1996

O terror e seu inimigo

por Jacob Rogozinski

Resumo

A morte do rei no Terror da Revolução francesa sugere não só uma transferência da soberania política, mas um embate entre as figurações do corpo e da carne. No lugar vazio aberto pela revolução e no confronto das orientações rivais, a busca de uma refundação radical depara-se com a persistência inquietante de resquícios indesejados. A questão era saber se Luís XVI devia ser julgado, como propunham os partidários da Gironda, ou se, como queriam os jacobinos, ele já estava condenado por ser rei (e, após sua tentativa de fuga, por ser inimigo estrangeiro). Mas, ao projetar a figura de um Inimigo absoluto, os jacobinos mantinham, de forma invertida, os atributos de unicidade, perpetuidade e infalibilidade do poder monárquico. Por outro lado, o princípio de igualdade acabou por gerar uma desconfiança em relação a qualquer governo e, em última instância, às “flutuações contínuas” do povo. A carne transforma-se num elemento caótico e cego. Fascinados ainda com a figura do Corpo soberano, os jacobinos fracassam em reincorporar a carne do social, e esse fracasso prefigura empreendimentos ulteriores semelhantes. As duas vertentes das revoluções democráticas, o ideal republicano de uma soberania da lei e a democracia “selvagem” (com sua dinâmica instituinte que excede todo regime, como escreveu Claude Lefort), nunca conseguiram se encaixar. Juntar os polos do corpo e da carne continua sendo uma tarefa a ser realizada nas revoluções do futuro.


Fede fede fede

O que é que fede?

É Luís XVI o ovo mal chocado

e sua cabeça cai no cesto

sua cabeça podre

porque faz frio em 21 de janeiro

Chove sangue da neve

e tudo o que é imundície

irrompe de sua velha carcaça

de cachorro morto na barrela

em meio à roupa branca suja

que teve tempo de apodrecer

como o lírio das lixeiras

que as vacas recusam pastar

porque espalha um cheiro de deus

deus pai da podridão

que deu a Luís XVI

o direito divino de morrer

como um cachorro na barrela

Benjamin Péret, “Louis XVI s’en va à la guillotine”

“Purguemos o chão dos patriotas/ por reis ainda infectado;/ a terra da liberdade/ rejeita os ossos dos déspotas./ Desses monstros divinizados/ que todos os ataúdes se quebrem./ Que sua memória se apague/ e que com seus manes errantes/ saiam do seio da pátria/ os cadáveres dos tiranos.” É nesses termos que o poeta Lebrun, alguns dias após a execução de Luís XVI, conclama que se complete a obra purificadora do regicídio, estendendo-o simbolicamente a toda a linhagem dos reis da França. Por ordem da Convenção, seus túmulos serão destruídos em agosto de 1793 na necrópole real de Saint-Denis, e seus cadáveres exumados em outubro, quando o Terror acaba de ser decretado “a ordem do dia”:

Nada de importante na extração dos ataúdes feita na jornada de terça-feira, 15 de outubro de 1793: a maior parte dos corpos estava em putrefação; deles emanava um vapor negro e espesso, de um cheiro infecto […]. Continuação, quarta-feira, 16 de outubro de 1793: às onze horas da manhã, no momento em que a rainha Maria Antonieta, da Áustria, mulher de Luís XVI, teve a cabeça cortada, abriram o ataúde de Luís XV […]. O corpo retirado do caixão de chumbo, envolto em panos e faixas, parecia inteiro e bem conservado; mas, separado do seu envoltório, não tinha o aspecto de um cadáver; estava completamente 
podre, e dele emanou um cheiro tão infecto que não foi possível permanecer presente.[1]

A fria neutralidade do relato demonstra claramente: “nada de importante’’ acontece quando os despojos dos antigos monarcas revelam de súbito sua realidade de carcaça antes de mergulhar no anonimato da fossa comum, como se a majestade associada ao corpo dos reis estivesse há muito enterrada e sua exumação apenas sancionasse uma inevitável dessacralização. Marcaria a Revolução Francesa o advento de uma sociedade desmistificada, desincorporada, finalmente livre do antigo sortilégio que submetia os homens ao mistério de um Corpo Soberano? Nada menos certo. Primeiro porque o ato mesmo da profanação, o desejo de “purgar’’ o “seio da pátria” de todo vestígio dos “monstros divinizados”, atesta ainda a veneração sagrada que eles inspiravam outrora. A atitude da multidão que assiste à exumação testemunha aliás uma estranha ambivalência: diante da cabeça de Henrique IV, um soldado, “após um longo silêncio de admiração”, corta uma mecha da barba do rei para guardar como relíquia e exclama: “Agora estou certo de vencer os inimigos da França!”. Mas nesse mesmo instante uma mulher esbofeteia o rosto do rei “com tanta força que o corpo cai no chão”. Do mesmo modo, uma das testemunhas se esforça furtivamente por arrancar os dentes e as unhas de Luís XIV, a fim de tê-los como relíquias, enquanto um carroceiro ultraja o cadáver do Rei Sol abrindo e esvaziando-lhe o ventre sob as “ruidosas aclamações da multidão”…[2] Verifica-se enfim que a Convenção destinava as pedras retiradas dos túmulos dos reis a um monumento erguido à memória de Marat. Exposto ainda sangrando aos cordeliers após seu assassinato, seu corpo fora levado em procissão através de Paris, e depois inumado junto a Voltaire e Rousseau, enquanto uma urna contendo seu coração era oferecida à veneração dos sans-culottes. De Saint-Denis ao Panthéon, parece de fato que assistimos a uma transferência de sacralidade, na qual o cadáver embalsamado do Mártir da Liberdade toma o lugar dos restos decompostos dos reis. Como apreciar essa ressacralização republicana do corpo? Será um fenômeno marginal sem consequências, ou o indício de uma recaída, ao menos parcial, no imaginário monárquico? O que são o corpo e as figurações do corpo político na Revolução?

Questão que envolve o sentido desse acontecimento chamado “Revolução Francesa”. Convidando-nos a abandonar a história “comemorativa” que adere à representação que os atores faziam do acontecimento, e enfatizando, com Tocqueville, a continuidade essencial do processo histórico, a orientação hoje predominante entre os historiadores tende a questionar inclusive a noção de “revolução’’, a ideia de uma ruptura radical, de um recomeço da história humana. A crítica (às vezes justificada) ao “catecismo revolucionário” de inspiração neojacobina ou marxista alimenta assim uma vulgata liberal que oculta ainda mais seguramente o enigma do acontecimento. Do Antigo Regime à República, uma mesma configuração política, um mesmo modelo de soberania persistiria, ao qual o conjunto das correntes revolucionárias estaria submetido. O menor traço de uma descontinuidade histórica, de um conflito real entre tendências opostas, é então apagado: o Terror não terá sido senão uma “regressão’’ funesta, uma “derrapagem’’ provisória, logo retificada, o que sublinha ainda a continuidade profunda da evolução histórica.

Percebe-se então a importância de trabalhos como os de Lefort, que identificam nas revoluções democráticas dos tempos modernos uma mutação sem precedente das representações do corpo político, o começo de uma desincorporação do social em que o poder e a lei deixam de se encarnar no corpo do Soberano, e o lugar da soberania torna-se um lugar vazio, centro de uma alteridade radical e objeto de uma interrogação contínua. Assim se restabelece a verdade da Revolução, compreendida como fratura irreversível, evento de liberdade. Mas isso supõe que a desincorporação iniciada pela Revolução não seja imediatamente contrariada por uma tendência inversa que a recubra e a anule. Ora, vários trabalhos recentes insistem precisamente na permanência das representações “orgânicas”, que reaparecem no discurso republicano, mas também nos emblemas da Revolução, em seus monumentos, em suas festas, em incontáveis estampas e panfletos.[3] A reverência associada ao corpo do rei teria desaparecido apenas para dar lugar a um novo culto do Corpo Soberano, o da nação ou do povo “regenerado’’. Deve-se concluir daí, como nos assinala o catecismo liberal, que a novidade do acontecimento, seu poder de transgressão e de invenção seriam puramente aparentes? Que a Revolução se reduziria a uma simples transição entre duas figurações do corpo político? Ou lidamos aqui apenas com o último resquício de uma representação extenuada, incapaz de resistir à dinâmica da desincorporação iniciada pela Revolução? A tais questões, a abordagem dos historiadores ou a dos sociólogos não podem responder: por mais ricas que sejam, elas deixam na indeterminação o estatuto dessas figurações do corpo que tomam por objeto. A representação da sociedade como um “corpo coletivo” lhes parece ilusória, simples “metáfora” entre outras de que dispõe “o imaginário do poder” e que reapareceria por ocasião de uma crise para legitimar a nova autoridade política.[4] Tampouco se pensa que ela possa ser mais que uma “metáfora’’: não um símbolo (simples analogia exterior com o que ela ilustra), mas um esquema, uma figuração necessária da comunidade humana. E ela não pode ser pensada assim enquanto a representação do “corpo coletivo” continuar sendo considerada uma instância sui generis, em vez de ser reconduzida à sua matriz oculta, buscando o segredo de sua gênese na constituição transcendental do corpo individual.

O que demandaria antes de mais nada recolocar em questão a noção comum de “corpo’’, noção equívoca que mistura confusamente dois níveis de experiência muito diferentes — o da ciência objetiva, que concebe meu corpo como um objeto físico entre os outros objetos, situado como eles numa natureza objetiva, e essa outra experiência, mais radical, na qual me experimento como um corpo de carne viva, transido de percepções e de afetos, um “corpo-zero’’ central e absolutamente diferente dos outros, ponto de origem único do mundo que se desdobra a meu redor. Somente uma epoche em relação à ciência objetiva e à atitude natural, uma redução fenomenológica, me dá acesso a esse campo de experiência e à diferença transcendental entre o corpo (Körper) e a carne (Leib).* Descobrimos então que a dimensão do corpo não é originária, que ela se constitui ao longo de um processo de incorporação em que minha carne primordial se objetiva para se fazer corpo. Para que a carne possa assim incorporar-se, constituir-se, como diz Husserl, “ao mesmo tempo como carne e como coisa primordial’’, uma experiência singular é requerida, a do quiasma tátil, em que cada mão, ao tocar a outra, a experimenta como uma coisa e, simultaneamente, como uma carne que toca e é tocada, descobrindo nisso um outro polo de sua própria carne. A auto-incorporação de minha carne supõe assim a encarnação desses outros polos carnais percebidos como coisas estranhas. Uma mesma síntese de encarnação torna a acontecer quando abordo o corpo de outrem, que também me aparece inicialmente como uma coisa, quando “transfiro’’ a ele minha Leiblichkeit para constituí-lo como um outro corpo de carne, lugar de um outro ego encarnado. Em virtude dessa transferência, estabelece-se entre mim mesmo e os outros o vínculo de uma comunidade carnal que reproduz a constituição da arquicomunidade que une meus polos de carne. Com a diferença fundamental de que o quase-quiasma que encarna o corpo de outrem não é imediatamente reversível, ao contrário do de minha própria carne; ao tocar a mão do outro, jamais a sentirei tocada pela minha; jamais esposarei o corpo do outro em sua carne. A transferência que o encarna deixa portanto subsistir um “abismo intransponível” entre o corpo do outro e o meu, e a carne de nossa comunidade permanecerá, nesse sentido, uma quase-carne.[5] Assim se esclarece o enigma do “corpo coletivo’’: pois a constituição de uma comunidade intersubjetiva reproduz num outro nível a autoconstituição “solipsista’’ do corpo-próprio, e a mesma síntese que unificava meus múltiplos polos de carne num corpo une igualmente meu corpo ao dos outros no seio de um Grande Corpo, do qual seríamos os membros. No entanto, esse último não é senão uma aparência: o “corpo’’ da comunidade praticamente não será mais que um pseudocorpo, para sempre privado de consistência carnal, dessa presença originária de minha carne diante de si mesma que dá fundamento a meu corpo. O estatuto ontológico do corpo de carne singular difere portanto fundamentalmente do dos “corpos’’ coletivos: pois minha carne primordial só aparece objetivando-se num corpo, e essa objetivação que a oculta é inevitável. Mas o mesmo não se dá no plano coletivo, onde a carne do social poderia não se apresentar sob a forma de um corpo, onde ela inclusive resiste constantemente à sua incorporação num pseudocorpo transcendente. São os traços dessa resistência que se trata de recuperar, sob a aparência que a aliena e a esmaga.

