2013

O tempo em fluxo

por Luiz Alberto Oliveira

Resumo

Acreditamos, fundados em nosso senso comum, conhecer os atributos essenciais do Tempo: fluxo irrefreável que transporta os seres do mundo do Passado para o Futuro, base deslizante em que o Real univocamente habita, linha infinita de instantes. Há, sem dúvida, uma Imagem do Tempo bem definida no Ocidente. Contudo, as Ciências contemporâneas exibem numerosas noções ou operadores, de natureza e campo de aplicação muito diversos, denotados pelo mesmo termo “tempo” – indicando, paradoxalmente, uma incompletude em nossa apreensão costumeira desse(s) conceito(s) tão básico(s). Na verdade, para as Ciências atuais essa Imagem que empregamos em nosso quotidiano, ainda que plenamente eficaz nas atividades do dia-a-dia, não é “objetiva”, pois não corresponde a nenhum atributo fundamental da realidade natural. A célebre (e irônica) afirmação de Albert Einstein resume a posição de muitos cientistas: “Para os físicos, a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão – ainda que persistente”. Duas linhas de argumentação permitem explorar esse tema.

Primeiramente, as Teorias da Relatividade que o próprio Einstein elaborou proporcionam os meios de tratar tanto os processos físicos mais fundamentais (a Relatividade Especial) quanto os mais abrangentes (a Relatividade Geral) – mas as figuras de “tempo” que incorporam parecem de tal modo estrangeiras que torna-se lícito duvidar se nossos cérebros mamíferos teriam a capacidade de representá-las de outro modo que não por meio de conceitos abstratos, expressos por símbolos matemáticos. Para as criaturas eminentemente visuais que somos, tal impossibilidade de representação imagética é um desafio formidável, por indicar que as essências dos conteúdos do mundo se destacam definitivamente de suas aparências.

Por outro lado, a verificação, devida a Henri Poincaré, de que mesmo sistemas deterministas clássicos podem exibir comportamentos imprevisíveis foi o ponto de partida para o estudo dos chamados sistemas complexos – dotados de muitos componentes, com grande densidade de relações entre eles – e de suas dinâmicas inerentemente evolutivas. Nesses sistemas, variações globais de estrutura – ou seja, mudanças de organização – podem emergir espontaneamente a partir de processos deslineares em micro escala; tais deslocamentos autogerados das configurações (estados) da arquitetura interna do sistema não apenas correspondem à aparição de uma “flecha do tempo” dinamicamente produzida, como sugerem uma “vitalidade” própria às maté- rias (que nada tem a ver com os antigos “vitalismos”) e suas combinações.

Quando tomadas em conjunto, estas revisões, ou reformulações, ou transfigurações da noção habitual do Tempo parecem indicar uma noção desafiadora: a de que seria possível definir o ato de existir não como sucedendo no Tempo (como referente externo), mas do Tempo. Dito de outro modo: se um dos grandes feitos do pensamento foi a descoberta de que o Mundo Natural consiste fundamentalmente de uma mesma “coisa” básica, este fundamento corresponderia não a uma Substância, mas a um Processo.


A desconcertante sentença de Paul Valéry acerca de um futuro que deixou de ser o que era decerto encerra mais tensões entre seus múltiplos sentidos possíveis do que possamos talvez suspeitar à primeira vista. Sabemos o contexto histórico no qual Valéry a enunciou: a sequência de um evento devastador, a Primeira Guerra Mundial. Foi o momento em que pela primeira vez os métodos e técnicas da moderna sociedade capitalista foram aplicados com vistas a lograr um morticínio verdadeiramente industrial. Seiscentos mil mortos e feridos nos quatro dias da Batalha das Fronteiras: a dimensão do dispositivo necessário para produzir uma hecatombe de tal porte só é comparável à de grandes cataclismos naturais: a erupção do Vesúvio que sepultou Pompeia, o terremoto-tsunami que aniquilou Lisboa. Este foi, contudo, um empreendimento primordialmente humano, uma realização específica do poder criativo e técnico da cultura.

