2013

O vísivel e o invisível do tempo

por Franklin Leopoldo e Silva

Resumo

Dentre as muitas maneiras de qualificar o que há de surpreendente e insólito na experiência do tempo, talvez seja preciso inscrever o par de noções que descreve as atitudes de fascínio e violência, componentes da reação humana à condição temporal que a define e aflige.

O fascínio exercido pelo tempo provém da dificuldade em representar a contradição entre ser e não ser, dualidade que manifesta o grande interdito que a filosofia teve de observar desde os seus inícios como impossibilidade ontológica e como contradição lógica. De alguma forma, vive-se nesta impossibilidade o paradoxo de pensar o impensável e o indevido – ou a situação crucial experimentada no limite entre a plástica apolínea da ordem e o pressentimento dionisíaco do absurdo. Um tipo de fascínio que, portanto, transporta para o desconhecido e a morte, pois o tempo traz como dificuldade intrínseca à possibilidade de sua representação o fato de que não se funda no que há de apreensível na realidade, mas sim naquilo em que ela nos escapa, isto é, não no seu aparecimento, mas no seu desaparecimento. A transformação ou o movimento de mudança pode ser evolução ou mutilação, progresso ou regressão, mas o motor da transformação, o ritmo do devir, parece estar relacionado com o jogo mortal da transitoriedade, em que o tempo aparece como o grande devorador.

Há, portanto, nesta relação de fascinação algo de violento que torna o enfrentamento direto do tempo algo insuportável e, ao mesmo tempo, traço essencial da consciência de si, que para o ser humano é o reconhecimento da mortalidade. Ora, essa violência que o tempo exerce sobre o homem provoca, por parte deste, uma reação também violenta. Com efeito, a história da filosofia, vista através de perspectiva crítica, como a de Nietzsche, por exemplo, teria sido um constante e reiterado esforço para pacificar a força desordenada através da qual muitas vezes o devir se apresenta, quando transformação e movimento de destruição se identificam no ritmo da dissolução das coisas, da fragilidade da existência e da vulnerabilidade do eu. Resiste-se à violência pela violência, porque a fraqueza humana se vale da força simbólica para colocar, ante o poder inerente à passagem do tempo, o poder humano da representação da permanência em si de uma realidade que seja essencialmente imune ao processo temporal ou que se possa afirmar, diante da temporalização, como absoluta e necessariamente real.


Dentre as muitas maneiras de qualificar o que há de surpreendente e insólito na experiência do tempo, talvez devêssemos inscrever o par de noções que descreve as atitudes de fascínio e violência, componentes de nossa reação à condição temporal que nos define e nos aflige.

O fascínio exercido pelo tempo provém de nossa dificuldade para representar a contradição entre ser e não ser, dualidade que manifesta o grande interdito que a filosofia teve de observar desde os seus inícios como impossibilidade ontológica e como contradição lógica. De alguma forma, vive-se nesta impossibilidade o paradoxo de pensar aquilo que não podemos e não devemos pensar – ou a situação crucial experimentada no limite entre a plástica apolínea da ordem e o pressentimento dionisíaco do absurdo. Um tipo de fascínio, portanto, que nos coloca diante do desconhecido e da morte, pois o tempo traz como dificuldade intrínseca à possibilidade de sua representação o fato de que não se funda no que há de apreensível na realidade, mas sim naquilo em que ela nos escapa, isto é, não no seu aparecimento, mas no seu desaparecimento. A transformação ou o movimento de mudança pode ser evolução ou mutilação, progresso ou regressão, mas o motor da transformação, o ritmo do devir, parece estar relacionado com o jogo mortal da transitoriedade, em que o tempo aparece como o grande devorador.