Quando esse fantasma do corpo se faz passar pela realidade mesma, mais “real’’ que os corpos singulares que o compõem, ele se torna uma ilusão, uma hipóstase metafísica. Ilusão, por certo, mas ilusão necessária (o que não quer dizer inevitável), a figuração do “corpo político’’ se impõe à comunidade e a desfigura: ela dissimula, com efeito, a base sobre a qual se edifica essa comunidade carnal constituída por ocasião da transferência de minha carnação ao corpo de outrem. Quer admitam a ficção do corpo coletivo ou a recusem, as diferentes teorias políticas partilham o mesmo desconhecimento. Elas ocultam essa carne selvagem que tece a trama da existência comum, uma carne ao mesmo tempo anárquica (sem fundamento estável, sem diferenciação hierárquica dos órgãos) e dividida, disseminada em múltiplos polos de carne. A carne do social permanece na maioria das vezes oculta, recoberta pela unidade hierarquizada do corpo político. Para que aflore, furtivamente, a verdade carnal da comunidade, é preciso que a hipóstase do corpo entre em crise: é preciso um acontecimento, uma revolução.[6]

“O MORTO SE APODERA DO VIVO”

“O rei”, declarava o legista Guy Coquille no final do século XVI, “é a cabeça, e os povos de cada uma das três ordens são os membros; e todos juntos formam o corpo político e místico cuja ligação e união é indivisível e inseparável. E uma parte não pode sofrer um mal sem que o resto sofra e sinta dor.”[7] Assim se enuncia a versão francesa da doutrina clássica do Corpus Mysticum Reipublicae, transpondo para o plano político a concepção teológica que vê a Igreja como um corpo do qual Cristo é a cabeça, a fim de justificar a autoridade soberana do monarca. O que supõe um desdobramento do corpo do rei, cujo corpo de carne, exposto ao pecado e à morte, se distingue de seu “corpo místico”, que “não pode fazer mal’’ e não morre jamais. Aqui não é o lugar de evocar a formação dessa doutrina, analisada por Kantorowicz. Sob suas diferentes variantes, ela apresenta em todo caso uma solução muito significativa para a aporia constitutiva do “corpo político’’. Este se edifica, com efeito, a partir de uma hipóstase do corpo singular, dissociada de sua base de carne e votada por isso mesmo à desencarnação, a uma idealização sempre mais abstrata que não lhe permitiria mais figurar o vínculo carnal da comunidade. É a essa falta de encarnação que responde a doutrina dos dois corpos, ao oferecer carne e vida ao Corpo Místico hipostasiado, ao torná-lo visível no corpo concreto do monarca. Assim se constitui o “mistério da encarnação monárquica’’ de que falará Michelet, o culto do Rei-Cristo investido pela unção do sagrado, capaz de curar com um toque as chagas das escrófulas, de conjurar por sua simples existência as divisões do corpo político. Dessa matriz teológico-política decorrem os traços fundamentais do poder monárquico: sua unicidade — “É impossível”, escrevia por exemplo Bodin, “que a República, que tem apenas um corpo, tenha várias cabeças” —; a perpetuidade de seu corpo imortal — “O rei não morre jamais” —; e sua infalibilidade — “O rei não pode fazer mal” —, na qual se funda seu poder de enunciar o verdadeiro e o justo, seu poder de fazer lei — “O que o rei quer, a lei quer”. A hipóstase do corpo responderia assim às questões últimas da existência coletiva: dar uma origem à lei, um critério à verdade, e, ao mesmo tempo em que promete vencer o mal e a morte, reatar a frágil unidade do vínculo social. Ora, são esses mesmos traços de unicidade, de perpetuidade, de infalibilidade que, em Bodin e seus sucessores, definem a “força absoluta e perpétua de uma República’’, a soberania política. E é possível que ela consiga livrar-se de seu modelo teológico, de sua encarnação monárquica e mesmo de toda referência explícita ao corpo, e ao mesmo tempo conserve oculta sua matriz.

Esse foi o gênio de La Boétie: ter relacionado o enigma da servidão voluntária a uma captura no seio do Corpo-Uno, nesse “grande colosso’’ ao qual os corpos de carne singulares fazem a oferenda de seus inumeráveis olhos, de suas percepções e de seus desejos, de sua vida.[8] Tal elevação do Corpo Místico não poderia se manter sem essa transferência secreta em que a carne, cativada pela imagem de seu corpo, deixa-se escravizar por sua própria hipóstase. A essa carne que constantemente se fragmenta e se reúne, e morre a todo instante para renascer em seguida, a incorporação confere unidade, coesão e duração, inserindo-a num espaço objetivo e numa continuidade temporal. É essa mesma função que a hipóstase do corpo político garantiria: ao preço de sua servidão, ela pretende dar à comunidade humana uma ordenação estável, uma perenidade “mística’’, apaziguar sua angústia de morte, seu temor de recair no caos de sua carne. “O morto se apodera do vivo’’: era com essa fórmula que os juristas do Antigo Regime pretendiam justificar a perpetuidade e a continuidade do poder soberano por ocasião de sua transmissão ao herdeiro do trono, quando o rei, no instante de sua morte, “apodera-se’’, investe imediatamente seu sucessor com a dignidade real. Fórmula no entanto equívoca, que celebraria a permanência do Corpo Místico, a vitória reiterada de sua vida, e que pode também significar uma derrota da carne viva, sempre “apoderada’’ de novo, transida pela morte. Assim entendida, ela descreveria bem a maneira como a hipóstase do corpo político se apodera da carne e lhe rouba seu poder, obrigando os indivíduos que a ela se submetem a sacrificar sua vida “pelo rei’’ ou “pela pátria’’. O morto “se apodera do vivo’’ num outro sentido ainda: a captação carnal que a constitui dificilmente consegue reencarnar de maneira duradoura a hipóstase, que inevitavelmente se extenua, se transforma numa alegoria abstrata, incapaz de manter a adesão fascinada dos súditos. Isso fatalmente acontece, se é verdade que ela repete no plano coletivo a gênese transcendental do corpo individual, com a tendência à desencarnação que o caracteriza. Com a diferença de que o corpo singular se recria e se anima a todo instante graças ao quiasma que dá vida à sua carne descarnada — recurso a que não tem acesso o pseudocorpo da comunidade, que, na ausência de todo quiasma, engendra apenas uma hipóstase exangue, cada vez mais estranha à sua base carnal. Com efeito, ele só se “mantém’’ por sua ancoragem no corpo visível do rei, pela capacidade do monarca de representar, de encenar constantemente a unidade “indissolúvel’’ dos dois corpos. Ora, os ritos da religião da realeza dificilmente serão suficientes: entre o corpo de carne do monarca e seu Corpo Místico, os laços gradualmente se afrouxam, até o momento em que o rei não consegue mais encarnar o reino, em que seu corpo dessacralizado se mostra semelhante ao de seus súditos, ao passo que o grande corpo da Nação, liberado de sua união com a pessoa do rei, pode buscar um outro suporte de encarnação.

Reconhece-se aí o primeiro ato da Revolução, consumado já em junho de 1789, quando, sob o impulso de Sieyès, os delegados dos Estados Gerais apresentam-se como “Assembleia Nacional Constituinte”, designada como a representação “una e indivisível’’ da Nação. “O deputado”, declara significativamente um partidário de Sieyès, ”deve se considerar sob dois aspectos, como membro do corpo da Assembleia que delibera, como membro do corpo da Nação pela qual se pronuncia”,[9] como se reproduzisse o desdobramento corporal do monarca do Antigo Regime. Assim a Assembleia desaloja o rei do lugar soberano, se reapropria de sua função de encarnação, conservando ao mesmo tempo os atributos essenciais da soberania monárquica e da figuração do corpo duplo que lhe era subjacente.[10] Por meio dessa transferência de soberania, que coincide com uma transferência de corporeidade, o conjunto das determinações tradicionais do Corpo Soberano é mantido: sua unidade — ou, para retomar a expressão teológica de Sieyès, sua “adunação’’ —, seu poder de enunciar a lei e os direitos, e sua perpetuação contínua, assegurada doravante pela “regeneração’’ eleitoral da representação. Sem esquecer esta prerrogativa mais secreta, mas decisiva, da soberania: o privilégio de designar o Inimigo, de nomear o elemento estranho e hostil — no caso, a casta dos privilegiados como “povo à parte’’ que oprime o verdadeiro povo — que Sieyès, fiel às metáforas orgânicas, descreve como uma “excrescência’’ parasitária, um “humor maligno’’ do qual o corpo dos cidadãos deve se separar para renascer.[11] Assiste-se assim a um simples passe, à transferência do esquema orgânico-político para um novo polo de encarnação, deixando intacta a estrutura desse esquema: transferência pacífica e integral que conserva aliás a forma monárquica do Estado, mas com o rei despojado de seu poder soberano. Não se deve subestimar a ruptura que se realiza então: pela primeira vez desde os gregos, uma legitimidade puramente imanente, oriunda da própria comunidade humana, substitui o fundamento religioso da soberania. Uma configuração nova aparece, na qual o Corpo da Nação não mais se encarna num homem ou numa casta oligárquica, mas numa instância de poder coletiva, impessoal, periodicamente renovada pelo sufrágio popular. De modo que o lugar do poder e da lei se apresenta doravante como um lugar vazio que nenhum homem poderia ocupar de maneira “natural’’ e permanente. Também aí coube a Sieyès esboçar os traços desse novo campo político: ele o descreve como uma esfera da qual os cidadãos, todos a igual distância do centro, formam a circunferência, enquanto seu núcleo central vazio simboliza a soberania da lei.[12] Entretanto, ainda que inovadora, a primeira fase da Revolução perpetua a hipóstase do corpo político e a sujeição da multidão que ela implica: a da massa dos “cidadãos passivos”, excluídos de toda participação na vida política pelo sufrágio censitário e pela vontade do governo de reprimir os “clubes’’ e as “sociedades populares’’ nascidas durante o processo revolucionário. É a invenção de um novo espaço público de liberdade e de ação que se quer impedir. É a carne do social, sua irrupção “selvagem’’, disseminada em incontáveis polos, em busca de novos modos de encarnação, que o corpo hipostasiado procura como sempre sujeitar, reabsorver, incorporando-o. O morto tenta se apoderar do vivo, mas desta vez a coisa não funciona, e o conflito persiste e se agrava de 1789 a 1792. Através de uma série de crises, pontuada de “jornadas’’ revolucionárias, uma outra configuração se delineia, sustentada pelos jacobinos e cordeliers mais radicais, a qual não mais se limitaria a restaurar a antiga hipóstase, substituindo a captação monárquica por uma captação parlamentar: que poderia dar lugar à “democracia selvagem’’ das sociedades populares e das seções sans culotte, inventar novas instituições que não mais ocultassem a carne viva da comunidade.[13] Esboço de uma alternativa à reapropriação estatal e parlamentar, cujos traços podemos identificar nos discursos, nas teorias políticas ou nas representações estéticas.

