva, um cogito certificando enquanto ordem e método a certeza da matemática, ou a assimilação entre o conceito e a função, pela qual Kant renovara o contrato discursivo dos antigos. Quando a teoria dos conjuntos definiu suas operações e uma sintaxe à altura de suas transformações, ela as integrou como uma parte sua. Foi nesse ramo da matemática que Gödel, para relembrar sucintamente, colocara nos anos 1930 o conteúdo e o local de aplicação de seus teoremas. É nele também que Cavailles identificou uma experiência fundamental do pensamento. A matemática procurava suas comprovações e operações fora da cosmologia física. Simultaneamente, as analogias com as quais a filosofia confirmara seu realismo, seguido dos princípios da existência, perdiam em verossimilhança. Incapaz de sustentar suas proposições, mesmo assegurando sua proximidade com o presente inventivo da matemática, a filosofia estava entregue a si mesma. Uma desmobilização perturbadora atingia os artigos de uma fenomenologia da experiência. A primeira resposta fora um recolhimento sobre figuras discursivas minimais – Husserl e Russell brigavam pelo legado do kantismo[5]. Era impossível deixar de ver por muito tempo que a regra e o compasso de Euclides, a epistemologia dos Elementos e as fórmulas funcionais da matemática recente tinham seu lugar numa construção do inteligível, com uma dimensão antropológica e ainda inexplorada como tal. Frege, e mais tarde Cavailles, suspeitaram de algo neste sentido[6] Experiência fundamental do pensamento seria doravante um manifesto filosófico e uma senha para o pós-guerra.

III

Da matemática à pintura, o passo pode parecer muito grande, porém somente para quem não sabe que Merleau-Ponty fora o discípulo mais próximo de Cavailles antes da Segunda Guerra Mundial. Em 1945, parecia que a modernidade tinha de ser política; Merleau-Ponty se envolveu nela de cabeça. Criticaram sua “bela alma”, ele atacou as ideologias reduzidas a argumentos para não perder a honra. Constatando logo a resiliência de uma filosofia inextensível, As aventuras da dialética (1953) diagnosticavam esgotamento e repetição. Perseverar seria uma impostura filosófica. Simultaneamente, abrindo em outro lugar o que se fechava no filosófico, Merleau-Ponty revelava o que na pintura moderna forçara as constrições da estética. Ainda não se suspeitava por que e como esta pintura moderna, concebida a partir de alguns quadros de Cézanne que já não chocavam mais, seria uma arma filosófica para se desprender da celebração fenomenológica do mundo que devia ser a percepção. Pintura moderna é um conceito filosófico, ele não tem lugar no calendário dos historiadores, que contestariam suas datas: por que, de fato, Cézanne antes que Manet, Monet ou Picasso? Ele estava substituindo o encontro assintomático entre palavras e coisas, uma fenomenologia que esgotara seu sonho (Der Traum ist ausgetriiumt), por sua antinomia mais exata: o discurso indireto da pintura[7], intocada pelas marcas da enunciação, “libertada da necessidade de asseverar”. Ele mostrava assim, atrás de uma articulação limpa e mutável, sua maneira de trabalhar o visível e de destilar o real.

Vinte anos mais tarde, Merleau-Ponty deixava um ensaio à guisa de testamento, O olho e o espírito (1961), e tratava a pintura moderna como uma outra experiência de pensamento fundamental. Nele, ele confirmava a renegação de um início equivocado por uma percepção canalizada entre o sujeito e o objeto. Inserir nela o corpo não bastava enquanto permanecia uma hesitação entre corpo fenomenal e corpo transcendental. pintura moderna pedia um olho cerebral, instituía um simbolismo na medida em que buscava um jeito de reconstituir “o visível com algo visível”, de negociar o equilíbrio figural do real e do afeto, de registrar a operação pela qual o movimento corporal se abole na lateralidade de uma escritura. Nela se manifesta a preeminência de uma operação simbólica na qual o pintor conspira com os mestres que ele escolheu para configurar uma exterioridade de que ele se apropria. Vale aqui exatamente o quiasma “o dentro do fora e o fora do dentro” que assume a superficie pictórica. Por sua vez, Merleau-Ponty associava um termo de fisiologia a uma operação que ele atribuía a Cézanne. Então, as anomalias que perturbavam o cânone perceptivo, como o efeito estroboscópico ou as inversões figura e fundo, se tornavam constitutivas. As vibrações coloridas da luz eram mais justas que a perspectiva e a montagem dos […] num mesmo plano pictórico mais instrutivo que a trajetória de um móbile. Todo um passado ainda recente de pinturas desdenhadas durante muito tempo pelo público, de psicologias estranhas, de cinematografias que vieram reocupar o terreno baldio de uma percepção bloqueada nas dimensões ligadas ao que se chama o senso comum, estava voltando para o campo do inteligível.

