1996

Origens do discurso libertino

por Luiz Roberto Monzani

Resumo

A literatura libertina do século XVIII é muito diferente daquilo que antes se chamava libertino e que era basicamente liberdade de pensar. Ela resulta tanto de um desregramento geral dos costumes quanto da tese filosófica, que se cristaliza de 1650 a 1750, de que o prazer (sobretudo sexual) é a fonte da felicidade. Isso implica uma nova concepção do sujeito e o abandono de valores objetivos, hierarquizados. Para Hobbes, o universo é mecanicista, desprovido de finalidades e regido pelas paixões. Ele define o ser humano como esforço de preservação de si, como desejo em permanente luta com o dos outros, o que gera a necessidade de um pacto para conter os egoísmos. Condillac desenvolve essa ideia mostrando que o prazer e o desprazer estão na origem do desejo. No seu Tratado das sensações delineia-se uma nova antropologia na qual se destacam as noções de indivíduo e de utilidade. La Mettrie vai mais longe ao afirmar que, para a razão natural, não há vícios ou virtudes absolutos, e que é preciso criar um espaço privado, secreto, para que a natureza se manifeste em sua pureza. Segundo ele, os seres humanos são máquinas para gozar e os prazeres mais intensos são os do amor. A sexualidade emerge assim como verdade ética do sujeito que merece ser esquadrinhada em todos os seus caprichos e formas. Não estamos longe da Filosofia na alcova de Sade. E é a razão também por que a literatura libertina do século XVIII adquire com frequência a forma de narrativa iniciática e pedagógica.

 


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A literatura libertina tal como a entendemos hoje é, praticamente, um fenômeno típico do século XVIII mas não as noções de libertino e libertinismo, que remontam ao século XVII. Entre a “libertinagem erudita” dos fins do século XVI e do século XVII e a que se impõe no século setecentista a continuidade se esgarça de tal modo que, às vezes, somos tentados a pensar que a relação é de pura homonímia. Tudo parece indicar, na verdade, que o fio condutor é de tal maneira tênue que pouco resta de continuidade entre ambas, além de um vago horizonte conceitual comum.

Os denominados escritores libertinos dos dois séculos anteriores — respeitadas suas diferenças, que não são poucas — caracterizam-se basicamente por serem livres-pensadores. Na solidão de seus gabinetes ou reunidos discutem, sem preconceitos, temas religiosos, de costumes e, por fim, invadem o terreno da política. Sua característica marcante é a liberdade de pensar. Entenda-se: tratar as matérias sem se curvar aos dogmas e preceitos da religião e da moral vigentes. Seu princípio básico no exame dos problemas é: o que a razão indica, e não o que a autoridade me impõe, sobre tal ou tal matéria? De certa maneira, o libertinismo erudito prefigura o philosophe do século das Luzes.

Ora, o libertinismo do século XVIII reenvia a realidades bem diferentes. De um lado, a libertinagem dos costumes, o libertinismo moral, tão característico da realidade francesa, por exemplo, na época da regência. Sabe-se bem a que excessos e desregramentos de conduta se chegou nessa época. Por outro lado, reenvia a um conjunto de textos que formam uma verdadeira teia cerrada, com características razoavelmente bem definidas, a ponto de não ser abusado falar numa corrente literária, mesmo que de mau gosto, segundo alguns.
Procurou-se, muitas vezes, explicar essa literatura libertina através do libertinismo moral da época. Ela como que espelharia esse desregramento geral dos costumes. Essa tentativa, no entanto, esbarra em alguns problemas básicos. Em primeiro lugar, esse libertinismo de costumes é um fenômeno recorrente na história. Basta pensar, por exemplo, na Roma imperial ou em alguns momentos do Renascimento. Nem em um, nem em outro caso, pode-se falar na constituição de uma corrente literária.[1] É claro que certos eventos ou personagens — Charolais, por exemplo — puderam funcionar como fonte de inspiração. Mas ir mais longe seria um pouco abusado. Em segundo lugar, se examinamos a literatura libertina do século XVIII, encontramos nela características tais que tornam muito difícil explicá-la por essa via. A principal, parece-nos, está na estreita aliança entre a tese de que o prazer (e, em espécie, o físico e, sobretudo, o sexual) é a fonte da felicidade e a tentativa de erigir em regra uma demonstração dessa mesma tese.

Isso redundou numa dupla estratégia. A primeira, negativa, de uma crítica da teologia, da religião e da moral, seja apontando suas contradições internas, seja, por comparação, introduzindo o relativismo. A segunda, positiva, na tentativa de mostrar diretamente a própria tese-através de argumentos bem conhecidos, como, por exemplo, o da naturalidade (e, portanto, da inocência) de nossas inclinações. A razão libera e promove a realização dos sentidos.

Isso levou à constituição desses textos tão característicos do século XVIII que conhecemos com o título de libertinos, pelo menos nos mais expressivos. Sua técnica é um misto de demonstração e descrição[2] que se alternam com o intuito de atingir os fins propostos. Daí também a razão desses textos frequentemente tomarem a forma de narrativas iniciáticas e pedagógicas.[3] Mas é seguramente esse “furor” demonstrativo o que mais se salienta nesses textos, quando se pensa na sua especificidade, na medida em que é ele um dos maiores elementos diferenciais com relação à literatura erótica anterior.

E, naturalmente, a questão se põe: por que, no século XVIII, nasceu essa convicção de que o prazer (sobretudo físico) é a fonte da felicidade e que a reta razão pode perfeitamente demonstrar isso? Por que o sexo, ao contrário do que acontecia anteriormente, como mostrou Foucault, passa a ser a chave para a liberação e a realização do sujeito? Que concepção do homem se arquitetou para que tal ideia se tornasse possível? As páginas seguintes constituem uma tentativa, parcial, sem a menor dúvida, de colocar algumas hipóteses para procurar vislumbrar melhor qual o caminho que pode iluminar um pouco a questão. Para tanto, recuemos um pouco no tempo.

2

Durante séculos — com pouquíssimas exceções — a civilização ocidental viveu sob um regime conceitual muito claro e bem definido — nas suas linhas gerais — no plano das concepções éticas. Estamos nos referindo à concepção que — a partir de Platão e Aristóteles — predominou em nossa cultura até por volta de meados do século XVIII. Ela se assentava na ideia de um universo, ou cosmos, ordenado objetivamente. Universo hierarquizado de forma clara e inequívoca (onde a distinção entre o supra e o sublunar é chave) no qual em cada domínio impera certo tipo de legalidade ou regularidade que advém da própria natureza das coisas.

Mais ainda: esse universo hierarquizado está estreitamente submetido a uma finalidade que é imanente às próprias coisas. A teleologia insere-se no âmago da própria realidade e os diferentes setores do mundo subordinam-se e encaixam-se uns nos outros, fazendo com que a totalidade seja o resultado desse harmonioso ajustamento aos fins. Até os inícios da Idade Moderna, o universo é algo ordenado, fixo e hierarquizado.

Essa representação do universo não se refere apenas à sua estrutura ontológica. Ele também é ordenado, hierarquizado e finalizado do ponto de vista ético. Se excetuarmos o epicurismo, a Antiguidade e a época medieval sempre mantiveram uma concepção similar do ponto de vista ético. Existem valores objetivos que estão, de certa maneira, inscritos na realidade e aos quais o sujeito deve subordinar-se. O Bem é uma estrutura objetiva que está incrustada na realidade e à qual os diferentes sujei­tos devem se regular. Existe, assim, uma hierarquia objetiva dos valores que culmina na noção de summum bonum.

Isso implicou certa concepção do mundo ético que incidiu diretamente sobre a concepção clássica das paixões, que é o ponto que nos interessa nesta discussão. Se existe um bem objetivo, ao qual o sujeito deve subordinar-se, isso implica que esse bem deve ser a sua aspiração. É a ele que o sujeito deve tender para, alcançando-o, realizar sua perfeição ética. Isso pressupõe, portanto, que o sujeito deve preliminarmente conhecer esse bem para que, sabendo o que ele é, tenda irresistivelmente à sua posse. Assim, o movimento é: de um ato original de apreensão intelectual do bem à atração irresistível que esse mesmo bem deve exercer sobre o sujeito. Conhecendo-o ele o amará. E, esse amor ao bem é que deverá guiar e ordenar a dinâmica de suas paixões. Assim, existe uma estrutura teleológica objetiva à qual, em princípio, todos os sujeitos devem submeter-se.