Enquanto os ingleses formulam a doutrina do corpo duplo em termos jurídicos, a monarquia francesa haveria de encená-la plasticamente, exibindo-a nas efígies funerárias de seus reis, em seus emblemas, medalhas e festas. Pôde-se assim descrever o retrato de Luís XIV como um “corpo sacramental’’ no qual se enlaçam, de um modo análogo ao mistério da Eucaristia, a unidade de seu corpo físico e a de seu corpo simbólico.[14] Ora, a partir de 1791, uma mutação imprevista irá afetar a figuração simbólica do rei. A transferência de soberania operada em 1789 o havia despojado de sua dignidade mística para conferir-lhe o estatuto de “primeiro funcionário do Estado’’. Algumas gravuras da época certificam essa dessacralização, ao mostrarem, por exemplo, “o rei trabalhando com a picareta no Campo de Marte”, por ocasião dos preparativos da Festa da Federação: ele aparece aí como um cidadão qualquer, privado da estilização e da distância que caracterizavam suas representações tradicionais.[15] O que confirmava que o rei já “havia perdido um de seus dois corpos”,[16] que conservava apenas sua simples existência mortal e se achava assim colocado no mesmo nível que os demais cidadãos. Tudo irá mudar subitamente após sua fuga e detenção em Varennes. Em algumas semanas, aparecem várias centenas de caricaturas em que ele é apresentado como um bêbado ou um louco perigoso, como um Jano hipócrita, um Gargantua voraz (é o “ogro capeto”), e, na maioria das vezes, como um suíno ou um monstro híbrido, metade homem, metade porco.[17] Estamos hoje por demais familiarizados com as caricaturas de políticos para avaliar a dimensão desses ataques que visavam um personagem reverenciado durante séculos como a imagem do próprio Deus. Inédita — pelo menos desde as Guerras de Religião e o Asno-Papa de Dürer —, a assimilação do chefe de Estado a um animal ignóbil atesta por si só uma tremenda mutação no imaginário do poder.[18] A imagem edificante do “rei-cidadão’’ cede lugar a um outro modo de figuração, no qual ele não é mais considerado como um membro entre outros da comunidade nacional, mas como um corpo estranho à nação e à humanidade. Corpo monstruoso por sua deformidade, sua bestialidade, a caricatura privilegiando suas funções “baixas’’ (engolir, vomitar, defecar…), e que se mostra estranhamente ambivalente, ao mesmo tempo grotesco e ameaçador, excluído da nação e prestes a destruí-la, como esse porco ornado de uma insígnia real que uma gravura mostra devorando um bolo enfeitado com a flor-de-lis. Corpo-excremento, como o sugere uma caricatura em que Luís XVI rasteja na imundície da “cloaca real’’, enquanto defecam em cima dele. Corpo fragmentado, enfim, pela quebra da imagem especular cujo reflexo compunha a unidade hipostasiada de seu corpo: é assim que uma estampa o descreve como louco furioso quebrando com seu cetro-bastão de bobo um espelho cujos fragmentos refletem seu rosto estilhaçado, de modo que, precisa a legenda, “cada um dos pedaços multiplica sua loucura”.[19] Para além das intenções explícitas de seus autores, essas representações procedem de um mesmo fantasma, põem em cena o corpo do rei como um corpo abjeto, um elemento heterogêneo, mau objeto perigoso ou mau resto imundo que ameaça a homogeneidade do corpo da Nação e que convém eliminar. Assim essas caricaturas prefiguram a queda da monarquia e a morte do rei, e inclusive as preparam ativamente: bastará que um discurso político coerente reavive esse fantasma de expulsão-purificação veiculado pelos ilustradores, e convide as pessoas a passarem à ação.

Há de fato desincorporação do Corpo Místico, uma vez que o corpo do rei, que deveria encarná-lo, se fragmenta e se desfigura, estando separado do corpo político cuja unidade ele havia pouco assegurava, e que corre o risco de se transformar num corpo mutilado, privado de sua cabeça real. Desincorporação parcial, no entanto, acompanhada por um movimento inverso no qual, no próprio gesto de expulsar o dejeto, o grande corpo reconstitui sua unidade ameaçada. A figura colossal de um corpo regenerado toma então o lugar do corpo do rei e se apodera das insígnias de seu poder. É o que ilustra, por exemplo, uma gravura de 1791 intitulada O ídolo derrubado, na qual uma França gigante com o manto de flor-de-lis, encimada por uma coroa erguida pelas lanças dos sans-culottes e pelas baionetas dos soldados, derruba de seu pedestal o busto de Luís XVI e o quebra.[20] Após a instauração da República, esses emblemas da monarquia vão desaparecer e o Povo-Soberano será geralmente pintado com os traços de um Hércules armado de sua clava. Dessa “imagem do povo gigante, do povo francês’’, a Convenção ordenará, atendendo a uma proposição de David, que se erija uma estátua: tendo a palavra verdade gravada no peito, luz na fronte e força nos braços, ela deveria repousar sobre os “restos partidos’’, “confusamente amontoados’’ das estátuas dos reis.[21] Esse imaginário da soberania tem um sentido: ele revela que a desincorporação do corpo monárquico coincide com um gesto oposto de reincorporação, sendo indissociável do advento de um novo Corpo Soberano que se ergue sobre seus destroços. A mesma visão inspira o decreto da Convenção que ordena que as pedras das sepulturas reais sejam utilizadas na edificação de um cenotáfio a Marat. Ao integrar essas miseráveis relíquias ao alicerce de seu Colosso ou ao monumento de seu Mártir, a República figura simbolicamente a transferência de corporeidade que é a base de seu poder. Ao profanar os vestígios do corpo mortal dos reis e quebrar suas efígies, ela retoma a soberania do glorioso corpo imortal desses reis.

E talvez esse gesto também demonstre uma preocupação que é mantida em segredo: pois os despojos irrisórios que são ultrajados pelo gigante republicano não permanecem inertes. Tanto quanto um signo de vitória, a figuração do corpo regenerado é um apelo ao combate contra um inimigo que, apesar de derrotado, está sempre a renascer. Num discurso à Convenção em que recorre aliás ao mesmo símbolo — “O povo francês irá retomar a atitude de Hércules” —, Billaud-Varenne ataca os resquícios do “usurpador colossal’’, do corpo monárquico decapitado cuja “essência despótica’’, “corrosiva’’, ameaça do interior o organismo da República.[22] Para a corrente que ele representa, a transferência de soberania do corpo real ao da Nação parece ter fracassado em parte, já que a reincorporação republicana deixa subsistir no seio de suas instituições perigosos resíduos do antigo poder soberano. A busca de uma refundação radical depara-se assim com a inquietante persistência de certos resquícios indesejados. Certamente é um destino comum a toda constituição de um corpo, no nível da comunidade ou do indivíduo, que em parte ela deva sempre fracassar, tropeçando no resíduo irredutível de sua incorporação, fragmento de uma coisa sem nome na qual reconhecemos o vestígio desfigurado de sua carne primordial. Pois a carne, ao se precipitar num corpo, resiste à sua incorporação, inquieta e altera constantemente a imagem de seu corpo. O corpo experimenta assim sua carne como um elemento heterogêneo, um objeto estranho interno, incluído no corpo total e no entanto separável dele (como o são para a psicanálise os “objetos’’ do fantasma — o seio e o excremento, o pênis, o olhar e a voz…). E o traço essencial desse heterogêneo é condensar as significações ambivalentes do próprio e do impróprio, do íntimo e do estranho, do sagrado e do impuro, da soberania e da abjeção.[23] Eis o que esclarece a estranha inversão evocada por Michelet, na qual “o rei, esse deus, esse ídolo, torna-se um objeto de horror”.[24] Numa configuração em que o corpo do soberano é que dá carne 
ao corpo do reino, em que ele aparece ao mesmo tempo como a carne 
desse corpo e como um elemento heterogêneo de natureza sagrada ou divina, pode-se compreender que, quando o corpo da Nação o rejeita ou o exclui, cabe-lhe ocupar doravante o lugar do Abjeto. Num certo sentido, 
o corpo do rei sempre estivera excluído, separado, por sua “majestade’’, do resto da comunidade: pertencia a ela sem pertencer verdadeiramente, ao mesmo tempo imanente ao grande Corpo e exterior a ele, posto que se identifica com a totalidade desse corpo por ele encarnado e ao mesmo tempo se apresenta como sua “cabeça’’ mística, separada dos outros órgãos. Essa estrutura paradoxal do Corpus Mysticum se mantém portanto através da “inversão’’ subversiva em que a cabeça gloriosa se transforma em dejeto.

Pode-se perguntar então o que acontece ao corpo político quando ele próprio se decapita, eliminando como um resquício indesejado, um excremento, o que havia pouco lhe dava unidade e vida. Para os revolucionários, essa “depuração’’ do grande Corpo seria a condição necessária de sua “regeneração’’. Billaud-Varenne chegará mesmo a comparar a revolução à feiticeira Medeia, “que, para devolver a juventude ao velho Éson, tem necessidade de desmembrar seu corpo enfraquecido antes de plasmá-lo de novo’’: foi assim que “a destruição e a morte abriram com suas mãos ensanguentadas as portas da reprodução e da vida”.[25] O que nos coloca novamente diante do enigma da reincorporação, desse duplo movimento em que a hipóstase do Corpo Místico se decompõe apenas para ceder lugar ao Corpo regenerado da República. Será que a Revolução se reduziria a esse passe, a essa transferência de soberania entre duas variantes da mesma hipóstase? Não pensamos que isso seja verdade. Ao tomar a Revolução “em bloco’’, reduzindo-a a um único modelo de soberania herdado do Antigo Regime, não se leva em conta o conflito das duas orientações rivais que a dilaceram. Se a primeira parece trazer de volta o esquema do Corpo Soberano e a ocultação da carne, poderia uma outra orientação anunciar uma ruptura mais radical?

“O ESTRANGEIRO CORROMPE TUDO”

Será preciso esperar o outono de 1792 e os debates na Convenção sobre o processo do rei para que esse conflito se manifeste abertamente, como uma disputa acerca da natureza da monarquia envolvendo duas concepções opostas de seu Corpo Soberano.[26] A questão era saber se Luís XVI podia ser julgado por crimes cometidos quando estava no poder, considerando que a Constituição de 1791 garantia sua “inviolabilidade’’. É essa prerrogativa, herança legal da “infalibilidade’’ mística dos reis, que seus defensores invocavam para negar à Convenção o direito de julgá-lo. Paradoxalmente, os jacobinos concordavam com eles nesse ponto: “Aqui não há nenhum processo”, declarava Robespierre. “Luís não é um acusado. Vocês não são juízes […]. Portanto, Luís não pode ser julgado; ele já está condenado.”[27] Saint-Just e ele recusavam por princípio a instalação de um processo nas formas legais, para exigir, como simples “medida de salvação pública’’, a execução imediata do “tirano’’. Ao que se opunham os girondinos e em particular Condorcet, que pediam que os crimes imputados a Luís XVI fossem “julgados e punidos como os crimes da mesma espécie cometidos por outro indivíduo qualquer”.[28] Com efeito, eles consideravam o “ex-rei’’ como um cidadão igual a todos os demais, que devia ser julgado e condenado diante de uma jurisdição competente. Nessa perspectiva, fica claro que todo vínculo entre a pessoa física do rei e o corpo político da Nação já se rompera de forma irremediável. Ao proporem atribuir-lhe os direitos de um cidadão comum, os representantes da Gironda reafirmavam a dessacralização da pessoa do rei. Manifestavam sua exigência de fundar a República sobre a igualdade dos cidadãos e a soberania da lei. Completamente diferente era a posição da Montanha, tal como se exprimia especialmente pela voz de Saint-Just. Para ele, aqui não se poderia falar de formas jurídicas e de igualdade perante a lei, precisamente porque um rei não é um cidadão e não depende das leis civis: assim, Luís deve ser julgado “como um inimigo estrangeiro”, segundo as leis da guerra, e, sendo assim, “não temos de julgá-lo, e sim combatê-lo’’, matá-lo.[29] Tal como os defensores do rei, mas por razões opostas, Saint-Just aceita o dogma da soberania monárquica que vê no rei uma exceção, um exlex situado à parte da comunidade e que não depende de suas leis. Ele insiste em considerá-lo como um elemento heterogêneo, um corpo estranho no seio do corpo social, como acontecia na monarquia de direito divino — mas o sentido de sua diferença se inverte, passa para a outra vertente do heterogêneo, da soberania à abjeção, do sagrado ao dejeto. Portanto seria errôneo creditar aos jacobinos a ruptura mais decisiva: apesar das lendas piedosas, é a posição contrária, a de Condorcet, que manifesta uma “rejeição muito mais radical do mistério monárquico”,[30] enquanto Saint-Just e seus adeptos não fariam senão perpetuá-lo sob uma forma invertida. Mas essa “radicalidade’’ dos girondinos é acompanhada de uma atitude política conservadora, de uma profunda desconfiança em face da “democracia selvagem” das seções sans culotte, ao passo que paradoxalmente são os jacobinos, secretamente fascinados pela hipóstase monárquica do corpo, que se apóiam nas forças mais subversivas, nessa carne viva do social que finalmente se vê livre da prisão da hipóstase.

