1991

O trabalho da crítica

por Inácio Araújo

Resumo

A TV coloca duas hipóteses para o jornalista que escreve sobre ela: ou trabalhar a partir de outros veículos, ou procurar desenvolver um conhecimento de sua lógica interna.

O leitor tem a tendência de assimilar a forma dramatúrgica da TV ao cinema, e, como o jornal é, perto da televisão, um veículo de elite — dirigido a pessoas com um gosto mais sofisticado do que a média com que a TV trabalha —, absorverá a ficção de TV como mau cinema, da mesma forma como verá no jornalismo de TV um jornalismo superficial etc.

Com o avanço tecnológico, somos levados a esquecer que a característica primeira da TV é a transmissão de fenômenos ao vivo, a longa distância, para dentro de cada casa. O espaço linear, contínuo, do cinema tem, portanto, pouquíssimos pontos de contato com a TV. O espaço cinematográfico é romancesco e individualista; o da TV substitui o contínuo pela percepção imediata e o linear pelo simultâneo. A imagem de TV se caracteriza por uma imprecisão instrumental: ela pode estar a qualquer momento em qualquer lugar.

A TV é feita para agora. O imediatismo leva a considerar a TV não como uma forma de arte mas de atividade de poder, no sentido em que falou G. C. Argan, para quem os homens do poder são os homens do progresso. Não é de estranhar, assim, que a rede mais bem-sucedida no Brasil, a Globo, tenha compreendido perfeitamente a política que se implan­tava no Brasil a partir de 1964.

Na verdade, o sucesso da Globo se constituía em paralelo ao go­verno militar. É preciso lembrar que os militares que tomaram o poder em 1964 eram anticomunistas, sim, mas vinham de uma tradição positivista. Em segundo lugar, seu projeto era fortemente transformador, no sentido em que tentou mo­dernizar o país através de um processo de rápida industrialização.
Os militares tinham duas preocupações fundamentais: transformar o Brasil aceleradamente em nação industrial e unificá-lo cul­turalmente. A TV foi extremamente útil nesse projeto, e não é por nada que no período militar investiu-se muito em infra-estrutura de comunica­ções. A Globo, e esse é o ponto, foi a TV que soube corresponder com muita rapidez a essa política.

O que é central no modo de produção da Globo é a identidade entre as noções de modernidade e qualidade. Globo era “qualidade” porque veiculava valores modernos, de transformação, e se projetava para o futuro. E era modernidade porque essa crença futurística no pro­jeto enunciava um desejo de consumo, de integração ao mundo desenvolvido, próprio de uma classe média ascendente.
Em síntese, o elo entre modernidade e qualidade era o consumo. Até os anos 60 existe no Brasil uma sólida mentalidade anticonsumista, segundo a qual é preciso poupar para ter. Em poucos anos, criou-se, em oposição, uma mentalidade de des­perdício.

Toda essa revolução de valores tinha uma sintonia afinada com objetivos oficiais. Em termos de marketing, pode-se dizer que a indus­trialização dos anos 60-70 significou a entrada num marketing de obso­lescência programada. Era quase uma fatalidade: o ciclo compra/uso/substituição, como produtor de ri­queza, assimila um modo de ser da TV que é uma máquina na qual as coisas (programas, publicidade) têm uma vida intensa enquanto duram, mas tornam-se obsoletas com muita rapidez.

Muito mais do que uma cumplicidade entre tal rede de televisão e tal governo, a TV é o centro de compromisso, de um con­trato social tácito, envolvendo um modo de vida, de desenvolvimen­to, mas um contrato de que os espectadores desconhecem tanto os prin­cípios como as consequências. Esse é um aspecto importante da TV: ela é avassaladoramente invasiva. A TV age, criando desejos, for­mulando conceitos, induzindo a comportamentos, sem que o especta­dor tenha controle sobre isso.
É nesse sentido que a crítica de televisão pode ter um pa­pel importante no jornalismo.