Há, portanto, nesta relação de fascinação algo de violento que torna o enfrentamento direto do tempo algo insuportável e, ao mesmo tempo, traço essencial da consciência de si, que para o ser humano é o reconhecimento da mortalidade. Ora, esta violência que o tempo exerce sobre nós provoca uma reação de nossa parte, que é a violência que exercemos sobre o tempo. Com efeito, a história da filosofia, vista através de perspectiva crítica, como a de Nietzsche, por exemplo, teria sido um constante e reiterado esforço para pacificar a força desordenada com a qual muitas vezes o devir se apresenta, quando transformação e movimento de destruição se identificam no ritmo da dissolução das coisas, da fragilidade da existência e da vulnerabilidade do eu. Resistimos à violência pela violência, porque a fraqueza humana se vale da força simbólica para colocar, ante o poder inerente à passagem do tempo, o poder humano da representação da permanência em si de uma realidade que seja essencialmente imune ao processo temporal ou que se possa afirmar, diante da temporalização, como absoluta e necessariamente real.

Neste sentido, não seria exagero dizer que, no âmbito da cultura filosófica firmada na tradição, o tempo aparece como algo a ser superado, seja como aparência, seja como desordem, seja como concepção insuficiente da realidade no seu ser. Esta oposição entre verdade e temporalidade seria o pressuposto subjacente às categorias filosóficas construídas para expressar a lógica do pensamento e sua vocação para a afirmação do absoluto. Esta foi a constatação de Bergson e, também, a raiz de uma profunda revisão do modo de pensar filosófico a partir da critica desta diretriz fundamental, que consiste em fazer do conhecimento e da prática a adoção de procedimentos essencialmente voltados para a anulação da realidade e dos efeitos da duração temporal. A originalidade de Bergson consiste numa atitude radical: a denúncia de que o paradigma de racionalidade, vigente na filosofia e nos saberes que a partir dela se formaram (ciências), consiste em identificar a verdade (teórica e prática) com a anulação sensível e intelectual do tempo na sua característica mais própria, que é a duração (passagem, processo), e a substituição da temporalidade por uma articulação categorial que privilegie a permanência, a subsistência, a estabilidade e todas as formas de confirmar o pressuposto da prioridade do ser sobre o vir a ser, em suma, da imobilidade sobre o movimento. A pretensão de um conhecimento metafísico da eternidade é a manifestação mais completa da grande recusa do tempo que se mostra historicamente constitutiva da filosofia. Para compreender esta recusa, tão constante, tão sistemática e tão consolidada, é preciso, no entanto, considerar, além do fator histórico na formação dos hábitos de pensamento, certas disposições originárias do ser humano na sua condição de espécie submetida ao processo de evolução. Uma das ideias centrais da filosofia de Bergson, que, sob muitos aspectos, pode ser vista como uma filosofia da evolução, é que este processo, cujo critério e finalidade é a sobrevivência, teria constituído no seu decurso mecanismos de adaptação dos seres vivos às condições de vida, dotando-os dos elementos necessários para tirar proveito da relação com o ambiente por via de um grau satisfatório de adequação entre os indivíduos e a realidade em questão inseridos. Trata-se de satisfazer necessidades em proveito da continuidade e do aprimoramento da vida. Tendo em vista este desígnio, as espécies foram dotadas dos meios necessários para realizá-lo. A natureza se valeu de duas estratégias: o instinto, no caso dos animais, e a inteligência, no caso do ser humano. Duas soluções para o mesmo problema, mas que implicam diferenças estruturais e diversidade de trajetória das duas vertentes da vida que assim se constituíram, por via de uma espécie de bifurcação, a partir de uma mesma origem, da grande história da Vida. Como resultados deste processo evolutivo em cada uma das suas linhas, temos a perfeita adaptação instintiva, cujo maior exemplo está nos insetos (a organização da sobrevivência em grupo das abelhas e das formigas), e a adaptação inteligente, que não é perfeitamente realiza­ da porque não é definitiva, uma vez que a inteligência é flexível enquanto o instinto é absolutamente cristalizado. Tendo em vista esta distinção e a peculiaridade de cada linha evolutiva, pode-se dizer que a finalidade da adaptação teria sido cumprida.