O processo de “Luís Capeto’’ apresenta-se como um compromisso entre essas orientações opostas. Tudo se passa como se os dois corpos do rei comparecessem simultaneamente ao banco dos réus: se a Gironda se dirigia à pessoa do rei para acusá-lo de crimes bem determinados, a Montanha atacava a encarnação viva do Corpus Mysticum, culpada do crime absoluto de ser rei. Hostis à sua execução por razões políticas ou humanitárias, Condorcet e seus amigos podiam no entanto considerá-la como o castigo legal de um cidadão acusado de alta traição. Para os jacobinos, a execução tinha o sentido de uma cerimônia sagrada — uma “festa religiosa’’, escrevia Marat — em que o corpo político inteiro devia morrer junto com sua cabeça mística a fim de renascer: “É preciso, enfim”, proclamava um orador da Montanha, “que tudo o que respira morra e renasça no momento em que a cabeça do tirano rolar. É a vossos cuidados que foi confiada a geração de um grande povo. Sim, é através de vós que o povo francês deve adquirir um novo ser”.[31] A questão do Corpo Soberano, de sua transferência e de sua reincorporação, encontra-se bem no centro do conflito. Para uns, a transferência de soberania se realizou integralmente e o processo do rei apenas homologa a inevitável desincorporação do corpo monárquico. Para outros, essa transferência é imperfeita ou impossível enquanto Luís estiver vivo, e somente o regicídio tornará possível a regeneração do grande Corpo. “Creio enfim na República”, irá exclamar Marat logo após a execução. O mistério dos dois corpos foi frequentemente comparado ao da Eucaristia:[32] desse ponto de vista, poder-se-ia dizer que Sieyès ou os girondinos viam apenas uma presença simbólica do Corpus Mysticum na pessoa do rei, uma ligação exterior, “consubstancial’’, que um simples ato jurídico podia revogar; ao passo que Robespierre e Saint-Just parecem crer em sua presença real (“transubstancial’’), numa união tão íntima dos dois corpos que ela sobrevive à queda do monarca, cujo corpo de carne humilhado e decaído continua, até o cadafalso, a reencarnar a hipóstase. Apesar dessa diferença, os dois partidos rivais concordam no essencial: os jacobinos partilham com a maior parte de seus adversários “moderados’’ a mesma concepção de soberania, caracterizada como no Antigo Regime por sua unidade, sua perpetuidade, sua infalibilidade. Ambos se inscrevem na perspectiva de uma transferência de soberania que preserva seus atributos clássicos e seu esquema orgânico, e a única divergência séria, ocorrida em 1792, diz respeito às modalidades dessa transferência, já efetuada, para uns, ainda por realizar, para outros.

Assim, o morto se apodera do vivo: a hipóstase monárquica do corpo sobrevive à queda da realeza e se impõe ainda às diferentes tendências republicanas. Defensores da monarquia e partidários da República, revolucionários moderados ou radicais, todos se enfrentariam no interior de uma mesma configuração que jamais seria verdadeiramente ultrapassada, e teríamos que dar razão aos discípulos de Tocqueville, aos que ressaltam uma continuidade profunda que se oculta sob a aparência de uma “revolução’’. Seria esse o caso, pelo menos, se pudéssemos identificar entre os principais dirigentes jacobinos a mesma hipóstase do corpo que pode ser encontrada em Sieyès ou Rivarol. Ora, não é isso que se vê: Robespierre e Saint-Just quase não recorrem às referências “orgânicas’’, e sua teoria política parece vincular-se inteiramente à problemática do direito natural. Aliás, será por acaso que essa tendência, que parece abandonar a representação do “corpo político’’, se apóia nas seções parisienses e nas sociedades populares, nessa carne selvagem do social que ressurge por ocasião das jornadas revolucionárias, aquém de toda incorporação estatal ou parlamentar? Mas talvez estejamos demasiado presos à lenda dourada dos jacobinos, cuja prática real do poder terá consistido em enquadrar e em submeter essa “democracia selvagem’’ das seções sans culotte, em reincorporá-la. A revogação da hipóstase monárquica se operaria, aí também, em nome de uma nova hipóstase do corpo, e poderíamos reencontrar seus traços nesse discurso que a denega. Para isso, no entanto, seria preciso desprender-nos dessa fascinação que o sombrio arcanjo da Revolução continua a exercer sobre nós: não mais levar em conta, ao menos por um tempo, a postura de Saint-Just, a do virtuoso tiranicida, do herói republicano que apela à “fria posteridade’’, para considerar apenas seu discurso, e tentar separar a problemática (e os fantasmas) que subjaz a ele…[33]

Aparentemente, é por motivos estritamente jurídicos que Saint-Just se opõe ao julgamento de Luís XVI. Com efeito, ele se baseia numa interpretação particular do Contrato social que exclui o rei, enquanto “inimigo do povo’’, do pacto civil e da comunidade dos cidadãos. Esse estatuto de exceção proíbe que ele seja tratado como um adversário político comum, designando-o de antemão como fora-da-lei: culpado por essência, pelo simples fato de reinar. Tal é o sentido da máxima bem conhecida: “Não se pode reinar inocentemente’’. Ela quer dizer, precisa Saint-Just, “que se deve mover um processo contra um rei não pelos crimes de sua administração, mas pelo crime de ter sido rei’’, pois a própria realeza “é um crime eterno”.[34] Uma nova figura de inimigo político delineia-se então, a do Inimigo Absoluto, que não se combate por motivos específicos mas pelo simples crime de existir. Sendo tal Inimigo desde sempre culpado, e estando “já condenado’’, dizia Robespierre, seus atos reais, faça o que fizer, não contam. Suas qualidades ou o mérito de suas ações depõem na verdade contra ele, pois ajudam a dissimular sua verdadeira natureza. Assim, não surpreende que Saint-Just insista sobre a “falsidade’’ do ex-rei, sobre sua “aparência de bondade’’ que mascara sua “malignidade oculta”:[35] há tamanha defasagem entre a realidade de suas ações e sua essência ruim que o Inimigo só pode ser um dissimulador hipócrita, caracterizado antes de tudo por sua duplicidade. Reconhecemos aí a principal obsessão de Saint-Just e dos jacobinos, seu temor de uma (dis)simulação mimética — “O espírito imitativo é a marca do crime”[36] — que apagaria toda diferença entre a Virtude republicana e o Crime, e permitiria aos “larápios’’ “penetrar na arca sagrada”.[37]

Já quiseram explicar essa obsessão da “hipocrisia’’ invocando o “moralismo despótico’’ dos jacobinos, a confusão que eles operam entre a legalidade aparente das ações e sua intenção moral oculta.[38] Certamente ela procede também de uma figuração do corpo: pois essa duplicidade atribuída a Luís XVI se enraíza na representação do corpo duplo do soberano à qual, como acabamos de ver, os revolucionários mais radicais permanecem ainda submissos. Assim como a doutrina clássica distinguia do corpo falível do rei seu Corpo Místico, “que não pode fazer mal’’, também os jacobinos denunciam, por trás dos atos concretos de Luís Capeto, sua essência maléfica, que pode fazer mal. De Bossuet a Saint-Just, a mesma estrutura se mantém, mediante uma inversão de sentido que instala o Corpo Soberano no lugar do Abjeto. Corpo glorioso imortal ou resquício indesejado imundo, trata-se sempre da persistência de um elemento heterogêneo que se reconstitui constantemente para além de sua morte aparente. Também aí, as caricaturas da época revelam a estrutura desse fantasma. Pensamos em particular numa gravura muito curiosa intitulada A máscara levantada, que nos mostra Luís XVI, ornado das insígnias da monarquia, no momento em que retira sua máscara. Mas essa máscara tem os traços de seu próprio rosto, e a “cabeça’’ que ela descobre não é senão um garrafão, símbolo de estupidez e de bebedeira, cercado de um nimbo de raios.[39] Como se o rosto real do rei de carne não fosse mais que uma simples aparência, recobrindo a verdade de seu Corpo glorioso — ainda aureolado da majestade solar, mas doravante reinscrito no registro do imundo.

Quando Saint-Just ataca o Inimigo do Povo, de Luís Capeto aos girondinos, de Danton aos hebertistas, ele o descreve sempre como uma ameaça de origem exterior (é a “conjuração do estrangeiro’’) que ressurge no interior, nas “entranhas da República”, para corrompê-la — pois “o estrangeiro corrompe tudo”.[40] Essa intimidade externa, essa “extimidade[41] a ele atribuída, poderia perfeitamente ajustar-se ao mesmo esquema corporal, como sua duplicidade. Sabemos que o corpo do rei se situa ao mesmo tempo dentro e fora do corpo político, que encarna o todo desse corpo e uma parte separada desse todo, sua cabeça mística. É esse estatuto paradoxal, o de um corpo estrangeiro interno, que Saint-Just reconhece em Luís Capeto quando o designa como um “inimigo estrangeiro’’ — mais estrangeiro inclusive que o mais longínquo inimigo — e não obstante como um “estrangeiro entre nós”:[42] intimamente presente a esse povo que o rejeita e o mata, e ao qual pertence apesar de tudo como a carne de sua carne.

Frequentemente se perguntou se o Terror era a sequência necessária do regicídio. Mas a significação do processo do rei e de sua execução não é unívoca: se os concebermos, com Condorcet e a Gironda, como um procedimento legal que confirmava a igualdade dos cidadãos perante a lei, eles nada têm a ver com o Terror, que ia representar a negação radical de tal legalidade e enviar seus principais defensores ao cadafalso. Se, ao contrário, os considerarmos, com Saint-Just e os jacobinos, como um procedimento de exceção em que o corpo da República se regenera ao eliminar seu Inimigo, então o regicídio é de fato o primeiro ato do Terror e Luís a primeira encarnação do Inimigo maléfico, do núcleo de abjeção que não cessará de ser perseguido e exterminado. Com efeito, Robespierre e seus aliados haveriam de projetar nos representantes sucessivos do Inimigo os mesmos traços que haviam primeiro denunciado em Luís XVI. A duplicidade atribuída ao rei torna-se a do “partido que dissimula’’, a do Suspeito, e sua “extimidade” reaparece nessas “facções do estrangeiro’’ que buscam atacar desde o interior a República. Quinet tinha razão ao reconhecer no Terror de 1793 o “legado fatal da história da França’’, o signo de que os revolucionários continuavam prisioneiros da concepção monárquica do poder. Para nós, esse legado de morte é o do corpo duplo do rei, cujos traços essenciais reaparecem, através de uma inversão de sentido, nas diferentes figuras do Inimigo do Povo. Figura prolífera que desempenhará um papel fundamental na passagem do regicídio ao Terror: arrebatados por seu fantasma de desmascarar o “Estrangeiro entre nós’’, os jacobinos vão estender o caráter excepcional, fora da lei, do Inimigo, ao conjunto de seus adversários políticos e finalmente a todos os que permanecem “indiferentes’’ ou “passivos’’. “Deveis punir não apenas os traidores, mas também os indiferentes”, declara Saint-Just; “deveis punir todos os que forem passivos na República’’, pois “tudo o que se opõe a ela é alheio ao Soberano, tudo o que é alheio ao Soberano é inimigo […]. Entre o povo e seus inimigos não há mais nada em comum a não ser a espada”.[43] É em outubro de 1793 que ele afirma isso, em seu Parecer sobre a necessidade de declarar o governo revolucionário até a paz, apresentado para justificar a decisão de suspender a Constituição do ano I. Faz um mês que a Convenção proclamou “o terror na ordem do dia’’; as primeiras execuções começaram, e as exumações dos cadáveres dos reis em Saint-Denis. A extensão da alegação de exceção a todos os “inimigos do povo’’ coincide portanto com a instauração do estado de exceção, e este tende a se generalizar, a tornar-se interminável. O Terror, a princípio visto apenas como um modo provisório de governo, vai se confundir progressivamente com a essência mesma do regime e com a face de sua lei: “O Terror não é outra coisa senão a justiça rápida, severa, inflexível; é portanto a emanação da virtude; é menos um princípio particular que uma consequência do princípio geral da democracia”.[44] Também nesse plano, a exceção torna-se a regra: quer se trate de designar seus inimigos ou de decretar o estado de exceção, em ambos os casos os dirigentes jacobinos parecem incapazes de estabelecer limites à sua decisão soberana, de circunscrever seu campo de aplicação.

