Operário, personagem emergente
Resumo
Até a década de 1970, note-se que, fora do cinema institucional, operário não tem vez. Talvez apareça esporadicamente numa ou noutra chanchada, como “O caçula do barulho”, filmado em 1949 pelo italiano Ricardo Freda. Mesmo nos filmes que cantam a pujança da São Paulo dos anos 1920, inclusive nos que reconhecem que tal pujança deve a muito sofrimento – a exemplo de “Fragmentos da vida”, de José Medina –, não se vê operário. Quando o Cinema Novo institui uma crítica à sociedade, é no camponês que o cineasta busca a representação do popular oprimido.
Em 1970, surgem mais de 20 filmes que, de alguma forma, relacionam-se com a temática.
Por que isso?
A teoria segundo a qual as movimentações operárias da época – suas grandes greves – acarretaram tal produção é simplista, senão errônea. Essa relação direta e mecânica não existe. Basta, para negá-la, lembrar que, em 1953 e 1957, já havia acontecido as greves dos 300 mil e 700 mil, respectivamente. É, pois, necessário procurar uma articulação entre o grupo produtor de arte, sua consciência, inserção na sociedade, e a evolução da estrutura social como um todo. Que a população urbana ativa tenha passado de 13% para 28% na década de 1970, isso não é um dado suficiente por si. Para dimensioná-lo com precisão, ele deve ser refletido do outro lado, ou seja, o dos cineastas, que passam a pertencer, nem que seja por hereditariedade, a uma camada social de intelectuais e profissionais liberais – professores, médicos, jornalistas… – que está passando por grandes modificações. Cada dia mais desprovida de sua aura de prestígio cultural, mais assalariada, tal camada começa a aproximar-se da classe operária. O cinema mesmo mergulha no capitalismo. Então, o que se pode concluir, de modo global, é que a própria evolução do meio profissional dos cineastas condiciona-os a considerar a sociedade brasileira do ponto de vista da evolução do capitalismo e, assim, da classe operária também. Desloca-se, enfim, a representação do popular. Disso, “Passe livre” (1974), de Oswaldo Caldeira, é a representação maior; pelo menos, pelo lado ficcional. Pelo lado documental (em curta metragem), há que se destacar o movimento paulista, financiado pelo Dieese e pelo Sindicado de Operários de São Bernardo. Ele cujo expoente máximo foi Renato Tapajós, que dirigiu “Sobre a origem da riqueza”, “Acidentes de trabalho” e “Que ninguém, nunca mais, ouse duvidar da capacidade de luta do trabalhador”. O interessante é que, não só na filmografia de tal movimento, como na da década de 1970 inteira, encontra-se um operário de tese. E isso mesmo numa comédia como “Se segura, malandro” (de Hugo Carvana), em que o burguês é objeto de zombaria, mas não o povo, historicamente idealizado. Há que se notar, enfim, o operário em filmes em que ele não é protagonista, pois é neles que se encontram seus melhores relances. Notadamente, “Shirley” e “Crônica de um industrial”, em que o operário, mais do que explicado, é vivido. É também o caso de “A queda”, único filme da época que retrata um operário sem o estigmatizar. Isso porque, nessa rica ficção ao vivo, Mário (o protagonista) é movido por forças dramáticas – não classistas (como na concepção científica) –, o que se mostra eficaz porque, na verdade, não são nos centros de decisão e opressão em que se sente o poder, mas na fina rede que se estende por sobre o conjunto das relações sociais.
Emerge, no cinema brasileiro dos anos 70, ficção e documentário, o personagem do operário. Operário de fábrica, em geral ligado a setores avançados da indústria no Brasil, como os metalúrgicos, ou trabalhadores na construção civil, que, na década, constituiu um setor de grande investimento.
Até poucos anos atrás, os operários, raríssimos na filmografia brasileira, apareciam principalmente em filmes patrocinados por empresas. É o tradicional Jean Manzon. Em Esta é minha vida, um mecânico, ao receber o escudo da Willys com seu número de empregado, declara: “Era para mim uma verdadeira condecoração”, e finaliza a narração: “Segui a profissão dos meus sonhos. Melhorei muito de vida. Tenho uma casa, um automóvel, um lar. Nós podemos viver sem receio, felizes também, neste país de homens livres”. Quer seja nos filmes que nos anos 20 e 30 produziram Votorantim ou Matarazzo, quer nos mais recentes J. Manzon, Primo Carbonari e outros, o que aparece é um operário idealizado cuja função é enaltecer a empresa, sua quantidade e competência são sinais de prosperidade da fábrica. Se o operário é visto fora do ambiente de trabalho, é para mostrar que a firma lhe assegura boas condições de vida.
Fora desse cinema institucional, operário não tem vez. Talvez apareça esporadicamente numa ou noutra chanchada, como este O caçula do barulho, realizado em 1949 pelo italiano Ricardo Freda. Mesmo nos filmes que cantam a pujança de São Paulo, no fim dos anos 20, mesmo quando os cineastas reconhecem que esta pujança se ergue em cima de muito sofrimento (Fragmentos da vida, José Medina, 1929), operários não aparecem. Faz as vezes de proletário o vagabundo, o “baixo mundo” preenche a ausência de classe operária. Ou então o sambista de morro espoliado pela gravadora. Ou então o “malandro carioca”, que sempre dá um jeito. Ao não identificar operários ou camponeses no conjunto social, e ao ver a burguesia antes como café-society (a importância do colunista social no cinema popularesco dos anos 50) que como burguesia, o cineasta evita apresentar uma sociedade estruturada em classes sociais e pode projetar seu próprio marginalismo (ou impressão de) sobre os vagabundos e os malandros.
