2009

Ondulações paranoides de uma época

por Pascal Dibie

Resumo

Vivemos um paradoxo: temos acesso a um conhecimento do humano nunca igualado, ao mesmo tempo em que assistimos ao desaparecimento do nosso humanismo.  Todos constatam que o mundo de hoje age mais sobre nós do que nós sobre ele, que não temos mais tempo para fazer o que queremos, que não temos mais tempo singular, e que imperativos de tempo fragmentados e pessoais agem sobre nós. Como poderíamos ter a exata consciência dessa ruptura, dessa passagem para um outro tipo de cultura, se não nos deixam mais tempo para refletir, para respirar, antes de sermos levados para outras máquinas, sempre mais eficazes, sempre mais rápidas? A partir de agora, existe um tempo exemplar do qual gostariam que fizéssemos parte para nos tirar de nossos tempos locais, e esse tempo chama-se velocidade. É verdade que o ideal está hoje do lado da velocidade, da rapidez, como testemunham nossas viagens-relâmpago pelo ciberespaço; para muitos o acesso cotidiano tem essa “rapidez” que acelera nossas vidas, de agora em diante planetárias.

A tomada de poder das TIC (Tecnologia de Informação e Comunicação) na nossa vida diária e profissional nos fez entrar lentamente num novo espaço e numa nova temporalidade anunciada: o ciberespaço. Um espaço virtual que se propõe a nos dar acesso ao serviço universal e ao conhecimento, através de mil pacotes digitais que nos são oferecidos. O ciberespaço é um outro tipo de espaço, algo que se propõe a substituir o espaço previamente dado por um espaço de dados, e idealizar e virtualizar a extensão terrestre. Se a proposta atual quase forçada de viver em rede num mundo sem limites tem um lado positivo, sabemos também que ela é o tempo todo contestada pelo lado negativo de um mundo totalmente fragilizado no qual os acidentes questionam irremediavelmente a sua totalidade.

Como descrever uma sociedade em plena mutação?

As ondulações paranoides de nossa época colocam em evidência as mutações profundas da nosssa vida cotidiana, destacando sinais de uma nova sociabilidade, mas da qual não conhecemos ainda o sentido.


A escala do mundo mudou, e é dessas reviravoltas no nosso cotidiano que trataremos aqui, tanto na nossa nova relação com o espaço quanto na nossa temporalidade, na nossa relação com o corpo e naquelas que estamos começando a estabelecer com a geração cibernética que começa a surgir. Não podemos negar que o mundo, o nosso mundo, ao mesmo tempo em que nos dá a sensação de uma enorme abertura, curioso sobre si mesmo a ponto de se olhar o mais de perto possível, também sucumbiu a uma irresistível retração que nos faz viver nesse paradoxo no qual temos acesso a um conhecimento do humano nunca igualado, ao mesmo tempo em que assistimos ao desaparecimento do nosso humanismo, a menos que estejamos alcançando uma dimensão pós-humana, até então inimaginável. Até pouco tempo atrás, vivíamos em tempos plurais, para não dizer culturais, e agora assistimos, sem poder resistir, à instauração de um tempo sem relação com o tempo histórico que conhecíamos até aqui, o tempo mundial. As ondulações paranoides, símbolos da nossa época de profundas transformações, nos permitem colocar em evidência certas transformações radicais ocorridas na nossa vida cotidiana. São justamente alguns signos dessa reorganização, dessa readaptação de nossos habitus, que nos arrastam irremediavelmente para uma nova socialização, que vou tentar decodificar aqui.

Todos constatam que o mundo de hoje age mais sobre nós do que nós sobre ele, que não temos mais tempo para fazer o que queremos, que não temos mais tempo singular, e que imperativos de tempo fragmentados e pessoais agem sobre nós. Como poderíamos ter a exata consciência dessa ruptura, dessa passagem para um outro tipo de cultura, se não nos deixam mais tempo para refletir, para respirar, antes de sermos levados para outras máquinas, sempre mais eficazes, sempre mais rápidas? A partir de agora, existe um tempo exemplar do qual gostariam que fizéssemos parte para nos tirar de nossos tempos locais, e esse tempo chama-se velocidade. É verdade que o ideal está hoje do lado da velocidade, da rapidez, como testemunham nossas viagens-relâmpago pelo ciberespaço; para muitos o acesso cotidiano tem essa “rapidez” que acelera nossas vidas, de agora em diante planetárias. A dromocracia, junto a uma dromomania generalizada, ou seja, o fascínio e o poder da velocidade, parece ter vencido definitivamente e derrubado a própria ideia de sociedade lenta. De agora em diante, quase todas as nossas relações inter-humanas passam pelo uso das imprescindíveis TIC, técnicas da informação e da comunicação, das quais passamos a ser consumidores dependentes e impenitentes.

A tomada de poder das TIC na nossa vida diária e profissional nos fez entrar lentamente num novo espaço e numa nova temporalidade anunciada: o ciberespaço. Um espaço virtual que se propõe a nos dar acesso ao serviço universal e ao conhecimento, através de mil pacotes digitais que nos são oferecidos. Norbert Wiener, o pai da cibernética, já havia anunciado em 1947: “Teremos que modificar inúmeros detalhes do nosso modo de vida quando estivermos ligados às novas máquinas.”[1]

O ciberespaço é um outro tipo de espaço, algo que se propõe a substituir o espaço previamente dado por um espaço de dados, e idealizar e virtualizar a extensão terrestre. Se a proposta atual quase forçada de viver em rede num mundo sem limites tem um lado positivo, sabemos também que ela é o tempo todo contestada pelo lado negativo de um mundo totalmente fragilizado no qual os acidentes questionam irremediavelmente a sua totalidade. Quase tenho vontade de dizer: quanto mais apurada a tecnologia, maiores os riscos.

Resta saber como descrever uma sociedade em plena mutação. É como etnólogo do cotidiano que vou tentar participar da exploração daquilo que estamos nos tornando nas sociedades abastadas deste início do século XXI em que o acaso nos colocou. Ao me perguntar sobre as mudanças da minha sociedade numa pequena cidade da Borgonha[2] observei muito e descrevi muito para conseguir construir e alimentar minha última pesquisa. Nesse mundo em ebulição, cada vez mais indescritível, cada vez mais em movimento, cada vez mais impreciso com suas culturas móveis, efêmeras e mutantes, onde estamos cada vez mais voltados de certa forma para nós mesmos, creio ter percebido alguns segmentos desse novo mundo em plena mutação. Anotei como pude essa transformação, que chamei de “revolução” no subtítulo do meu último livro,[3] escrevendo no meu caderno de notas: “Para ser mais claro, tenho a impressão de que não temos mais presente, que o futuro se instalou a partir de agora como a filosofia do tempo […]. Que fazemos de conta de que finalmente conseguimos nos apropriar do tempo, como se a dimensão temporal se desenvolvesse num continuum ininterrupto, no qual o futuro, contrariamente ao passado, fosse sempre valorizado. Creio que sentimos que já somos um outro, mas não sabemos muito bem de quem somos diferentes, nem de quê.”