Escrever a respeito de televisão comporta um tanto de conforto e outro tanto de desconforto. O conforto vem do fato de, em matéria de TV, o jornalista ter muito poucas contas a prestar ao passado. Há poucos cadáveres ilustres nesse ramo, muito poucas ideias firmadas, o que nos coloca numa situação bem diferente do crítico de literatura ou cinema, por exemplo.

O desconforto decorre diretamente dessa quase ausência de passado. Numa situação de liberdade quase plena, os caminhos a seguir são inúmeros. Aquele que nos ocorre mais imediatamente, o mais enganoso, consiste em assimilar a TV a formas preexistentes de arte.

O engano é, aqui, múltiplo: ao mesmo tempo, desconsidera-se o que existe de específico à TV e instaura-se um objeto de análise fictício. Assimila-se a televisão a uma forma de arte, atribui-se à TV o estatuto de arte, o que não é certo que ela seja, pelo menos não é certo que faça parte de sua natureza.

Em poucas palavras, a TV coloca duas hipóteses para o jornalista: ou trabalhar a partir de outros veículos, ou procurar desenvolver um conhecimento de sua lógica interna. Se você trabalhar com a segunda possibilidade, estará criando para si mesmo um problema, já que o leitor, embora esteja tão familiarizado quanto o jornalista com o veículo, desconhece igualmente essa lógica interna e preferirá, pelo menos num primeiro momento, encarar a novela, digamos, como um filme longuíssimo, porque ela utiliza imagens construídas com elementos artísticos (atores, luzes etc.), captadas de maneira similar, e possui uma base dramatúrgica.

O leitor tem a tendência de assimilar essa forma dramatúrgica ao cinema, e, como o jornal é, perto da televisão, um veículo de elite — dirigido a pessoas com um gosto mais sofisticado do que a média com que a TV trabalha —, absorverá a ficção de TV como mau cinema, da mesma forma como verá no jornalismo de TV um jornalismo superficial etc.

Essa subestimação da TV vigorou pelo menos até que os trabalhos de McLuhan fossem difundidos e então as pessoas letradas começassem a perceber que a intervenção da TV em nosso mundo é muito mais profunda do que se imaginava. Mesmo assim, ela permanece um território por onde se entra tateando. Para fixar, um pouco arbitrariamente, aquilo de que falou McLuhan, pode-se isolar dois de seus aspectos. Um, o caráter fragmentário: passa-se da ficção à notícia, daí ao anúncio e ao futebol. Como numa composição cubista, as imagens se justapõem para criar um desenho inesperado das coisas. A realidade é reconstruída na TV, mas não como faz o cinema, por seleção e aproximação, síntese e recorte. A TV se dispõe, ao contrário, num tempo infinito. Seu princípio é, como já assinalou Rodolfo Azzi, o mesmo de Sheherazade, contando uma história cuja própria razão de ser está na possibilidade de perpetuação.

Nós, espectadores, aderimos com muita facilidade à ideia de “programa”, que corresponde na TV ao que a decupagem é no cinema, ou o capítulo no romance. Na verdade, estamos diante de uma interminável narrativa, cuja característica principal é a disparidade dos elementos. Mas a narrativa da TV é uma só.

Também espacialmente, a TV introduz novidades arrasadoras. Hoje, com o avanço tecnológico, somos levados a esquecer que sua característica primeira é a transmissão de fenômenos ao vivo, a longa distância, para dentro de cada casa. Certamente, o maior momento da televisão, nesse sentido, foi a transmissão da chegada do homem à Lua. A TV capta, codifica e em seguida o aparelho receptor decodifica, simultaneamente, as imagens de um fato real.

O espaço linear, contínuo, do cinema tem, portanto, pouquíssimos pontos de contato com a TV. O espaço cinematográfico é romancesco e individualista; o da TV substitui o contínuo pela percepção imediata e o linear pelo simultâneo. A imagem de TV se caracteriza por uma imprecisão instrumental: ela pode estar a qualquer momento em qualquer lugar.