Por exemplo, em são Tomás, a felicidade humana está na contemplação de Deus, bem supremo por excelência.[4] Colocadas as coisas dessa maneira, certa ordem das paixões impõe-se, onde o amor é o antecedente que engendrará o desejo e, por fim, teremos a deleitação, segundo a ordem da consecução (e não da intenção): “E, por isso, segundo essa ordem, o amor precede ao desejo e este à deleitação” .[5]

São Tomás, neste texto, nada mais faz do que explicitar uma ideia que vem desde a Antiguidade e que perdurará ainda por muitos séculos. Existe aqui, nitidamente, uma ordenação e uma hierarquia das paixões que supõem três pares fundamentais assim dispostos:
1- Amor – Ódio
2- Desejo – Aversão
3- Prazer – Desprazer

Assim, tendo o objeto sido apreendido, ele será em primeiro lugar amado (ou odiado) e, em seguida, em virtude desse ato passional primordial, primário, ele passará a ser desejado (ou não) e sua posse levará à deleitação ou prazer (ou ao desprazer).

Essas são, portanto, as linhas gerais e fundamentais dessa “antropologia de inspiração finalista”, segundo a qual o homem está orientado em função de um bem objetivo. É exatamente essa imantação exercida por esse bem que constitui a mola que impulsiona o ser humano e que dá inteligibilidade à sua conduta ética. O privilégio está, portanto, no amor, “raiz primeira de todas as paixões” (Gilson). Produzida essa relação originária, essa paixão suscita o movimento apetitivo (desejo) de se apossar realmente do objeto, e, tendo isso sido atingido, o resultado é o repouso ale­gre no estado de satisfação.

Essa teoria, longa e pacientemente elaborada, perdurou por séculos e não irá, por assim dizer, desaparecer na Idade Moderna. Mas deixará de ser soberana e passará a coexistir com outra, sob muitos pontos de vista oposta. Essa nova concepção acabará por eclipsar a tradicional e, pouco a pouco, passará a ser dominante. Será através dela que poderemos compreender, um pouco melhor, que uma nova imagem do homem está em emergência.

3

Essa nova concepção do sujeito, essa nova antropologia, digamos assim, não nasceu subitamente, não emergiu como algo pronto e acabado. Sua construção, moldagem e arquitetura foi algo relativamente lento, embora, historicamente, tenha sido alguma coisa mais rápida do que se poderia pensar. Cristalizou-se praticamente em um século. Se queremos dar vazão à nossa irresistível mania de datação, compreendeu o hiato que vai, grosso modo, de 1650 a 1750. Procuremos explicitar as vigas-mestras dessa concepção.

A primeira grande mutação, e, sem sombra de dúvida, a mais importante de todas, na medida em que determinará o conjunto das mudanças subsequentes, foi operada em pleno coração do século XVII, por Tomas Hobbes. Hobbes, até pouco tempo, teve um destino singular na história das ideias. Sempre foi conhecido e estudado como um filósofo político. Autor de uma das teorias políticas mais conhecidas — e mais criticadas — no século XVII, sempre foi visto como um dos teóricos do direito natural moderno, como também da teoria contratualista. Seu pensamento politico — personificado na imagem do terrível Leviatã — expressaria o absolutismo e o autoritarismo.

Não se trata aqui de indagar se essa imagem de seu pensamento político é correta ou não. Sob muitos aspectos ela é, sem dúvida, incorreta. O que importa salientar é o fato de que, por muito tempo, esqueceu-se de apontar e explicitar (talvez fosse melhor dizer: ocultou-se) que a teoria política hobbesiana é uma estrita consequência de suas teorias filosóficas sobre o universo e, sobretudo, sobre a natureza humana. A razão disso talvez esteja no fato de que, no plano estritamente racional, a filosofia de Hobbes aponta para o materialismo, corrente que não conta, em geral, com a simpatia dos analistas e historiadores, pelo menos até recentemente.

Uma das características fundamentais do pensamento de Hobbes é o fato de que, para ele, o tipo de inteligibilidade que atravessa integralmente o universo é a inteligibilidade mecanicista. A totalidade do universo explica-se através de um conjunto de pontos dotados de forças, de contraforças que se compõem, se opõem, se somam, se subtraem, se multiplicam etc. etc. Nesse ponto ele é um herdeiro e um inovador. Herdeiro, porque soube — assim como Descartes — captar e perceber o novo modo de inteligibilidade promovido pela nova física e que revolucionara a concepção do universo. Todo o universo passou a ser pensado em termos atômicos. Trata-se de partículas que percorrem o espaço seguindo as recém-formuladas leis básicas da mecânica. O que implicou uma homogeneização do universo, já que, em qualquer ponto, são a mesmas leis que imperam. O universo é um jogo de forças que se compõe e se decompõe segundo as leis da mecânica. E isso indefinidamente. Portanto, ele não obedece a nenhuma finalidade, seja transcendente, seja imanente. Os fenômenos não acontecem segundo, ou em função de, uma teleologia que os oriente e lhes dê sentido. É esse universo absolutamente mecani­zado e, portanto, absolutamente desfinalizado, que é o universo real para Hobbes.

Mas ele também foi um inovador. Ao contrário de seu contemporâneo Descartes, que admitia dois tipos diferentes de inteligibilidade, Hobbes – já o vimos — estende para a totalidade do universo — aí incluindo o homem, portanto esse tipo de inteligibilidade mecânica. A partir daí pôde-se então pensar num universo totalmente homogêneo e mecanizado. O que significa dizer que esse universo é totalmente desfinalizado do ponto de vista objetivo. Não existe nenhuma finalidade objetiva inscrita no âmago da realidade. Não é difícil perceber que é toda a concepção clás­sica, como acabamos de ver, que cai por terra.

Isso significou dizer que não se pode mais falar em nenhum tipo de finalidade? Evidentemente, não. Os homens agem continuamente e o exame de suas ações mostra, inequivocamente, que eles operam com vistas a um fim. Mas, essa finalidade é evidentemente subjetiva e não traduz nem se harmoniza com um suposto plano objetivo. Essa finalidade subjetiva é a única que, originalmente, se pode atribuir ao sujeito.

Foi tentando desentranhar a estrutura e o mecanismo dessa teleologia subjetiva que Hobbes provocou uma verdadeira reviravolta na concepção clássica sobre as paixões. Para ele, do conjunto de nossas faculdades, pode-se dizer que, sob um aspecto, a razão é uma capacidade basicamente instrumental, isto é, nada mais é do que um meio para atingir determinados fins. Ora, esses fins, eles mesmos, não são colocados pela razão, e sim pelas paixões, digamos assim, numa primeira aproximação.

Coloquemos as coisas de outra maneira: o que explica, o que nos faz compreender, em última análise, as diferentes ações dos seres humanos? O que eles visam? Basicamente duas coisas (sendo a segunda um derivado da primeira): 1) a manutenção e o bom funcionamento de seu próprio corpo e 2) se possível, a expansão de sua potência, de seu poder. Assim, tudo aquilo que ajuda, facilita, aumenta o nosso bem-estar (no sentido amplo) responde a essa necessidade básica do ser humano.

O que significa dizer que, originariamente, o ser humano define-se como um esforço fundamental para a preservação, manutenção e expansão de si. Esse esforço original é o que Hobbes denominou o conatus, o desejo que é o conceito original a partir do qual pode-se tentar entender a trama da vida passional do sujeito e o conjunto de suas ações.

Assim, para Hobbes, o elemento fundamental, primário, o motor básico de todo o jogo das paixões está nesse fato elementar, nesse esforço (conatus) que é o desejo que visa a atingir algo. É exatamente nesse momento que Hobbes provoca uma reviravolta completa na compreensão da ordenação e hierarquização das afecções humanas. O conatus é um fato primeiro, irredutível a qualquer outra instância e, ao contrário, é ele quem vai dar conta de todas as outras. Quer dizer, de agora em diante, não é só a hierarquia secular da preeminência do par amor/ódio que se vê desmoronada, como também o seu correlato: o do primado gnoseológico que a acompanhou desde sempre. Não pode haver mais um ato original de conhecimento do bem que engendrará, em seguida, nosso amor, nossa atração e nosso deleite. Não. O que assistimos agora é o inverso: existe um ato original que é o desejo e este se servirá da razão para atingir seus objetivos. O originário é o desejo e a inteligência nada mais é que inteligência dos meios para satisfazer esse fim. A partir disso Hobbes repensa a tópica e a compreensão do prazer e da dor. Tomemos um primeiro texto:

Na oitava seção do segundo capítulo foi mostrado que concepções e aparições realmente são apenas movimento em alguma substância interna da cabeça; esse movimento não parando ali, mas prosseguindo até o coração, aqui ele necessariamente precisa ou auxiliar ou estorvar o movimento que é chamado de vital; quando o auxilia, ele é chamado de deleite, contentamento ou prazer, que realmente é apenas movimento em torno do coração, assim como concepção é apenas movimento na cabeça; e os objetos que o causam são chamados de prazerosos ou deleitantes, ou de algum outro nome equivalente.[6]

O texto mostra claramente qual é o mecanismo que provoca o deleite ou prazer. Este nada mais é do que o efeito benéfico do movimento vital. O movimento causado pelo objeto da sensação no cérebro é, como movimento, transmitido ao coração. Melhor ainda: o prazer é o efeito concomitante, a título de indicador interno, que é provocado no coração, que sinaliza a virtude facilitadora que esse movimento está provocando no conjunto do movimento vital. Tomemos agora um segundo texto, que esclarece outros pontos:

Como na sensação aquilo que realmente está dentro de nós é apenas movimento (como eu já disse acima), causado pela ação de objetos externos, mas na aparência: para a vista, a luz e a cor; para o ouvido, o som; para o olfato, o odor etc.; assim, quando a ação do mesmo objeto se prolonga, a partir dos olhos, dos ouvidos e outros órgãos, até o coração, o efeito real aqui é apenas movimento ou esforço, que consiste em apetite ou aversão pelo objeto que movimenta. Mas a aparência ou sensação desse movimento é aquilo que chamamos de deleite, ou perturbação do espírito.