Por facilidade talvez, ou porque tinha diante dos meus olhos o próprio nascimento de indivíduos que se inventavam ao nosso lado num mundo diferente do nosso, comecei a olhar a vida das nossas crianças nessa entrada num novo século. Quanto mais eu olhava mais achava que o universo infantil se parecia cada vez menos com aquele que conhecemos quando éramos crianças, começando pelas suas brincadeiras. Sobre isso, escrevi ainda no meu caderno: “Os jovens, sua vida e suas brincadeiras tornaram-se um mistério. Não sei de fato o que os diverte hoje em dia. Desconfio que não sabem mais brincar no sentido que nós dávamos a isso na idade deles. Quando pergunto: vocês brincam?, eles me respondem que sim, ao mesmo tempo em que não me levam a sério, me dando a entender que é uma noção ultrapassada. Percebo, principalmente, que, mesmo que tentassem me explicar, eu não entenderia, e eles têm razão.” Um pouco perplexo, eu anotava nesse mesmo caderno: “Creio que as crianças não são mais nossas crianças, que elas não são nem mesmo mais crianças como nós imaginamos que devem ser as crianças. Parecem bebês precocemente crescidos para os quais a informática serve de mamadeira…” A observação era séria: “É um fato que seu universo lúdico logo cedo se especializa (…). Mal seus polegares”, eu acrescentava, “deixaram suas bocas – logo substituídos, e até uma idade avançada, por uma chupeta – eles ganham um videogame, e outros brinquedos eletrônicos. Mal sabem falar e já sabem usar o computador.”

Meu olhar começou então a mudar. Meu fascínio por essa juventude, movida por aquilo que podemos chamar agora de natureza cibernética, está ligado certamente ao fato de que ela nos escapa radicalmente sem precisar fugir nem se esconder. É um fato que os jovens – não consigo mais dizer as crianças – são capazes de partir, sob nossos olhos, para lugares projetados apenas por eles, aos quais não temos verdadeiramente acesso. Do aparente convite a uma divagação imóvel que são esses Game Boy, Game Cube, Playstation, mp2, mp3 e mp4 player, passando pelo monopólio do computador familiar, as crianças das sociedades abastadas das cidades e vilarejos passaram para uma terceira dimensão, na qual temos um pouco de dificuldade de segui-las e de alcançá-las. Não é por falta de destreza ou de maturidade – nisso os jovens são sempre crianças, e cada vez por mais tempo, a ponto de serem “adonascentes”, como explica Singly[4] -, mas nós, os adultos de hoje, comparativamente, não temos nenhuma disciplina e talvez, às vezes, nem mesmo concentração para poder entrar na medida cibernética; temos dificuldade em aderir mentalmente a essas tecnologias saídas da digitalização que convergem sistematicamente para um sistema compulsivo de produção e de consumo mundialmente integrados.[5] Isso não impede que a informática seja para as nossas crianças uma natureza evidente, um prolongamento indispensável ao seu equilíbrio e à apreensão do mundo no qual elas vivem hoje, mesmo, e principalmente, que essa natureza seja coerciva!

Estamos em pleno nó da separação dos nossos dois mundos anunciados na abertura desta exposição. Se existem mil razões tanto para o mal-estar[6] quanto para o bem-estar que nossa sociedade oferece às nossas crianças, existe uma, surpreendente, que é preciso olhar particularmente: é que nossas crianças entraram num outro tempo e num outro espaço diferente do nosso. Nunca uma cultura, a cibercultura, fez tantas exigências. Só podemos entrar e pertencer a ela se aceitarmos o protocolo, sem desrespeitá-lo nem por um instante. Acho que nunca estivemos diante de uma cultura protocolar tão exigente, na qual, para que funcione, para que o diálogo homem-máquina seja possível, é necessário se curvar à disciplina de uma máquina. Cada um de nós se lembra de seus primeiros passos na informática e de suas crises de raiva impotentes ao ver o trabalho desaparecer depois de um pequeno “clique” malfeito. Agora, todos sabemos: simplesmente não tínhamos respeitado o protocolo do sistema… Quantas vezes falamos com o caro Amstrad (meu primeiro computador), o acariciamos e, às vezes, demos até umas pancadinhas nele, esperando, como acontecia com nossos velhos carros, que ele entendesse e resolvesse funcionar… Não adiantava nada, definitivamente uma máquina não espera nada de um comportamento humano, a ideia de comparação lhe é totalmente estranha. Três gerações se passaram… e aí estão “nossas crianças de hoje”: essa bela ciberjuventude superligada na tecnologia, completamente integrada à ideia de que sem respeitar o protocolo o jogo não funciona!

Afinal, acho que eles brincam, mas é um jogo um pouco híbrido, ou, mais exatamente, são novos jogos que associam, no mesmo movimento, jogo técnico e brincadeira de criança, ou seja, eles pedem ao mesmo tempo uma cultura técnica particular e um conhecimento do jogo. Passo, entre as novidades radicais, pelas técnicas minimalistas do corpo, que foram provocadas por isso e que teriam interessado a Marcel Mauss:[7] posição deitada, indiferentemente sobre o dorso ou sobre o ventre, corpo largado numa poltrona, como fazem os jovens americanos, com as pernas afastadas, joystick ou console sobre os joelhos, que os dedos tocam levemente, e, a partir de agora, ligados à máquina apenas pelas ondas – de fato, o wifi permite que fique mais limpo o chão do quarto das crianças (e do nosso), onde antes se arrastavam, como ninhos de serpentes, fios enrolados que pensávamos fossem para toda a eternidade. Além dessas novas tecnologias do corpo, o que mais me choca é a incrível concentração dos jovens jogadores.[8]

Passo pelo conteúdo dos jogos, se bem que insisto na sua duração: algumas horas, um dia, talvez até vários dias, um mês, não acabam nunca… Quanto ao que eles contêm, as crianças vão, às vezes, para universos semelhantes ao nosso, mas no qual elas se incrustam; há jogos interativos, embora o que mais as motive, parece, sejam os jogos em rede, que criam solidariedades virtuais, como, por exemplo, pedir a um outro jogador que aguarde, enquanto um deles desce ou sobe para atingir um outro nível do jogo, no qual os outros irão alcançá-lo depois de tê-lo ajudado virtualmente. Desse modo, eles passam longas horas do dia e da noite tentando “melhorar a mente” e “aprender a resistir, ou melhor, a ignorar a pressão, para não ficar paralisado”, diz um jovem jogador que conheço. O que parece evidente é que nossas crianças não repetem mais, na sua forma e nos seus gestos, os nossos jogos em grupo; jogos que se pareciam estranhamente com aqueles que nossos pais tinham eles mesmos repetido de seus pais: bichinhos de massa de modelar, vida da fazenda, soldadinhos, jogos de montar, trens elétricos, etc., enfim, todos os brinquedos saídos do neolítico, considerados não só cafonas, mas que são explicitamente desinteressantes para as crianças de 4 ou 5 anos que já usam o computador só com um dedo.