Quando o Cinema Novo constrói uma atitude crítica diante da sociedade brasileira, é no camponês, o nordestino principalmente, que o cineasta vai buscar a representação do popular oprimido (Deus e o diabo na terra do sol, Vidas secas e outros). Nessa primeira metade da década de 60, em que se elabora uma imagem, que para nós foi forte, dos oprimidos, o operário continua ausente do cinema brasileiro. Talvez somente o episódio de Leon Hirszman para Cinco vezes favela, Pedreira de São Diogo (1962), tenha abordado o operário urbano. Trata-se de uma visão idealizada de como idealmente processa-se uma luta social.
1965
Teria sido necessário esperar a década de 70 para ver o cinema brasileiro preocupar-se amplamente com a classe operária, não fosse o ano de 1965. O desafio, de Paulo Cesar Saraceni, e São Paulo Sociedade Anônima, de Luiz Sergio Person, apresentam sequências referentes a operários. Neste, operários não registrados são trancados num mictório durante a visita de um fiscal do Ministério do Trabalho. Naquele, uma dama da alta burguesia, ao visitar o marido na fábrica, é confrontada com operárias trabalhando, e mergulhada, um tanto atemorizada, na massa que sai da fábrica. Em ambos os filmes, a burguesia não é vista exclusivamente sob aspectos mundanos, mas como classe dirigente. Mas, em ambos, o ponto de vista sobre os operários é claramente o dos personagens das classes altas: em São Paulo S/A, mostra-se como os patrões tratam mal seus operários e desrespeitam a legislação. Em O desafio, mostra-se a base que sustenta a vida dessa senhora e sua ideologia. De qualquer modo, há aqui indício de um elemento novo, talvez mais acentuado em O desafio: com o golpe de 1964, esvai-se a ideia de uma burguesia nacionalista a que o povo deveria se unir para enfrentar o imperialismo. O pacto com uma suposta burguesia nacionalista (pacto que, a meu ver, foi um dos suportes ideológicos do Cinema Novo e o encaminhava para a temática rural, distanciando-o do proletariado urbano) se rompe, o que possibilita a tímida aparição da classe operária em oposição à burguesia. Nesse mesmo ano de 1965, Geraldo Sarno realiza Viramundo, que está sem dúvida vinculado ao golpe. As condições de vida e de trabalho, a falta de estrutura, levam o contingente nordestino da classe operária paulista estudado pelo filme a um comportamento místico compensatório, e não a uma postura de luta social. Por que o golpe não encontrou resistência popular? Viramundo tenta trazer elementos da resposta a esta indagação.
O operário, então, some da tela durante vários anos. Efeito da Censura, sem dúvida. Mas resultado também do próprio nível de consciência dos cineastas e de sua inserção na sociedade. Tema para ser estudado. E de repente, na década de 70, principalmente a partir do governo Geisel, irrompe uma série de filmes, de curta ou longa metragem, de ficção ou documentários, que se referem a operários, ou mesmo tratam diretamente da temática do proletariado urbano. Nestes últimos anos, bem mais de vinte filmes relacionam-se de alguma forma com esta temática.
O vagabundo e o malandro desaparecem quase por completo e talvez não seja errado afirmar que eles têm dois herdeiros: o trabalhador por um lado, por outro o bandido. Essa zona intermediária do jeitinho, da viração, do trambique, do favor, da malandragem — de fortíssima tradição na cultura brasileira — bem que pode estar se dissolvendo: ou é o batente e a mais-valia, ou é a hiperviolência de um Lucio Flávio, o passageiro da agonia(Hector Babenco, 1978) ou de um Barra pesada (Reginaldo Faria, 1978). É bastante expressiva uma sequência deste último, em que, com grande violência, é assassinado um marginal numa obra; os assassinos abandonam o cadáver; chamados pelo barulho, aproximam-se alguns trabalhadores que ficam olhando o morto com indiferença e afastam-se.
O CINEASTA NO CAPITALISMO
É provavelmente cedo demais para compreender quais as modificações que levaram ao desenvolvimento da temática operária e que imagem do proletariado o cinema brasileiro está elaborando nestes anos. A explicação conforme a qual a movimentação operária dos últimos anos, as grandes greves recentes são responsáveis por essa evolução cinematográfica é, senão errônea, pelo menos simplista demais. É a tese de que a realidade social pressiona a produção artística, a qual, sob essa pressão, acaba refletindo a realidade social. Essa relação direta e mecânica não existe. Basta lembrar que o Brasil já conheceu amplos movimentos operários que, pelo conhecimento que temos atualmente do cinema brasileiro, não se refletiram tematicamente nos filmes: os movimentos da década de 10 não deixaram vestígios cinematográficos conhecidos; é verdade que Alex Viany levantou a hipótese de que Alfonso Segreto poderia ter realizado documentários em sintonia com o movimento anarquista. Até mais recentemente: a “greve dos 300 mil” em 1953, a “greve dos 700 mil” em 1957, as mobilizações da CGT no fim dos anos 50 e início dos 60 não se tornaram temas cinematográficos, inclusive em filmes voltados para uma temática popular urbana como Rio quarenta graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955), Rio Zona Norte (N.P. dos Santos, 1957), O grande momento (Roberto Santos, 1958) e outros.