Nada disso foi entendido tão cedo. Em 1961, Sartre homenagearia a memória de seu amigo e rival, ao mesmo tempo em que o trancaria no “carrossel” de seus temas favoritos. No entanto, um ano mais cedo, no prefácio a Signes, Merleau-Ponty o lembrava, tomando emprestadas as palavras de Stendhal, de que ninguém chega à idade adulta enquanto não tiver renunciado às boas maneiras nas quais foi educado. Sartre, mesmo prosseguindo com o projeto de uma crítica da razão dialética, não ficou surdo a esse chamado. Ele trabalhou longamente no seu manuscrito de As palavras, que remetia seus compromissos e manifestos ao romanesco justiceiro de sua infância. No decorrer da mesma década, Foucault corria atrás metodicamente, através de uma história pré e pós-cartesiana, da intenção de afinar As palavras e as coisas. Prosa do mundo, primeira parte do livro e discreta homenagem a Merleau-Ponty – que desistira deste projeto impossível -, insistia nessa linha, acumulando semelhanças e afinidades, beirando o fabuloso. Nas coisas humanas, passando pela ordem e os quadros cartesianos e até a temporalidade autônoma da filologia, da economia e do transformismo, nada mais sobrava do contrato fundado de qualquer fenomenologia, qualquer que tenha sido sua transação. Quanto ao projeto das Luzes, que não levara em conta a construção do inteligível, ele caíra diante do historicismo. Desse colapso, nenhum pós-kantismo, abatendo sempre as mesmas cartas, insistindo na categorização ou na análise, conseguia puxar outra fenomenologia da experiência. Uma investigação, mais minuciosa que a realizada na História da loucura na Idade Clássica, estava atrás da sucessão das epistemes. Poucos leitores entenderam, confidenciava Foucault a um parente, que As palavras e as coisas era um livro trágico. O trágico é o assoreamento do moderno cartesiano para uma filosofia que apostava na autonomia de um sujeito espectador e tomador de decisões.

O mal-estar ia demorar a se dissipar. Sobrava um “cartesianismo itinerante”, como o chamava Sartre, um cartesianismo que caiu na moda, traído pela teimosia por velhas fórmulas e, mesmo assim, sempre louvado pela sua regra sobre a evidência, quando todo o resto virara opaco, e seus meios intelectuais paralisados pela prosopopeia do começo e da origem. Essa geração entendera o limite constitutivo da proposta, que fora o de ter respondido ao galileísmo pela metade. A revolução copérnica orquestrara tudo. A transcrição das funções newtonianas em categorias de enunciação preservava tudo o mais constante, pelo preço de algumas modalidades trocadas por proposições de senso comum. Esse protocolo de experiência duraria enquanto não estivesse resolvida a oposição surda entre as regras da mecânica, um naturalismo galileano, e uma demanda naturalista ainda pensada de acordo com algumas finalidades da Antiguidade, o que Descartes concedia à montagem providencial da máquina do corpo e Kant à concordância das faculdades. Após duas guerras europeias, chamadas de mundiais, a ilusão se dissolvera sem volta. A modernidade que chamavam de cartesiana deixava ver a precariedade de sua montagem e a confusão de seu naturalismo. A guerra aconteceu, título do editorial publicado em 1945 por Merleau-Ponty na primeira edição de Temps Modernes, constatava uma ruína, histórica e política. A revisão de uma inteligência filosófica decepcionada fixava como programa a operação ainda indeterminada de um moderno que assumiria sua própria mobilidade.