Idem para nossas exigências domésticas: as crianças parecem cada vez menos compreender as razões que nos levam a sentar à mesa em horas fixas (isso se chamava “comensalidade”), a mandá-las dormir cedo (era uma questão de higiene de vida). Aliás, os jovens estão redefinindo em profundidade a nicterobia, preferindo a vida noturna à diurna, talvez para fugir dos ritmos definidos pela sociedade e também da presença insistente e inquisitorial dos adultos e dos educadores.[9] Enfim, as crianças resistem às nossas tentativas de impor a elas um ritmo de vida familiar em comum que, na verdade, fazia parte da normalidade que limitava nossa própria infância; ritmos (e pais) na verdade um pouco tirânicos – falo dos anos 1960. Devo acrescentar que, no conjunto, “nossas crianças” são aparentemente gentis, às vezes até de uma gentileza suspeita… Mas por que não seriam gentis com pais que fazem o possível e o impossível para lhes dar essas próteses técnicas caras e necessárias, a saber, computadores, videogames e celulares, imprescindíveis às suas aventuras lúdicas e pessoais? Não, para “nossas crianças”, o grande esforço a ser feito parece estar inteiramente canalizado para o universo lúdico que foi fabricado para elas ou, mais exatamente, os suportes que lhes permitem chegar até ele. Para isso, elas são capazes de desenvolver uma energia e de encontrar a concentração necessária para fazer com que existam e funcionem os jogos que às vezes levam ao transe.

Nossas crianças começaram a viver em espaços interiores que aumentam cotidianamente, sem que possamos ter acesso a eles. Diante dos nossos olhos, elas deixaram radicalmente nossa infância para atingir um espaço de dimensões planetárias e uma temporalidade que dificilmente poderemos compreender por falta de prática (salvo algumas exceções, é claro). Elas entraram, no presente, em um futuro quase alcançável – essa cultura midiática ou ciberespaço -, no qual as noções de tempo e de espaço foram definitivamente embaralhadas. E isso não para de provocar incríveis mudanças sociais, mudanças que se tornaram possíveis porque estamos hoje numa “baixa época”, um desses momentos da história em que tudo pode acontecer porque não existem mais referente único nem controle social tradicionalmente forte e unificado para obrigar o conjunto dos membros de uma sociedade a fazer a mesma coisa. Não é que estejamos perdendo o ponto de apoio, nesse momento raro da humanidade no qual as mudanças são tamanhas, que não foram previsíveis, pela simples razão de que não sabemos nunca exatamente a medida do limite, nem quando as coisas vão se romper. Estamos num aparente desaparecimento daquilo que conhecemos socialmente, e numa não aparição daquilo que achávamos que ia acontecer. Tudo leva aparentemente a dizer que estaríamos no final de uma época, mas é impossível saber exatamente que tempo está terminando, que tempo está começando. As ciências humanas nos mostraram que toda sociedade era um continuum, o que nos impede de acreditar em teorias catastróficas e outras visões pessimistas, e nos permite colocar todas as esperanças nos nossos descendentes. Nossas cibercrianças inventam novas solidariedades, organizam-se em comunidades de interesse lúdico, numa escala até então inimaginável, que chega a ser planetária. Eles entraram em um espaço pessoal totalmente novo quanto à sua participação na produção de uma nova cultura. Existe, nesse universo cibernético, o próprio tratamento que as crianças dão ao tempo: ficar sentadas durante horas para resolver um enigma e, de passagem, resolver problemas, livrar-se de armadilhas, empurrar portas, tomar decisões a todo instante, preencher vazios de informação, enfim, explorar em profundidade a lógica de simulação e agir no imediato e numa visão relativamente a longo prazo.

Em cada relação com a máquina existe alguma coisa em jogo, e entendemos por isso diferenças de informação que unem as crianças em vez de separá-las, provocando, naquelas que jogam juntas e a distância, um sentimento de proximidade.

Todos os adultos devem ter observado e se admirado como eles fazem várias atividades ao mesmo tempo. Já devemos ter percebido que a utilização maciça de suportes audiovisuais – telefone, internet, chat, webcam, televisão e, no meio disso tudo, como álibi, algumas folhas redigidas -, com “nossas crianças” sentadas, curvadas, deitadas numa cama, almofada, carpete, não pode deixar de ter efeitos colaterais sobre o processo da aprendizagem! Temos, no entanto, que reconhecer que essas crianças desenvolvem operações cognitivas extremamente complexas, certamente mais complexas do que aquelas que tínhamos que resolver na idade delas, e que a escola lhes pede. O fato é que elas adquirem a cada dia competências que temos dificuldade de compreender, mas que se acumulam fora de nós e do sistema educativo que propomos a elas neste começo do século XXI.

Essa “atenção parcial contínua”, essa gestão seguida de tarefas múltiplas nos preocupam um pouco e, no entanto, ver, responder, agir, sofrer, distanciar-se, comandar, tudo isso depende de um aprendizado, mas de um autoaprendizado ou de um aprendizado através de seus pares, ou seja, interno e reservado à sua própria faixa etária. Assinalei anteriormente que o uso do computador, primeiro com um dedo só e depois com o conjunto dos dedos, tudo isso com uma atenção parcial, começa cedo e que elas permanecem aparentemente estranhas ao que cercou sua infância. Não sei, como dizem os especialistas, se isso leva a um estado de insatisfação permanente, mas compreendo que o percurso de um videogame ou de uma pesquisa na internet implica um processo complexo. No seu livro, cujo título paradoxal resume bem a situação atual, Everything Bad is Good for You, Johnson[10] observa que, diante da tela e do teclado, o usuário utiliza um procedimento que implica observar, formular hipóteses, acumular conhecimentos mobilizando conhecimentos prévios e buscando outros; que o fato de analisar, de contextualizar, de hierarquizar, de relacionar, de testar, de ver os efeitos, leva-o a um procedimento muito próximo ao científico.