Vemos aí o sinal de um dramático enfraquecimento do julgamento político, e a consequência necessária da representação que se fazia do Inimigo. Quando o inimigo real, o adversário político declarado que se combate por razões precisas numa conjuntura determinada, se metamorfoseia num Inimigo Absoluto oculto, nada mais permite discernir o amigo do inimigo (ou o inimigo dos elementos neutros, indiferentes…), nem apreciar a relação de forças real, reconhecer a vitória ou a derrota que poriam um termo ao combate. A lógica da ação política é então substituída pela lógica da guerra, uma guerra absoluta e sem fim, que nenhum sucesso parcial, nenhum acordo poderiam deter.[45] Onipresente, inapreensível, o inimigo supostamente vencido ressurge sem cessar sob novas formas que devem ser desmascaradas e aniquiladas, incansavelmente. Todo exercício do julgamento político torna-se aqui impossível, precisamente porque a figura do Inimigo Absoluto não depende de nenhuma norma jurídica ou política, porque ela mobiliza uma figuração arcaica do corpo — de um corpo precário, assaltado por objetos internos ruins que ele se esforça constantemente por expulsar —, profundamente alheia ao direito natural moderno, diferente mesmo das concepções antigas ou cristãs do corpo político, mas muito próxima desses fantasmas que obsedam o corpo de carne nas fases primitivas de sua incorporação. Paradoxalmente, Saint-Just jamais assumirá essa referência ao corpo. Continuará se valendo da linguagem do direito natural para enunciar o que excede o direito: a consideração do Inimigo como algo fora da lei e a proclamação de uma guerra absoluta, de um estado de exceção permanente. É o Contrato social que ele invoca para justificá-lo: para ele, como vimos, o que se opõe à vontade geral se exclui por isso mesmo do Povo Soberano e deve ser tratado “como um inimigo estrangeiro’’. Interpretação restritiva que equivale a definir a “vontade geral’’ por sua não-generalidade, pela exclusão de certos cidadãos da comunidade que ela institui. Ele não leva em conta que o próprio da vontade geral é, ao contrário, sua universalidade, que ela funda assim uma comunidade inclusiva na qual o oponente (inclusive um “déspota’’ destronado) será “forçado a ser livre’’, a submeter-se livremente à lei como os demais cidadãos. De um ponto de vista jurídico-político, essa interpretação “inclusiva’’ do Contrato é a única concebível, e o Terror de 1793 não é, portanto, culpa de Rousseau.

A interpretação “exclusiva’’ do Contrato defendida por Saint-Just só poderia justificar-se numa problemática orgânico-política que transformasse a vontade geral em expressão de um corpo coletivo.[46] O espantoso é que ele jamais o tenha feito. Devemos saudar a audácia do revolucionário que se recusa a dobrar-se diante de um modelo herdado (“Não imitem nada do que se passou antes de nós: o heroísmo não tem modelo”[47])? Ou reconhecer a cegueira de um pensamento incapaz de assumir explicitamente o que o fundamenta? Nosso espanto é maior ao constatarmos que essas referências “orgânicas’’, ausentes em Saint-Just, proliferam num outro dirigente jacobino. Com efeito, elas ocupam um lugar privilegiado nos escritos de Billaud-Varenne, que se mostra assim mais submisso que Saint-Just à influência da tradição — e ao mesmo tempo mais lúcido e consequente, ao explicitar o impensado que subjaz a seu pensamento.[48] É significativo que esses temas apareçam em Billaud a partir do outono de 1793, quando ele ingressa no Comitê de Salvação Pública, e sobretudo em discursos para justificar o Terror e em circulares destinadas a colocá-lo em prática. A ressurgência do velho esquema orgânico-político está de fato relacionada com a proclamação do estado de exceção: na falta da lei, é o corpo que se impõe. Entretanto, nesse ponto capital, o discurso jacobino jamais será homogêneo e as tensões que o atravessam o impedem de desenvolver uma concepção coerente do “corpo político’’: seja porque ela está ausente, seja porque ela se manifesta, como em Billaud, numa profusão de metáforas vagas e contraditórias. Todavia, alguns de seus traços sobressaem, e neles se esboça a imagem jacobina do corpo.

UM CORPO INFIGURÁVEL

Nada mais clássico, parece, que a figuração do corpo político exposta por Billaud, especialmente nas circulares de dezembro de 1793 que ele redige em nome do Comitê de Salvação Pública.[49] Nelas reencontramos os principais atributos do corpo monárquico, a unidade do príncipe soberano — “O corpo político, como o corpo humano, torna-se um monstro se tiver várias cabeças’’ — e a hierarquia de seus órgãos — “Vós sois”, escreve aos comitês de vigilância, “como as mãos do corpo político do qual [a Convenção] é a cabeça e nós somos os olhos”. A infalibilidade que lhe atribui, a do olhar que penetra a aparência, é o que o autoriza, como no Antigo Regime, a enunciar a lei. Reconhecemos enfim o caráter fundamental da soberania monárquica, sua perpetuidade, no ideal que ele nos propõe de uma “democracia imperecível”.[50] Na concepção clássica, porém, essa perenidade repousava na transcendência do Corpus Mysticum, garantida pela sucessão hereditária de suas encarnações. Para Billaud-Varenne, o corpo imortal da República só se perpetua pelo Terror, regenerando-se constantemente pela eliminação da “gangrena’’ que o rói: “O único plano capaz de assegurar que a República seja indestrutível é o que ataca ao mesmo tempo os desvios do espírito e os do coração; cumpre extirpar a gangrena política até em suas menores ramificações”.[51] O que confere ao corpo republicano sua força soberana é, portanto, sua capacidade de designar o Inimigo, ou seja (para Billaud é a mesma coisa), a expulsão sempre reiterada do Abjeto, dos elementos heterogêneos que, “como as cabeças da hidra, renascem sem parar de seu tronco comum”.[52] Na verdade, essas exortações a “extirpar a gangrena’’ do corpo político são correntes na literatura revolucionária, e já as havíamos apontado no muito liberal Sieyès. Mas neste elas se acompanham da determinação precisa de um inimigo real 
(a casta dos privilegiados), que não se tratava de eliminar mas de submeter à lei. Ao passo que Billaud a identifica ao Inimigo Absoluto, sem rosto e sempre a renascer: torna-se então impossível circunscrever esse “câncer perigoso’’ que prolifera em toda parte, distinguir o membro doente das partes sãs. Por fim, é o corpo social inteiro que precisaria, a exemplo do velho Éson, ser desmembrado e “plasmado de novo’’ no caldeirão de Medeia… E nisso reencontramos, no plano do fantasma, a aporia principal da política jacobina, sua tendência a estender indefinidamente a exceção, a tornar o Terror interminável.

Essa confusão pânica na qual vacila toda demarcação entre o amigo e o inimigo, o interior e o exterior, o próprio e o alheio, irá afetar profundamente a imagem jacobina do corpo até torná-la infigurável. Que se releia o discurso de Billaud-Varenne na Convenção, em que ele tenta, no início do Terror, justificar a organização do estado de exceção: “É tempo”, exclama, “de devolver ao corpo político uma saúde robusta, às expensas dos membros gangrenados”.[53] Mas acrescenta em seguida que “tudo se ingurgita a vosso redor ou é tragado para longe”; que, “de todos os lados’’, “os membros querem agir sem a direção da cabeça’’ e fazem o corpo soçobrar nos “dilaceramentos’’ e no caos. Corpo fragmentado, em luta contra si mesmo, em que tudo o que escapa à autoridade do Centro “se torna excessivo, parasita, sem unidade’’; em que todos os membros parecem ameaçados de gangrena; em que a própria cabeça deve se separar do corpo e combater “de todos os lados’’ a “coalizão perigosa’’ de seus membros. A essa cabeça sem corpo, ou que se obstina contra seu próprio corpo, superpõe-se a imagem inversa de um corpo sem cabeça, do corpo disforme da monarquia vencida que continua a ameaçar a República — pois “a cabeça do monstro é abatida, mas o tronco sobrevive sempre com suas formas defeituosas’’. Compreende-se assim o que deforma e altera o corpo jacobino. Na perspectiva de Sieyès ou dos girondinos, a soberania havia se transferido integralmente do corpo do rei para o “grande corpo dos cidadãos”, e nada mais subsistia da hipóstase monárquica. Na dos jacobinos, trata-se apenas de uma transferência parcial, inacabada, em que o Corpus Mysticum mutilado sobrevive à abolição da monarquia e à morte do rei. Ao ler Billaud-Varenne, julgaríamos assistir ao conflito de dois Corpos Místicos, de duas figurações rivais do corpo político que se enfrentam no mesmo terreno. No momento em que reafirma a unidade indivisa do Corpo Soberano — “O corpo político é uno nas democracias”[54] —, ele vê esse Corpo-Uno às voltas com um outro Corpo que o penetra e o devasta do interior. É a impossibilidade de conceber esse corpo ao mesmo tempo uno e duplo, total e parcial, lutando contra seu Outro dentro de si mesmo, que impede os jacobinos de elaborar uma concepção coerente do corpo político.

Esta não lhes é possível por uma outra razão ainda, relacionada às próprias intenções da revolução democrática, aquilo que a torna incompatível com uma representação orgânica do social. Pois o esquema do corpo político tende necessariamente, em todas as suas variantes, a justificar a desigualdade hierárquica dos órgãos, a distinguir dos simples membros uma cabeça soberana, um centro do poder, exercido “naturalmente’’ por quem ocupa o lugar da cabeça. A isso se opõem as intenções igualitárias da democracia moderna, sua exigência de “colocar a lei acima do homem’’, de deixar vago o lugar do poder — mandando para o cadafalso, se preciso, quem pretendesse se apropriar dele. É essa paixão da igualdade que alimenta a desconfiança dos jacobinos em relação a todo aquele que possui alguma autoridade (“O povo”, dizia Saint-Just, “só tem um inimigo perigoso: “seu governo”[55]), em relação a todo indivíduo fora do comum — portanto suspeito de aspirar à ditadura —, e a habilidade de Robespierre foi governar sem jamais aceitar o título legal ou simbólico que o teria feito encarnar o poder supremo. Nessas condições, o esquema orgânico se mostra inadequado e só poderá ser mantido à custa de distorções que acabam por torná-lo infigurável. É o que ocorre quando um obscuro deputado da Montanha apresenta à Convenção um projeto de Arte social de inspiração organicista: todo o seu discurso invoca um chefe todo-poderoso, a instituição de um “presidente da soberania’’, já que “é preciso necessariamente que tenha um chefe, tal como um indivíduo precisa ter uma cabeça para que seja um homem’’. Mas ele logo tenta fazer coincidir essa estrutura hierarquizada com o ideal democrático de igualdade: nesse organismo republicano, “nem tudo pode ser cabeça, braços e pernas ao mesmo tempo’’, e não obstante “todas as suas partes são móveis’’ e “cada uma deve poder também ser cabeça, braços e pernas e fazer-se corpo por sua vez”.[56] Sob o efeito dessa dupla injunção contraditória, a representação jacobina do corpo mergulha na incoerência, e compreende-se que Robespierre e Saint-Just tenham julgado possível ignorá-la, embora ela anime secretamente seu pensamento e lhe dê sua carga fantasmática.