Valéry contempla essa factualidade brutal e constata que algo mudou em profundidade. Do final do século XVIII ao começo do XX havia vigorado no Ocidente a expectativa do progresso, ou seja, o entendimento generalizado de que a civilização seria dotada de uma démarche inerente, de um andamento espontâneo e irresistível, rumo à satisfação última das necessidades materiais, uma espécie de utopia burguesa que seria alcançada através não das teleologias sublimes das religiões, mas do manejo de forças produtivas concretas. Quando vê esse horizonte de realização plena se converter na barbárie suprema da guerra, Valéry, na melhor tradição humanista francesa, ergue sua voz e anuncia que, daí em diante, o futuro será outro.

Há, porém, outro sentido desse enunciado que seja talvez ainda mais perturbador: a ideia de que o próprio futuro, ou seja, o próprio tempo, pode mudar. Se o futuro não é mais o que era, isso significa que havia um futuro, e esse futuro se transformou. O futuro envelheceu? Ou rejuvenesceu?! E se o futuro pode não ser mais, então o presente e o passado igualmente não mais serão o que foram um dia. Ou seja, o que o tempo foi numa ocasião já não o será em outra; o próprio tempo pode assim se transformar. Se tomarmos esta conclusão como mais que um simples jogo de palavras, suas implicações serão de muito longo alcance.

Costumamos dizer que “o tempo passa” no sentido de que as coisas do mundo estão em constante transformação. Apreendemos a sucessão de fenômenos de que se compõe o mundo e resumimos essa experiência pela imagem de que o tempo está passando. Mas o que “passa” são os acontecimentos, e não o tempo; as coisas mudam, no âmbito do tempo – um quadro de fundo que, ele mesmo, não mudaria nunca. A observação de Valéry, porém, insinua algo de mais profundo, e temível: o próprio núcleo básico do que fosse o tempo, ele mesmo deslizaria, ele mesmo estaria em devir, o próprio tempo não seria mais. Contudo, se o tempo possui um movimento inerente, como manter a referência dos aconteceres do mundo a essa base esquiva, a esse fundamento fluido? Não seria necessário primeiramente enquadrar o movimento do próprio núcleo do tempo em relação, quem sabe, a outro tempo, um referente de segunda instância, ele sim estável? Mas abre-se de imediato a questão: não haveria também um devir desse segundo tempo em relação a um terceiro, e assim por diante?

Para obter recursos conceituais que nos auxiliem na explicitação deste nó paradoxal, devemos invocar os mestres. Recordemos então uma página de Jorge Luís Borges, magnífica como tantas, intitulada “Nova refutação do tempo”, em que depois de recorrer a Platão, Locke e Berkeley, numa argumentação extremamente sofisticada, Borges constata (ou sugere): “O tempo é a substância de que sou feito; o tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou esse rio; é um tigre que me dilacera, mas eu sou esse tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou esse fogo”. Essa ideia, a de que somos constituídos – nós, e Borges, e o mundo – não por algo que está no tempo, mas pelo próprio tempo, é tão perturbadora que precisaremos explorar cada um dos termos da equação, ou seja, definir com precisão de que se está falando quando designamos o tempo como tempo referência, e como tempo matéria-prima. Somente assim poderemos conceber o que seria o existir, com base não na firmeza da substância clássica, mas em trânsito, deslizar contínuo, fogo.