IV

Procuraram um limiar de modernidade, hesitando entre Renascimento, cartesianismo ou Luzes, quando se tratava de captar e procurar mais que ideias: as operações onde o inteligível se constrói, numa área que desconhece a divisão entre pensamento e corpo – porque nossas máquinas e nossos algoritmos constituem um pensamento e não há pensamento sem as sintaxes e as geometrias as mais diversas, mobilizando as mídias para onde se exportam e se transformam em linguagens, fixando suas unidades e a recorrência que as prolonga. Então, as referências sucessivas de uma história intelectual adiada no calendário da história europeia se dispersavam em epistemes disjuntas, e cada uma dessas conjunções metaestáveis de saber e de real era levada pelo historicismo. As palavras e as coisas não têm conclusão, mas o livro termina numa opção. Ou nos contentamos com uma antropologia que insiste nos meios, limites e constantes da natureza humana. As lições de Antropologia de um ponto de vista pragmático, professadas por Kant nos seus últimos anos, se limitam à aprendizagem da linguagem, à brincadeira dos pronomes pessoais através da qual a criança adquire o uso da primeira pessoa e a diferencia da terceira pessoa, antes impessoal, do objeto. Essa permutação do ponto de vista dava uma versão pedagógica da revolução copérnica. Foucault, que traduzira a Antropologia pragmática, reserva-lhe o riso silencioso do filósofo. Ou então se esboçava uma antropologia confrontada sem parar com suas etnografias, inclusive as nossas e as contemporâneas, tais como traçadas, faladas, inscritas em diagramas, mitos e gramáticas. O discurso, seja ele de Mauss, Dumézil ou de Lévi-Strauss, por mais diferente que tenha sido à primeira vista, tomava corpo. O homem transcendental, construção residual do kantismo, se apaga então, como um rosto de areia, num grandioso finale.

Simultaneamente, ao recorrer à efetividade de nossas cartografias mentais, uma análise demorada de um quadro de Velázquez mostrava como o pintor introduz sua própria inteligência pictórica na operação de dimensionamento da vida que estamos levando. Portão do livro, depois retomada no cerne do raciocínio, a análise de As meninas mostra como o pintor ali tomava o lugar do rei, que assim experimentava a dependência. Essa organização competia com o diagrama copérnico, ela tirava o criticismo do seu lugar metafisico. A História da loucura na Idade Clássica tratava dos lugares físicos, de territórios excluidos da vida civil, tais como as antigas quarentenas, leprosarias e outros confinamentos. As palavras e as coisas mudaram a abordagem e o método, deixando essa cartografia no chão em proveito de uma cartografia intelectual. Nosso presente era a consequência de três maneiras de saber, três epistemes, tratadas em três partes, embutidas uma na outra numa única trajetória filosófica, e cujo resultado representava o risco de reproduzir à nossa revelia aquela Enciclopédia chinesa imaginada por Borges. O historicismo também estava se perdendo num inventário de coisas dispersas e de momentos anedóticos. Será que o pós-moderno, seu sucessor, se alimenta de uma imagem de nossas cabeças entulhadas? Sem dar respostas, a maneira como Velázquez organizara As meninas introduzira um toque de visibilidade que nenhum saber, mesmo se valendo da ordem ou da álgebra, conseguira reduzir. Essa maneira propunha outros parâmetros, mais convincentes. No fim dos anos 1960, Foucault interrogava a pintura de Manet. Dando continuidade ao interesse despertado por Velázquez, O balcão, onde três personagens lançam um olhar divergente sobre uma rua que o espectador tem que antecipar, invertendo o Panóptico de Bentham. Ele o virava de cabeça para baixo. Esse quadro, sem cânone nem enredo, substituía ao prazer estético a versão urbana de um confronto com a realidade contemporânea. O olhar se prende na trama do visível, ficando mais perturbado do que pela Olympia.