Ora, nos dois casos trata-se de sobrevivência. Neste sentido, quando definimos o ser humano como “animal racional”, isto significa que a espécie possui, na inteligência, um meio adequado de adaptação à realidade e de satisfação de exigências vitais, isto é, práticas, pois se trata de desenvolver prioritariamente instrumentos úteis para viver, primeiramente na acepção “naturalista” do termo. Encontramos assim, na filosofia de Bergson, uma dimensão pragmática de grande relevância, pois a explicação de nossa constituição biopsíquica deve levar em conta o caráter utilitário das nossas faculdades, cuja finalidade primeira é agir sobre o mundo exterior para estabelecer condições favoráveis ao nosso modo de estar no mundo, e para tanto a inteligência, de acordo com a sua vocação de flexibilidade adaptativa, fabrica os meios adequados, que vão desde os utensílios que se relacionam diretamente com a ação sobre as coisas, até as teorias científicas que, por mais distantes que aparentemente estejam de um uso efetivo, são elaboradas, enquanto produtos da inteligência, sempre respondendo a exigências e finalidades práticas. Enfim, a análise da estrutura da percepção e do intelecto revela este fundamento naturalista, que para Bergson é muito importante, porque a desconsideração deste aspecto teria dado origem a muitos e persistentes equívocos da reflexão filosófica. Basicamente é preciso considerar que aquele ser que tem sido tradicionalmente chamado de Homo sapiens é, na verdade, homo faber – e as consequências desta prioridade do faber sobre o sapiens são muito importantes quando se trata de entender as relações que estabelecemos com a realidade, já que mesmo as que denominamos “teóricas” estão inseridas numa perspectiva prática – agir e fazer.

Isto é absolutamente essencial para compreender o perfil do conhecimento, pois, de acordo com o que foi dito, o animal humano conhece para agir e, segundo a prioridade da ação, o conhecimento ocorre dentro dos limites necessários e suficientes para orientar a ação. O que significa que todas as categorias que compõem a lógica do conhecimento em todas as suas versões possuem uma origem e uma destinação prática, a partir do que podemos também afirmar que tudo o que o conhecimento possa ter de formal e de transcendental deve ser entendido como transfigurações de necessidades práticas e de exigências de adaptação.

Supondo a pertinência destes dois requisitos, podemos entender as condições de representação: elas não se relacionam com um conhecimento puro, mas com a formulação de visões da realidade profundamente comprometidas com a finalidade prática do conhecimento. Neste sentido, a realidade representada consiste num recorte operado de tal modo a favorecer o acordo ou a adequação entre os meios de conhecer e as finalidades de ação, segundo a relação direta entre estas duas instâncias. Assim, é o modo pragmático-adaptativo de pensar que determinará o perfil da representação e a imagem da realidade daí resultante. Para agir, necessitamos de uma realidade estável, de um meio homogêneo, de uma totalidade bem dividida e bem articulada, de uma multiplicidade que possa ser reduzida logicamente à unidade fundamental e de uma diversidade que também se remeta à identidade. Isto porque as expectativas pragmáticas de ação eficaz dependem da estabilidade que se apresenta no objeto da ação. Podemos concluir daí que a constituição da objetividade como requisito metódico essencial ocorre por via de uma tradução da realidade para uma estrutura simbólica na qual se dá o acordo entre o sujeito e o objeto, ou a adequação, fundamentada a priori, entre as categorias e as coisas – entre a lógica e a existência.

Eis aí o motivo pelo qual devem ser excluídos da nossa imagem do mundo todos os elementos que porventura venham a contrariar as expectativas pragmáticas de nossa inserção produtiva no mundo. E como homogeneidade, unidade, identidade, estabilidade não são compatíveis com o tempo entendido como duração real – esta passagem do tempo, tão simples quanto terrivelmente enigmática-, a percepção e a inteligência escamoteiam a realidade do tempo no recorte e na tradução a partir das quais representamos a realidade. Para que a realidade seja determinada e articulada segundo as exigências lógicas (mas originariamente práticas) do conhecimento, a representação não pode comportar na sua estrutura o fluxo contínuo de diferenças, que é próprio da duração. O tempo teve de ser excluído, precisamente, desta tradução do fluxo de diferenças para a articulação governada pelos princípios de identidade e unidade. Por isso observamos, ao longo da história da filosofia, a constituição das teorias do conhecimento por via desta montagem conceitual que depende de antecipações formais ou transcendentais que prefiguram logicamente a realidade a ser conhecida, operando desta maneira uma redução das possibilidades do real aos limites bem demarcados do conceito, de acordo com procedimentos analíticos e articulatórios que visam ao que se convencionou chamar de clareza, condição de objetividade e verdade.