Voltando a essa estranha “atenção parcial contínua” de “nossas crianças”, compreenderemos melhor se olharmos de perto a estrutura das novas séries americanas na televisão, que não são lineares, mas na qual se cruzam vários fios narrativos; narração que, às vezes, apela até mesmo para intratextos e intertextos diversificados.[11]Assim, esses episódios geralmente sem graça, nos quais não acontece quase nada, apoiam-se no conhecimento biográfico dos personagens e na memória dos episódios precedentes. Essas séries, aparentemente sem interesse, valorizam-se na leitura que os jovens fazem delas até o último grau. Seu sucesso repousa na alegria compartilhada entre os amigos, através dos chats, em que eles enviam uns aos outros, durante a própria difusão da novela, comentários mais ou menos engraçados e irônicos que serão retomados mais tarde entre eles quando se encontrarem. O que está em jogo aqui é um fenômeno de leitura da grande quantidade de imagens, uma leitura que foi sendo pouco a pouco modificada por meio da influência da televisão sobre as crianças e, principalmente, pelo uso do computador, que implica uma relação ativa com a leitura através da escrita. Assistimos então também a um novo aprendizado e a uma nova relação com a coisa lida e com a coisa escrita. Clara Ferrão Tavares[12] observa que, se o esforço de escrever e de ler parece reduzido entre os jovens de hoje, é preciso levar em conta o fato de que, no entanto, raramente uma geração tão precocemente leu e escreveu tanto quanto essa. Envolvidos em conversas bilaterais ou multilaterais, eles são obrigados a ler e a responder e, portanto, a escrever e não apenas apreciar o texto um do outro. É verdade que há uma nova maneira de ler e de escrever que se caracteriza pela rapidez, graças aos símbolos (os emoticons) e às abreviações usadas entre eles. A utilização fulgurante da internet dá uma ilusão de sincronia, da contração do tempo. Qualquer usuário comum já deve ter observado que seu percurso de leitura é quase sempre determinado pelo percurso que foi criado através das conexões com outros textos, com outros sites, e até mesmo outros blogs, que o levam a uma leitura-passeio que pode não ter fim. Aliás, podemos constatar que não sabemos bem se durante essa divagação virtual também não nos aproveitamos das nossas leituras para fazer pedidos, nos inscrever, perguntar, enfim, escrever um pouco. Ler e escrever, as duas coisas, de agora em diante, se confundem, de fato; existe uma explosão de hábitos de leitura e de escritura que devemos à internet. Nas nossas cibercrianças – que criticamos por uma escrita sem profundidade e acusamos de usar palavras abreviadas e de ter uma fonética preguiçosa – esse lido-escrito-lido explode as fronteiras entre o ato de leitura e o ato de escrever. Maddalena De Carlo observa com justeza que o “ciberleitor anota, copia, desloca pedaços de textos, tira-os do seu contexto; ele se torna coautor e se apropria de textos para torná-los seus. A atenção do jovem leitor não fica limitada, pelo contrário, ela é constantemente deslocada, aberta para outras fontes. Pela dessacralização das duas atividades, a distância entre o autor e o destinatário fica atenuada. Essas atividades, ler ou escrever, exigem finalmente mais competência do que antes, com essa nova particularidade: o prazer de preencher e partilhar o que falta na informação dos conteúdos extratextuais e referenciais”.[13]

Para um pequeno grupo que olha separadamente a mesma coisa, ao mesmo tempo, mas em espaços geográficos distintos, isso permite que eles sejam criados juntos, na distância tomada de maneira efêmera da história imediata. De fato, as crianças que jogam ligadas a um protocolo inflexível durante horas, sabendo que no final serão recompensadas, aceitam voluntariamente a disciplina. Talvez a internet não isole tanto assim as crianças, talvez ela abra para outros espaços, talvez ela signifique relações diferentes com o tempo, simultaneidades, novas maneiras de fazer, talvez ela permita um movimento social de criação de novas comunidades nas redes sociais, de troca de conhecimentos, e talvez a cibernética as leve para uma nova forma de construção da inteligência coletiva com uma extensão positiva: levá-las a atos de generosidade planetária.[14]

Para que possamos compreender melhor meu propósito e as razões da nossa mutação, gostaria de voltar para a gênese anunciada claramente, no dia seguinte à Segunda Guerra Mundial, pelo pai da cibernética Norbert Wiener, que, em 1947, publicou um livro de vulgarização da sua definição de cibercultura, chamado The Human Use of Human Beings;. Na base da própria constituição do objeto cibernético ele via o estudo das mensagens e, particularmente, das mensagens efetivas de comando. Wiener tomava como exemplo “os componentes do leme de um navio que são, de fato, uma das formas mais desenvolvidas dos mecanismos de ação para trás”.[15] Aquilo que ele já chamava de digital machine permite a clareza da decisão entre “sim” e “não”, que se tornam uma escala (yes-and-no-scale), e cria a possibilidade de acumular essas decisões de maneira a nos permitir escolher entre pequenas diferenças em números muito grandes. Quanto aos hippies de Berkeley, dos quais também somos herdeiros, desde os anos 1960 eles viam no computador a expressão sistemática de uma redução do trabalho para se poder ficar mais tempo sem fazer nada, isto é, viver a vida de humano aqui e agora… Infelizmente, desde os primórdios da utilização da informática, desde aquele momento em que começamos a nos equipar com sistemas de informação que, no começo, foram apresentados como novidades puramente técnicas de facilitação do trabalho, começamos a realizar novas tarefas sem saber, e, à nossa custa, logo percebidas pelos administradores, que acharam, visto que a produtividade aumentava, que também poderíamos aumentar o volume de trabalho. Operou-se logo uma inversão da verdadeira razão e da utilidade social da cibernética. O prestígio e o novo poder que isso proporcionava aos utilizadores levaram rapidamente a uma estratégia de recomposição sócio-organizadora das empresas, e às TIC logo iriam se acrescentar o estresse e o TOC (transtorno obsessivo-compulsivo) de que muitos sofrem hoje em dia. A industrialização da informação e da cultura avançava com o desenvolvimento exponencial de uma produção industrial e internacionalizada tal como a conhecemos. Indústrias triplas e solidárias aliadas a uma indústria do conteúdo (pesquisa e programas), indústrias de material e de softwares e uma indústria das redes (operadores de telecomunicações) tomavam o lugar das indústrias tradicionalmente reconhecidas até então como as mais importantes. A tomada de poder das TIC na nossa vida profissional e na nossa vida privada nos fez desse modo entrar lentamente num novo espaço e numa nova temporalidade anunciada sob o nome de ciberespaço.