Que poder era esse que a pintura tinha, com uma abertura na época sobre a proximidade urbanística e arquitetôníca, sobre a rua e seus transeuntes? Não um palco, porém algo que pedia um olhar ainda mais escrutador. Ele renovou suas fórmulas no século XIX depois de ter perdido seu catálogo de imagens gloriosas. Abria-se uma saída para uma discursividade submetida às restrições mínimas de uma informação comunícativa e a suas retóricas. Então, a pintura representativa, sob a forma que tomou nas nossas sociedades ocidentais, deixou transparecer as opções latentes que ela afastara sem apagá-las totalmente. Aqui convergem o último ensaio de Merleau-Ponty e os diagramas ameríndios notados por Lévi-Strauss[8]. Ela cruzava procedimentos científicos que, pelo menos desde Poincaré, entregavam as dimensões inéditas requeridas pela física a geometrias que conservavam muito pouco de suas denominações gregas. O espaço urbano e o espaço cosmológico estavam se dissociando sem volta, confirmando todas as mutações já notadas como indícios do moderno e o abandono dos contornos codificados de uma experiência. No seu último texto publicado, uma homenagem comemorativa ao ensaio de Kant O que são as Luzes, o filósofo de Könígsberg deixa o lugar ao pintor da vida moderna, o anônímo Sr. G., o ministro multifacetado de uma modernídade que ninguém assumirá sozinho. Filósofo e poeta, dizia Beaudelaire, ele escrevia, usava a aquarela e a fotografia, a caricatura e a reprodução mecânica. Para esta vida moderna, uma associação entre uma realidade fisiológica e o que parecia o mais rebelde contra isso força­ ra uma inteligência amordaçada pelas suas próprias retóricas.

V

A vida moderna não se define, ela se diversifica onde vivemos e viveremos. A expansão europeia inventara a cidade nova, exportando o que ela não conseguira realizar numa nova Atenas ou nova Alexandria. Por necessidade, na maior parte das vezes; seguindo uma concepção própria, outras vezes: o século XX variou os projetos nesse sentido, esperando fazer coincidir cidade nova e o projeto social de uma cidade moderna. Quando Lévi-Strauss veio ao Brasil como sociólogo, a São Paulo dos anos 1930 tinha características de ambas. Algumas entrevistas, conduzidas lá no fundo dos bairros de periferia, iam fornecer à sociologia dados etnográficos e unir o Novo Mundo, cidade moderna a vida moderna. Duas expedições ao Mato Grosso alteraram o rumo por completo. A descontinuidade social não se resolvia graças a uma mestiçagem medida numa escala da miséria e distribuída ao longo dos postos coloniais sucessivamente abandonados. As culturas ameríndias – idiomas, gramáticas, instituições, parentescos, trocas e grafismos – acentuavam sua singularidade à medida que se impunha sua diversidade. Um olhar sociológico sobre o desenvolvimento das cidades, que seria dirigido mais tarde sobre algumas megalópoles do sul da Ásia, carregava a mesma decepção e se perdia numa proliferação incontrolável. Na melhor das hipóteses, ele confirmava a imagem em espelho da Europa. Dez anos mais tarde apenas, o pós-guerra europeu mostrava um fracasso político com a multiplicação das utopias. Pensar a atualidade levava para os caminhos da etnografia.

Os últimos capítulos de Tristes trópicos elaboram a necessidade desse desvio mental. “Desprender-se de si” não era uma injunção pessoal, nem a confissão de um etnógrafo ou de um viajante decepcionado. Significava, em termos pascalianos, a audácia de experimentar outras figuras da inteligência, libertadas das amarras da descrição, este double-bind que consta do caderninho de um etnógrafo. Significava também tomar distância de uma construção mental na qual a Europa investira seu capital de inteligência social e política. Lévi-Strauss se envolveu nessa empreitada como numa experiência de pensamento em que, se você peitar os protocolos costumeiros, há uma chance de alcançar as produções simbólicas indígenas e ao mesmo tempo dar um futuro às produções da inteligibilidade moderna.

Alfred Métraux declarara brincando ser partidário do espírito neolítico. Lévi-Strauss retomou discretamente este lema em forma de homenagem, transformando-o em princípio epistemológico. Um pensamento selvagem era mais um desses oximoros, antecedido porém por Merleau-Ponty: era preciso afastar o protocolo proposicional para conceber uma operação mais genérica, provavelmente universal: classificatória, categorial ou esquemática.