Desta forma entendemos que a noção de representação deve ser vista a partir de uma perspectiva pragmática, entendendo que perseverar na vida é obviamente a intenção do ser vivo já prevista no próprio processo natural a partir do qual ele surgiu. Representar significa recortar, articular, simbolizar, traduzir. A aplicação de tais procedimentos ao tempo tem consequências de largo alcance, pois, de acordo com Bergson, podemos dizer que a realidade é de essência temporal. O tempo não é, pois, um acidente ou um entre vários modos possíveis de ser que se agregariam a uma substância em si imutável e permanente, como repete a tradição desde Aristóteles. A compreensão autêntica da realidade implicaria uma inversão da própria estrutura que o conhecimento cunhou como representação adequada: o essencial não é a substância entendida como substrato imóvel e imutável, correspondente à prioridade do ser, mas o vir a ser, o devir, isto é, precisamente aquilo que foi desprezado ou, pelo menos, visto como acidental, contingente e, a rigor, inadequado para compor um conhecimento sistemático e coerente na sua estrutura formal. O tempo, mais do que um atributo da realidade, é a própria realidade. O que a filosofia sempre buscou como ser na verdade é o tempo. Admitir esta inversão significa pôr em questão a prevalência, no conhecimento, de procedimentos, categorias e conceitos cuja finalidade tem sido sempre a constituição de uma representação cristalizada da realidade.

Diante das prerrogativas naturais e históricas desta representação haveria alguma possibilidade de aceder ao tempo na sua realidade, o que seria o mesmo que aceder à realidade que estaria por trás de sua tradução simbólica? O primeiro livro de Bergson tem como título Ensaio sobre os dados imediatos da consciência; esta expressão deixa subtender que, além ou aquém das mediações instrumentais do conhecimento, seria possível, no caso da consciência, chegar ao imediato, aos dados primordiais, no sentido daquilo que seria o mais originário, ocultado pelas mediações conceituais que se superpõem a este contato direto. Isto nos mostra que, desde o início, a filosofia de Bergson já se orienta por este propósito renovador, que seria o de atravessar as camadas de simbolização com as quais se satisfaz o discurso conceitual e chegar à “própria coisa”, no caso, a consciência apreendida em sua temporalidade singular. Para tanto, é preciso desenvolver uma crítica da filosofia, sobretudo no que concerne às teorias do conhecimento e seus instrumentos de representação, notadamente aquele que parece consubstanciar todos os outros, a linguagem. Pois a consolidação dos hábitos intelectuais de uma maneira tão forte que eles parecem constituir a única lógica possível tem a ver com o uso das palavras e a relação entre os modos de dizer e os modos de pensar. Em princípio, a linguagem expressa o pensamento; mas, à medida que as palavras contribuem para cristalizar o pensamento, este acaba se tornando dependente da linguagem que, ao transmiti-lo, também o sistematiza e lhe confere formas fixas.

Exprimimo-nos necessariamente por palavras e pensamos mais frequentemente no espaço. Em outros termos, a linguagem exige que estabeleçamos entre nossas ideias as mesmas distinções, nítidas e precisas, a mesma descontinuidade que entre os objetos materiais. Esta assimilação é útil na vida prática e necessária na maior parte das ciências. Mas poderíamos indagar se as dificuldades insuperáveis que certos problemas filosóficos suscitam não derivariam de que nos obstinamos a justapor no espaço fenômenos que não ocupam espaço, e se, caso abstraíssemos as grosseiras imagens em torno das quais se trava a discussão, não lhes poríamos fim[1].