Esse movimento que é chamado de apetite, e cuja aparência é deleite ou prazer, parece-me uma corroboração do movimento vital, e um auxílio a este.[7]

Por outro lado, olhando agora o par amor/ódio, trata-se do seguinte: esse deleite ou prazer, quando se refere ao objeto, é o que denominamos amor. Caso contrário, haverá ódio. Trata-se, na verdade, olhando o processo de maneira mais global, de um mesmo fenômeno, de um único processo no qual cabe distinguir: 1) sua força motriz (desejo/aversão), 2) o seu efeito concomitante (prazer/dor), e 3) sua relação com o objeto (amor/ódio).

De qualquer maneira, o amor já não é mais, como acontecia na concepção clássica, a apreensão de um bem anterior a todo desejo. Por sua vez, o prazer já não é mais o estado consecutivo, quando da posse do bem, de repouso e satisfação. Trata-se, agora, do desejo e de suas manifestações. Daquilo que o satisfaz ou não. Por outro lado — consequência importante —, se as coisas se passam assim, a relação desejo/prazer já não pode ser mais pensada no sentido em que o prazer seria a sensação que apontaria, que sinalizaria para o fim, para o acabamento do processo, e indicaria, assim, a supressão do próprio estado de desejo. Se isso acontecesse seria, para Hobbes, não a realização do desejo mas sua morte, seu aniquilamento. Como a essência do sujeito é o desejo, pensar sua supressão é pensar a morte do sujeito. O que significa dizer que a essência da vida é desejar e desejar indefinidamente.

Temos, assim, a ideia de um processo continuo, indefinido, aberto e sem acabamento (a não ser quando ocorre a morte). Por outro lado, nesse nível as noções de bem e de mal vão estar, estritamente falando, vinculadas à noção de desejo. Não é porque as coisas são boas que o sujeito as deseja. É porque as deseja que elas são boas. Essas noções, de agora em diante, estão estritamente vinculadas ao desejo do sujeito, pelo menos no nível do estado natural. Vinculadas ao desejo de cada sujeito. Mais ainda, em cada sujeito, como ele muda no decorrer do tempo, o desejo também muda: “E, porque a constituição do corpo do homem está em contínua mutação, é impossível que as mesmas coisas provoquem nele sempre os mesmos apetites e aversões, e muito menos que todos os homens coincidiram no desejo de um único e mesmo objeto”.[8]

Assim, o que temos, nesse plano, é uma pluralidade indefinida de sujeitos, cada um expressando seus apetites. Daí a razão pela qual a condição natural do homem abre espaço para a luta e o enfrentamento. Cada sujeito determina o que é bom para si mesmo e instaura isso como regra. Nesse nível, não há nem bem nem mal, nem vício nem virtude, a não ser referidos a cada sujeito individual. Assim temos uma diversidade de regras e a ausência de uma Regra universal, o que faz com que cada um instaure sua regra como sendo a Regra. Daí também a necessidade de um pacto, pois só através dele poder-se-á instituir, via delegação, uma regra válida para todos e que será, portanto, o Bem e o Mal, a Virtude e o Vício, que, desse ponto de vista, nada mais são do que instituições artificiais: “Assim, não encontramos normas dos vícios e das virtudes fora da vida social. Essa norma não pode ser, portanto, senão as leis de cada Estado […]”.[9]

É evidente que, como já vimos colocando em relevo, toda essa análi­se dos mecanismos passionais tem como consequência inevitável o abandono das noções tradicionais de bem e mal como realidades naturais objetivas. Agora, elas são redimensionadas em função do desejo do sujeito, na condição natural, ou da vontade delegada dos sujeitos no estado pós pacto. A lógica de Hobbes é inflexível: assumindo integralmente o mecanicismo, desfinaliza totalmente o universo objetivo, só admitindo um tipo de finalidade, a subjetiva finalidade esta que passa a ser o quadro de referência de onde brotam os valores. Esse é o sentido mais profundo da fórmula: não desejamos as coisas porque são boas, mas elas são boas porque as desejamos: “Cada homem, de seu lado, chama de bem aquilo que dá prazer e deleite a ele mesmo e mal aquilo que lhe dá desprazer. Na medida em que todos os homens diferem uns dos outros em sua constituição, eles também diferem uns dos outros naquilo que concerne à distinção comum entre o bem e o mal. Também não existe aqui algo como um bem absoluto, considerado sem relação”.[10]

De qualquer maneira, seguindo esse caminho, Hobbes acaba por redefinir de maneira inteiramente nova o conceito de felicidade — esse alvo central ao qual todos os homens aspiram. Ela, agora, não pode mais ser, como já vimos, o repouso estável e prazeroso que se atinge após a posse do bem. Se o ser humano define-se pelo desejo e sua natureza é desejar constantemente a felicidade, jamais poderá estar no repouso, mas sim no movimento. A felicidade é o movimento contínuo do desejo:

[…] a felicidade desta vida não consiste no repouso de um espírito satisfeito. Pois não existe finis ultimus [fim último] nem summum bonum [bem supremo] como se diz nos livros dos antigos filósofos morais. Nem o homem pode viver quando seus desejos chegam ao fim, tal como quando seus sentidos e imaginação ficam paralisados. A felicidade é um contínuo progresso do desejo, de um objeto para outro, a obtenção do primeiro sendo um caminho para a obtenção do segundo. A causa disso é que o objeto do desejo do homem não é gozar apenas uma vez, e só por um momento, mas assegurar para sempre o caminho de seu desejo futuro. E por isso as ações voluntárias e as inclinações de todos os homens tendem não apenas a conseguir, mas também a assegurar uma vida satisfeita, e diferem apenas no modo como surgem, em parte da diversidade das paixões, em diversos homens, e em parte da diferença do conhecimento ou opinião que cada um tem das causas que produzem o efeito desejado.[11]

O leitor há de convir: são poucos os textos que expressam, em tão poucas linhas, tal como este toda uma revolução nas concepções. Assinalemos, para finalizar este item, alguns pontos.

1- Fica mais ou menos evidente que é preciso distinguir, no arcabouço do pensamento hobbesiano, duas ordens de apetites ou desejos. Há, em primeiro lugar, o ciclo dos apetites naturais. Estes caracterizam-se exatamente pela sua forma cíclica e fechada de realização. Mas há também os desejos especificamente humanos, que rompem com a circularidade biológico-vital, que ultrapassam esse ciclo, sem negá-lo, e que, portanto, manifestam-se fora da circularidade. É a esses desejos que o texto citado acima parece referir-se. Eles rompem o ciclo natural e transformam, por assim dizer, o círculo numa espiral aberta ou numa reta indefinida de desejos que se sucedem.
2- Nesse sentido, também, Hobbes repensa radicalmente os fundamentos da antropologia tradicional. É toda ordem ético-política clássica que está sendo subvertida e repensada. De qualquer maneira, uma coisa é certa: o conceito de desejo passa a ser um dos conceitos-chave que emergem na época moderna e será, seguramente, um dos operadores conceituais fundamentais para que se possa entender essa longa e complicada emergência disso que denominamos a compreensão moderna do sujeito.
3 – Esse primado do conceito de desejo tem um pressuposto e uma consequência. O pressuposto, já vimos: trata-se do conceito de conservação de si. O desejo, vimos, expressa essa tendência do sujeito de conservar-se e expandir-se. A consequência é a seguinte: se a totalidade dos atos do sujeito aponta para a noção de conservação de si, então o móvel fundamental, o operador central, através do qual se pode decifrar o sujeito é o egoísmo, que é a base de toda e qualquer ação. Constitui-se assim aquilo que, mais tarde, resolveu-se denominar, feliz ou infelizmente, uma antro­pologia do egoísmo.