A essa denegação, na qual o discurso jacobino desconhece suas próprias condições de inteligibilidade, será preferível a prosa atormentada de Billaud-Varenne, cujas construções sucessivas e reviravoltas põem a nu a aporia desse discurso, testemunhando sua incapacidade de manter juntos a cabeça e o corpo, a hierarquia orgânica e a exigência igualitária. Se ele começa, em 1791, por jogar o corpo contra a cabeça, esboçando o ideal de uma sociedade acéfala, de uma “acefocracia”,[57] durante o Terror acabará por jogar a cabeça, o centro dirigente, contra o corpo e seus órgaos enfermos. Para terminar, após Termidor, por elevar-se contra a preeminência excessiva do Centro e a ameaça que os chefes fazem pesar sobre uma democracia “cuja essência é a igualdade”.[58] Ora, essa desconfiança em relação à cabeça do Estado é reforçada por uma desconfiança mais profunda em relação ao corpo, ou seja, o povo, que Billaud acusa de “flutuações contínuas’’, de fascínio pelos simulacros da riqueza e do poder e de um estranho desejo de servidão. E isso o reconduz inevitavelmente ao outro polo da antinomia, ao elogio quase hobbesiano do Mestre, único capaz de fazer congregar uma multidão dispersa num povo: “Com um chefe, o povo é capaz dos maiores esforços; sem ele, não é mais que um rebanho, que qualquer coisa apavora e dispersa num instante”.[59] Surpreendente confissão na qual, após tantos discursos sobre a “bondade’’ e a força nativas do povo, desvela-se de repente o lado oculto do Terror jacobino: por trás do culto do Povo-Ídolo, um imenso desprezo pelo povo real, ao qual é negada toda consistência própria, toda capacidade de unir-se e agir por si mesmo sem ligar-se imediatamente a um mestre. O que corresponde à prática política efetiva dos jacobinos, os quais, após terem se apoiado no movimento popular para conquistar o poder, farão tudo para submetê-lo, dividi-lo, executando seus porta-vozes mais radicais e desmantelando as seções sans culottes.[60] Seu apoio, como sabemos, fará falta a Robespierre no momento decisivo, no 9 Termidor… Se o Terror procede de fato de um movimento de reincorporação, se ele busca reconstituir uma nova hipóstase do corpo, esta repousa sobre a denegação, o esquecimento da carne: dessa carne selvagem da comunidade, liberada de seu aprisionamento no corpo monárquico e que transparece na efervescência das jornadas revo lucionárias e das assembleias das seções. Uma carne plural, rebelde a toda hierarquia, mas altamente instável, pronta a se deixar cativar pelo atrativo do Uno e pelo desejo do Terror, a se precipitar numa nova hipóstase — à qual, mais uma vez, resistirá surdamente até uma nova sublevação. Essa carne aparece ao corpo hipostasiado como um elemento caótico e cego, um resto heterogêneo que perturba a ordem e a unidade do organismo. Quando tenta “extirpar a gangrena’’ que o devora, é sua própria carne que o corpo quer aniquilar, sem perceber que, ao se obstinar assim, se mutila e se mata.

Perguntávamo-nos se a Revolução não teria apenas substituído uma hipóstase do corpo por outra, e se isso significa que toda comunidade humana deve inevitavelmente ser figurada sob a aparência de um corpo. Talvez seja possível esboçar uma resposta. Parecia-nos, com efeito, que os jacobinos, secretamente fascinados pela figura do Corpo Soberano, se esforçaram, ao preço do Terror, por reincorporar a carne do social. Compreendemos agora que seu esforço fracassa, que engendra apenas um corpo infigurável, ao mesmo tempo exigido e imediatamente negado, incapaz de se deixar representar e de se manter de forma estável. Como se um ponto sem volta tivesse sido atingido e fosse doravante impossível conter por um tempo maior a dinâmica de desincorporação iniciada pela Revolução. O fracasso dos jacobinos prefigurava então o de todos os empreendimentos ulteriores que buscaram “refazer o corpo’’, submeter de novo a carne da comunidade a uma hipóstase do Povo, da Nação ou da Classe. Mesmo assim não se deveria substimar a ambiguidade da posição jacobina, que não se limita a esse propósito abortado de uma reincorporação terrorista. Quando Saint-Just escreve que “a revolução deve se limitar à perfeição da felicidade e da liberdade pública possível através das leis;[61] quando afirma que “as leis animam o corpo social, inerte por si mesmo”,[62] ele deixa entrever, para além da “inércia’’ dos velhos esquemas orgânicos, um novo princípio de liberdade, o ideal de uma República que colocaria “a lei acima do homem’’ e de todas as hipóstases do corpo político. Essas hipóstases, com efeito, se fundam num duplo gesto de incorporação: da carne primordial, alienada na imagem de seu corpo, e da lei, submetida ao saber infalível da cabeça e à sua vontade onipotente. Carne e lei se revelam assim solidárias, ambas subjugadas à hipóstase do Corpo Soberano cuja destruição deveria libertá-las, quando a estatura do grande Corpo desabasse irrevogavelmente. As revoluções democráticas nos legam assim uma dupla herança: o ideal republicano de uma soberania da lei — progressivamente concretizada em nossas instituições — e esse “tesouro perdido’’ da tradição revolucionária, essa democracia selvagem das seções, das comunas, dos conselhos operários, em que a carne viva do social aflora brevemente e se mobiliza fora de toda reincorporação do Estado. Até hoje, as duas vertentes dessa herança jamais puderam se juntar, encaixar de maneira duradoura o polo da lei e o da carne. Sem dúvida essa é a tarefa, ainda a ser realizada, que a Revolução terá legado ao futuro.

Tradução de Paulo Neves

 

 

NOTAS

 

(1) Rapport sur l’exhumation des corps royaux à Saint-Denis en 1793, por d. Germain Poirier, citado por Alain Boureau, Le simple corps du roi, Éditions de Paris, 1988, pp. 80-1.

(2) Cf. o espantoso depoimento do bibliotecário Manteau, citado por Jules Mazé, “De la nécropole des rois au charnier de la Révolution’’, Écrivains Français, no 59, 1960; reedição FMR, no 25, abr. de 1990.

(3) Pensamos em particular no livro de Lucien Jaume, Le discours jacobin et la démocratie, Fayard, 1989, e no de Antoine de Baecque, Le corps de l’histoire, Calmann-Lévy, 1993. Caberia mencionar igualmente os trabalhos um pouco mais antigos de historiadores americanos como L. Hunt, D. Outram etc.

(4) Trata-se, escreve L. Jaume (num livro por sinal notável), “de uma descrição metafórica da realidade do Estado revolucionário […]. O político é estruturado também pelo discurso metafórico: trata-se de um imaginário do poder, tanto quanto, por exemplo, a trifuncionalidade na visão medieval” (op. cit., p. 384).

(5) Notemos porém que, para Husserl, “essa comunidade originária não é um nada’’, já que o caráter “irreal’’ de sua quase-carne não exclui a “penetração irreal, intencional de outrem em minha esfera primordial’’. Cf. os §§ 55-6 das Meditações cartesianas (Méditations carté siennes [1929], trad. Lévinas, Vrin, 1980, pp. 102-9).

(6) Sobre essas questões, permitimo-nos remeter a nosso estudo “Comme les paroles d’un homme ivre: chair de l’histoire et corps politique’’, publicado nos Cahiers de philosophie, no 18, 1994-5, pp. 71-102. É-nos impossível confrontar aqui nossa problemática a outras abordagens da Revolução Francesa que recorrem também à fenomenologia, como a que expõe Marc Richir em Du sublime en politique, Payot, 1991.

(7) Guy Coquille, Discours des états de France, citado por Jean-Marie Apostolidès, Le roi-machine, Minuit, 1988, p. 13.

(8) “Onde ele conseguiria tantos olhos para vos espiar, se não lhe désseis os vossos? Como ele teria tantas mãos para vos bater se não as tomasse de vós? […] Como teria algum poder sobre vós, senão por vosso intermédio?” (La Boétie, Discours de la servitude volontaire [1548], Payot, 1978, p. 115.)

(9) J. A. Cerutti, citado por A. de Baecque, op. cit., p. 124.

(10) Cf. nesse sentido Marcel Gauchet, La révolution des droits de l’homme, Gallimard, 1989, pp. 23-8. Sobre a teoria do corpo político em Sieyès, cf. as belas análises de A. de Baecque, op. cit., pp. 99-102, 122-9.

(11) Cf. Sieyès, Essai sur les privilèges e Qu’est-ce que le Tiers État? (1788), reed. puf-Quadrige, 1982, p. 4.

(12) “Imagino a lei no centro de um globo imenso; todos os cidadãos, sem exceção, estão à mesma distância na circunferência e ocupam apenas lugares iguais; todos dependem igualmente da lei.” Sieyès, op. cit., p. 88.

(13) Retomamos esse conceito de “democracia selvagem’’ da obra de Claude Lefort, com o qual ele designa a “essência’’ mesma da democracia, sua dinâmica instituinte, na medida em que excede todo regime, toda norma, toda forma política instituída, e em particular a do Estado liberal-parlamentar. Como “selvagem’’, para ele, alude ao “ser bruto ou selvagem’’, ao “espírito selvagem’’ da comunidade evocados em Le visible et l’invisible, parece-nos possível considerar a “democracia selvagem’’ como a expressão daquela carne do social de que falava Merleau-Ponty. Sobre tudo isso, cf. Miguel Abensour, “Démocratie sauvage et principe 
d’anarchie’’, Les Cahiers de Philosophie, no 18, 1994-5.

(14) Cf. Le portrait du roi, de Louis Marin, Minuit, 1981. Sobre as efígies e as cerimônias funerárias, cf. Ralph Giesey, Le roi ne meurt jamais, Flammarion, 1987, e Cérémonial et puissance souveraine. France, XVe-XVIIe siècles, A.Colin/ehess, 1987.

(15) Gravura reproduzida em Le roi décapité, de Annie Duprat, Cerf, 1992, p. 56.

(16) Para usar a expressão de Lynn Hunt ao comentar esse gênero de representações. Cf. Le roman familial de la Révolution Française, Albin Michel, 1995, pp. 67-8.

(17) Cf. o estudo já citado de A. Duprat, bem como La caricature française et la Révolution, Los Angeles, Grunwald Center, UCLA, 1989 (com uma interessante análise de L. Hunt), e Antoine de Baecque, La caricature révolutionnaire, Presses du cnrs, 1988, pp. 40-4, 173-93.

(18) Talvez ela se inscreva também numa transformação profunda, iniciada no final do século XVIII, da representação do homem em sua relação com a animalidade. Cf. Jurgis Baltrusaitis, Physiognomonie animale, in Aberrations — les perspectives dépravées I (1957), reed. Flammarion, 1995.

(19) Essas gravuras são comentadas por A. Duprat, op. cit., pp. 186-7, 155-60, 88-90.

(20) Cf. Duprat, op. cit., pp. 201-4.

(21) O projeto de David e o decreto (jamais executado) da Convenção podem ser encontrados no estudo de Judith Schlanger, “Le peuple au front gravé’’, in Les fêtes de la Révolution Française, Société des Études Robespierristes, 1977, pp. 387-95.

(22) Rapport fait au nom du Comité de Salut Public sur un mode de gouvernement provisoire et révolutionnaire (18 de novembro de 1793). Voltaremos a falar desse texto essencial.

(23) Sobre o elemento heterogêneo como “corpo estranho’’ e sua ambivalência, sobre a relação entre a soberania do rei e a abjeção, e a aplicação dessa “heterologia’’ à questão da revolução, leiam-se as páginas soberbas que lhes consagrou G. Bataille — cf. especialmente Oeuvres complètes, Gallimard, 1972, t. ii, pp. 58-69, 216-32.

(24) Introdução a L’histoire de la Révolution Française (1848), reed. R. Laffont, 1988, t. i, p. 75.