O ciberespaço é um outro tipo de espaço, algo que se propõe a substituir o espaço dado por um espaço de dados, e idealizar, virtualizar a extensão terrestre.[16] O viajante do ciberespaço é um viajante que se desloca a partir de agora sobre um território fluido com um objetivo preciso: coletar informação, e talvez até mesmo, é o que lhe foi prometido, e é por isso que ele se senta diante da tela, aumentar o seu conhecimento. A metáfora naval de Wiener pode ser encontrada na palavra utilizada para designar esse novo viajante: um cibernauta (do grego kybeneté, timoneiro, e nauta, navio), que é mais do que um tradicional navegador. A particularidade do cibernauta é de ser um viajante veloz e rápido. A máquina, já foi dito, nos leva a andar rápido, cada vez mais rápido e sem apoio, sem o casco pesado de um barco equipado. Rapidamente, nos transformamos em “surfistas” eméritos, nos meandros infinitos do volume de dados. O conhecimento das correntes frequentadas faz com que cada um de nós acabe desenvolvendo “cartografias cognitivas” desse território fluido de conhecimento, até nos tornarmos verdadeiros especialistas de nossas fantasias passageiras.

Se esse cibernauta surfa, se ele se transforma em nômade da fronteira digital, é porque nós o convidamos e, principalmente, garantimos que ele vai encontrar uma comunidade virtual que algumas vezes até adere junto com ele ao “culto da internet”. Como observa Philippe Breton,[17] trata-se evidentemente de uma metáfora, mas que fala de uma forte ligação com uma máquina e aquilo que ela traz para a vida, uma máquina associada a práticas muito particulares. Philippe Quéau, em La planète des esprits, fala até mesmo de um novo Lutero.[18] Sobre esses novos religiosos da web temos o exemplo caricatural, mas longe de ser isolado, dos internautas que vivem à vista de todos, instalando câmeras em suas casas. Isso deve ser lido como um belo exemplo de luteranismo, pois, de fato, eles acham que não têm nada a esconder e que sua atitude é altamente moral; a prova é que a câmera mostra tudo aquilo que eles fazem, e nada do que é humano é reprovável. Falo do protestantismo, mas não esqueçamos Teilhard de Chardin, um jesuíta que inventou a noção de noosfera, que seria para as ideias aquilo que a biosfera é para a vida. Segundo Teilhard de Chardin, as novidades tecnológicas de comunicação permitirão que o futuro transponha uma nova etapa na evolução da humanidade. Ele intui que essas novas tecnologias deveriam nos permitir destacar os espíritos da materialidade e torná-los coletivos. Essas abordagens da sociedade de comunicação, seja o luteranismo ou a noosfera, continuam tendo influência no interior da sociedade, e por uma boa razão: é que numa sociedade marcada pela crise da relação social, a promessa de mais comunicação e de convívio só pode ter uma resposta favorável. Essas ideias já estavam germinando na origem da invenção da cibernética. O cibernauta, sua religião e seu proselitismo da tecnologia (com os vendedores por trás!) asseguram-nos que a internet vai transformar nossa existência. Eles não estão errados, a internet já modificou completamente a nossa existência, o virtual já tomou o poder sobre o nosso cotidiano, mas era de se esperar. Em Wiener já existia a ideia de que a comunicação é um valor positivo que permite lutar contra a desordem absoluta que originou a Segunda Guerra Mundial, que, aos olhos dele, encarnava o “mal e o diabo”. Finalmente, é no futuro dos anos 1940 que estamos instalados hoje com a utilização generalizada e partilhada da internet.

A relação com a Teia, como dizemos às vezes para lembrar melhor nossa spiderização, tem um pouco de uma cerimônia de encontro e partilha entre o homem e a máquina; deveríamos dizer, entre o corpo do homem e a máquina virtual. É um potlatch muito particular e novo a qual nos entregamos cada vez que ligamos nosso computador: a doação de nosso próprio tempo, de nosso próprio conhecimento, a doação de nosso próprio disco rígido e, mais ainda, a doação do nosso corpo. O antropólogo Antonio Casilli observa que “essa sociedade hospitaleira (da internet) pressupõe um procedimento de desmaterialização do corpo do usuário das novas tecnologias, fundando uma identidade corporal pós-humana”. Ele acrescenta com humor: “posthumani nihil a me alienum puto”,[19] nada daquilo que diz respeito à pós-humanidade me é estranho. Para ele, estamos entrando num pós-humanismo, numa nova história que “preconiza o fim do papel central do ser humano na ordem cultural atual”.[20] A articulação homem/máquinas inteligentes “prolongou a noção de pós-humano até a inclusão dos seres outros”, os estranhos, e as combinações do humano/não humano, na grande família do mundo, a world family. Voltamos então à questão do religioso; “a hospitalidade ciber”, prossegue Casilli, “opõe-se claramente à hospitalidade cristã baseada na instância superior da união de todos os homens em Deus. Os viajantes hospedados nos entrelaçamentos da rede internet não são irmãos, são xenoi, estrangeiros. Também não são peregrinos indo a um determinado lugar, eles são assimilados aos nômades errantes num território impossível de ser definido e cartografado, porque é fluido e está sempre em mutação”. “O hóspede confrade cristão está para o hóspede estrangeiro cibernauta como o turista para aquele que está perdido”, ele conclui. Margaret Morse, em seu ensaio “What do Cyborgs Eat?”, observa que “os viajantes das autoestradas virtuais têm pelo menos um corpo a mais, hoje consideravelmente sedentário, o corpo à base carbônica diante do teclado, que tem fome, engorda, fica doente, envelhece e finalmente morre. O outro corpo, um fac-símile à base de silício conectado ao domínio imaterial dos dados e dos superpoderes, mesmo que virtualmente, é imortal, ou melhor, é o corpo escolhido, uma encarnação virtual ‘separada’ do corpo físico, é um software capaz de enfrentar infinitas mortes”.[21]

Essa dicotomia entre o velho corpo obstinadamente dedicado a viver numa “realidade” deficitária e um novo corpo regenerado pelas tecnologias num habitat virtual está no centro da relação animal-homens-espaços. “A realidade virtual permite que nossas próprias noções de espírito e de ‘corpo espiritual’ cresçam até o nível que alcançamos no desenvolvimento do nosso conceito de corpo físico, durante vários milhares de anos, no âmbito da nossa civilização atual […] nos mundos virtuais, você pode virar lagosta, tarântula, gazela e aprender a controlar esse novo corpo.”[22] O fantasma das tecnologias da informação todo-poderosas permite, sem grande dificuldade, a passagem para um novo imaginário da corporeidade, pois a ansiedade sobre as possíveis perdas do corpo se dissolve diante da promessa de uma saúde perfeita. Uma saúde tão virtual quanto virtuosa, pois esse novo corpo quer ser desprovido de vícios, dedicado a um culto do bem tecnológico que anuncia uma era de fraternidade oposta ao sofrimento constitutivo do mundo.[23] Não existe mais nenhum compromisso com a carne real, o antigo modelo corporal acabou. Num espaço “para além” dos problemas de um mundo confuso, temos a sensação de um corpo regenerado, reabitado e reinstalado numa outra topografia diferente da única que era até então conhecida. Estou falando da terra, da topografia terrestre, que, a partir de agora, se confunde com a infosfera que envolve o planeta. Não surpreende que tenhamos visto florescer as teorias do embodiment (encarnação e incorporação); essas teorias afirmam que aquilo que nosso corpo não pode experimentar é apreendido pelas analogias e pelas metáforas, que constituem o único meio de dar sentido a esses conceitos sem realidade tangível, virtuais! É nessas categorias familiares que estão implantados os novos modos de pensamento saídos da Rede.