4

Essa emergência do conceito de desejo como noção-chave através da qual pode-se ler e decifrar de forma absolutamente inédita a trama, a dinâmica e os fundamentos da existência humana vai ter um desenrolar longo e complicado na história das ideias entre o fim do século XVII e meados do século XVIII. Vou apenas apontar ou colocar os seus momentos fundamentais e seu desenlace, pois é sobretudo este último que nos interessa particularmente.

A análise hobbesiana do desejo assinala uma de suas características fundamentais, através da qual se repensa o conceito clássico de felicidade. Trata-se da extrema mobilidade do desejo. Nada está mais longe dele, vimos, do que o repouso. Não só é impossível para o sujeito viver quando cessam seus desejos, como também a felicidade é esse contínuo progresso dele; desejo que vai de um objeto a outro, sendo a conquista de um o caminho para que outro possa emergir, e assim por diante. O desejo é móvel, instável e irrequieto. Não tem ponto de ancoragem fixo. A sucessão contínua é a sua forma de existência. O desejo tem, como uma de suas características fundamentais, a inquietude. Esse traço, esse atributo absolutamente notável do desejo, embora claramente assinalado por Hobbes, não parece ter retido sua atenção naquilo que pressupõe sobre a natureza mesma do desejo. Foi exatamente esse ponto, ao contrário, que chamou a atenção de outro grande espírito da época, Malebranche, que desenvolverá a primeira teoria moderna da inquietude. Para ir diretamente ao ponto, tomemos um texto que contém o essencial da teoria malebranchista:

Esta vasta capacidade que a vontade tem para todos os bens em geral […] não pode ser preenchida por todas as coisas que o espírito lhe representa, e todavia esse movimento contínuo que Deus lhe imprime em direção ao bem não pode se deter […] não cessando jamais […] dá ao espírito uma agitação contínua. A vontade, que procura aquilo que ela deseja, obriga o espírito a representar-se todos os tipos de objetos. O espírito os representa, mas a alma não os aprecia; ou, se ela os aprecia, não se contenta com eles. A alma não os aprecia porque frequentemente a visão do espírito não é acompanhada de prazer; pois é pelo prazer que a alma aprecia seu bem; e a alma não se contenta com ele, porque não há nada que possa deter o movimento da alma, a não ser aquele que imprime nela esse movimento. Tudo aquilo que o espírito se representa como seu bem é finito; e tudo aquilo que é finito pode arrebatar por um momento nosso amor, mas não pode fixá-lo. Quando o espírito considera objetos muito novos e extraordinários, ou que tem algo de infinito, a vontade sofre enquanto ele os examina com atenção; porque ela espera encontrar ali aquilo que busca, e porque aquilo que é grande e parece infinito traz o caractere de seu verdadeiro bem; mas com o tempo ela se afasta destes assim como dos outros. Portanto ela está sempre inquieta, porque é levada a buscar aquilo que nunca pode encontrar, e porque sempre espera encontrar.[12]

Poder-se-ia dizer que Malebranche, com outro vocabulário, está apontando para o mesmo fenômeno já assinalado por Hobbes, ao caracterizar a felicidade. Isso é correto, em linhas gerais. Que o fenômeno descrito é o mesmo, não há a menor dúvida. Mas o acento e os suportes conceituais são outros. E, sobretudo, o que Malebranche enfatiza é o lado negativo da questão. E isso terá consequências capitais. Se prestamos a devida atenção ao texto citado acima, a descrição do autor realça que nossa vontade só se detém e repousa num determinado objeto quando ela satisfaz plenamente seu élan de felicidade e prazer. Caso isso não aconteça — e este é o caso dos objetos deste mundo — ela se deterá nesse objeto, vai explorá-lo, fruí-lo, mas logo perceberá que ele não a satisfaz plenamente. E por causa disso buscará outro ponto de ancoragem, outro objeto. Fará isso porque nosso desejo de felicidade é invencível. A noção de inquietude apoia-se exatamente nesse último fator. Abre-se, assim, a possibilidade de uma sucessão contínua de desejos, que se detém em objetos particulares, fruindo deles e percebendo, no entanto, que não trazem a felicidade e, por isso, avança para outro objeto, para repetir o processo, e assim indefinidamente. A inquietude é a vontade em perpétuo movimento, porque insatisfeita.

Fica claro, portanto, que o fenômeno descrito por Malebranche é o mesmo, mas, quando salienta o aspecto “inquietude” nele presente, aponta para o fato de que, se o desejo é irrequieto, móvel, é exatamente porque a insatisfação é a sua marca. O que significa dizer que podemos começar a suspeitar que o conceito de desejo seja realmente primordial. Essa insatisfação, tão característica do desejo, não apontaria para algo mais fundamental, a respeito do qual o próprio desejo seria uma consequência? Essa insatisfação, portanto, é um índice revelador de que o desejo, por si só, é incapaz de explicar esse movimento. Hobbes estava absolutamente correto ao dizer que o repouso significaria a morte do desejo e, por consequência, do próprio sujeito. Mas parece ter dado pouca atenção ao fato de que, se ele é efêmero, se é renovado incessantemente, é porque algo deve estar atrás dele, agindo, excitando, acicatando sua atualização ou reatualização. Impulsionando-o, em suma. Se isso é correto, então ele não pode ser algo fundamental e originário, pela pura e simples razão de que não contém em si mesmo os elementos suficientes para explicar seu renascer incessante. E esse algo que pode explicar esse fenômeno deve estar embutido na própria noção de insatisfação, que reaparece após a fruição. Enfim, para que haja desejo, é preciso que haja insatisfação, e, se o desejo se renova incessantemente, é porque a insatisfação o faz com antecedência. Assim, já em Malebranche, começam a emergir elementos, na sua análise da inquietude, que são suficientes para colocar em dúvida a preeminência do desejo. Seu reinado, ao que tudo indica, será efêmero.

Um pouco mais tarde, Locke levará esses problemas a um grau ainda mais agudo. A análise que realiza da uneasiness humana (termo que para ele reenvia, em linhas gerais, à “inquietude” malebranchista) deixa isso muito claro. Com efeito, a uneasiness é, para Locke, esse estado de mal-estar, de insatisfação, que os diferentes sujeitos carregam consigo e do qual fazem tudo para se livrar. Por outro lado, é bom não esquecer que para Locke a uneasiness e o desejo nada mais são do que faces da mesma moeda: “A uneasiness [mal-estar, insatisfação] que um homem sente em si mesmo pela ausência de alguma coisa, cujo desfrute presente traz consigo a ideia de deleite, é aquilo que chamamos de desejo […]…[13]

Assim, no discurso de Locke, o desejo é a percepção da ausência de um bem. O que significa dizer que, no interior de seu pensamento, o desejo é a percepção da ausência de alguma coisa, cuja presença provocaria prazer ou deleite e que, por isso mesmo, está provocando a insatisfação. E, se a felicidade consiste num estado onde se frui o prazer ou deleite, então aquilo que move o desejo, em última análise, é “unicamente a felicidade”, que nada mais é do que a posse e o usufruto dos bens reclamados pelo desejo.

Para os nossos propósitos, neste texto, o importante é salientar que, mais ainda que em Malebranche, a análise lockiana aponta com muito maior clareza que, quanto mais se aprofunda a análise do desejo, mais fica claro que dois fenômenos estão aí compreendidos: o mal-estar, que parece, esse sim, ser original, e o desejo, que é a consequência desse mal-estar. É verdade que Locke, ao longo de seu texto, identifica uneasiness e desejo, o que torna difícil uma clara compreensão das coisas. Mas, pelo menos num texto, aponta para outra possibilidade: “Aquilo que no curso de nossas ações voluntárias determina a vontade a qualquer mudança de operação é alguma uneasiness presente, que é desejo, ou pelo menos é sempre acompanhada de desejo” .[14]

Levar esta última distinção a fundo, e tomá-la a sério, significa tentar separar com mais cuidado dois tipos de fenômenos que estão aí embutidos conforme vimos assinalando. De qualquer maneira, quanto mais se aprofunda a análise do desejo, mais se percebe que talvez ele não seja mais do que um mandatário. E o que, no fim das contas, pressupõe o desejo? É tentando responder a essa questão que o século XVIII operará uma guinada na compreensão das coisas.