Com ela, Lévi-Strauss captava uma conivência com as ramificações botânicas e animais, arborescências e fototropismos em que o saber humano tomara seus paradigmas e os confiara aos herbários e bestiários. Outra experiência fundamental do pensamento se debruçava sobre a fabricação do inteligível, aderindo a suas articulações, aos seus esquemas, objetivos que o apresentam para nós, aderindo aos seus fundamentos simbólicos que fazem com que ele participe do universo social e legitimam uma figura do real. Aqui, o devir sujeito se diversifica e não se acaba. Este desvio dizia mais sobre o que exige o processo de modernidade que qualquer sucessão histórica. O projeto de uma cidade nova, espalhamento utópico, hesitando entre a monumentalidade do antigo e o colonialismo da vida civil, cedera ao projeto de uma cidade moderna, nosso futuro, apesar de pouco dizível.

Era preciso suspender um habitus filosófico para adquirir vários outros, como um exercido espiritual da modernidade, para se familiarizar com espaços de representação e sintaxes inéditas, inscritos na materialidade de uma língua, de um desenho ou de uma paleta de cores e, ainda, nos planos imaginários de Gauss, nas escrituras sofisticadas da matemática ou nos programas informáticos. É aí, no esforço de uma plasticidade mental ainda mal expressada e mal conhecida, que ocorrerão as consequências cognitivas dessas transformações. O espaço simbólico estava perdendo seu mistério, transitava, indo e voltando, do cérebro – este novo protagonista do século XIX – àquelas estruturas simbólicas, grafismos e esquemas, patentes em todos os saberes. A vida urbana nas grandes sociedades não parará de multiplicá-las, de diversificá-las, sejam elas humildes, comuns ou esotéricas. Desprendimento de si: Foucault retomou as palavras de Lévi-Strauss que desviavam a atenção do cartesianismo para o jansenismo. A injunção acompanha sua leitura das Cartas de Sêneca, seu interesse por exercícios de escritura e agendas, continuados do cinismo ao platonismo e a Marco Aurélio, como uma resposta paciente e argumentada às palavras opacas do existencialismo. Técnicas de si e desenvolvimentos simbólicos articulam seus últimos escritos, identificando o que parara as Luzes francesas e levara Kant a se parabenizar por ter criado um sistema completo. A preocupação consigo teria, portanto, seu lugar, porém nada que se subordinasse a uma economia mental na qual o helenismo – que fora moderno na sua época – ilustrara sua escolha e ensinara sua maneira de configurar o urbanismo mental. Libertadas de Rousseau como do cartesianismo, com a precisão sugerida por Lévi-Strauss, a ambição política e a curiosidade moderna se juntavam num exercício do qual ninguém é dispensado. Nulla dies sine linea, a fórmula estoica que seduzia Foucault, pode ser utilizada de mil maneiras.