Se esse caminho de McLuhan demorou tanto a ser apontado, isso se deu, em grande parte, porque a própria TV monta barreiras ao conhecimento de sua lógica. Os apresentadores repetem, incansavelmente, que são “escravos do tempo”, para dizer que está na hora de terminar o programa, quando na verdade o que é próprio de seu tempo é perpetuar-se pela interrupção. Da mesma forma, existe toda uma imprensa especializada em cobrir os artistas de TV, suas vidas pessoais e atividades, reforçando a impressão de que a televisão é intrinsecamente artística e em continuidade com as demais artes. Também as emissoras mascaram sua natureza, criando a ilusão de uma dicotomia entre publicidade e programação.

Essas considerações, muito parciais, visam apenas situar as dificuldades que encontram aqueles que escrevem sobre televisão para os jornais. A elas se acrescentam outras tantas, próprias dos jornais. Primeiro, um jornal trabalha com notícias. Assim, dentro de sua lógica, e do interesse do leitor, é natural que se publique uma crítica sobre o primeiro capítulo de uma novela ou a primeira edição de um novo telejornal, embora saibamos todos que isso equivale a criticar a primeira página de um livro, ou a tomar a Mona Lisa e comentar os 6 cm2 da parte inferior esquerda.

Existem, também no jornal, as “leis do gênero” e não convém nos afastarmos demasiado delas. O público leitor de jornais quer saber se Boris Casoy substitui, como apresentador de telejornais, Cid Moreira com vantagem ou não. Quer, pelo menos, trocar ideias com o artigo no jornal. Quando a Globo estreia um quadro de meteorologia no SP já, seu telejornal local, o espectador quer saber se o jornal também achou que Silvana Teixeira estava ridícula etc.

O jornal precisa dar satisfação ao leitor sobre suas curiosidades, muitas das quais se manifestam enquanto a pessoa está tomando café da manhã ou viajando para o serviço. Ele não tem necessariamente disposição para ler um ensaio pesado. Isso não significa que seja impossível “contrabandear”, fazer passar ao longo do texto ideias gerais sobre a televisão (mais adiante, tentarei ilustrar esse procedimento com uma pequena crítica da novela Tieta).

São coisas com as quais ele convive diariamente, todos nós convivemos, enfim, de que as pessoas se dão conta, mas às quais não têm tempo a dedicar. Eu arriscaria dizer que, hoje, enquanto a TV continua tentando fixar uma imagem de inocência, de diversão que quase participa da ordem natural das coisas, o espectador-leitor se dá conta, ainda que vagamente, da brutal intromissão da TV em sua vida, que vai de coisas elementares, como uma certa ritmação (jornal, novela, show, filme etc.) que termina organizando suas horas de lazer doméstico, até transformações na sensibilidade, que se podem verificar no desenvolvimento das crianças de hoje, bem diferentes das de outros tempos, até movimentos moralistas como o das “senhoras de Santana” (que em dado momento pediam censura de costumes na TV). Essas pessoas acreditavam que um maior rigor da censura na TV frearia um movimento de liberalização dos costumes. Podiam estar erradas no julgamento da censura, mas tinham uma visão pertinente da interferência diária da TV em nossas vidas e de uma certa natureza de meio de comunicação em relação ao qual é inútil brandir os valores da liberdade individual.

Para ilustrar o desenvolvimento de uma mentalidade, digamos, curiosa em relação à TV, eu voltaria ao tempo em que comecei a escrever na Folha de S. Paulo, quando o programa O povo na TV foi tirado do ar e um certo professor Lengruber, que dizia curar as pessoas por meio de gestos mágicos, foi preso.

O professor era um evidente vigarista. Seus pacientes chegavam lá com as mais incríveis doenças; ele passava as mãos em torno do corpo do sujeito, de alto a baixo, após se concentrar um segundo, e dali a pouco ele estava curado.