5

A resposta veio num texto célebre: o Traité des sensations, de Condillac (1754). Conhecemos a famosa hipótese elaborada por Condillac nesse texto, a de uma estátua revestida de mármore cujo interior, no entanto, é idêntico ao de um ser humano. A ideia do autor é que se abram progressivamente os diferentes canais sensoriais para que se possa examinar como vão se constituindo os diferentes conhecimentos que o sujeito pode elaborar. Na verdade, a tese de Condillac é mais radical: não só todos os nossos conhecimentos advêm das sensações (fórmula que a corrente empirista já defendia havia tempos), mas também que é através delas que as­sistimos à gênese e à constituição de nossas faculdades.

Assim, quando metodologicamente se abre um (ou vários) canal sensível, as sensações começam a se suceder e o sujeito vai registrando-as passivamente. Pelo princípio da associação das representações é capaz de, dado um elo da cadeia representativa, reproduzir a cadeia inteira que guardou na memória, que nada mais é do que a possibilidade constatada da persistência da sensação após o choque sensível. De qualquer maneira, nestas e noutras operações que vão sendo explicitadas (imaginação, rememoração etc.), o sujeito é puramente passivo. E, se fossem só esses princípios que estivessem em questão, não é difícil perceber que esse sujeito estaria condenado a reproduzir indefinidamente as séries de sensações originais. Nem haveria motivo para que preferisse uma série ou grupo delas a outras. Ele seria como que uma pura máquina fotográfica ou câmera de filmar que registraria indefinidamente essas sucessões:

Se o homem não tivesse nenhum interesse em ocupar-se de suas sensações, as impressões que os objetos fariam sobre ele passariam como sombras, e não deixariam rastros. Após vários anos, ele seria como no primeiro instante, sem ter adquirido nenhum conhecimento, e sem ter outras faculdades além do sentimento. Mas a natureza de suas sensações não lhe permite permanecer adormecido nessa letargia. Como elas são necessariamente agradáveis ou desagradáveis, ele está interessado em procurar umas e em furtar-se às outras, e, quanto mais o contraste entre prazeres e dores tem vivacidade, mais ele ocasiona ação na alma.[15]

A chave para a solução do problema está claramente apontada no texto. Na verdade, cada sensação que recebemos carrega consigo também a possibilidade de afetar-nos agradável ou desagradavelmente. Aliás, ela necessariamente realiza uma dessas duas possibilidades, ou seja, toda sensação é necessariamente acompanhada de dor ou prazer. São exatamente esses componentes que constituem os móveis que impulsionam o sujeito. Se quisermos sintetizar, ao máximo, o raciocínio de Condillac, teríamos o seguinte: se, por tese, tudo deriva da sensação, então o fator motivante, isto é, aquilo que funciona como causa explicativa para que o sujeito dê atenção ou não a uma determinada percepção (ou cadeia de percepções), também isso deve estar presente originalmente. Por exemplo, quando abrimos o canal olfativo, a estátua recebe uma série de odores. Mas estes são necessariamente agradáveis ou desagradáveis. Assim, ao mesmo tempo, experimenta-se gozo ou sofrimento. Suponhamos, agora, uma série de odores alternados, já experimentada pelo sujeito. Se, ao repetir-se um desses odores (desprazeroso, por exemplo), ele comparar com outro que já experimentou (agradável, por exemplo), e comparar, portanto, seu estado atual com outro, isso o levará a perceber que pode deixar de experimentar seu estado atual e voltar a outro anterior (no caso, agradável). É assim que se constitui o princípio que guia a ligação de nossas ideias, desde os modos mais simples até os mais complexos.

Fica claro, portanto, que no ato de sentir duas coisas estão em jogo: aquilo que nos afeta (o vermelho, por exemplo) e o modo como somos afetados (prazerosamente ou não). É exatamente este último fator que constitui o motor principal de nossos atos espirituais, de nossos pensamentos e de nossas ações. É ele que funciona como princípio de determinação e seleção. Todas as operações de nosso espírito visam, basicamente, a fugir da dor e buscar o prazer. É, portanto, a ação desse par prazer/dor que constitui, como diz Condillac “o único princípio” que determina todas as operações da alma. Constitui o primus movens.

Sem o prazer, nossa estátua nunca teria vontade de mover-se, sem a dor, ela se transportaria com segurança e infalivelmente morreria. Portanto é preciso que ela esteja sempre exposta a sensações agradáveis ou desagradáveis. Eis o princípio e a regra de todos os seus movimentos. O prazer a liga aos objetos, a engaja a prestar-lhes toda a atenção da qual ela é capaz, e a formar-se ideias mais exatas desses objetos. A dor afasta-a de tudo aquilo que pode fazer-lhe mal, torna-a mais sensível ainda ao prazer, faz com que ela discirna os meios de desfrutá-lo sem perigo, e lhe dá lições de indústria; em uma palavra, o prazer e a dor são seus únicos mestres.[16]

Temos aqui, portanto, um princípio original e constitutivo do sujeito. Ora, basta que prestemos uma atenção mais cuidadosa para que percebamos que, operando essa análise, Condillac acaba por desentranhar aquilo mesmo que estava suposto quando das análises precedentes do desejo (so­bretudo em Malebranche e Locke). Sim, de fato, o desejo não é originário, como já se andava desconfiando. Originários são os estados de prazer ou desprazer. É o desprazer, por exemplo, que gera essa sensação de mal-estar, essa insatisfação que, de forma pura, aparece como um impulso vago de sair da situação atual. O desejo é exatamente esse movimento em direção a outro estado, diferente do atual, e que, portanto, deve ser cuidadosamente distinguido da insatisfação que o gera. Assim, Condillac é levado a corrigir Locke: “Mas, ao querer definir o desejo ele [Locke] o confundiu com a causa que o produz. A inquietude [uneasiness], diz ele, que um homem sente em si mesmo pela ausência de uma coisa que lhe daria prazer se estivesse presente é aquilo que chamamos de desejo. Logo seremos convencidos de que o desejo é uma coisa distinta dessa inquietude”.[17]

Condillac inverte, portanto, a ordem estabelecida por Locke. A inquietude é geneticamente primordial. A ordem real, segundo Condillac, seria, pois, a seguinte: prazer/desprazer—inquietude— desejo. Mas, assim procedendo, Condillac operou uma nova reviravolta na questão, pois o originário agora passa a ser o par prazer/desprazer.

Tentemos resumir tudo o que vimos até agora. A filosofia clássica baseava-se na ideia da preexistência de um objeto (o bem) para o qual o sujeito deve tender naturalmente. O que acarretava, como assinalamos, que o primordial na ordem e na hierarquia das paixões fosse o par amor/ódio. Num segundo momento, Hobbes inverte a ordem clássica, co­locando o par desejo/aversão como primordial, reescalonando os elementos em questão. Ora, Condillac vai mais longe ainda, pois mostra que não é o desejo que é primordial. Ele é um fenômeno derivado. O originário é o prazer ou a dor, que são “os únicos princípios de meus desejos”.[18] De agora em diante, portanto, a ordem inicial clássica foi totalmente in­vertida, pois o esquema agora é:
1- Prazer Desprazer
2 – Desejo Aversão
3 –
Amor Ódio

Basta que se compare esse quadro com aquele anterior para que se perceba o conjunto das mutações conceituais que foram operadas. A partir do Traité, com uma clareza talvez nunca atingida anteriormente, todo o domínio da vida espiritual está subordinado a isso que podemos denominar o princípio do desprazer/prazer. É porque causa prazer que o objeto é apetecível, desejável e, em consequência disso, será amado. É também por essa razão que o objeto será valorizado e se tornará digno de inspeção e de conhecimento: Daqui minhas necessidades, meus desejos e os diferentes interesses que são o móvel de minhas ações, de forma que só estudo as coisas na proporção em que acredito descobrir ali prazeres a procurar ou dores a afastar.[19]

Todo o domínio do entendimento, no plano teórico, nasce e se desenvolve subordinado inegavelmente a esse princípio fundamental. O teórico é derivado. O Traité des sensations mostra de forma inequívoca o primado da dimensão passional sobre a dimensão teórica. Esta última aparece como uma espécie de camada semântica que se sobrepõe a outra, mais original. Nela o teórico se subordina à dimensão prática, e é na camada mais originária, a das afecções elementares, prazer/dor, das necessidades e dos desejos, que brota um sentido original, primordial, balbuciante num certo sentido, mas que será determinante.