Torna-se necessário procurar uma articulação entre o grupo produtor de arte, sua consciência, sua inserção na sociedade, e a evolução da estrutura social como um todo.
É plenamente aceito pelos sociólogos brasileiros que o capitalismo progrediu durante a ditadura militar, verificou-se um aumento de concentração capitalista e o desenvolvimento, via multinacional e financiamentos externos, de setores da indústria brasileira. Conforme estatísticas, o proletariado urbano, que fica na faixa de 13% a 15% da população economicamente ativa durante os anos 60, passa a 28% em 1976, ou seja, duplica. Este crescimento e o desenvolvimento de certos setores da indústria, ao lado de outros fatores, favorecem, apesar do autoritarismo, da repressão e da dominação do aparelho sindical, o aparecimento de uma classe operária ativa e consciente que não só luta por melhores salários, como começa a reivindicar um papel político. Esta situação certamente não é suficiente para o aparecimento de uma temática operária no cinema, mas cria uma situação favorável, talvez mesmo indispensável, para que o cinema, ao tratar de operários, não se limite a veleidades e ao voluntarismo. É uma situação que pode motivar cineastas ideologicamente voltados para esta área de interesse e fornecer uma base para seu trabalho.
Temos, por outro lado, que indagar na área dos cineastas. Achatando um tanto a situação e sem entrar na questão específica do artista, pode-se dizer que, profissionalmente, eles pertencem a uma camada social de intelectuais e profissionais liberais que está passando por grandes modificações. Intelectuais e profissionais liberais, professores, médicos, jornalistas etc. estão cada dia mais despossuídos de sua aura de prestígio cultural e cada vez mais assalariados. Essa “perda” de renda, de status e de posição sem dúvida os aproxima da classe operária. No cinema, exemplifica esta evolução o personagem masculino de O casal (Daniel Filho, 1975), estudante de pós-graduação que coloca seu saber a serviço de uma empresa produtora de fascículos e enciclopédias, deixando de lado a tese universitária pela qual ele se justifica intelectualmente; ou o jornalista de A queda (Ruy Guerra e Nelson Xavier, 1978). Os vínculos deste jornalista com a empresa, e as consequências financeiras e ideológicas, são nitidamente marcados (talvez até caricatos), se comparados com os jornalistas de O desafio ou de Um ramo para Luísa (J.B. Tanko, 1965), que são personagens desligados de uma relação de trabalho mais rígida.
Mais especificamente na área de cinema, por mais dominadas que continuem sendo a produção e a comercialização dos filmes brasileiros pelo cinema importado, é indiscutível que houve nos últimos dez anos uma evolução no sentido capitalista, pelos financiamentos e co-produções com o Estado, ampliação da reserva de mercado, concentração de poder econômico nas mãos de alguns produtores, penetração ou possibilidade de penetração de capitais estrangeiros e sua aliança a produtores brasileiros: são indícios de que o avanço capitalista também se dá no cinema. Sintoma dessa evolução é, por exemplo, a oposição, cada vez mais nítida e ao mesmo tempo sempre flutuante, entre os chamados “grandes produtores” e os chamados “produtores independentes”. É sintoma, também, a organização dos técnicos e atores, principalmente na época da regulamentação da profissão (1978), quando adquiriram consciência de que, quer lucre muito ou pouco a produção, este lucro resulta de seu trabalho. O técnico vê-se cada vez mais como um trabalhador remunerado e cada vez menos como auxiliar privilegiado de um artista. Sintomaticamente também, na fase mais intensa da mobilização dos técnicos, grande parte dos “produtores independentes” e suas associações profissionais tendiam a se manifestar favoravelmente aos técnicos.
O que se afirma aqui é que, de modo global e sem considerar a especificidade de cada caso, a própria evolução do meio profissional dos cineastas lhes permite e talvez os leve a considerar a sociedade brasileira sob o ângulo da evolução do capitalismo e, nesse sentido, os aproxime da classe operária. Tal afirmação não pode ser generalizada, não são todos os cineastas que tratam dessa temática, o meio cinematográfico deve ser visto como diferenciado. Mas é esta a situação que teria provocado um deslocamento na representação do popular. A tese que estou sugerindo é que a visão que os cineastas elaboram da sociedade e a temática que elegem não são fruto da situação do setor da sociedade para o qual se voltam tematicamente, mas fruto de uma articulação entre o setor a que profissionalmente pertencem e o setor para que se voltam, que a situação de seu setor serve de instrumental de apreensão e compreensão da sociedade global.
Passe livre (Oswaldo Caldeira, 1974) pode ser entendido como uma compreensão capitalista da sociedade e serve de transição para a representação operária. O filme não trata de operários, e sim de jogadores de futebol. Se, num nível, é um ensaio sobre futebol, em outro é uma metáfora sobre as relações de trabalho do proletariado, pelo menos em parte, já que a existência do passe não permite uma perfeita analogia entre o jogador e o operário. A exploração do jogador pelo clube, os cartolas, o time juvenil que prepara craques podem ser claramente lidos como a exploração dos operários pelas empresas, os empresários, a formação de mão-de-obra operária etc.