Bem, quando ele foi preso, o jornal me pediu um pequeno comentário sobre ele. Eu escrevi, rapidamente, dizendo que o professor tinha um senso admirável de timing, pois, se fosse fazer uma operação desse tipo segundo a tradição, conforme um curandeirismo verossímil, levaria um tempo enorme e os espectadores dormiriam. Mas, como ele se dirigia a um público muito desprotegido, disposto a crer em qualquer solução mágica para seus males, podia ser verossímil em muito menos tempo inventar uma verossimilhança nova.

Na época, houve quem não gostou nada daquilo e achou que eu estava elogiando o professor, o que não era verdade. Ele era um escroque, mas isso era tão claro que me parecia melhor contornar a obviedade e falar da maneira como se dava sua escroqueria e que era, a seu modo, genial.

Seja como for, a matéria entrou. Mas o que eu gostaria de notar é que, se isso acontecesse hoje, quando já se criou uma tradição de crítica da TV — que não é crítica de conteúdos mas de seus procedimentos formais —, as pessoas percebem com mais rapidez que nem sempre a crítica mais contundente é a que “fala mal”, que isso é um acaso ao longo do texto, que os próprios programas são em parte um fenômeno aleatório, mas que o que a TV veicula não é aleatório, e esse é o problema.

Não se pode dissociar a TV do meio em que existe. Há quem escreva poemas para serem lidos daqui a um século, filmes para serem vistos daqui a uma década. A TV, ao contrário, é feita para agora. Talvez ela tenha influído na perda de importância das vanguardas. “Olhar à frente de seu tempo” é um anátema em televisão. Se o público dispensar um programa, o anunciante desaparece junto e ele é retirado do ar.

Esse imediatismo leva a considerar a TV não como uma forma de arte mas de atividade de poder, no sentido em que falou G. C. Argan, para quem os homens do poder são os homens do progresso; os artistas são os homens da volta para trás, do tempo reencontrado. A arte trabalha com a memória, o poder a nega. Assim também a TV: como sua perspectiva é o infinito, ali não existe permanência ou memória.

Não é de estranhar, assim, que a rede mais bem-sucedida no Brasil, a Globo, tenha compreendido perfeitamente a política que se implantava no Brasil a partir de 1964. As pessoas de oposição sempre buscaram razões externas para explicar o sucesso da Globo, como o acordo com o grupo Time-Life ou o apoio da ditadura militar. Pode ser. Mas não há evidência de que outras redes tivessem interesses hostis ao governo militar (exceto a extinta Excelsior, mas por problemas outros), e nem por isso tiveram o mesmo êxito.

Na verdade, o sucesso da Globo se constituía em paralelo ao governo militar. É preciso lembrar que, se o período militar passou, com os anos, por certa degradação, os militares que tomaram o poder em 1964 eram dos raros segmentos conservadores que não tinham ideias meramente negativas. Eles eram anticomunistas, sim, mas vinham de uma tradição positivista. Em segundo lugar, seu projeto era fortemente transformador, no sentido em que tentou (e em parte conseguiu) modernizar o país através de um processo de rápida industrialização.

Essa é a base da TV “moderna” no país, cujo padrão é a Globo, e que já não tem como modelo nem o rádio (Tupi) nem o teatro (Excelsior e Record). É um momento, então, em que a televisão se implanta adultamente no Brasil, no pleno domínio e uso de seus recursos.

Existe, mais do que simples cumplicidade, uma correspondência profunda entre o projeto militar e a Globo, que será seu braço não propriamente civil mas simbólico. É isso que vamos tentar ver agora, mas eu gostaria de esclarecer que minha intenção não é condenar a Globo por uma ligação com os militares. Nem vice-versa.

Os militares tinham, me parece, duas preocupações fundamentais: transformar o Brasil aceleradamente em nação industrial e unificá-lo culturalmente. O interessante de seu projeto é que nele conviviam aspectos modernizadores e conservadores. Eles se opunham ao poder agrário, àqueles que viam o país com uma incontornável “vocação” agrícola. E, talvez pela própria natureza de sua atividade — militares um dia estão no Rio, no dia seguinte em alguma fronteira, em seguida vão para o Nordeste etc. —, tinham a sensibilidade muito atenta às imensas disparidades culturais do país.