Não esqueçamos que a internet apenas oferece novos meios para se atingir objetivos que não são novos: encontrar (buscadores), comunicar (e-mail, procura de serviços) e, através dos links, deslocar-se e responder ou transmitir informações. É interessante observar que a noção de original, de documento único, não tem mais sentido nem objetivo; a internet contribui para uma desmaterialização progressiva do objeto que se quer possuir até que ele fique reduzido a um simples endereço acessível a qualquer momento. Por trás da nossa tela, as distâncias se dissolvem, os lugares se metamorfoseiam e as ações mudam de natureza. A internet muda consideravelmente a concepção da distância e da relação com o tempo. De fato, a distância física perde toda a pertinência, e a instantaneidade passa a ser a regra. Os endereços postais na Rede tornam seus donos imediatamente acessíveis e os colocam na mesma distância, tudo e todos estão ao alcance do e-mail: reservar um quarto de hotel, fazer uma compra, consultar a meteorologia, as diversas notícias, o horóscopo, as últimas notícias do dia, não importa em que lugar do mundo, tudo isso pode ser feito a partir da nossa casa. O “onde” e o “quando” se aproximam, e nos perguntamos o como e o porquê da sua necessidade ainda existente na nossa língua. A Rede leva a dissociar materialidade e a possibilidade de ação, que pareciam cossubstanciais, inseparáveis. De agora em diante, estamos ao lado de tudo e ao alcance de todos. Os objetos imateriais tornam-se suportes da ação, da mesma forma que os objetos materiais no meio ambiente cotidiano. Resumindo, podemos ter tudo e fazer tudo. É o “fazer tudo” que me interessa aqui, essa presença-ausência que nos faz existir de outra maneira.

O ser humano está, a partir de agora, equipado de próteses (que são bem diferentes de garfos, colheres ou de um carro) que lhe são dadas como se fossem seus membros. Durante a fração temporal, ínfima na escala da evolução humana, da sua existência, a “prótese internet” é pensada por analogia com o mundo sensível. Constituído ininterruptamente de novas fontes analógicas, tudo pode, por sua vez, tornar-se fonte e passar, digamos, do virtual para o real, ou seja, podemos nos instalar numa vida virtualmente real ou realmente virtual. De um ponto de vista concreto, as coisas avançam do lado do “controle contínuo e da comunicação instantânea”, como já observava Gilles Deleuze, nos anos 1990, em Conversações.[24] Estamos assistindo à “convergência dos controladores”, ou seja, à globalização da vigilância, da nossa vigilância. Nossa sociedade hipercontrolada está a partir de agora dividida entre perigo passivo e perigo ativo, perigos adormecidos e prestes a se manifestar num e noutro sentido, a pirataria e a introdução de vírus.[25] Nos nossos dias, a ênfase está na invenção que cada geração deve realizar, invenção que vai transformar totalmente a sua vida. Isso tem duas consequências importantes: para a juventude, muito entusiasmo ou orgulho diante da obra que lhe é atribuída, mas também angústia diante dos poucos pontos de segurança; para o velho, uma diminuição de seu papel social e o repúdio da nova geração.

A experiência das pessoas mais velhas se traduz, atualmente, do ponto de vista delas, por uma profunda decepção. Elas aspiravam àquela imagem do idoso feliz, em paz, que todos ouvem e que inspira respeito, imagem dada pelos velhos da geração precedente. Ora, essa imagem não corresponde mais àquela que os jovens recebem atualmente. É verdade que, ainda há pouco tempo, ficar velho era para pouca gente, era até mesmo considerado um presente dos céus; o velho era então uma espécie de eleito. Ora, os progressos da ciência e da medicina aumentaram consideravelmente a expectativa de vida. Esse novo “acréscimo” faz com que, com raras exceções, os velhos não tenham mais papel social e sejam mais assimilados a “marginais” do que a seres que possamos frequentar.

As estruturas econômicas, sociais e morais evoluíram muito rapidamente há pouco mais de meio século e, na nossa sociedade atual, o velho que, até então, na gerontocracia, era um referente, não tem mais nenhum papel. A produtividade e a rentabilidade tornaram-se leis, e a juventude tomou o primeiro lugar e instalou uma verdadeira “juventocracia”. Uma rápida olhada pela mídia revela, na nossa civilização, novos valores relacionados ao ideal do eu: é preciso ser jovem, bonito, rico, feliz; não se fala mais de velhice, e, mesmo que viver até 100, 110 anos, daqui a algumas décadas, corra o risco de ser a regra humana normal,[26] isso não merece uma particular atenção. Existem ainda muito poucos jornais, moda, programas de rádio ou canais de televisão dedicados aos idosos. Aposentadoria, perda do seu papel, isolamento afetivo, dificuldades financeiras, derrocada existencial, os velhos estão vendo seu espaço geográfico diminuir progressivamente. Isso é sinal de uma simples indiferença, ou será que estamos nos recusando a encarar a velhice? Como observa Hélene Reboul, “falar do tempo que passa e não do homem que passa é mandar a finitude para fora de si mesmo, é, de certa forma, negar o envelhecimento”.[27] Paradoxalmente, o velho é aquele que assegura o equilíbrio, de um ponto de vista cosmogônico, mas é também aquele que está à beira do desequilíbrio, de um ponto de vista físico. O velho representa, na nossa cultura, um corpo vigiado pelo seu último bem: sua conservação por mais tempo possível. A morte, cada vez mais alijada da nossa cultura, torna-se o único acontecimento da sua velhice: a morte dita natural é lenta, lenta demais para uma juventude hiperativa; é preferível aspirar a uma morte rápida, portanto escolhida, e daí o desenvolvimento da eutanásia voluntária no Ocidente, o que, nos dois casos, leva a uma negação da morte.[28] A única recuperação possível da morte, na nossa civilização, passa pela produção e pelo consumo. Pois bem, a internet e a cibercultura reabrem todos os campos do possível para todos e em todas as idades.