(25) Billaud-Varenne, Principes régénérateurs du système social (1795), reed. Publications de la Sorbonne, 1992, p. 116.

(26) Os termos do debate foram analisados e os principais discursos dos oradores publicados no excelente livro de Michel Walzer, Régicide et Révolution (1974), Payot, 1989.

(27) Robespierre, discurso de 28 de dezembro de 1792, in Walzer, op. cit., pp. 291-314.

(28) Condorcet, discurso de 3 de dezembro de 1792, idem, ibidem, pp. 232-59.

(29) Saint-Just, discurso de 13 de novembro de 1792, idem, ibidem, pp. 202-10.

(30) Cf. idem, ibidem, p. 25, assim como as pp. 101-22.

(31) Dircurso de Fayau, deputado da Vendeia, citado por Jaurès, Histoire socialiste de la Révolution Française (1901-4), reed. Messidor-Éditions Sociales, 1986, t. V, p. 133.

(32) “Os reis têm uma religião especial; são devotos da realeza. Sua pessoa é uma hóstia, seu palácio é o sacrário.” (Michelet, Histoire de la Révolution Française, t. i, p. 467 — e cf. a obra já citada de L. Marin.)

(33) Sobre a figura do “herói republicano’’ em Saint-Just, seus “paradoxos’’ e sua ambiguidade, ver os trabalhos de Michel Abensour, especialmente “Saint-Just, les paradoxes de l’héroïsme révolutionnaire’’, Esprit, fev. de 1989; “La disposition héroïque et son aliénation’’, Tumultes, nos 2-3, 1993, e “Le héros révolutionnaire est-il un animal politique?’’, Epokhè, nov. de 1995.

(34) Saint-Just, Ouvres choisies, Gallimard, 1968, p. 79, e Walzer, op. cit., p. 207. Seria um erro portanto justificar as acusações jacobinas de “duplicidade’’ invocando (como já o fazia Michelet) a duplicidade real de Luís XVI, que conspirava com os emigrados ao mesmo tempo em que afirmava sua fidelidade à Constituição… Esse texto mostra claramente que, para Saint-Just e seus aliados, a atitude efetiva do rei não conta: que seu duplo jogo real — “os crimes de sua administração’’ — terá sido apenas um pretexto, uma ocasião para revelar sua Malignidade secreta.

(35) Desde seu primeiro discurso de 13 de novembro, e mais ainda em sua segunda intervenção, em 27 de dezembro de 1792 — cf. Walzer, op. cit., pp. 274-89.

(36) “O espírito imitativo é a marca do crime. Os contra-revolucionários de hoje, não ousando mais se mostrar, adotaram mais de uma vez as formas do patriotismo.” Rapport sur les factions de l’étranger [13 de março de 1794], in Saint-Just, op. cit., p. 213.

(37) Cf. o Discours sur la Constitution à donner à la France (abril de 1793), idem, ibidem, p. 117. A célebre fórmula “Nada se assemelha tanto à virtude como um grande crime’’ tem uma significação análoga: ela visa os girondinos detidos em 2 de junho de 1793 e os acusa de ter “seduzido as almas fracas sob o prestígio ordinário da verdade’’, idem, ibidem, p. 153.

(38) Era a posição de Kant, exposta na Religião, de 1793, e no Projeto de paz perpétua. É também a de Camus ou de Arendt.

(39) Cf. Duprat, op. cit., pp. 165-6.

(40) Rapport sur les factions de l’étranger, in Saint-Just, op. cit., p. 209. Cf. também o parecer contra os girondinos: “Os inimigos da República estão em suas entranhas; não é a audácia que precisamos vencer, mas a hipocrisia’’, idem, ibidem, p. 165.

(41) Para retomar um termo forjado por Lacan.

(42) “Luís é um estrangeiro entre nós”, idem, ibidem, p. 81, Walzer, op. cit., p. 208.

(43) Saint-Just, op. cit., p. 169.

(44) Robespierre, Sur les principes de morale qui doivent guider la Convention nationale dans l’administration interne de la République (fevereiro de 1794), Oeuvres, t. X, Société des Études Robespierristes, 1967, p. 357.

(45) Carl Schmitt atribuía a Lenin a paternidade dessa confusão desastrosa, desse deslocamento que “transportou o centro de gravidade conceitual da guerra para a política’’ fazendo “do inimigo real um inimigo absoluto’’ — cf. Théorie du partisan (1962), in La notion de politique, Flammarion, 1993, p. 302. Parece-nos mais apropriado atribuí-la aos jacobinos.

(46) Tal leitura é inteiramente possível, como mostramos no já citado “Comme les paroles d’un homme ivre”, pp. 93-6. Mas, mesmo nessa perspectiva, as consequências que Saint-Just acredita poder tirar de Rousseau nos parecem inaceitáveis.

(47) Saint-Just, op. cit., p. 265.

(48) Não compreendemos bem por que Claude Lefort, quando assinala, no discurso revolucionário, o fantasma de uma “grande amputação que devolveria a saúde ao corpo social’’, o assimila imediatamente às “racionalizações’’ que “mascaram, mais do que revelam, o fundo do Terror’’… Cf. seu estudo sobre “La Terreur révolutionnaire”, in Essais sur le politique, Seuil, 1986, p. 103.

(49) Textos analisados por Jaume, op. cit., pp. 341-7. Observe-se que  circulares dominadas por uma concepção “organicista’’ do social foram subscritas pelo conjunto dos membros do comitê, inclusive Saint-Just e Robespierre.

(50) Principes régénérateurs du système social, p. 94. Sobre esse ponto decisivo, Billaud se opõe portanto a Maquiavel e Rousseau, ao reconhecimento da finitude política, dos limites temporais de toda fundação política.

(51) Ibidem, p. 81. Cf. também, na p. 117, o seguinte texto, que demandaria longos comentários: “Uma constituição só pode ser o resultado da vontade geral […]. Donde resulta que tudo o que não está intimamente ligado à causa nacional torna-se supérfluo num Estado. É um câncer perigoso que deve ser removido. É a amputação rápida e indispensável de um membro gangrenado a fim de salvar o doente”.

(52) Ibidem, p. 76. Curiosamente, Billaud escreve isso após Termidor, numa obra destinada, em parte, a criticar os excessos do Terror robespierrista e seu caráter “interminável’’. Mas a lógica de seu discurso (a do fantasma que lhe subjaz) o leva, contra sua vontade, a justificar de novo o caráter interminável do Terror…

(53) Rapport fait au nom du Comité du Salut Public sur un mode de gouvernement provisoire et révolutionnaire, discurso de 18 de novembro de 1793, Archives parlementaires, t. lxxix, pp. 451-7.

(54) Principes régénérateurs, p. 90.

(55) Oeuvres choisies, p. 170. Mais brutalmente, Hébert declarava em Le père Duchesne que “quem quisesse se elevar um palmo sequer acima dos outros [seria] um monstro a ser asfixiado’’…

(56) Seconds, De l’art social (abril de 1793), citado e comentado por Jaume, op. cit, pp. 349-57.

(57) Cf. Billaud-Varenne, L’acéphocratie, ou le gouvernement fédératif démontré le meilleur de tous pour un grand Empire, (1791), reed. edhis, 1977.

(58) Principes régénérateurs, p. 89. Cf. também pp. 120, 143 etc.

(59) Eléments de républicanisme (1793), reed. in Cahier du Collège International de Philosophie, no 7, Osiris, 1989, p. 22.

(60). No plano histórico, podemos nos apoiar em Daniel Guérin, Les luttes de classes sous la Première République (1946), reed. Gallimard, 1968, t. ii, pp. 72-147; e também no estudo clássico de Albert Soboul, Les sans-culottes parisiens en l’an II, Clavreuil, 1958. O objeto do conflito entre os jacobinos e as sociedades populares foi notavelmente analisado por Hannah Arendt em seu Ensaio sobre a Revolução (Essai sur la Révolution [1964], Gallimard, 1967, pp. 354-67). Para ela, ao abrir um novo espaço de ação política, os sans-culotte fundam a “tradição revolucionária’’ moderna, a dos sovietes e dos conselhos operários, alternativa possível ao sistema dos partidos.

(61) Institutions républicaines, Oeuvres choisies, p. 330 (sublinhado por nós). Contrariamente a Robespierre, para quem Justiça e Terror são no fundo idênticos, Saint-Just opõe muito claramente o caráter provisório do Terror e sua ambiguidade — ele é “uma arma de dois gumes que uns usaram para vingar o povo e outros para servir a tirania’’ — à equidade e à estabilidade da Justiça, que “torna o povo feliz e consolida a nova ordem das coisas”. Cf. seu Rapport sur les suspects incarcérés (fevereiro de 1794), ibidem, pp. 202-3. Pode-se ver aí o esboço de uma “superação’’ possível do Terror.

(62) Discours sur la Constitution à donner à la France, ibidem, p. 118. Não pensamos que o motivo da instituição, tão importante em Saint-Just, se oponha necessariamente ao da lei.

Notas

[1] Rapport sur l’exhumation des corps royaux à Saint-Denis en 1793, por d. Germain Poirier, citado por Alain Boureau, Le simple corps du roi, Éditions de Paris, 1988, pp. 80-1.

[2] Cf. o espantoso depoimento do bibliotecário Manteau, citado por Jules Mazé, “De la nécropole des rois au charnier de la Révolution’’, Écrivains Français, no 59, 1960; reedição FMR, no 25, abr. de 1990.

[3] Pensamos em particular no livro de Lucien Jaume, Le discours jacobin et la démocratie, Fayard, 1989, e no de Antoine de Baecque, Le corps de l’histoire, Calmann-Lévy, 1993. Caberia mencionar igualmente os trabalhos um pouco mais antigos de historiadores americanos como L. Hunt, D. Outram etc.

[4] Trata-se, escreve L. Jaume (num livro por sinal notável), “de uma descrição metafórica da realidade do Estado revolucionário […]. O político é estruturado também pelo discurso metafórico: trata-se de um imaginário do poder, tanto quanto, por exemplo, a trifuncionalidade na visão medieval” (op. cit., p. 384).

[5] Notemos porém que, para Husserl, “essa comunidade originária não é um nada’’, já que o caráter “irreal’’ de sua quase-carne não exclui a “penetração irreal, intencional de outrem em minha esfera primordial’’. Cf. os §§ 55-6 das Meditações cartesianas (Méditations carté siennes [1929], trad. Lévinas, Vrin, 1980, pp. 102-9).

[6] Sobre essas questões, permitimo-nos remeter a nosso estudo “Comme les paroles d’un homme ivre: chair de l’histoire et corps politique’’, publicado nos Cahiers de philosophie, no 18, 1994-5, pp. 71-102. É-nos impossível confrontar aqui nossa problemática a outras abordagens da Revolução Francesa que recorrem também à fenomenologia, como a que expõe Marc Richir em Du sublime en politique, Payot, 1991.

[7] Guy Coquille, Discours des états de France, citado por Jean-Marie Apostolidès, Le roi-machine, Minuit, 1988, p. 13.

[8] “Onde ele conseguiria tantos olhos para vos espiar, se não lhe désseis os vossos? Como ele teria tantas mãos para vos bater se não as tomasse de vós? […] Como teria algum poder sobre vós, senão por vosso intermédio?” (La Boétie, Discours de la servitude volontaire [1548], Payot, 1978, p. 115.)

[9] J. A. Cerutti, citado por A. de Baecque, op. cit., p. 124.

[10] Cf. nesse sentido Marcel Gauchet, La révolution des droits de l’homme, Gallimard, 1989, pp. 23-8. Sobre a teoria do corpo político em Sieyès, cf. as belas análises de A. de Baecque, op. cit., pp. 99-102, 122-9.

[11] Cf. Sieyès, Essai sur les privilèges e Qu’est-ce que le Tiers État? (1788), reed. puf-Quadrige, 1982, p. 4.

[12] “Imagino a lei no centro de um globo imenso; todos os cidadãos, sem exceção, estão à mesma distância na circunferência e ocupam apenas lugares iguais; todos dependem igualmente da lei.” Sieyès, op. cit., p. 88.