Para tentar esclarecer o problema que Valéry nos indica, através do problema proposto por Borges, vamos empreender duas linhas conexas de investigação, a primeira envolvendo certas noções relativas ao conceito de tempo propriamente dito, a segunda examinando a questão do que é a própria substância. Parece indiscutível que a humanidade hoje, praticamente sem exceções, compartilha uma Imagem do Tempo bem definida, ou seja, nós humanos, em vastíssima maioria, entendemos, e acreditamos, e praticamos, a Imagem de que o tempo é como uma espécie de estrada sobre a qual se desloca, sempre em ritmo uniforme, uma nave, ou veículo, chamado “agora” ou “presente”. Esse veículo se move de modo uniforme, sempre orientado na mesma direção; não acelera nem freia, e em especial não para e retorna. E o que chamamos de Real, ou seja, o conjunto dos fatos, de tudo aquilo que acontece, viaja embarcado nessa nave. Eis, de modo resumido, a figura do Presente Móvel; e dizemos, como o poeta nos diz, que “o tempo não para”, ou seja, o tempo passa, pois com facilidade concebemos a associação dos acontecimentos a diferentes marcos, ou ocasiões, assinalados ao longo dessa estrada. Aos locais ou marcos que a nave do Presente já ultrapassou chamamos de Passado, aos locais que a nave não alcançou ainda chamamos de Futuro. Um aspecto particularmente significativo dessa Imagem é o de que o tempo já está consolidado, ou seja, a estrada já está lá, já está dada. Tudo que fazemos é percorrê-la, embarcados na nave perpetuamente deslizante do Presente, recuperando pela memória os marcos já vencidos, antecipando pela imaginação os marcos ainda por vir. Embora engendrada ao longo de séculos, essa Imagem tornou-se tão generalizada que, de modo comparável ao de uma ideologia, passou a naturalizar-se. Inicialmente no Ocidente moderno, e hoje em todo o globo, tomamos essa concepção como se fosse espontaneamente dada na natureza; como se, desde sempre, o tempo tivesse uma única modalidade. A Imagem do presente móvel (ou Imagem Cronal) está hoje tão próxima de nós que adquiriu a invisibilidade das coisas demasiado íntimas; e assim não nos damos conta do caráter verdadeiramente assombroso de que ela de fato se reveste. Por exemplo, de um ponto de vista prático, vivencial, o momento presente tem como limiar um piscar de olhos: uma piscadela e o presente já passou. Do ponto de vista conceitua!, porém, o presente corresponde em última instância a um instante, isto é, a um ponto infinitesimal de tempo, uma unidade de tempo de extensão nula. A estrada do tempo se converte na figura ainda mais abstrata de uma linha, e o marcador do agora viajaria sobre essa linha, passando de instante a instante, de ponto a ponto. Mas isso significa que, no limite, todo o real habita um infinitésimo de tempo de cada vez; ou seja, todos os corpos, quem sabe inumeráveis, que se distribuem por todo o espaço, quem sabe infinito, cabem em um ponto. Esta é sem dúvida uma noção espantosa! Contudo, estamos tão familiarizados com ela, tão acostumados a irrefletidamente exercê-la, que a tratamos como perfeitamente natural. No entanto, se for examinada mais detidamente, verificaremos que, tanto para as culturas antigas quanto para aquelas ditas “primitivas”, tal Imagem Cronal de nenhum modo é prevalente. Por exemplo, os índios navajos norte-americanos denominam de “agora” ou “presente” o período que transcorre entre dois ciclos da Lua, correspondente a 28 dias. Tudo o que suceder durante uma lunação será para eles, de certo modo, simultâneo, ou, mais precisamente, contemporâneo. Desnecessário ressaltar que essa noção de um presente “extenso” difere por completo da ideia de uma unidade temporal básica colapsada em um infinitésimo. Mesmo uma investigação breve pelo repertório das diversas culturas humanas basta para comprovar que a Imagem Cronal de maneira alguma é “natural”. Concluiremos, pelo contrário, que ela é de fato uma construção histórica, um dispositivo extremamente sofisticado que emergiu no contexto de uma cultura específica. Esta consideração abre caminho para duas consequências importantes: em primeiro lugar, as Ciências contemporâneas não mais reconhecem a Imagem Cronal como única – na verdade, nem mesmo a reconhecem como vigorando em qualquer domínio do mundo natural! Dito de outra maneira: não encontramos e recolhemos a Cronalidade a partir do plano dos fenômenos; nós a projetamos sobre o mundo. Essa Imagem é um artefato, um dispositivo historicamente produzido e que aplicamos ao mundo, que assim passa a ser concebido e experimentado segundo os quadros e parâmetros resultantes desta operação, e não um “naturato”.