A TV era uma mão na roda, nesse projeto, e não é por nada que no período militar investiu-se muito em infra-estrutura de comunicações. A Globo, e esse é o ponto, foi a TV que soube corresponder com muita rapidez a essa política. Primeiro, estruturou-se como rede nacional, capaz de rastrear o país de norte a sul, capitais e interior. Segundo, implantou um modelo de produção (que se chamou “padrão Globo”) capaz de atender às necessidades daquele momento.

Se tomarmos os seus telejornais, por exemplo, veremos que adotaram uma cenografia espacial, voltada para o futuro. É um fato até mais importante do que os investimentos em equipamentos e profissionais, que tiraram o jornalismo da TV de um estágio de primitivismo.

O setor de teledramaturgia também é central ou, antes, é mais central ainda. As novelas passaram a corresponder a uma antiga aspiração da classe média brasileira, que gostava de se ver representada “à europeia”. É uma coisa que, em cinema, a companhia Vera Cruz tentou implantar, sem grande sucesso, por razões diversas. O importante, no caso da Globo, é ter criado uma imagem retocada, edulcorada, mas verossímil da vida brasileira. Se os roteiros espelhavam problemas reais — condição indispensável para sintonizar o espectador — o sistema de produção implantado fechava-se em estúdios, evitando, com isso, o desagradável contato com uma realidade bem mais cruel, bem mais dura.

No mais, a Globo em determinado momento deu uma guinada em seus roteiros. Os dramas românticos — base do gênero — passaram a ser recheados com problemas profissionais e a acenar com a possibilidade de ascensão social. É verdade que a ascensão social sempre foi um eixo das novelas, ou quase sempre, mas, nesse período, acontecia num entorno plausível, próximo, onde a identificação dos espectadores era mais imediata e afetiva. Já não se tratava de um marquês apaixonado por uma plebeia mas de um herdeiro rico apaixonado por uma funcionária. Parece pouco, mas é uma diferença grande.

O que importa aqui, mais do que tudo, é como esse modo de produção rebate no departamento comercial. Se o governo militar baseou a industrialização na produção de bens de consumo sofisticados, a Globo deu a ele programas com a sofisticação correspondente, largou as fórmulas popularescas para investir num espectador com poder aquisitivo.

Quando introduziu questões profissionais e um jornalismo “sério”, atraiu para a frente dos receptores seres até então refratários a eles, os homens.

Mudando o perfil de audiência, tornou-se o receptáculo natural e desejável da nova indústria, que, para existir, tinha de atingir consumidores em todo o país.

O que é central no modo de produção da Globo é a identidade entre as noções de modernidade e qualidade. Globo era “qualidade” porque veiculava valores modernos, de transformação, e se projetava para o futuro. E era modernidade porque essa crença futurística no projeto enunciava um desejo de consumo, de integração ao mundo desenvolvido, próprio de uma classe média ascendente.

Em síntese, o elo entre modernidade e qualidade era o consumo. Por aí passavam todos os valores difundidos pela rede. Ele mesmo era unificador. Assim como a nova classe média das grandes cidades tinha a Europa ou os Estados Unidos como aspiração, o interior aspirava à grande cidade.

Assim que se implantou e passou a praticamente monopolizar a audiência, a Globo introduziu, ainda no início dos anos 70, a continuidade programa/intervalo/programa. Criou uma censura “de qualidade” aos comerciais que veiculava, de tal forma que os intervalos deixavam de ser sentidos como interrupção aborrecida dos programas. Havia quase uma fusão estética entre o que o programa e os comerciais diziam. A transição entre um e outro tornou-se muito suave, até porque ambos propunham, de formas diferentes, a mesma mensagem: consumam.