A partir de todos esses elementos, tomados em conjunto, uma nova ideia e uma nova compreensão do homem é posta em relevo. Da concepção clássica — que ainda conserva muito de sua força — passa-se, a partir de Hobbes, à constituição dos elementos que funcionarão para a criação de uma nova antropologia. Antropologia fundada nas potências do prazer, do desejo etc., que impulsionam as capacidades quase ilimitadas do imaginário. Tudo isso acaba dependendo, em última análise, a partir de Condillac, de uma concepção em que o prazer e a dor são os elementos fundamentais. Essa é, seguramente, uma das heranças mais problemáticas e originárias que a época moderna nos legou. Das mais espinhosas também. Em essência talvez não seja difícil enunciá-la: a do papel constituinte do prazer na estruturação do sujeito. Mas, compreendemos realmente toda a extensão e as consequências dessa tese? Tese que está admiravelmente resumida numa passagem do capítulo final do Traité: “Pois viver é propriamente gozar, e a vida é mais longa para quem mais sabe multiplicar os objetos de seu gozo”.[20]

O Traité des sensations funcionou como um foco de irradiação e como um polo de condensação. De irradiação, em primeiro lugar, porque a partir dessa sistematização os desenvolvimentos serão inevitáveis. No nível estritamente filosófico, essa corrente que conhecemos pelo nome de Ideologia (Cabanis, Tracy, Biran etc.) será herdeira direta de Condillac. Não é difícil vislumbrar também sua importância na constituição da escola utilitarista (Bentham e sua escola).[21] A denominada escola psicologista em economia deve também muito à obra de Condillac. Na verdade, ainda não se fez um inventário minucioso da influência do Traité na his­tória das ideias.

Mas, se voltamos nossa atenção para sua própria época, o Traité des Sensations funcionou também como um polo de condensação. E isso porque ele reagrupa e sistematiza, num todo harmonioso e coerente, teses que já andavam no ar por longo tempo. Ele as interliga de tal forma que nos aproximamos da ideia de um sistema. Em primeiro lugar, como tese central, temos o primado do princípio do desprazer/prazer na constituição do sujeito. O que significa dizer que é por aí que se deve ler o móvel central que faz o sujeito agir e pensar. Aquilo que lhe imprime movimento, em suma. Por isso mesmo, o desejo, embora geneticamente secundário com relação ao prazer, não deixa de ser central na medida em que é através de seu circuito que o sujeito realiza sua finalidade. Finalidade esta que é, é bom não esquecer, meramente subjetiva. O egoísmo passa a ser, portanto, a nota dominante através da qual se podem decifrar os atos desse mesmo sujeito. Direta ou indiretamente todos os seus atos e pensamentos a ele reenviam.

É exatamente por isso que na modernidade vai se instalar o protótipo de certo tipo de leitura que fará história até os tempos recentes. Estamos nos referindo, é claro, ao que se costumou denominar a “leitura da suspeita”, que terá seu ápice em Nietzsche e Freud, mas cujas origens já estão perfeitamente delineadas na obra desmistificadora de La Rochefoucauld.

Mais ainda: porque toda finalidade é subjetiva, é preciso que se repensem as noções de valor e de bem. Ambas agora brotam do âmago da subjetividade. Não podem existir mais nem bens nem valores objetivos aos quais os sujeitos devam se subordinar, a não ser que essa objetividade seja instaurada através dos próprios homens mediante um acordo comum entre eles. Mas, num caso como no outro, são os próprios sujeitos que instituem os valores, que os escalonam e os hierarquizam.

Por isso mesmo, a noção de interesse e, sobretudo, a noção de inte­resse pessoal passam a ser chave na modernidade. Através de diferentes termos, como amor-próprio, amor de si, egoísmo, interesse etc. (alguns com conotações mais pejorativas que outros), reenvia-se sempre a esse núcleo fundante dos valores. Daí também o grande problema da modernidade: como, num universo onde predominam os interesses individuais, conciliar estes últimos com o interesse geral, sem o que o edifício social não é possível? As respostas foram várias, e quase sempre discordantes. Mas, a partir de determinado momento, isso que é importante notar, nenhum autor pode mais se furtar a essa questão.

Duas noções, em suma, emergem dessa trama que vimos acompanhando em linhas gerais. Em primeiro lugar, a noção de indivíduo,[22] como uma unidade autônoma e como centro de referência última, a partir do qual se deve tentar explicar as demais realidades. Em segundo lugar, a noção de utilidade, decorrência inevitável da postulação que diz que, no centro, está um indivíduo apenas preocupado em satisfazer seus desejos. Seguramente a ideologia liberal não nasceu, nem se desenvolveu, levando em conta apenas os fatores que estamos arrolando. Mas eles inegavelmente contribuíram, e muito, para tal.[23]

6

Mas o Traité des sensations funcionou também como um polo de condensação de um ponto de vista mais específico ou particular, que nos interessa de modo especial. Estamos nos referindo ao primado do prazer. No século XVIII a tese aparece periodicamente nos textos de Mandeville, de Voltaire ou de Hume, por exemplo. Mas por volta da época da publicação do Traité houve como que uma condensação em torno do tema. Além do próprio texto de Condillac, surgem textos onde a tese já não aparece pura e simplesmente, como uma mera tese, mas sim como a pedra angu­lar a partir da qual se estrutura todo o discurso. Isso fica particularmente claro na obra de La Mettrie e de Helvétius. Assim, por exemplo, em La Mettrie lemos: “Le plaisir est de l’essence de l’homme, et de l’ordre de l’univers” .[24]

Em Helvétius a afirmação não é tão abrangente, mas suficientemente ampla: “[…] la douleur et le plaisir sont les seuls moteurs de l’univers moral”.[25]

Mas, como acabamos de apontar, o mais importante aqui é que em ambos os casos assim como em Condillac — já não se trata de uma afirmação, mas sim de colocar um princípio, através do qual vai se estruturar todo um sistema ético ou ético-político. A diferença básica, no que nos interessa aqui, entre o sistema apresentado por Condillac no Traité e aqueles apresentados por La Mettrie e Helvétius (respeitadas as suas diferenças) consiste basicamente em que Condillac faz do princípio do desprazer/prazer a mola mestra a partir da qual o sujeito eleva-se da sensibilidade pura para constituir o conjunto principal de suas faculdades espirituais. Mas trata-se, essencialmente, de um indivíduo isolado, já que isso é uma exigência do método que o autor se impôs. Já os dois outros autores mencionados partem desse sujeito assim constituído e procuram pensar quais serão as implicações éticas e ético-políticas de tal tese. Tomemos o caso de La Mettrie, que é exemplar para os nossos propósitos.

Quando abrimos o “Discurso preliminar” de suas Obras filosóficas,[26] La Mettrie, através de um conjunto de teses aparentemente paradoxais, estabelece a sua ideia central. Ele parte da ideia de que a filosofia é algo oposto à política e à moral, esta última sendo decorrência da primeira. A filosofia baseia-se, essencialmente, na razão natural e na experiência, e seu objeto são as verdades naturais. Já a moral, a política e a religião são fruto do arbitrário e do convencional. Elas derivam do fato de que os homens vivem em sociedade. São a consequência dos homens terem formado o projeto de viverem juntos. Para isso, foi preciso que artificial e arbitrariamente fossem criadas regras, leis, sanções, penas etc. etc., que apenas existem para que esse convívio seja possível. Assim, a filosofia (mas é bom aqui não esquecer o sentido que esse termo tem no século XVIII) busca a verdade tal como a natureza nos revela. A política e a moral são o resultado das convenções entre os homens. Portanto, tanto seus objetos como seus objetivos são diferentes. São dois os princípios que guiam essas disciplinas. A filosofia (no campo ético) trata dos sentimentos que brotam naturalmente nos sujeitos; a política (e a moral), das leis instituídas para a manutenção do edifício social. A primeira trata da moral natural, as outras duas nada mais são do que uma arte, um artifício. A filosofia ensina a seguirmos nossas inclinações naturais, nossos gostos, aquilo, enfim, que nos causa prazer, já que este é o princípio supremo que rege as vidas humanas. Já a política e a moral (social) pregam, dado o nível em que se colocam, que devemos coibir-nos, frear nossos impulsos naturais, vencer a nós mesmos e, na medida do possível, parecer-nos com os demais; viver e pensar como eles. Uma diferencia, a outra uniformiza. Assim, deve-se distinguir cuidadosamente entre a busca e a posse da verdade, e aquela preocupação concernente ao justo e ao injusto, ao bem e ao mal, preocupação dos legisladores que estão interessados naquilo que favorece a vida social. Estes últimos preocupam-se não com a verdade, mas com a utilidade social.