E, em segundo lugar, há uma série de outros tipos de temporalidade que, esses sim, as Ciências contemporâneas admitem de fato ocorrer numa variedade de sistemas naturais. Estas outras variedades não cronais de temporalidade compartilham certas características com a Imagem predominante, mas não todas; e são postas em cena por explorações de diferentes domínios de saber – Biologia, Ecologia, Química, Física, Cosmologia. Em resumo, a Imagem do Tempo que praticamos objetiva e subjetivamente, que vivenciamos de modo tão íntimo e profundo, não é natural. Tem o estatuto de um aparelho de regulação, com o qual realizamos nossas existências, mas não é um fenômeno do mundo; não é da ordem dos granitos, e sim das locomotivas. Em consequência, para as Ciências contemporâneas o termo “tempo” adquire uma espécie de equivocidade, pois passa a designar diversas noções distintas de temporalidade, cada qual associada a um dado domínio do mundo natural. Nossa primeira questão será exatamente a de definir de que “tempo” afinal falaremos.

Um bom ponto de partida será considerarmos a origem do sistema de pensamento chamado Ocidente. Inúmeros pontos de vista podem ser adotados para abordar essa origem (inclusive o de aboli-la); tratemos por nossa parte de examinar a ocasião em que Platão recomendou que fosse feito um corte desigual. Os pitagóricos, aos quais, neste tema, se filia Platão, predicavam a noção de que o mundo é regulado a partir de relações de proporcionalidade entre certos termos ou valores. Para eles, o mundo é um campo de tensões, distribuídas por certos eixos de polaridade (como leve/ pesado, claro/ escuro, macho/ fêmea, doce/ salgado, dentre outros), e a boa ordem do mundo decorre da harmonização, segundo regras de proporcionalidade (ou “razões”), das intensidades respectivas desses termos. Tal como as cordas da lira, quando tensionadas segundo certa razão harmônica, produzem uma nova unidade combinada – o acorde – a partir das identidades distintas de cada nota, assim também os seres do mundo se encontrariam submetidos a um princípio organizador global, manifesto em regras quantitativas, isto é, numéricas. Desse modo, uma unidade profunda abrangeria e governaria a multiplicidade dos seres e de suas propriedades.

Em vista das consequências que esta apreensão filosófica primeira, ou primordial – a intuição de que todas as coisas se estruturam segundo uma ordem matemática, ou seja, que a Natureza é regulada por relações de proporção expressas por razões numéricas -, virá a ter, Bertrand Russell não hesita em indicar Pitágoras como o mais influente pensador da história da Humanidade. Concordemos ou não com essa assertiva, o aspecto que irá nos interessar de perto é a adaptação que certo pitagórico, Platão, fará desse princípio de organização. Seu ponto de partida é a observação de que, se tomarmos um comprimento qualquer e o dividirmos simetricamente em partes iguais, teremos um problema. Pois a razão entre as partes será um – como as partes são iguais, a razão entre elas é evidentemente um. Mas a razão entre o todo e cada uma das partes será meio (0,5), porque o todo, o comprimento original, é o dobro de cada parte. Haveria outra divisão, outro corte, que resultasse em uma continuidade dessas razões? Um corte, desigual, por certo, mas pelo qual a razão entre o todo e uma das partes fosse a mesma que a razão das partes entre si? Esse resultado será chamado de “razão de ouro”, ou “seção áurea”, uma regra de proporção desigual, mas que seria a chave pela qual todos os seres do mundo poderiam harmonicamente se encadear. E é assim que, aos que buscam o segredo da ordem oculta do mundo, Platão proporá realizar um novo corte, um corte oblíquo.