Para se avaliar a extensão das mudanças culturais promovidas pela Globo, basta acompanhar a evolução da publicidade no Brasil. Até os anos 60 assimilada com reclame ou anúncio, razoavelmente ingênua, a publicidade transforma-se aceleradamente e participa, tanto quanto a TV, da “revolução cultural” brasileira, propondo novos modos de vida, baseados em novos produtos. Não custa lembrar que, várias vezes, esses novos modos de vida se chocaram com a visão conservadora dos militares e geraram conflitos, atritos entre o governo e a Globo. Consumo significava a realização pessoal, com todas as suas consequências, inclusive os motéis. Ora, os militares estimavam muito mais o progresso do que os motéis; preferiam a ordem à relativa desordem de costumes implicada na modernização do país.

Isso é apenas parêntese. Eu pretendia dizer é que até os anos 60 existe no Brasil uma sólida mentalidade anticonsumista, segundo a qual é preciso poupar para ter. Gastar, possuir supérfluos, é uma maneira indesejável de esbanjamento.

Em poucos anos, criou-se, em oposição, uma mentalidade de desperdício. Gastar era possuir objetos. Alguns se lembrarão do prestígio que teve durante os anos 70 a palavra status, que significa, em resumo, a soma de objetos possuídos passíveis de exibição pública. Em uma escala de valores anterior, isso poderia se chamar ostentação, coisa malvista num momento em que o consumo era mais seletivo e restrito a um grupo menor de pessoas.

Ora, toda essa revolução de valores tinha uma sintonia afinada com objetivos oficiais. Em termos de marketing, pode-se dizer que a industrialização dos anos 60-70 significou a entrada num marketing de obsolescência programada, sem que a indústria brasileira tivesse sequer passado — grosso modo — pelo marketing da durabilidade. Esse salto não era absurdo, já que a indústria brasileira se colocava, então, em sintonia com o que acontecia no mundo desenvolvido. No mais, era quase uma fatalidade: o ciclo compra/uso/substituição, como produtor de riqueza, assimila um modo de ser da TV que é uma máquina na qual as coisas (programas, publicidade) têm uma vida intensa enquanto duram, mas tornam-se obsoletas com muita rapidez e perdem-se na memória com grande facilidade.

O que se pode questionar nessa evolução da TV é o significado cultural da entrada em vigor desse modelo, num país de desequilíbrios econômicos tão flagrantes. Mas parece claro que a TV brasileira encontrou sua identidade “moderna” e adquiriu influência tão grande não por ser um veículo barato num país pobre, mas por se instalar como um veículo agressivo de vendas. Isso é o que ela tem sido. É a esse ponto que eu gostaria de chegar: o crítico de TV não pode se deixar levar pela cortina de fumaça criada pelas estações. Seu único guia são as aparências, que nunca enganam. Nós podemos interpretá-las erradamente, é outro assunto, mas elas nunca enganam. A TV é o que aparenta ser.

A partir disso, a crítica de televisão define a sua, digamos, função social. Se o crítico não tiver uma concepção do que seja TV, ele estará destinado a escrever erraticamente. Nesse sentido, existe uma observação muito lúcida de Ezra Pound. Ele diz que se escreve, sempre, para instruir, para comover ou para encantar. E acrescenta que a pior crítica é, justamente, aquela que não chega a distinguir qual desses motores é o que move um dado trabalho. Penso, e nisso posso estar enganado, que a TV, ao menos como se constitui no Brasil embora creia que a coisa seja mais generalizável, introduz uma nova categoria, outro motor, até então inédito: ela se faz para vender coisas, a partir da imagem que projeta dessas coisas.

Muito mais do que uma cumplicidade entre tal rede de televisão e tal governo, portanto, a TV é o centro de compromisso, de um contrato social tácito, envolvendo um modo de vida, de desenvolvimento, mas um contrato de que os espectadores desconhecem tanto os princípios como as consequências. Esse é um aspecto importante da TV: ela é avassaladoramente invasiva.