VI – HIPÓTESES

Ou seja, menos que uma tese. O moderno advém lentamente, bebendo nas virtualidades antropológicas das quais não existe inventário. Evoquei sucintamente três ocorrências de um passado recente. Elas ainda valem para hoje, que não as contradiz. De maneira imprevista, a pintura do século XIX encenara dimensões de cores que os pintores do século XX confirmaram, nomeando-as explicitamente (como Giacometti falando de Cézanne) e tratando-as às vezes como mediador privilegiado para novas intenções (como Klee, ocasionalmente; Mondrian e Rothko, com mais frequência). Depois, no século XX, a pintura ia se reinventar de outra maneira. Independentemente disso, Wittgenstein introduzia uma lógica das cores, que ele opunha a Russell, não como uma variante do logicismo ou como uma objeção ao seu paradigma analítico, mas como um prolongamento da produção simbólica. Os jogos de linguagem das Investigações filosóficas, mas também outros ensaios que permaneceram inéditos durante muito tempo, exploraram possíveis ou impossíveis construções gramaticais; ou ainda as escolhas coloristas de Rembrandt e as de um designer de interiores – o que Wittgenstein também foi na ocasião de sua volta a Viena. As escrituras matemáticas não escapam às exigências antropológicas de uma operação de dupla face, mediadora do inteligível para nós e de um percurso no espaço matemático das provas: consequentemente, não se trata de formalismo. Heterotopia não é a pior palavra para enquadrar tanto essas produções de pintura quanto o plano onde Gauss habilitava as operações realizadas sobre os números imaginários, isto é: a extensão de uma sintaxe aritmética. A honestidade do processo simbólico reside na exposição de seus arranjos e sintaxes na margem do uso, na sua produção na superficie como uma democracia da inteligência. A arte de trocar de pele está nisso, no sentido positivo da decrepitude que descrevia Beaudelaire, como o olho das velhinhas e a pintura de Manet, “o primeiro na decrepitude” de sua arte. Palavras insólitas eram necessárias e as tomei emprestadas sem escrúpulo, para descrever o mecanismo de um moderno que empreende em detalhes a representação da vida moderna e aposta no que as Luzes não tinham levado em consideração. Se ainda se trata de filosofia, cabe a cada um decidir, e não tem nenhuma importância aqui. Mais uma vez, o racionalismo não antecede a produção de novos artigos de inteligibilidade. Se, porventura, se aproximam do ponto de equivalência com um processo cerebral ou um algoritmo, significaria que entendemos melhor estes últimos e que eles não provocam nenhum reducionismo. Eles fornecem a regra do jogo da inventividade, bem como da poética. Cézanne dizia que a cor está onde o mundo e o cérebro se encontram. Ele lançava assim o futuro moderno de uma pintura definitivamente libertada do regime helenístico da percepção.

Qualificativo aderente, moderno não se isola como um evento, nem se objetiva como um procedimento. No melhor dos casos, ele pode ser interceptado, quando a apropriação do real ocorre, aqui ou acolá, de outra forma. As matemáticas retomaram ocasionalmente sua história antiga para envolvê-la em novas construções, reinvestidas em outras sintaxes imprevisivelmente sofisticadas. O aritmético do século XX, Dedekind ou Frege, associava a correspondência biunívoca a algumas práticas cardinais, que dá para contar nos dedos. O triângulo aritmético, conhecido na Baixa Idade Média, ofereceu a Pascal um diagrama para os arranjos em probabilidade e o raciocínio por recorrência. As topologias explicam os enrolamentos e desenvolvimentos opacos do corpo intestino, aquele que nos é mais íntimo. As diferenciações em espiral excluem o reducionismo, o dos fundamentos e o dos analíticos. O processo que quisemos circundar é transversal em relação a algumas estabilidades elevadas ao estatuto de transcendental. Obviamente, ele não é responsável pelos sobressaltos e pelas catástrofes civis nem poderá preveni-los sozinho: não é sua intenção. Pode, no entanto, se revelar útil derrubar alguns ídolos, algumas retóricas, entre as quais a apologia da concretude e do imediatismo, além de preferir sobriedade desencantamento. Merleau-Ponty previa que a filosofia se escreveria de agora em diante em talha doce, alusão a essas gravuras capazes de evocar cidades, colinas e rios graças a algumas manchas de tinta que espantaram Descartes. Tanto quanto a régua deslizante da Geometria e sua contribuição para a ordem dos pensamentos; tanto quanto a Dióptrica, tão útil para os polidores de lentes, elas difundiram a partir da Holanda de Rembrandt uma geografia do inteligível cotidiano, educaram o senso espontâneo da paisagem, tal como ela é vista do caminho ou da cidade, da janela ou do cais. O cuidado com tais invenções locais – surgimentos, dizem também – faz parte da própria ética do moder­ no, nossa vida e sobrevivência.