A articulação pragmática da realidade é útil na vida prática e necessária, de modo geral, nas ciências. Uma vez que não acontece por acaso, é compreensível e justificada nesses dois campos em que atua. Mas, uma vez que não deixa de ser um constructo representativo, não pode ser generalizada de modo absoluto. Quando o fazemos, damos ensejo a problemas que não podem ser solucionados pelos próprios artifícios simbólicos que os engendraram. Devemos, portanto, descrever e entender a estrutura pragmática da representação de duas maneiras. Primeiramente, pensar a partir das palavras que exprimem o pensamento e esperar que este se articule segundo o modelo da descontinuidade espacial que ordena a linguagem é, num certo sentido, inevitável e corresponde à “intenção” pragmática da natureza. Ao mesmo tempo, no entanto, devemos tomar consciência de que se trata de uma interpretação humana da realidade, que corresponde à escala das necessidades de nossa inserção prática, sendo assim totalmente relativa às condições gerais da relação entre sujeito e objeto. Não nos libertaremos dos impasses e antinomias que a filosofia tão abundantemente produziu enquanto não compreendermos esta relatividade, seu sentido e seu alcance.

A expressão “dados imediatos”, contida no título do livro que citamos remete à experiência vivida do tempo, por oposição à síntese intelectual que habitualmente fazemos, e que foi entendida por Kant, por exemplo, como a única relação possível com o tempo, já presente desde a percepção. A questão que se coloca é, portanto, a da possibilidade de um retorno a esta experiência vivida como contato primário com a temporalidade. Abre-se para tanto um percurso que pode ser dividido em duas etapas; primeiramente, uma descrição, criticamente orientada, da construção simbólica e conceitual que exclui o tempo da nossa relação mediata com as coisas; em segundo lugar, uma tentativa metódica de desconstrução desta relação necessariamente artificiosa e a busca de uma (re)aproximação da experiência imediatamente vivida, no plano da identificação entre processo de vida, vir a ser e temporalidade como fato e significação absolutamente primários da existência, anteriores à relatividade da nossa consciência pragmática de nós mesmos e do mundo.

A expressão “dados imediatos da consciência” nos indica que esta (re)aproximação da experiência vivida se faz primeiramente no âmbito da subjetividade, mas não enquanto considerada como entidade metafísica a ser objetivamente analisada (Descartes), mas sim como a coincidência que cada sujeito – cada consciência-tem consigo mesmo. Neste sentido, o tempo da consciência seria nosso primeiro contato com o tempo real e, neste caso, veríamos que se trata de um contato direto porque o tempo da consciência quer dizer a consciência como temporalidade. A subjetividade não é uma entidade e o sujeito não é uma coisa, ainda que pensante: encontramos, como dimensão de realidade, o fluxo das diferenças de que falamos, na continuidade concreta em que o sujeito se constitui como temporalidade, que é a vida profunda da consciência, aquilo a que os filósofos tentaram se referir quando utilizavam a palavra “espírito”. Bergson julga que a experiência dos dados imediatos da consciência nos revela o que se oculta sob a cristalização discursiva da palavra “espírito”, algo que não pode ser reduzido a um conceito fixo e “distintamente” delimitado, pois se trata da produção temporal de si mesmo. No tempo surgimos, no tempo vivemos. No tempo haveremos de desaparecer? É a pergunta que a filosofia deve deixar em aberto, pois a imprevisibilidade e a indeterminação próprias do tempo implicam que qualquer resposta será necessariamente dogmática.