Assistimos a um duplo mecanismo de rejeição: o da morte reservada a uma faixa etária chamada de terceira e já de quarta idade.[29] O desafio não é chegar à imortalidade, mas ser bem-sucedido na longevidade.[30] É por isso que a velhice é concebida, a partir de agora, como uma coleção de doenças que poderão ser adiadas. Médicos e geriatras chegam até mesmo a se perguntar se, amanhã, o sofrimento, a doença e a morte continuarão fazendo parte da condição humana.

Para além da nossa higiene de vida, a revolução da biologia molecular e da nanomedicina, tecnologia na escala do milionésimo de metro aplicada à medicina, já começou. Éramos o fruto de uma “evolução darwiniana”, poderíamos nos tornar um conceito, conservando dessa teoria apenas a ideia de que seríamos verdadeiramente programados só para a reprodução. O corpo, tal como o conhecemos, poderia dar lugar a um sistema orgânico no qual se misturariam biotecnologia, nanotecnologia e sistemas de informação; enfim, um estado pós-humano. Segundo Aubrey de Grey, pesquisador em bioinformática em Cambridge, se trabalharmos no genoma de um indivíduo a cada dez anos, seria possível atrasar seu relógio biológico até “zero”. O desenvolvimento da engenharia dos tecidos deverá levar à utilização das células-tronco para regenerar órgãos como o coração, o fígado, os rins, ou seja, desenvolver uma cultura de nós mesmos.[31] Enquanto aguardamos, novas tecnologias a serviço da medicina preventiva vão brevemente fazer sua aparição no nosso banheiro. Poderemos, dentro de pouco tempo, realizar exames de saúde simples com aparelhos fáceis de usar, como um espelho, uma balança ou vasos sanitários inteligentes. Esses objetos estariam ligados a um quadro de testes, ele próprio conectado pela internet aos médicos ou aos laboratórios de análise, que poderiam assim acompanhar os resultados e agir diretamente através de conselhos de saúde enviados ao paciente, também através da Rede. O intelligent toilet system não é uma utopia, ele já existe no Japão. Esse sistema pode medir a taxa de açúcar na urina, a pressão sanguínea e a taxa de colesterol, enquanto estamos sentados. Uma sociedade americana propõe por sua vez o digital angel, um “anjo digital”, isto é, um chip introduzido sob a pele que conteria um dossiê médico em miniatura. O certo é que, a curto prazo, chips eletrônicos biocompatíveis, feitos de proteínas capazes de se diluir no corpo humano, analisarão a presença de certas moléculas no nosso organismo e, em caso de problema ou de acidente, serão interrogadas pelos médicos com a ajuda de um pequeno captador. A ideia de um dossiê médico silencioso, equivalente à carteira de saúde na França,* instalado in corpore sano, que estaria nos vigiando a cada instante, pronto para nos alertar caso aconteça algum desequilíbrio ou problema, já está instalada nas consciências. Chips de um centímetro quadrado, de vidro ou de silício, sobre o qual são fixadas proteínas, já existem. Eles poderão também reagir sozinhos e restabelecer desordens metabólicas levando as substâncias para o lugar certo, na hora certa. Para um diabético, por exemplo, o chip poderá analisar a quantidade de glicose no sangue e, se ela estiver alta, ativar a produção de insulina por meio de uma minúscula bomba implantada na cavidade abdominal. Os biochips, nascidos da aliança entre a biologia molecular e a microeletrônica, que permitem compreender e analisar o DNA e detectar as moléculas indesejáveis, poderão também permitir a identificação, em tempo recorde, dos biomarcadores, substâncias que podem revelar, a partir da análise, uma desordem fisiológica precursora de uma doença grave, como o câncer, mas que ainda estão em pequena quantidade no sangue. Enfim, graças a um “nanodiagnóstico”, os médicos poderão tratar a doença bem antes da formação de um tumor.[32] Rapidamente, os nanorrobôs circularão no nosso corpo para limpar as artérias ou contar, estimular e até mesmo substituir nossos glóbulos vermelhos. O certo é que, a curto prazo, seremos muitos a usar esses chips que, além de analisar e diagnosticar, servirão como identificadores, como um cartão bancário, cartão de transporte e outros… Desse modo, o corpo, tal como o conhecemos, poderá dar lugar a um sistema orgânico no qual se juntariam biotecnologia, nanotecnologia e sistemas de informação. Medicamentos químicos em estudo seriam igualmente “carregados” e “recarregados” nesse tipo de nanotransportadores. Espécies de “remédios-sentimento”, passando por neurotransmissores precisos, poderiam agir sobre a timidez, o ciúme ou a criatividade, modificando as emoções e, portanto, o comportamento. Será mesmo possível, dentro de pouco tempo, utilizar substâncias que servem para aumentar a memória e diminuir o estresse, ao passo que, no âmbito militar, os dopantes de ação tópica melhoram a resistência ao cansaço e à dor…[33]

Em 1998, o inglês Kevin Warwick, da Universidade de Reading, implantou no próprio braço um chip que emitia um sinal através do qual ele podia ter acesso ao seu laboratório. Observemos que nas discotecas modernas de Roterdã e de Barcelona já são vendidos aos clientes chips RFDI (identificação por radiofrequência). Em 2003, o mesmo pesquisador fez um implante em um dos seus nervos para isolar o sinal cerebral que passa por ali quando ele abre e fecha a mão; esse sinal seria reutilizado para movimentar a mão de um robô, que por sua vez enviaria sinais ao pesquisador. Algum tempo depois, ele experimentou uma rudimentar troca de sinais entre seu cérebro e o de sua mulher, também equipado com um eletrodo implantado num nervo. Também esperamos para breve a comercialização de um capacete que registra a atividade cerebral das crianças, para melhorar sua capacidade de concentração, e de uma bandana high-tech que permite produzir música através do pensamento; o “homem ampliado” está chegando à sociedade industrial. Começamos seriamente a pensar na ideia e na realização de uma espécie “pós-humana”; uma espécie dotada de novas ferramentas integradas para remediar e remodelar nossa condição imperfeita. Veremos surgir uma eugenia tecnológica que resultará em crianças “ampliadas”, sem a sua concordância, nas quais transplantaremos uma superinteligência artificial, downloads de conhecimentos, cyborgs voluntários, enfim, uma tal mutação das consciências que, excetuando a pesquisa dos efeitos fenômenos, a questão do “pós-humano” está se tornando um tema ético, científico e econômico importante para os próximos anos.