Mas, sendo assim, o que nos mostra a reta razão natural? Ela mostra que “Não há nada absolutamente justo, nada absolutamente injusto. Nenhuma equidade real, nenhum vício, nenhuma grandeza, nenhum crime absoluto” .[27]

Se alguém dissesse ter extraído essa citação de uma obra de Sade, isso seguramente não causaria espanto. Assim, diz La Mettrie, só podemos usar esses conceitos de forma relativa. E, sobretudo quando se trata de relações sociais, não procuremos erigir num absoluto aquilo que é apenas uma regra de relação. Melhor dizendo, de relações públicas, porque só nesse espaço se pode falar em justiça, bem etc. O que implica dizer — e esse é o ponto importante — que, entre o que o filósofo pensa e escreve em seu gabinete e aquilo que ele faz efetivamente na trama de suas relações sociais, há uma enorme distância e diferença, exatamente aquela que existe entre a verdade natural e a utilidade social: “Qualquer que seja minha especulação no repouso de meu gabinete, minha prática no mundo não tem nada a ver com ela; não moralizo ao falar como faço por escrito. Na minha casa, escrevo o que me parece verdadeiro, estando com os outros digo o que me parece bom, salutar, útil, vantajoso; num lugar prefiro a verdade como Filósofo, no outro, o erro como Cidadão”.[28]

Não é preciso ir muito longe para perceber que o espaço da verdade, em La Mettrie, não é exatamente o espaço público. Aliás, opõe-se a ele. A verdade brota no interior do gabinete do filósofo. É longe do espaço público que iremos encontrar as condições de possibilidade da verdadeira felicidade. Melhor dizendo: de encontrar a verdade e, por aí, a realização da felicidade. La Mettrie introduz um dilaceramento escandaloso entre o espaço da verdade e o espaço social, na medida em que opõe frontalmente os dois campos. Constitui um “espaço privado”, sui generis, que escapa ao domínio das convenções e das regras e procura pensar esse que fornece as condições para que se realize o natural do homem, isto é, a sua verdade. Além da oposição clássica (espaço público/espaço privado), instaura-se outro espaço: o espaço secreto,[29] mas isso é matéria para outra discussão. Constitui-se assim um novo espaço, que é o da subtração. Subtração da convencionalidade da lei, para que a natureza apareça, cresça e floresça na sua pureza. Trata-se de um espaço intencionalmente instaurado para que no seu interior possa brotar a verdade do sujeito. Bem pensadas as coisas, entre o gabinete do dr. La Mettrie e o boudoir do marquês de Sade a distância não é tão grande assim. La Mettrie, aqui como em outros pontos, prepara Sade. Esses espaços são, por assim dizer, figurações simbólicas dessa operação de afastamento do social e da tentativa de encontro direto com o natural.

A ideia, portanto, é a de se atingir um locus onde a verdade é extraída da ação real. O que se tenta é o reenquadramento da ação humana, para que se atinja a verdade inédita das ações dos homens. Além de provocativo, existe, sem dúvida, algo de sério na expressão: “philosophie dans le boudoir”.

Muito bem, instaurado esse espaço, o que acontecerá no seu interior? Ele deverá ser regido por uma dinâmica própria e específica. O que são os homens para La Mettrie? Nós sabemos, através do título de uma de suas obras, a mais famosa. Somos máquinas. Mas qual a função e a finalidade dessas máquinas? Elas aspiram a uma e a uma só coisa: atingir o prazer. Somos, para La Mettrie, literalmente, máquinas para gozar. Todos os praze­res, enquanto tais, lhes são benéficos e conspiram para sua felicidade. Mas existe uma classe de prazeres privilegiados, pois são os mais intensos. São os prazeres do amor: “Todas as paixões se eclipsam diante da paixão de amar. Ela as comanda como uma rainha”.[30]

Que o leitor não se iluda. La Mettrie em momento algum está se referindo a alguma paixão amorosa no sentido açucarado ou romântico. Está apontando para o exercício efetivo da voluptuosidade. É nela, e pelo seu exercício, que o homem pode alcançar a felicidade: “Portanto, cada homem traz em si, com o gérmen da voluptuosidade, aquele de sua própria felicidade”.[31]

Poucos anos depois, em 1758,[32] Helvétius, no De l’esprit, vai um pouco na mesma linha quando afirma que, entre “os prazeres, o do amor é o mais vivo”,[33] pelo menos nas sociedades policiadas, e “o mais potente de todos” .[34] E é exatamente esse prazer intenso que serve de contraponto para os espinhos da vida e nos compensa de outros desprazeres.[35] Isso nos traz a felicidade, que não é outra coisa, se a analisamos e decompomos, senão o prazer físico.[36]

Assistimos aqui, portanto, ao desdobramento mais ou menos natural dessa trama conceitual que vem se desenrolando, e que culminou na tese do Traité sobre o primado do prazer. Desde Platão,[37] sabemos, os pensadores insistem que todos os prazeres, os mais intensos, são os prazeres amorosos. Assim, colocar o primado do prazer teria, como consequência, uma valorização da sexualidade. Esse desenlace, se não é inevitável, é perfeitamente coerente com as premissas dadas. O que temos, portanto, é a introdução da temática da sexualidade como lugar privilegiado da realização da felicidade. O sexo passa, sem dúvida, a ser o centro de atenção do discurso teórico. Passa a ser o objeto de apologia e centro a partir do qual as diferentes paixões adquirem sentido: elas agora passam a se organizar em função dele, já que nele está o cerne do prazer e a raiz da felicidade: “As paixões mesmas, esses elementos tão necessários ao homem, como o ar que respira, são os mais fiéis ministros da voluptuosidade”.[38]

Mas uma sexualidade, erigida em princípio da vida feliz, é a mesma para os diferentes sujeitos? As regras de seu funcionamento, as interdições e as liberações, incidem sempre da mesma forma, produzindo, avant la lettre, aquilo que uma expressão feliz caracterizou como a “monotonia das noites vitorianas”? De forma alguma. La Mettrie retoma, com um vigor que só será comparável ao do marquês de Sade, a teoria das organizações individuais, que diz que os diferentes sujeitos desejam coisas diferentes e mesmo o próprio sujeito varia seus desejos no desenrolar do tempo. Cada indivíduo, sendo organizado de forma diferente, achará seu prazer em concordância com essa sua estrutura particular.[39] E La Mettrie extrai imediatamente as consequências:

A má disposição ou o desarranjo dos órgãos impede-nos de aproveitar [a voluptuosidade]. Entretanto, penso que para ser tão feliz quanto é possível sê-lo não se deve senão aplicar-se a conhecer seu [próprio] temperamento, seus gostos, suas paixões, e saber fazer um bom uso. Agir sempre em consequência do que se ama, satisfazer todos os seus desejos, quer dizer, todos os ca­prichos da imaginação. Se a felicidade não está aí, digam-me onde está.[40]

Um texto como este deixa claro que é nessa inclinação particular de vida à nossa organização, nesse algo que é como que uma característica distintiva, que reside o nosso prazer, a nossa felicidade. Muito longe de patologizar o sexo, como fará a medicina e a psiquiatria um pouco depois, e muito longe também de culpabilizá-lo, como faziam os moralistas e os teólogos, La Mettrie restitui à sexualidade, e às suas diferentes formas, a sua inocência primitiva, primordial: a natureza é diversa, os homens são diferentes: não vamos colocá-los sob um mesmo molde. Deixemos eclodir a diversidade e cada um terá sua forma natural e única de ser feliz.

Se tentamos reunir sinteticamente todos os elementos principais que foram arrolados no decorrer deste texto, não é muito difícil perceber por que emergiu, no século XVIII, uma literatura libertina sui generis. Desde o século XVII, com uma intensificação crescente, foi-se privilegiando o sujeito como sendo determinado pelas paixões, pelo desejo, por essa estranha característica de estar permanentemente insatisfeito e sempre na busca de novas satisfações. Percebeu-se paulatinamente que o prazer era aquilo que detinha a chave para que se entendessem seus mistérios e, assim o promovendo, fez-se com que a sexualidade emergisse como tema fundamental que descortina a verdade ética do sujeito, aquilo, por excelência, com o que ele pode atingir sua realização. Abriu-se por fim a possibilidade discursiva de esquadrinhar as diferentes formas, as diferentes manifestações da sexualidade, fazendo-se destas o correlato necessário da inevitável diversidade organizacional dos sujeitos. Salienta-se, sobretudo, a naturalidade disso tudo. Que tudo isso nada mais é do que o resultado da razão natural bem aplicada. Por isso, uma das características marcantes dessa literatura é mesclar a descrição com a demonstração. Por isso também que ela é uma literatura com muitas particularidades. Ela não visa somente o imaginário do sujeito porque, exatamente, está convencida da verdade daquilo que diz. Foi essa constelação conceitual original que, séculos depois de Platão, e de forma totalmente diferente, tornou possível a união desconcertante entre o sexo e a verdade.