A temática operária está muito diferenciada neste cinema brasileiro dos anos 70. Talvez seja válido desenhar dois eixos principais: num, encontraríamos principalmente filmes de ficção, de longa metragem, que, de modo geral, seguem as normas habituais da produção do “cinema de autor”, e apresentam quadros sociais bastante amplos em que a classe operária é situada, ou mesmo que giram em torno dela. E no outro, em geral documentários de curta metragem produzidos em íntima articulação com entidades ou grupos operários; este último caso parece ser um fenômeno exclusivamente paulista.
AS GREVES PAULISTAS
Em São Paulo, verifica-se uma produção vinculada a entidades sindicais realizada por pessoas pertencentes ao meio cinematográfico, mas financiada pelo Dieese e /ou pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, e que atende a interesses imediatos dessas entidades. É o caso de Sobre a origem da riqueza (1979), filme didático a ser usado em cursos promovidos pelo Dieese, ou dos filmes realizados por Renato Tapajós, que visam a pontos específicos do programa do Sindicato (Acidentes de trabalho), acontecimentos (um congresso em Trabalhadoras metalúrgicas) ou a greve de 1979 em Que ninguém, nunca mais, ouse duvidar da capacidade de luta do trabalhador. Atribuo a maior importância a esta produção por ela criar um fator novo. Se for verdade que transformações estruturais do cinema, sua temática, sua linguagem, sua função, suas relações com os públicos não dependem apenas do posicionamento ideológico e estético dos cineastas, mas são indispensáveis modificações na área da produção, esta produção, ainda incipiente, cria um campo experimental fecundo. Ela mobiliza outros públicos, que, de alguma forma ou idealmente, são representados pelas entidades produtoras, e que podem encontrar nos filmes temas e posicionamentos que lhes dizem diretamente respeito. É claro que pode se tornar um cinema de serviços que põe na tela palavras de ordem, limitando-se o cineasta a executar tarefas. Tais restrições foram feitas a filmes de Tapajós e ao filme do Dieese, como a de usar uma linguagem nada inventiva em que não se refletiria a alteração da fonte de produção, ou então transmitir informações e palavras de ordem e não propor discussões.
Mas tudo bem, esses filmes não devem ser considerados em si, mas como o início de um processo que logo vai se deparar com contradições.
Paralelamente a estas produções ou co-produções sindicais, outros filmes, com a mesma temática, são produções independentes, como os curtas de João Batista de Andrade Greve e Trabalhadores, presentes, e o longa de Sergio Toledo e Roberto Gervitz Braços cruzados, máquinas paradas (1979). Neste caso, os cineastas articulam-se politicamente com grupos operários, por decisão própria, sem que haja vínculo ao nível da produção.
O conjunto desses filmes, os sindicais e os independentes, traz bastantes elementos novos para o cinema brasileiro. Nenhum deles apresenta o caráter de pesquisa universitária, nenhum é um estudo sobre o operariado, diferentemente de Viramundo, que, até agora, constituía o principal documentário sobre o proletariado. São filmes envolvidos na ação, eles posicionam-se, e as posições assumidas não parecem resultar apenas de uma opção individual do cineasta, mas sim de um vínculo com tendências políticas existentes no meio operário, ou suas lideranças. Este dado é absolutamente novo no quadro do cinema brasileiro (com a eventual exceção do caso Segreto, a que fiz alusão). A inserção na ação manifesta-se de dois modos principais, digamos a curto e a longo prazos. Filmes como Que ninguém, nunca mais e Greve foram feitos muito rapidamente, em cima da greve de São Bernardo, no primeiro semestre de 1979, em condições de produção mais que precárias e para serem usados dentro dessa situação. Esses filmes atendem a uma circunstância precisa, visam a um público específico e pretendem alcançar um efeito determinado, no caso de contribuir para manter a mobilização operária durante os 45 dias que mediaram o fim da greve e a assembleia em que seria apresentada a proposta do governo e dos empresários. Muita coisa pode ser discutida nestes filmes, a começar pela exaltação do carisma de Lula, mas eles criam uma situação nova no cinema brasileiro: o filme diretamente envolvido numa ação específica. E sua discussão deve ser feita em função dessa proposta, inclusive a maneira pela qual é apresentado Lula.
Já Braços cruzados, que teve um prazo bem maior de elaboração e oferece um nível de reflexão mais complexo, ficou pronto muito tempo depois dos acontecimentos a que se refere: as greves de 1978 em São Paulo e as eleições no Sindicato dos Metalúrgicos. Aí, o filme não pretende intervir no quadro dessas greves, mas propor uma discussão de mais longo alcance. A proposta é feita através das colocações da oposição sindical (Chapa 3), que o filme assume. Procede-se a uma crítica de todo o aparelho sindical brasileiro, sua organização corporativista, sua dependência do Estado. Em última instância, estão em jogo toda a estrutura da sociedade brasileira e uma proposta de democracia de base. Na filmografia brasileira é provavelmente um filme de ruptura, não só pelo tema e pelas colocações propostas, mas também pela atitude que estas colocações levam a assumir diante de Getúlio Vargas. O cinema brasileiro ou exaltou Vargas, ou o poupou nas suas críticas. Quando muito, jogou ironias em cima de seu populismo. Ainda recentemente, Getúlio Vargas fascinava Ana Carolina Teixeira Soares, que exaltava as grandes concentrações de massa e o pai da nacionalidade. Braços cruzados abre negando a herança do sindicalismo getulista, qualificando-o de fascista.