Houve, em dado momento, um episódio, já mencionado, que se tornou folclórico, o das “senhoras de Santana”, que pediam maior rigor da censura em relação aos programas veiculados. É óbvio que todas as pessoas esclarecidas se colocaram contra aquelas senhoras, porque todos queriam menos censura ou simplesmente ausência de censura, e as “senhoras de Santana”, ao contrário, queriam mais.

Mas há um aspecto em que as senhoras tinham lá sua razão. Se alguém fizer um filme erótico, ou escrever um livro pornográfico, a pessoa, para chegar até esse evento, precisa de um gesto de vontade. Embora esse gesto possa ser influenciado de infinitas maneiras, ele sempre exigirá uma certa vontade.

A TV, ao contrário, elimina essa vontade. Do meu ponto de vista, não existe diferença essencial entre o erotismo que se veicula nos programas infantis e nas novelas. Ou, antes, eu não sei exatamente como as crianças absorvem uma coisa e outra. Talvez uma personagem que apareça nua na novela ocupe muito menos a fantasia infantil do que, digamos, as pernas de Xuxa.

As senhoras de Santana não faziam senão projetar nas crianças seus próprios fantasmas. Mas é inegável que a TV age, criando desejos, formulando conceitos, induzindo a comportamentos, sem que o espectador tenha controle sobre isso.

É nesse sentido que, penso, a crítica de televisão pode ter um papel importante no jornalismo. É muito diferente da crítica literária ou de cinema. Se se diz bem de um livro, as pessoas vão comprá-lo. Se se fala mal de um filme, em muitos casos as pessoas não vão vê-lo.

A crítica da TV, ao contrário, não tem valor de mercado algum. Se a Folha arrasar a novela da Globo e levar às alturas a da Manchete, isso não representa um mísero ponto no Ibope, que é o que conta. Infelizmente isso não significa que os espectadores têm uma vontade própria forte em matéria de TV, a ponto de dispensarem a interlocução do jornal. Significa, sim, que a força de persuasão da TV e a própria força do hábito são tão fortes que, elas sim, dispensam o jornal, no que ele tem de crítico.

Assim, para ser útil, a crítica de TV precisa — ao menos me parece — desenvolver uma compreensão do meio, de um meio, no mais, pouco compreendido. Mas é esse entendimento, parcial, que pode ser discutido com os leitores do jornal, servir como parâmetro de novas reflexões sobre o veículo, tanto de quem lê como de quem escreve.

É claro que isso implica o risco de o crítico diminuir o seu número de leitores, e por isso mesmo nenhum jornal pode ter uma abordagem exclusivamente crítica da televisão. Há de conceder, aqui e ali, à voz corrente. Mas, também é claro, o jornal é mais importante quando nota que todos nós precisamos criar defesas contra a invasividade da televisão, contra a violência com que ela opera. Todos sabemos que essa é uma luta desigual, pois a atração da TV é muito grande, já que ela vende a si própria não como veículo de vendas mas como conexão entre nós mesmos e o real, seja um real esportivo, seja jornalístico, culinário, o que for.

Para o jornalista, convém fazer isso sendo o menos aborrecido e o menos teórico possível. É uma coisa factível porque as pessoas têm uma cultura de TV muito grande, então não é preciso esclarecer a cada vez o ponto de vista do qual você fala. Basta escrever, por exemplo, que, quando se muda de canal, muda-se de universo. E que o espectador, se adquirir o hábito de mudar de canal de tempos em tempos, sem se fixar nos programas, poderá comparar esses universos propostos. Ele entenderá, pelo menos uma parte dos leitores entenderá. O mesmo vale para procedimentos como supressão de som, saturação de cores etc.