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Nesse sentido, La Mettrie constitui, portanto, o último elo dessa longa cadeia, e nele encontram-se sintetizadas as principais noções dessa trama, conforme procuramos explicitar acima. Mas, num certo sentido, ele vai mais longe e, como dissemos acima, prepara, discretamente, a obra do marquês de Sade. Usamos aqui intencionalmente a expressão prepara porque Sade, de fato, constitui um caso à parte. Sem a menor dúvida, está inserido nessa corrente libertina da qual é um dos últimos e principais representantes. Mas, aqui, é preciso um pouco de cuidado. Sade, de certa maneira, supera, conservando-o, o discurso libertino do século XVIII. Sade leva-o a tal extremo que uma verdade inédita emerge. É por essa razão, acreditamos, que a análise do texto de Sade requer uma delicadeza quase infinita.

De qualquer modo, como dissemos, La Mettrie, além de expressar os princípios da literatura libertina do século XVIII, antecipa Sade em alguns pontos, embora de forma tímida. Tomemos, por exemplo, sua crítica, extremamente ácida, ao remorso. A crítica em si não é nova. Já não se pode dizer o mesmo das consequências que são extraídas. La Mettrie vê no remorso a fonte principal de nossos males no plano moral e, por isso, ele é algo do que devemos nos desembaraçar. Ele constitui, na verdade, o grande empecilho para que o sujeito atinja a felicidade:

Pode-se ser feliz, concedo, não fazendo aquilo que nos causa remorsos. Mas, por essa via, nós nos abstemos frequentemente daquilo que nos dá prazer, daquilo que a natureza pede [de nós]; do que a faz sofrer se somos surdos à sua voz. Nós nos abstemos de mil coisas que não podemos deixar de desejar e amar. Trata-se aqui, então, de uma felicidade de criança, fruto de uma má educação e de uma imaginação preocupada. Ao passo que, não se privando desses mil prazeres, dessas infinitas doçuras, que, sem fazer mal a ninguém, fazem muito bem para aqueles que gostam sabendo que é puerilidade se arrepender do prazer que se teve, teremos uma felicidade real e positiva.[41]

Mas, daqui por diante, o raciocínio toma um aspecto vertiginoso, pois, se é assim, abolido o remorso tudo aquilo que contribuir para a felicidade do sujeito deve ser assumido como tal: “O prazer da alma sendo a verdadeira fonte da felicidade, é, portanto, muito evidente que, com relação à felicidade, o bem e o mal são absolutamente indiferentes. E aquele que tiver uma grande satisfação em fazer o mal será mais feliz do que qualquer um que tenha menos em fazer o bem”.[42]

É evidente que o tema da felicidade no mal está sendo claramente aflorado aqui. Mas não nos iludamos: La Mettrie extrai claramente essa consequência: “Trata-se também dos malvados. Eles podem ser felizes, se conseguem ser maldosos sem remorsos”.[43] E ele não hesita em realizar esse divórcio entre a felicidade e a bondade, ao mesmo tempo que dá completamente as costas à opinião que se desenrola no espaço público: “Isso não é tudo. É necessário que desprezes a vida tanto quanto a estima ou o ódio do público. Aí então, com efeito, eu sustento: parricida, incestuoso, ladrão, celerado, infame e justo objeto da execração dos homens honestos, você, no entanto, será feliz”.[44]

A conclusão de tudo isso é uma só: “Que não se diga que eu convido ao crime, porque eu não convido senão ao repouso no crime”.[45]
Penso, para terminar, que qualquer comentário sobre esses textos, que eu intencionalmente alinhavei, é absolutamente desnecessário.

Notas

[1] Poder-se-ia invocar, com relação a Roma, o Satyricon, e, no caso do Renascimento, a obra de P. Aretino. Mas, em ambos, trata-se de casos isolados. E arrolar Catulo e Marcial, de um lado, e o Decameron, de outro, é dar mostra de insensibilidade literária

[2] Muito bem apontada por Deleuze com relação a Sade no seu livro Présentation de Sacher-Masoch, Paris, 10/18.

[3] Por exemplo, A educação de Laura, de Mirabeau; Teresa filósofa, do marquês d’Argens; Filosofia na alcova, de Sade.

[4] São Tomás, Suma contra gentiles, Madri, BAG, 1967, vol. II, pp. 172-4.

[5] São Tomás, Suma de teologia, Madri, BAG, 1989, vol. II, partes HI, questão 25, artigo 2, p. 239.

[6] Hobbes, Elements of law […], capítulo VII, parágrafo 1, in English works, ed. Molesworth, vol. IV.

[7] Idem, ibidem, capítulo vi, pp. 121-2.

[8] Hobbes, Leviatã, Penguin, 1976, capítulo VI, p. 120. Entre a afirmação de que existe um único conatus, o de conservação de si, e que os desejos são divergentes nos diferentes sujeitos, não há contradição. Esses desejos já são derivados desse originário e constituem-se conforme a organização individual.

[9] Hobbes, De homine, Paris, Blanchard, 1974, capítulo XIII, parágrafo 9, p. 175.

[10] Hobbes, Human nature, capítulo VIII, parágrafo 3, p. 32.

[11] Hobbes, Leviatã, capítulo XI, pp. 160-1.

[12] Malebranche, Recherche de la verité, in Oeuvres completes, Paris, Vrin, vol. II, pp. 16-7.

[13] Locke, An essay concerning human understanding, Oxford, Clarendon Press, xx, 6. Outros textos que dizem a mesma coisa: II, XXI, 31 e II, XXI, 32.

[14] Idem, ibidem, II, XXI, 71. O grifo é nosso.

[15] Condillac, Traité des sensations in Oeuvres philosophiques, Paris, PUF, 1947, vol. I, p. 324, coluna b.

[16] Idem, ibidem, II, yin, parágrafo 1.

[17] Idem, ibidem, p. 327. Um pouco antes, lemos a seguinte afirmação: “Locke foi o primeiro a observar que a inquietude, causada pela privação de um objeto, é o princípio de nossas determinações. Mas ele fez a inquietude nascer do desejo, e trata-se precisamente do contrário” (p. 325).

[18] Idem, ibidem, IV, VIII, parágrafo 2.

[19] Idem, ibidem, IV, VIII, parágrafo 4, p. 312.

[20] Idem, ibidem, IV, IX, parágrafo 2, p. 314.

[21] Basta consultar o estudo de E. Halévy, La formation du radicalisme philosophique, Paris, Alcan, 1901-4, 3 vols.

[22] Não estamos, em momento algum, querendo dizer que os fatores que arrolamos até agora esgotam a questão. Estamos nos antípodas de uma tal posição. O que estamos querendo dizer é apenas isto: estes fatores também devem ser levados em conta.

[23] Reenviamos o leitor ao livro de L. Dumont, Homo aequalis, Paris, Gallimard, 1977, e ao pequeno mas estimulante ensaio de P. Rosanvallon, Le libéralisme economique (Histoire de l’idée de marchei, Paris, Seuil, 1989).

[24] La Mettrie, Oeuvres philosophiques, Paris, Fayard, 1987, vol. II, p. 119.

[25] Helvétius, De l’esprít, Paris, Fayard, 1988, p. 211.

[26] La Mettrie, “Discours préliminaire”, op. cit., vol. I, pp. 9-49.

[27] Idem, ibidem, p. 24.

[28] Idem, ibidem, p. 32.

[29] Sobre a importância dessas noções de “segredo” e “secreto” na modernidade, reenviamos o leitor à bela análise de R. Koselleck, no seu livro Critica iluminista e crisi della società borghese, Bolonha, Ii Mulino, 1972.

[30] La Mettrie, Oeuvres philosophiques, vol. II, p. 130.

[31] Idem, ibidem, vol. II, p. 122.

[32] O texto de La Mettrie do qual extraímos as últimas citações, La volupté, foi publicado em 1747.

[33] Helvétius, op. cit., p. 190.

[34] Idem, ibidem, p. 305.

[35] Idem, ibidem, p. 328.

[36] Idem, ibidem, p. 301.

[37] Platão, Leis, VI, 782c-783d.

[38] La Mettrie, op. cit., vol. II, p 129.

[39] Teoria que, na época moderna, remonta a Hobbes, como vimos. Cf. o texto indicado na nota 8.

[40] La Mettrie, op. cit., vol. II, p. 122.

[41] Idem, ibidem, vol. II, p. 240.

[42] Idem, ibidem, vol. II, p. 262.

[43] Idem, ibidem, vol. II, p. 284.

[44] Idem, ibidem, vol. II, p. 285.

[45] Idem, ibidem, vol. II, p. 287.

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