OUTROS CURTAS
Ainda na área do curta-metragem, cabe salientar alguns títulos. Provindos de atividades universitárias, Os Queixadas (Rogério Correia, 1976) e Libertários (Lauro Escorel, 1977). Ambos abordam aspectos da história do movimento operário. Não que uma perspectiva histórica estivesse ausente de filmes como Trabalhadores, presentes ou Braços cruzados, quando se referem a Vargas, por exemplo; neste último a perspectiva histórica está particularmente viva, pois a posição da Chapa 3 inclui toda uma crítica do passado, do sindicalismo atrelado. Mas os filmes de R. Correia e Escorel procuram recuperar momentos da luta operária, fato este absolutamente inédito na filmografia brasileira. Libertários se aplica em reconstruir a participação anarquista nas duas primeiras décadas do século. Os Queixadas reconstrói a greve de Perus em 1961. 0 filme apresenta como visão objetiva o que é provavelmente a interpretação de uma das tendências que estavam atuando no movimento. Mas ele tem um aspecto importante: a representação, sob a batuta do diretor, é feita, alguns quinze anos depois, por pessoas que participaram do movimento. Ele sugere uma abertura para uma forma possível de construção da memória operária, de elaboração dessa memória pelos próprios operários. A reconstrução assim feita não se limita a tentar reviver ou fixar um momento do passado, mas permite uma reflexão, interpretação, revisão, crítica ou exaltação feitas não só com palavras e argumentações, mas com todo um envolvimento emocional e corporal.
Dois outros filmes de curta-metragem escapam aos enfoques até aqui encontrados: Esfacelamento cerebral, de Paulo Chaves, e Zezero (1973), de Ozualdo Candeias.
O filme de Candeias narra ficcionalmente a vinda para a cidade de um camponês que vai trabalhar na construção civil e após um golpe de sorte volta enriquecido. A parte principal do filme é a da cidade, que desenvolve com incrível selvageria as relações de Zezero com o dinheiro e com o sexo. O operário apresentado aqui está reduzido a um nível mínimo de sobrevivência, para a manutenção da qual ele tem que se “desumanizar”. Candeias não apresenta a opressão exclusivamente pelas relações de trabalho, mas nos impulsos mais íntimos do indivíduo.
O documentário Esfacelamento cerebral relata a trajetória, estabelecida através de entrevistas e correspondência, de um operário da Volkswagen, considerado excelente trabalhador, membro ativo do sindicato, bom pai de família, que, um belo dia, sem aviso, rompe com tudo, família, sindicato, fábrica. Viaja pelo Brasil, numa trajetória solitária em busca de algum absoluto (trajetória que tem afinidade com as de Uirá, um índio em busca de deus e de Triste trópico), até chegar a Natal, onde se suicida dramaticamente. Paulo Chaves pega um caso limite: a ruptura radical, como reveladora da situação média e como aspiração a um mundo, a uma totalidade, a uma realização que toda a sociedade nega. Estes dois últimos filmes ampliam consideravelmente a temática operária apresentada pelo cinema.
AS TESES
Na área da ficção, excetuando A queda, talvez não seja errôneo dizer que encontramos basicamente um operário de tese: ele ajuda a situar o personagem ou os personagens principais que não são operários, através dele o autor expressa a sua visão (esperançosa) do futuro, ele se integra na denominação de uma tese sobre história e sociedade, é utilizado pelo autor para mostrar como deve ser operário. Por exemplo. Trem fantasma(Alain Fresnot, 1976): um proletário desgarrado de sua classe, entregue a atividade teatrais e a tóxicos, é moralmente condenado pelo filme, que o confronta a outro, positivo; no final, o diretor reconduz o desgarrado à fábrica, às máquinas, que é onde ele poderá desenvolver uma luta consequente, no entender do cineasta. Chuvas de verão (Carlos Diegues, 1978) contrapõe um operário à pequena classe média proletarizada de um subúrbio carioca: ele tem mil qualidades, salva o velho personagem principal da polícia, é o único que trabalha com as mãos (conserta uma torneira), é negro e é sobre ele que o filme se encerra, caminhando pela rua afora, com a família, em direção ao trabalho. Em Coronel Delmiro Gouveia (Geraldo Sarno, 1978) o operário serve para apoiar a tese conforme a qual a “burguesia nacionalista” faria rodar a história em sentido positivo: Zé Pó é um camponês que se torna operário; de operário sem qualificação passa a operário intelectualmente mais exigente que quer se qualificar; morto Delmiro, o operário encerra o filme com um monólogo em que se aponta para a eventual passagem do poder para os operários. Se segura, malandro (Hugo Carvana, 1978) cultua o bom-mocismo diante de venerável figura do operário favelado. No final do filme, o operário faz um discurso sobre solidariedade popular, como se aprende vivendo com o povo etc., isto a sério (pelo menos parece). O que fica ainda mais ressaltado por ser o filme uma comédia que envolve seus personagens em situações absurdas, e mais: Se segura cria o personagem bastante interessante de um filho de burguês que, para se tornar mais tarde melhor burguês e melhor aproveitador do trabalho dos operários, seu pai obriga a viver numa favela com operários. Quer dizer que com burguês pode-se brincar e fazer comédia. Com operários e favelados, não pode. Eles estão aí para dar lição de moral ao burguês (e ao espectador). Brincar com o povo seria um desrespeito à História. Nestes filmes, os personagens operários são manipulados, não são senão engrenagens nas exposições que fazem os autores sobre a sociedade e a história. Mesmo que simpatizem com os operários, estes filmes só confirmam o poder dos autores e seus enfoques. Tudo bem (Arnaldo Jabor, 1978) é certamente mais complexo, mas continuam os operários, aí da construção civil, a ter um papel periférico: eles qualificam a família classe média que é o eixo do filme: revelam sobre o que se assenta esta família, desmascaram sua moral e humanismo, e revelam também um aspecto moral do filme: lamentação sobre a miséria do povo. Mas Tudo bem diferencia-se, pelo menos superficialmente, dos filmes anteriormente citados pela sua forma bufa. A seriedade respeitosa que cerca os operários positivos dos filmes anteriores é aqui diluída pela farsa.