Dessa maneira, creio que o crítico pode evitar a terrível redundância e, de algum modo, ajudar os espectadores a colocarem o pé atrás, a sintonizarem sua TV COM um olhar de desconfiança, sem aceitar passivamente o “pacote” que o canal de TV tenta vender. Chego a imaginar que, caso a atenção crítica dos espectadores fosse mais desenvolvida quando a Globo se implantou, caso seu olhar fosse menos desarmado, ele poderia com maior rapidez forçar mudanças de rumo no tipo de apelo ao consumo que se desenvolveu nos anos 70 e cujo caráter desagregador já se encontrava em germe mesmo no momento em que se pensava em termos de “Brasil grande” e coisas assim.

A crítica de televisão tem uma função a desempenhar — é isso que eu gostaria de dizer —, caso consiga se esquivar das inúmeras armadilhas que tem à frente, que se renovam e se modificam.

Gostaria, por fim, de dar um exemplo de como a crítica pode atuar sobre um produto popular sem desconsiderá-lo nem aos espectadores/leitores.

Dada a novela Tieta, apresentada pela Rede Globo entre 1989 e 1990, podemos nos fixar em aspectos “artísticos”. Perguntar se o texto era bem escrito, se Paulo Betti fazia bem o seu papel, se a vilã desempenhada por Joana Fomm foi a melhor atuação da carreira dessa atriz. Ou, ainda, se as câmeras estavam normalmente em posições “corretas”, se o figurinista trabalhou adequadamente, se as personagens eram bem construídas.

Existe, enfim, um repertório quase infindável de falsas questões, já que em Tieta, como em qualquer outra novela, esses são aspectos acessórios.

Nessa novela, o que me parece essencial é a maneira, muito rica, como se organiza o marketing dentro dela. Ou seja, a exemplo de uma novela anterior, O salvador da pátria, a questão central era a interiorização do consumo. Havia-se percebido que o interior do país era um mercado ainda inexplorado. O salvador da pátria servia de ponta-de-lança do avanço do consumo numa região muito, muito rica que é o interior de São Paulo. Já Tieta vendia de si mesma a imagem de novela regional, portanto preocupada com costumes de uma população normalmente esquecida pelas novelas, que é o Nordeste.

Essa é a conversa fiada que se admite facilmente que a TV Globo tenta vender, mas não se entende que os jornalistas a comprem. Porque existe uma questão paralela ao que estamos conversando, que é o jornal como veículo de fixação de prestígio e que, nesse sentido, interessa muito às TVS.

Ora, Tieta cortejava um vasto mercado, ao mesmo tempo em que analisava seus costumes.

Então existe, para começar, a personagem-título, Tieta, que é uma espécie de metáfora da televisão, na medida em que ela vem da cidade grande para o pequeno município trazendo novos valores para esse local. Ao mesmo tempo, há a personagem de Tássia Camargo, que é o mercado potencial: alguém que pode comprar e pode adquirir novos hábitos, mas ainda não sabe que pode. Por fim, existe a vilã, a Joana Fomm, que, desde as roupas que usa até o penteado e a maneira como é construída a personagem, representa evidentemente a assexualidade .

Por fim, há entre as outras personagens — obviamente não retive todas — as vilãs da cidade grande, uma série de moças que aparecem na cidade e são, em princípio, o mesmo que Tieta, quer dizer, uma soma de sexo e consumo, mas em excesso, desordenada e desagregadoramente.

Nesse universo, Tieta vai se plantar como o equilíbrio necessário e como resposta a uma demanda atual. Tieta — tanto a personagem como a novela — opera assim por uma associação entre consumo e prazer (sexual) muito nítida; eu diria que raramente tal associação foi tão clara nas novelas brasileiras, o que pode ser até um sinal de decadência desse marketing.

É claro que existem inúmeros outros conflitos em Tieta que servem, inclusive, para embaçar seu conflito real, que não é outro senão o conflito entre Betty Faria (Tieta) e Joana Fomm (a irmã assexuada).

O conflito real de Tieta era entre consumir — a proposta da personagem-título — ou consumir-se — a opção de Joana Fomm — naquilo que a Rede Globo imagina ser o fogo do inferno: a vida sem comprar e, por conseguinte, sem trepar.

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