* A carte vitale na França, até o momento, contém apenas informações sobre exames e medicamentos prescritos e licenças médicas. (N. da T.)

Tradução de Hortencia Santos Lencastre

Notas

  1. WIENER. Norbert. Cybernetics, or Control and Communication in the Animal and Machine.

    Paris, France: Librairie Hermann & Cie; Cambridge, MA: MIT Press. 1947, p. 14. 

  2. DIBIE, Pascal. Le village metamorphosé, Révolution dans la France profonde. Paris: Plon,

    2006. (Col. Terre Humaine). 

  3. Idem. 
  4. DE SINGLY, François. Les adonaissants. Tonnerre: Armand Colin, 2006. 
  5. Lembro, sem querer cair na paranoia, que a adoção – talvez devêssemos dizer imposição?

    – pelo mundo e no mundo, por todas as democracias, às quais devemos acrescentar hoje em dia regimes pouco recomendáveis, da norma TCP-IP, que está na origem da criação, pelos Estados Unidos, de uma rede digital de comunicação militar, a internet, implica que devemos nos submeter às prescrições necessárias para a adoção e a utilização de normas que nos induzem a repetir, sob o risco de não poder utilizá-la, “ideógenos” novos e muito particulares. (STIEGLER, Bernard. Mécréance et discrédit, la décadence des démocraties industrielles. Paris: Galilée, 2004). 

  6. LE BRETON, David. En souffrance, adolescence et entrée dans la vie. Paris: Ed. Métailié, 2007. (Collection Traversées). 
  7. MAUSS, Marcel. “Les techniques du corps”. ln:_____, Sociologie et Anthropologie. Paris: PUF, 1950. 
  8. Segundo uma enquete, estima-se que 85% dos jovens entre 11 e 17 anos surfam diariamente na internet, as meninas passam cerca de quatro horas e os meninos, cerca de quatro horas e meia na frente de um computador, ou de um console de videogame. (CREDOC, set. 2005). 
  9. DIBIE, Pascal, op. cit, p. 61. 
  10. JONHSON. Everything Bad is Good for You. Londres: Penguin Group, 2005. 
  11. Idem. 
  12. TAVARES, Clara Ferrão. “Le temps, l’espace et les cultures”. Etudes de Linguistique Appliquée, n. 146, abril-junho 2007. 
  13. DE CARLO, Maddalena. “La communication à l’époque de sa reproductibilité technique”.

    Etudes de Linguistique Appliquée, no 146, abril-junho 2007. 

  14. DIBIE, Pascal. “Les enfants on quitté notre enfance”. ln: WIEVIORKA, Michel (org.). Nos enfants, entretiens d’auxerre. Auxerre: Éditions Sciences Humaines, 2oo8 
  15. WIENER, Norbert. Cybernétique et société. Paris: Deux Rives, 1949, p. 286. 
  16. CASILLI, Antonio. “Posthumani nihil a me alienum puto, le discours de l’hospitalité dans la cyberculture”. Sociétés, n. 83, 2004. 
  17. BRETON, Philippe. Le culte d’internet, une menace pour le lien social?. Paris: La Découverte, 2000. 
  18. QUÉAU, Philippe. La planète des esprit. Paris: Odile Jacob, 2000. 
  19. CASILLI, Antonio, op. cit. 
  20. Idem. 
  21. MORSE, Margaret. “What do Cyborgs Eat?” ln: BENDER, G.; DRUCKEY, T. (orgs.). Culture on the Brink. Seattle: Bay Press, 1994, p. 157. 
  22. LAMIE, citado ln: Barbiole, 1992. 
  23. CASILLI, Antonio, op. cit., p. 78. 
  24. DELEUZE, Gilles. Pourparlers. Paris: Minuit, 1990, p. 236. (Edição em português: DELEUZE, Gilles. Conversações, São Paulo: Editora 34, 1992.) 
  25. MATTELART, Armand. Diversité culturelle et mondialiation. Paris: La Découverte, 2007. 
  26. A expectativa de vida da população francesa por volta de 2080 será de 95 a no anos, observa Joel de Rosnay em Une vie en plUA. La longévité, pourquoi faire?. Paris: Seuil, 2005. 
  27. REBOUL, Hélene. Vieillir, projet pourvivre. Lyon: Cholet/SEP, 1973. 
  28. A única experiência da morte que o homem pode ter passa pela morte dos outros. É a partir daquilo que ele viu e vivenciou que ele pode imaginar sua morte ou criar fantasmas a partir das diferentes imagens que permitem que ele represente sua própria morte e possa dessa maneira, de certa forma, concretizar, quase materializar sua angústia existencial. REBOUL, Hélene “Propos sur l’hospitalisation psychiatrique de personnes âgées”. Revue d’Hygiene et médecine .1,ociale, t. 28, no 4, 1970. 
  29. Atualmente na França, ganhamos um ano de expectativa de vida a cada quatro anos… (um em cada dois bebês nascidos em 2006 deverá ser centenário). Na próxima década, as pessoas com mais de 85 anos vão aumentar em 75% na França, e apenas 75% da população francesa não terá boa saúde aos 75 anos. Setenta e três por cento das pessoas de 80 anos têm vida autôno­ma). HELME, Benoit. Le Monde, 2, 14 out. 2006. 
  30. Um homem ou uma mulher de 70 anos apresentam hoje a condição física e mental dos quinquagenários do século XIX. Ter relações sexuais pelo menos três vezes por semana prolonga a expectativa de vida em dez anos em média. Com uma vida erótica satisfatória, sofremos com menos frequência de diabetes, de hipertensão e de doenças cardiovasculares. REBOUL, Hélene. “Vieillesse et approche de la mort”. Information psychiatrique, vol. 46, n. 7, 1970. 
  31. Com uma célula-tronco embrionária, extraída de um embrião excedente depois da fecundação in vitro, foi possível fabricar uma célula híbrida que conseguiu reprogramar uma célula adulta em seu estado embrionário e retirar algumas células da nossa pele em laboratório. Elas serão cultivadas de modo a fazê-las voltar para a infância, graças às células embrionárias, e fazê-las fabricar músculo cardíaco, por exemplo. Depois, serão transplantadas no nosso corpo, sem risco de rejeição, pois se trata dasnossas próprias células. Dessa maneira, a parte necrosada poderá ser regenerada. Já se conseguiu, com células embrionárias, reconstituir vesículas. HELME, Benoit. Le Monde 2, 14 out. 2005. 
  32. Estimava-se em cem mil o número de biochips no mundo em 1999, e já se contavam sete milhões em 2005. 
  33. COURTOIS, Claudia. “Les cyborgs existent déjà”. Le Monde 2, 22 out. 2007, p.17. 

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