NÃO FALAR DE OPERÁRIOS
Diante desses filmes, por inesperado que pareça, o operário de Shirley (roteiro de Leopoldo Serran, 1979) apresenta maior densidade. É um personagem periférico que gravita em torno do eixo que é Shirley, mas ele adquire densidade por não servir à comprovação de tese nenhuma, seu comportamento não recebe nenhuma explicação sociológica, psicológica ou outra. A paixão violenta e incondicional de João pelo travesti fica como uma afirmação que não é achatada por algum sistema explicativo. Esse olhar absolutamente externo torna paradoxalmente o personagem misterioso e um operário mais presente que em outros filmes (isso, no roteiro).
Outro filme em que o olhar exterior ressalta a presença operária é Crônica de um industrial (Luiz Rozemberg, 1978), olhar exterior no lugar de uma falsa intimidade ou da inserção do personagem em teses. Crônica é a meditação de um “burguês nacionalista” falido sob todos os aspectos. Um dos pólos que delimitam o mundo do burguês são os operários (os do metrô carioca que reencontraremos em A queda). Eles são absolutamente estranhos ao burguês: ele não tem afinidade com eles, não os entende, nem se aproveita de seu trabalho, já que se entregou a alguma multinacional que agora detém o poder. Esse alheamento é alegoricamente representado pelo burguês e família de máscaras brancas na Praça 15 do Rio de Janeiro, como bichos estranhos circundados por transeuntes com os quais nada têm a ver. Essa ruptura é expressa pela diferença de tratamento estilístico: enquanto a meditação é uma ficção com encenação altamente elaborada, os operários são mostrados em forma de documentário. Diferentemente do que se verifica em A queda, documentário e ficção aqui estão em oposição, oposição que expressa o olhar do burguês bem como o do cineasta. A distância estabelecida não implica em rejeição. Inclusive a segunda grande sequência de trabalho é acompanhada por uma música de Bach que aparecera antes sobre um casal de adolescentes resplandecentes de vida e beleza: aspira-se a um mundo de pão e rosas, música essa que substitui a faixa sonora da primeira sequência de trabalho, onde operários falam de suas más condições de vida. O olhar exterior, a ruptura estilística e a absoluta ausência dos operários na ficção expressam a negação de Rozemberg em fazer um discurso sobre o proletariado, julgar os operários, prejulgar o que devem fazer ou que papel lhes reserva esta ou aquela teoria — atitudes que são formas de dominação. Os operários são aqui mostrados antes para salientar a ausência de discurso a seu respeito, e isto encaminha para relações de classe entre o cineasta e o proletariado.
QUEDA
É sem dúvida A queda que mais problematiza a representação do operário no cinema e as relações que se estabelecem nesta representação entre a classe operária e o cineasta. Ressaltamos alguns pontos dessa problematização. A queda compõe-se de várias séries: a ficção filmada ao vivo que constitui o eixo em que se inserem trechos de Os fuzis, que Ruy Guerra realizara mais de dez anos antes, cenas documentárias e fotografias fixas, também de ficção. A ficção ao vivo conta a história de Mário, trabalhador nas obras do metrô carioca: após o acidente de trabalho que mata um companheiro seu, Mário desenvolve uma luta para que a empresa seja responsabilizada e a viúva, indenizada. Os fuzis apresenta antecedentes dos personagens quando eram soldados e pertenciam às forças repressoras no Nordeste. As cenas documentárias descrevem o ambiente “real” onde se desenvolve a ficção e os personagens “reais” interpretados por atores na série ficcional. As fotos mostram os empresários nos seus escritórios, onde são tomadas as decisões. O tratamento destas séries e as relações que se estabelecem entre elas delimitam o campo em que se dá a representação do operário.
Pode-se dizer inicialmente que o esforço dos cineastas foi evitar a concepção do operário como categoria científica que esgotaria a questão, e construir uma visão de dentro. A simplificação com que são vistos os empresários (fotos fixas — o mundo congelado) radicaliza este ponto de vista: os empresários são vistos de fora, como objetos. O ponto de vista é do operário. Há uma tentativa de apreensão global da pessoa. Mário não é politizado, nem tem compreensão do sistema; ele vai se pautando pelos acontecimentos e pelas forças que o pressionam, levando-o à violência e a uma ação individual e desesperada. As forças que o pressionam não são exclusivamente a empresa empregadora e o sistema de trabalho, são também as relações familiares: o sogro, com sua aspiração de ascensão social, exerce uma pressão sobre Mário porque este depende em parte dele (mora na sua casa), o sogro continua como chefe de família. A própria amizade entre os dois funciona como mecanismo de pressão. O poder não se encontra apenas nos centros de decisão e opressão mais evidentes, mas constitui uma rede fina extensiva ao conjunto das relações sociais. O próprio Mário é opressor em relação à esposa, como, por exemplo, na cena em que a força a manter relações sexuais. A opressão exercida por Mário resulta de ele ser um homem numa sociedade dominada por homens, bem como da opressão que se exerce sobre ele, levando-o ao desespero e à humilhação. Esta compreensão leva a perceber a multiplicidade de lutas interligadas que se desenvolvem na sociedade. A esposa de Mário pode ser solidária com ele num ponto, no tocante ao amigo morto, e em oposição noutro, enquanto esposa oprimida pelo marido, por sua vez dominado pelo sogro.