A identificação entre consciência e temporalidade nos leva a compreender o Eu como a duração que flui num processo infinito de diferenciação. Com efeito, se deixamos de pensar “no espaço” (em termos espaciais) e pensarmos “no tempo”, isto é, num regime de inextensão, veremos que as referências de identidade e de unidade perdem sentido, pois o que constitui de fato a realidade no seu movimento temporal é a multiplicidade e a diferença, aspectos do real que nunca mereceram a confiança do filósofo. É isto que nos poderá preservar da analogia cartesiana entre coisa extensa e coisa inextensa. “O tempo vivido ou, se quisermos, a experiência vivida do tempo é, como tal, uma experiência humana, o ponto de coincidência entre consciência, presença e história. Em outros termos, o ser humano como presença que se temporaliza ou como presença que se presenifica”[2]. O processo de constituição da subjetividade é temporalização, a presença continuamente diferenciada do sujeito para si mesmo, na continuidade do tempo que faz deste processo, nas palavras de Bergson, uma unidade múltipla e uma multiplicidade una, o que não constitui contradição, mas um tipo de reciprocidade que subverte a concepção tradicional de ser. Processo, ação, mutação são noções que, sem coincidir com a temporalidade real, podem dela nos aproximar mais do que o uso tradicional de conceitos. A experiência do tempo vivido significa, pois, que cada sujeito é a história de si mesmo, a vivência íntima do processo de existir.

Mas a predominância do pragmatismo prescrito pela natureza significa que vivemos principalmente na exterioridade, segundo o contorno exterior de nós mesmos, e mais em vista das coisas do que de nós, na intimidade de nossa subjetividade. O Eu superficial domina a cena e é, o mais das vezes, o protagonista de nossa existência: “[…] um segundo eu que recobre o primeiro, um eu cuja existência possui momentos distintos, cujos estados se distinguem uns dos outros e se exprimem facilmente em palavras”[3]. O Eu superficial é, portanto, a expressão exterior da subjetividade, o Eu social que vive no tempo social das relações intersubjetivas guiadas pela necessidade prática.

Não é difícil perceber que a representação pragmática do tempo resulta na exteriorização espacial e na extensão como medida privilegiada da nossa relação com o mundo, quer se trate do senso comum ou da ciência. O motivo desta configuração representativa é a conveniência prática, logo tornada necessidade lógica, de determinar a realidade, articulando objetivamente seus elementos, para melhor discernir as possibilidades de ação, mesmo que esta permaneça virtual. A determinação objetiva não pode ocorrer no tempo real; é preciso supor uma realidade segmentada em que o movimento ocorra por via de uma espécie de justaposição sucessiva de momentos descontínuos organizados em série. Somente desta maneira a realidade pode assumir para nós a figura de objetos a serem organizados pela lógica da articulação categorial. É desta forma que interpretamos, por exemplo, a temporalidade como sequência fragmentada de causas e efeitos, metodicamente determinados, de modo a que o movimento temporal seja um atributo do objeto e não uma característica primária e intrínseca da realidade.

A tese principal da ontologia bergsoniana é a contínua autoprodução da realidade, um engendramento criador que não poderia ser reduzido a esquemas de determinação e previsibilidade, como, no entanto, exigem os parâmetros de eficiência da relação pragmática com o mundo, bem como as regras da objetividade científica. Conhecer é, em grande parte, determinar e prever, o que corrobora a intenção prática e de dominação presente, sobretudo, na ideia moderna de conhecimento. Daí a necessidade de uma articulação temporal da realidade que traduza o fluxo do tempo em sequências lógicas do tipo antecedente/ consequente, determinante/ determinado. Neste sentido, o que se pode entender por transformação? Nada que ultrapasse os limites de uma concepção de modificações de forma, no sentido em que uma substância poderia assumir várias formas de existência, no sentido de modos de existir, todos acidentais, sem que isto interferisse decisivamente na sua forma primordial – ou substancial – que seria uma essência atemporal. Em termos mais precisos: a modalização que explicita a essência no plano da existência já está a priori determinada pelo atributo essencial, que não pode, por definição, sofrer efeitos do tempo.

Ora, esta representação articuladora do tempo, governada pelo princípio da determinação, tem consequências na maneira como entendemos as relações entre as dimensões temporais. Com efeito, mesmo quando consideramos a realidade como processo, podemos entender que a temporalidade aí se mostra, pelo menos retrospectivamente, como dividida em etapas que o movimento histórico e lógico atravessa necessariamente na direção de sua realização. Tal é a concepção de Hegel: para que o processo faça sentido, é preciso que sua realidade se identifique a uma lógica que o conduz necessariamente, e o ponto de chegada, determinação final, nos fará ver que tudo estava, efetivamente, determinado e, por isso, se atingiu a totalidade absoluta, isto é, fechada em si mesma. Se a totalidade compreende a síntese determinada do processo temporal, o curso do tempo nesta história totalizada só poderia ser concebido como determinado em cada instante de seu movimento. Ou representamos as coisas deste modo ou enfrentamos a dificuldade de conciliar a contingência da liberdade com a necessidade da razão, o que se supõe colocaria em risco a inteligibilidade do processo.