O termo tecnociência diz coisas demais ao mesmo tempo. Por um lado, não lhe dão o crédito suficiente: os matemáticos têm programas, algoritmos, computadores. Pascal inventou o teorema dos partidos, como uma máquina mental. Suas fórmulas de probabilidade são os primórdios de uma arte de pensar que se espalhou por toda a Europa, e elas prepararam os cálculos aos quais os Bernouilli confiaram sua arte de conjecturar. Por outro lado, concedem tudo e em demasia a uma técnica dependente de algoritmos e de outros esquemas que ela não inventa. Será que estão convencidos de que se pode reduzir qualquer preferência a uma tabela, qualquer uso a um consumo, qualquer economia a contas e finanças? Um real que sempre ameaça escapar chama novos intermediários, solicitando palavras, sintaxes, diagramas e efígies. Redescobrimos a iconicidade. A ingenuidade hoje seria de entregar tudo nas mãos dos métodos regressivos e analíticos e às técnicas de tomada de decisão, que com certeza não faltam. Elas têm seu uso. Mas deixamos de acreditar nas balanças que determinariam o que é justo, como a hábil montagem de Arquimedes que desvendou a artimanha do ourives de Siracusa e transcreveu em peso e número sua trapaça. No entanto, o cálculo proposicional foi seu último álibi. Não que a tentativa tenha sido pecaminosa em si. Nem que seja porque conduziu Wittgenstein a entender porque as proposições não podem ser reduzidas às exigências de um cálculo e têm muito mais para dizer. Pois todo cálculo para distinguir o verdadeiro do falso sempre é parente afastado ou próximo de uma álgebra de Boole e a decisão remete à tese de Church/Turing. É sempre possível ponderar de maneira binária informações recolhidas na substância rica e opaca da enunciação. É possível, e de mais de uma maneira, fazer com que as duas sintaxes coincidam, e de maneira vantajosa. Mas aqui funciona a tese de Quine, segundo a qual a tradução radical é indeterminada. Seria melhor dizer que não se trata de uma tradução e que este tratamento recente – de exatamente um século – é apenas uma transação entre outras. Como acontece no caso do óleo e da água, a emulsão é instável.

Quanto ao moderno, em vez de substituir uma certeza perdida pela impaciência da decisão, devemos entender prioritariamente que não se trata mais disso.

Notas

  1. Quando a análise afirma ter como regra a imitação dos procedimentos matemáticos, qual deles ela segue? Não é possível evitar a contradição entre um desenvolvimento em polinômios ou em séries, como uma nova construção matemática serve de alicerce numa nova área – que nenhuma estratégia filosófica pode, no entanto, se apropriar – e um reducionismo em que Tarski e o positivismo lógico seguem uma linha aristotélica. Foi um dos equívocos que Wittgenstein recusou ironicamente, equívoco que escondia mal o recurso a uma máquina simples, acometido de câimbra mental. 
  2. Valéry nunca parou de revisar e completar o manuscrito de Monsieur Teste, livro que o acompanhou a vida toda. Em Degas, danse et dessin, ele projeta a figura de seu herói, Monsieur Teste, em dois personagens em oposição: Mallarmé e Degas. 
  3. Ver Antropologia estrutural, 11, cap. XV. 
  4. Sobre as observações sobre as cores, a expressão da dor, a multiplicação dos jogos de linguagem e os ensaios de Wittgenstein sobre as matemáticas, ver nosso “Pain, a philosophical borderline”, a ser publicado nas atas de um colóquio organizado em Santa Cruz, Oxford University Press. 
  5. Sabemos que Husserl confirmou nas suas últimas publicações, e mesmo com algumas hesitações e reviravoltas, a lógica transcendental. Sabemos como Russell reivindica o ceticismo, numa série de entrevistas com Allan Wood, interrompida pelo falecimento deste. Ver o apêndice ao My Philosophical Development(1959).
  6. Daí o projeto de uma coleção de ciências humanas, apoiada por Cavailles, Aron e Lautmann. Ele foi aprovado pelo editor Hermann, sem que se possa concluir muito de um folheto. 
  7. Citamos as palavras de Husserl. Merleau-Ponty trabalhou muito tempo esta noção de uma linguagem indireta na pintura. Sua maior virtude é a de preservar a função comunicativa e cognitiva da pintura, sem submetê-la a um formalismo indeterminado do belo, mas tirando-lhe as limitações da deixis e da enunciação, próprias à enunciação discursiva. Este texto é um passo decisivo no caminho de Merleau­Ponty para fora da fenomenologia, esta última sendo amarrada a uma construção conhecida como original, sob a denominação aristotélica de apofântica. 
  8. Cf. O caminho das máscaras (1975), em que culmina um trabalho que se constituiu nas Mitológicas. 

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