A procura desta visão interna e o esforço de expressar o sistema, tanto naquilo que tem de geral como nas suas ramificações, encaminharam grande parte da ficção para o naturalismo. Para apreender a vida cotidiana, onde se dão todo o jogo de poder e o suceder de situações às quais Mário vai reagindo. É exatamente nestes momentos de descrição da vida cotidiana que o filme encontra alguns de seus melhores momentos (melhores no sentido de que são, no presente, os momentos que os espectadores recebem com maior intensidade emocional e maior índice de verossimilhança). Mas naturalismo que cria uma tensão dentro do filme por se opor ao prólogo metafórico (sobre o qual voltarei), tensão que se estende a toda uma área da produção brasileira do fim dos anos 60 e 70, qualificada de cinema de metáfora, parábolas ou alegorias. Tensão, em particular, com um filme do próprio Ruy Guerra, Os deuses e os mortos (1969). Tensão com seu contemporâneo Tudo bem. Até o comportamento da câmara contrasta com o cinema alegórico. Neste, a tendência é de uma câmara estática, planos razoavelmente abertos, mantendo distância dos atores, provocando forte “teatralização” do espaço, o que ressalta a expressão didática das alegorias (por exemplo Os herdeiros, de Carlos Diegues, 1968; Os inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade, 1972; 0 dragão da maldade contra o santo guerreiro, de Glauber Rocha, 1969; etc.). Em A queda, como em todos os filmes de Ruy Guerra, a câmara é sinuosa, ela segue os personagens. Essa câmara não é, em si, nem mais nem menos expressiva que uma câmara estática; só que, ao seio de um setor de produção que tende a trabalhar com um espaço teatralizado, ela estabelece um intenso diálogo. Não tem nenhum sentido isolar o aspecto naturalista de A queda e julgá-lo como um neopopulismo ou um recuo para uma estética do século XIX. Este naturalismo existe em tensão com a alegoria, e neste sentido propõe uma discussão sobre a representação do operário e as relações político-estéticas que, através da representação, o cineasta mantém com o operário. Certamente não é por acaso que os “melhores” momentos da representação naturalista são cenas familiares. A chopada, o jantar na casa do sogro, a cena no terraço entre Mário e o sogro. O que se dá em detrimento das cenas de trabalho.
Para um filme que trata de trabalhadores e se relaciona com o naturalismo, A queda é singularmente pobre neste sentido. A única cena em que me lembro de Mário trabalhando é quando ele é visto e identificado como agitador por empresários e chefes que se encontram numa plataforma: com o auxílio de um operário (provavelmente não um ator), ele está empurrando uma viga. Mas, claramente, o eixo da cena é o olhar dos chefes, não o trabalho; o ator foi colocado numa situação em que finge o trabalho para abrir a cena. Há o jantar na casa do sogro em que a trena perdida tem grande importância, ritmando parte do diálogo e revelando relações familiares. Mas a trena está no ambiente familiar e aparece mais como um instrumento artesanal. Basta comparar A queda com alguns filmes italianos e principalmente alemães cujos personagens sejam operários, para perceber quão mais complexa é a apreensão do mundo do trabalho. A não-captação do trabalho em A queda é seguramente uma limitação porque trunca a apresentação global de Mário, da complexidade de sua relação com a sociedade e o detalhamento da rede fina de poder. Mas é também a honestidade do filme que não tenta mistificar: a distância entre o cineasta e o mundo do trabalho é um dado real da relação entre o cineasta e o operário. Aliás, é interessante notar quão pobre e rarefeita é a representação do trabalho industrial, inclusive em filmes recentes que abordam os movimentos operários. Em parte devido às dificuldades de acesso às fábricas, mas não só. Vemos máquinas, peças produzidas e até a agilidade de operários realizando tarefas, mas raramente é tratada a relação do operário com o trabalho. Em contrapartida, diversos filmes apresentam cenas de trabalho rural e artesanal em que se revela a relação entre o trabalhador e o trabalho, por exemplo a cerâmica em Aruanda (Linduarte Noronha, 1960), o trabalho das mãos, do corpo e dos sentidos em O rastejador (Sergio Muniz, 1970) e muitos outros. A dificuldade de A queda em captar o trabalho é uma dimensão do momento ideológico do cineasta.