Diante deste quadro em que se impõe o modelo de uma racionalidade determinante, necessária e totalizante, e que pode ser visto como a realização mais perfeita e sistemática da natureza da representação tal como Bergson a descreveu, podemos perguntar: como pensar o futuro? Se a possibilidade, a realidade e o sentido de qualquer acontecimento devem estar contidos em sua instância determinante, imanente ou transcendente à própria coisa, então o futuro será sempre consequência do presente e do passado, não do ponto de vista prático, isto é, histórico e ético, mas principalmente do ponto de vista lógico, como realização determinada e a priori contida nos seus antecedentes. A possibilidade de uma consciência do futuro não estaria ligada à expectativa (expectatio), espera ou esperança como experiência efetivamente temporal (em Agostinho), mas à previsibilidade como cálculo que, manipulando o tempo enquanto variável, antecipa o futuro como resultado de uma operação lógico-matemática. A crítica de Bergson à representação do tempo pode ser avaliada através da distância que se deveria estabelecer entre, de um lado, esta objetivação do tempo que se relaciona com o passado e o futuro por meio do cálculo enquanto procedimento que permite retroceder ou avançar num tempo concebido como linha contínua e, de outro, a experiência do tempo vivido por uma consciência concreta que lembra, percebe espera segundo o ritmo da duração, não mensurável e não previsível na dimensão pré-reflexiva da liberdade da consciência e da contingência dos fatos.

O que nos permite dizer, em conclusão, que a consciência do tempo é consciência de si como liberdade e consciência da realidade como contingência, dois modos de falar da mesma coisa, da característica mais profunda do tempo para Bergson, e diretamente relacionada com o tema do futuro: o tempo como criação, indeterminação, imprevisibilidade e talvez, sobretudo, risco, algo constitutivo da realidade em si mesma, mas uma aventura de que a natureza nos quis poupar, e que só experimentamos excepcionalmente, pois o que temos diante de nós, naturalmente, isto é, pragmaticamente, é o mundo visível das articulações confiáveis, em que o tempo é uma linha a partir da qual podemos representar a totalidade de uma presença absoluta, na qual o futuro estaria presente por antecipação.

O que aprendemos com a concepção bergsoniana do tempo e com esta filosofia que pretende pensar uma ontologia do movimento, ou uma verdade do devir ou uma realidade do vir a ser, não tem apenas a ver com epistemologia ou com conhecimento. Certamente a estratégia de oculta­ mento do tempo não se explica apenas por exigências de uma representação objetivamente estável, mas, talvez principalmente, pela necessidade de recalcar o desejo irrealizável de imortalidade, esta frustração que nos define em profundidade e da qual a obsessão da permanência e da substancialidade seriam as manifestações exteriores. Desde a Antiguidade, o que mais nos inquieta a respeito do futuro não é a sua imprevisibilidade ou as surpresas que nos aguardam, mas antes uma certeza tão absoluta que nos assusta pelo seu excesso, por uma verdade que transborda e devora todas as expectativas de uma vida sempre pequena e insignificante diante do horizonte da morte, certeza que possui figura paradoxal, pois, sendo a mais forte de todas que podemos ter, pode, no entanto, abrir-se para uma dimensão indefinida de incerteza que diria respeito a algo como um futuro absoluto.

Notas

  1. Henri Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience, Paris: PUF, 1976, p. VII. 
  2. Mauro Maldonato, A subversão do ser – Identidade, mundo, tempo, espaço: fenomenologia de uma mutação. São Paulo: Peirópolis, 2001. 
  3. Henri Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience, op. cit., p. 103. 

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