[13] Retomamos esse conceito de “democracia selvagem’’ da obra de Claude Lefort, com o qual ele designa a “essência’’ mesma da democracia, sua dinâmica instituinte, na medida em que excede todo regime, toda norma, toda forma política instituída, e em particular a do Estado liberal-parlamentar. Como “selvagem’’, para ele, alude ao “ser bruto ou selvagem’’, ao “espírito selvagem’’ da comunidade evocados em Le visible et l’invisible, parece-nos possível considerar a “democracia selvagem’’ como a expressão daquela carne do social de que falava Merleau-Ponty. Sobre tudo isso, cf. Miguel Abensour, “Démocratie sauvage et principe 
d’anarchie’’, Les Cahiers de Philosophie, no 18, 1994-5.

[14] Cf. Le portrait du roi, de Louis Marin, Minuit, 1981. Sobre as efígies e as cerimônias funerárias, cf. Ralph Giesey, Le roi ne meurt jamais, Flammarion, 1987, e Cérémonial et puissance souveraine. France, XVe-XVIIe siècles, A.Colin/ehess, 1987.

[15] Gravura reproduzida em Le roi décapité, de Annie Duprat, Cerf, 1992, p. 56.

[16] Para usar a expressão de Lynn Hunt ao comentar esse gênero de representações. Cf. Le roman familial de la Révolution Française, Albin Michel, 1995, pp. 67-8.

[17] Cf. o estudo já citado de A. Duprat, bem como La caricature française et la Révolution, Los Angeles, Grunwald Center, UCLA, 1989 (com uma interessante análise de L. Hunt), e Antoine de Baecque, La caricature révolutionnaire, Presses du cnrs, 1988, pp. 40-4, 173-93.

[18] Talvez ela se inscreva também numa transformação profunda, iniciada no final do século XVIII, da representação do homem em sua relação com a animalidade. Cf. Jurgis Baltrusaitis, Physiognomonie animale, in Aberrations — les perspectives dépravées I (1957), reed. Flammarion, 1995.

[19] Essas gravuras são comentadas por A. Duprat, op. cit., pp. 186-7, 155-60, 88-90.

[20] Cf. Duprat, op. cit., pp. 201-4.

[21] O projeto de David e o decreto (jamais executado) da Convenção podem ser encontrados no estudo de Judith Schlanger, “Le peuple au front gravé’’, in Les fêtes de la Révolution Française, Société des Études Robespierristes, 1977, pp. 387-95.

[22] Rapport fait au nom du Comité de Salut Public sur un mode de gouvernement provisoire et révolutionnaire (18 de novembro de 1793). Voltaremos a falar desse texto essencial.

[23] Sobre o elemento heterogêneo como “corpo estranho’’ e sua ambivalência, sobre a relação entre a soberania do rei e a abjeção, e a aplicação dessa “heterologia’’ à questão da revolução, leiam-se as páginas soberbas que lhes consagrou G. Bataille — cf. especialmente Oeuvres complètes, Gallimard, 1972, t. II, pp. 58-69, 216-32.

[24] Introdução a L’histoire de la Révolution Française (1848), reed. R. Laffont, 1988, t. I, p. 75.

[25] Billaud-Varenne, Principes régénérateurs du système social (1795), reed. Publications de la Sorbonne, 1992, p. 116.

[26] Os termos do debate foram analisados e os principais discursos dos oradores publicados no excelente livro de Michel Walzer, Régicide et Révolution (1974), Payot, 1989.

[27] Robespierre, discurso de 28 de dezembro de 1792, in Walzer, op. cit., pp. 291-314.

[28] Condorcet, discurso de 3 de dezembro de 1792, idem, ibidem, pp. 232-59.

[29] Saint-Just, discurso de 13 de novembro de 1792, idem, ibidem, pp. 202-10.

[30] Cf. idem, ibidem, p. 25, assim como as pp. 101-22.

[31] Dircurso de Fayau, deputado da Vendeia, citado por Jaurès, Histoire socialiste de la Révolution Française (1901-4), reed. Messidor-Éditions Sociales, 1986, t. V, p. 133.

[32] “Os reis têm uma religião especial; são devotos da realeza. Sua pessoa é uma hóstia, seu palácio é o sacrário.” (Michelet, Histoire de la Révolution Française, t. i, p. 467 — e cf. a obra já citada de L. Marin.)

[33] Sobre a figura do “herói republicano’’ em Saint-Just, seus “paradoxos’’ e sua ambiguidade, ver os trabalhos de Michel Abensour, especialmente “Saint-Just, les paradoxes de l’héroïsme révolutionnaire’’, Esprit, fev. de 1989; “La disposition héroïque et son aliénation’’, Tumultes, nos 2-3, 1993, e “Le héros révolutionnaire est-il un animal politique?’’, Epokhè, nov. de 1995.

[34] Saint-Just, Ouvres choisies, Gallimard, 1968, p. 79, e Walzer, op. cit., p. 207. Seria um erro portanto justificar as acusações jacobinas de “duplicidade’’ invocando (como já o fazia Michelet) a duplicidade real de Luís XVI, que conspirava com os emigrados ao mesmo tempo em que afirmava sua fidelidade à Constituição… Esse texto mostra claramente que, para Saint-Just e seus aliados, a atitude efetiva do rei não conta: que seu duplo jogo real — “os crimes de sua administração’’ — terá sido apenas um pretexto, uma ocasião para revelar sua Malignidade secreta.

[35] Desde seu primeiro discurso de 13 de novembro, e mais ainda em sua segunda intervenção, em 27 de dezembro de 1792 — cf. Walzer, op. cit., pp. 274-89.

[36] “O espírito imitativo é a marca do crime. Os contra-revolucionários de hoje, não ousando mais se mostrar, adotaram mais de uma vez as formas do patriotismo.” Rapport sur les factions de l’étranger [13 de março de 1794], in Saint-Just, op. cit., p. 213.

[37] Cf. o Discours sur la Constitution à donner à la France (abril de 1793), idem, ibidem, p. 117. A célebre fórmula “Nada se assemelha tanto à virtude como um grande crime’’ tem uma significação análoga: ela visa os girondinos detidos em 2 de junho de 1793 e os acusa de ter “seduzido as almas fracas sob o prestígio ordinário da verdade’’, idem, ibidem, p. 153.

[38] Era a posição de Kant, exposta na Religião, de 1793, e no Projeto de paz perpétua. É também a de Camus ou de Arendt.

[39] Cf. Duprat, op. cit., pp. 165-6.

[40] Rapport sur les factions de l’étranger, in Saint-Just, op. cit., p. 209. Cf. também o parecer contra os girondinos: “Os inimigos da República estão em suas entranhas; não é a audácia que precisamos vencer, mas a hipocrisia’’, idem, ibidem, p. 165.

[41] Para retomar um termo forjado por Lacan.

[42] “Luís é um estrangeiro entre nós”, idem, ibidem, p. 81, Walzer, op. cit., p. 208.

[43] Saint-Just, op. cit., p. 169.

[44] Robespierre, Sur les principes de morale qui doivent guider la Convention nationale dans l’administration interne de la République (fevereiro de 1794), Oeuvres, t. X, Société des Études Robespierristes, 1967, p. 357.

[45] Carl Schmitt atribuía a Lenin a paternidade dessa confusão desastrosa, desse deslocamento que “transportou o centro de gravidade conceitual da guerra para a política’’ fazendo “do inimigo real um inimigo absoluto’’ — cf. Théorie du partisan (1962), in La notion de politique, Flammarion, 1993, p. 302. Parece-nos mais apropriado atribuí-la aos jacobinos.

[46] Tal leitura é inteiramente possível, como mostramos no já citado “Comme les paroles d’un homme ivre”, pp. 93-6. Mas, mesmo nessa perspectiva, as consequências que Saint-Just acredita poder tirar de Rousseau nos parecem inaceitáveis.

[47] Saint-Just, op. cit., p. 265.

[48] Não compreendemos bem por que Claude Lefort, quando assinala, no discurso revolucionário, o fantasma de uma “grande amputação que devolveria a saúde ao corpo social’’, o assimila imediatamente às “racionalizações’’ que “mascaram, mais do que revelam, o fundo do Terror’’… Cf. seu estudo sobre “La Terreur révolutionnaire”, in Essais sur le politique, Seuil, 1986, p. 103.

[49] Textos analisados por Jaume, op. cit., pp. 341-7. Observe-se que  circulares dominadas por uma concepção “organicista’’ do social foram subscritas pelo conjunto dos membros do comitê, inclusive Saint-Just e Robespierre.

[50] Principes régénérateurs du système social, p. 94. Sobre esse ponto decisivo, Billaud se opõe portanto a Maquiavel e Rousseau, ao reconhecimento da finitude política, dos limites temporais de toda fundação política.

[51] Ibidem, p. 81. Cf. também, na p. 117, o seguinte texto, que demandaria longos comentários: “Uma constituição só pode ser o resultado da vontade geral […]. Donde resulta que tudo o que não está intimamente ligado à causa nacional torna-se supérfluo num Estado. É um câncer perigoso que deve ser removido. É a amputação rápida e indispensável de um membro gangrenado a fim de salvar o doente”.

[52] Ibidem, p. 76. Curiosamente, Billaud escreve isso após Termidor, numa obra destinada, em parte, a criticar os excessos do Terror robespierrista e seu caráter “interminável’’. Mas a lógica de seu discurso (a do fantasma que lhe subjaz) o leva, contra sua vontade, a justificar de novo o caráter interminável do Terror…

[53] Rapport fait au nom du Comité du Salut Public sur un mode de gouvernement provisoire et révolutionnaire, discurso de 18 de novembro de 1793, Archives parlementaires, t. LXXIX, pp. 451-7.

[54] Principes régénérateurs, p. 90.

[55] Oeuvres choisies, p. 170. Mais brutalmente, Hébert declarava em Le père Duchesne que “quem quisesse se elevar um palmo sequer acima dos outros [seria] um monstro a ser asfixiado’’…

[56] Seconds, De l’art social (abril de 1793), citado e comentado por Jaume, op. cit, pp. 349-57.

[57] Cf. Billaud-Varenne, L’acéphocratie, ou le gouvernement fédératif démontré le meilleur de tous pour un grand Empire, (1791), reed. edhis, 1977.

[58] Principes régénérateurs, p. 89. Cf. também pp. 120, 143 etc.

[59] Eléments de républicanisme (1793), reed. in Cahier du Collège International de Philosophie, no 7, Osiris, 1989, p. 22.

[60] No plano histórico, podemos nos apoiar em Daniel Guérin, Les luttes de classes sous la Première République (1946), reed. Gallimard, 1968, t. ii, pp. 72-147; e também no estudo clássico de Albert Soboul, Les sans-culottes parisiens en l’an II, Clavreuil, 1958. O objeto do conflito entre os jacobinos e as sociedades populares foi notavelmente analisado por Hannah Arendt em seu Ensaio sobre a Revolução (Essai sur la Révolution [1964], Gallimard, 1967, pp. 354-67). Para ela, ao abrir um novo espaço de ação política, os sans-culotte fundam a “tradição revolucionária’’ moderna, a dos sovietes e dos conselhos operários, alternativa possível ao sistema dos partidos.

[61] Institutions républicaines, Oeuvres choisies, p. 330 (sublinhado por nós). Contrariamente a Robespierre, para quem Justiça e Terror são no fundo idênticos, Saint-Just opõe muito claramente o caráter provisório do Terror e sua ambiguidade — ele é “uma arma de dois gumes que uns usaram para vingar o povo e outros para servir a tirania’’ — à equidade e à estabilidade da Justiça, que “torna o povo feliz e consolida a nova ordem das coisas”. Cf. seu Rapport sur les suspects incarcérés (fevereiro de 1794), ibidem, pp. 202-3. Pode-se ver aí o esboço de uma “superação’’ possível do Terror.

[62] Discours sur la Constitution à donner à la France, ibidem, p. 118. Não pensamos que o motivo da instituição, tão importante em Saint-Just, se oponha necessariamente ao da lei.

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