Talvez se possa ver outro aspecto dessa distância na relação entre a ficção e o documentário que, de certo modo, apresentaria o trabalho e a vida operária que a ficção não apresenta. A obra e os operários do metrô têm duas funções: eles são objeto das partes documentárias (o filme quer registrar a vida desses operários, trabalho, almoço, dormitório etc.) e elementos de ambientação, pano de fundo, na ficção, sendo que nunca confundimos estas funções. Permanecem sempre diferenciadas, nem que seja pelos olhares que os operários dirigem à câmara, enquanto, na ficção, os atores respeitam a norma de não cruzar o olhar com o eixo da câmara. Documentário e ficção estabelecem relações contraditórias. Por um lado, o documentário está aí para conferir uma chancela de autenticidade à ficção: os personagens de ficção representam autenticamente os operários. A ficção funciona, desse ângulo, como um pedacinho de documentário que teria sido desenvolvido, visto pelo microscópio. Em resposta, o documentário generaliza: o caso particular visto na ficção pode se estender a todos estes outros, assim como Mário, os outros… Por outro lado, o documentário funciona como aquilo que a ficção não quer, não pode ou não consegue integrar, aquilo a que Mário, como personagem dramático, não tem acesso. Então o distanciamento entre documentário e ficção é enorme, a ponto de se poder dizer que o documentário é, sobre os operários, um olhar tão externo quanto sobre os empresários nas fotos fixas. Deve-se notar também que as várias séries encontram na obra seu ponto mais intenso de cruzamento: a ficção que se desenvolve em parte na obra; o documentário, desenvolvido inteiramente na obra, havendo um momento da quebra da norma de os operários não falarem: eles respondem brevemente a um entrevistador; e na obra também se quebra a norma de apresentar os empresários em fotos fixas: num momento em que Mário está presente, eles visitam a obra e discutem, momento este próximo da sequência das entrevistas com os operários. Este cruzamento torna o lugar da produção lugar privilegiado do encontro das várias forças e das várias séries estilísticas que atuam no filme.
Esta distância em relação ao mundo do trabalho está internamente justificada pela concepção do personagem de Mário. Pois ele não é um operário como os outros. O seu status na obra não fica muito claro, mas ele não é um simples peão, nem um operário especializado. O fato de ele ser genro de um empreiteiro e de trabalhar sob as suas ordens talvez seja o que lhe confere esta diferenciação. Aí, reencontramos em Mário um aspecto do personagem que chamei de pendular e que me pareceu uma das características do cinema dos anos 60, em particular do Cinema Novo: o personagem que não está enraizado em nenhuma camada social em particular, oscila entre as classes dominante e dominada, relacionando-se com ambas, não se identificando com nenhuma. Claro que Mário está nesta situação, está bastante ancorado no meio operário, e sua relação com o empresário é de agressão. Assim mesmo, ele é um personagem que, na economia geral do filme, tem acesso aos diversos grupos, está em contato com todos os personagens de ficção, e é através de sua circulação que todas as ramificações do sistema aparecem. Mário, hipoteticamente por enquanto, pode ser considerado como um personagem de transição entre o personagem dos anos 60 e um outro que está se definindo como mais marcadamente vinculado a um segmento da sociedade, menos móvel, que expressaria uma sociedade mais rigorosamente estruturada, em que as relações de trabalho são mais estritamente definidas.
É talvez devido a esse eventual caráter de transição do personagem que se chega à inesperada imagem final de Mário e do filme. Na alvorada, ao lado de um operário jovem que, obviamente representa o futuro e o prosseguimento da luta encetada por Mário, a câmara fixa Nelson Xavier em primeiro plano e o fotograma é congelado sobre um semi-sorriso do ator, o olhar levantado à altura do horizonte. Imagem surrada dos amanhãs que cantam. Além de chocar um pouco, porque a função das imagens fixas no filme era bem diferente. Como se, de repente, o filme se desgovernasse e, meio perdido, apelasse para um velho chavão: o operário, por definição e essência, está do bom lado da história.., filme com operário tem que acabar bem… o bom-mocismo operário. A volta repentina deste clichê dos filmes “bem-intencionados” rompe com o que vinha sendo proposto.
Essa passagem a que me referia para uma sociedade mais avançada no capitalismo é um dos temas do filme. Basta dizer que o ambiente inicialmente pensado para o filme era o da construção civil mais tradicional. A transferência para o metrô é significativa por marcar um meio de trabalho mais avançado, com maiores investimentos, maior tecnologia, mais rigoroso enquadramento e opressão dos operários. A implosão de um prédio na abertura do filme já indica que a construção civil se afasta de métodos artesanais e se torna industrial. Os fragmentos de Os fuzis, marcando a passagem do meio rural para o meio urbano, vão no mesmo sentido.
O meio rural não é apenas o passado dos personagens de A queda. É também o ambiente em que se desenvolve grande parte dos filmes do Cinema Novo. Portanto, passado dos personagens e também do filme. Ruy Guerra abre simultaneamente uma discussão sobre a classe operária, sobre o cinema, sobre a representação popular no cinema. Um momento que torna perfeitamente claros os níveis em que se situam as propostas do filme é a metáfora anterior aos letreiros em que vemos um matadouro bastante mecanizado e os empresários bebendo sangue cru de boi. O sangue remete ao sangue dos operários de que se nutrem os empresários. O tratamento metafórico se distingue do tratamento naturalista do resto do filme. A metáfora se relaciona com outra célebre metáfora: a do matadouro de Greve (1924), de Eisenstein, ampliando dessa forma a questão da representação do proletariado, que não é uma questão meramente nacional. E se relaciona com o final de Os fuzis: ao massacre selvagem do boi santo pelos camponeses esfomeados sucede o massacre industrializado dos bois no matadouro de A queda, onde são empresários que bebem o sangue. A sequência do matadouro revela a articulação dos vários níveis do filme e a apreensão de uma sociedade mais avançada no capitalismo. As contradições de que vive A queda marcam, na ficção, o ponto mais agudo a que chegaram nesta década as relações entre o cinema e a representação popular.