Nas antigas legendas épicas, Homero havia separado o tempo dos mortais e o tempo dos imortais, e os afazeres e vicissitudes humanos eram compreendidos a partir da subordinação do plano dos mortais ao dos deuses. Platão, porém, sugere tomar a mesma matéria-prima, os mesmos acontecimentos, e operar uma divisão desigual, separando o mundo nos campos do sensível e do inteligível. Com efeito, em Homero encontramos a descrição de duas temporalidades distintas, a dos homens e a dos deuses. A característica definidora do tempo dos homens é a sucessão, pois nascemos, vivemos e morremos; os indivíduos, os povos, as dinastias vêm à vida e desaparecem, tal como as estações se sucedem. O tempo da mortalidade é assim o da consecutividade. A imagem mítica para essa visão do tempo é Cronos, o deus arcaico que devora os próprios filhos, como se, ao criar os seres, o tempo também obrigatoriamente viesse a desfazê-los. O tempo dos imortais, porém, é algo muito diferente. Os mitos antigos mencionam a imagem de uma imensa planície, sem bordas definidas, tão vasta que, por mais que fosse percorrida, jamais se chegaria a seu horizonte, ou seja, por mais que caminhasse, o viajante estaria sempre no mesmo lugar. Eis assim a imagem de Âion, uma espécie de presente perpétuo, um presente tão extenso que nunca se tornaria em passado e em futuro.

Ilíada nos demonstra como essas duas temporalidades tão distintas, Âion e Cronos, se associam. Um dos momentos decisivos da Ilíada é talvez o ataque ao acampamento grego, em que Pátroclo, o primo do campeão grego Aquiles, sucumbe às mãos do príncipe troiano Heitor. Aquiles busca a vingança, e os dois heróis estão a ponto de se enfrentar. Nessa ocasião, Zeus, soberano do Olimpo, convoca uma assembleia dos deuses. Os deuses se achavam divididos entre os apoiadores dos gregos e os dos troianos. Homero nos revela que, na verdade, o conflito do plano humano, os feitos e as glórias, os gritos pungentes e as feridas sanguinolentas, não passavam de efeitos, manifestações, do conflito que ocorria no plano divino. Então, Homero nos descreve, após convocar essa assembleia, Zeus toma de uma balança, coloca em um dos pratos o valor de Aquiles e no outro o de Heitor, ou seja, de gregos e troianos. Procede então à pesagem, e a balança, como já estava predeterminado pelas Parcas, que fiam, tecem e cortam os fios do destino, determinando a extensão de cada existência, num decreto que nem mesmo os próprios deuses podem alterar, então, como já estava determinado desde sempre, a balança pesa contra Heitor. Zeus proíbe os deuses que favoreciam os troianos de intervir, e dá ação livre aos partidários dos gregos; inexoravelmente, haverá de chegar a destruição de Troia, a magnifica.

Homero nos narra essa sequência de acontecimentos em termos do tempo humano, isto é, na forma da sucessão: primeiro Zeus convoca a assembleia, depois faz a pesagem, enfim decreta a ruína de Heitor. Esses três momentos consecutivos são o modo pelo qual Homero, ou seja, a linguagem, pode representar aquilo que para os deuses, no tempo divino, se daria integralmente, de uma só vez, como um único bloco, como algo que já teria sido, era e sempre seria. Essa oposição, e composição, entre o tempo profano da sucessividade e o tempo sagrado da permanência é a base sobre a qual os gregos antigos vão estabelecer suas concepções e explicações do mundo: os fados das pessoas e dos povos são como são porque os deuses se vinculam com o mundo humano e interferem diretamente sobre as vidas. Ao narrar a interpenetração dos planos – e dos tempos – divino e humano, Homero nos esclarece o princípio da cosmovisão mítica pela qual dotará de sentido a crueza rude dos fatos: a presença do divino no profano engendra uma sacralização, que recebe forma e continuidade pela voz do poeta. Esta fonte é sagrada porque uma vez a deusa Ártemis aqui se banhou, este bosque é sagrado porque uma vez Zeus aqui se deitou com as ninfas – assim registram as legendas que os rapsodos recitam nas cidades. É através da repetição de narrativas que o vínculo entre o divino e o humano se faz manifesto; os heróis, predica Homero, tombam nas batalhas para que seus nomes e feitos sejam eternizados no canto dos poetas.

Ora, Platão toma essa herança mítica, esse vínculo sagrado que manifesta a subordinação dos acontecimentos humanos a outro plano de existência, e propõe subvertê-la através daquele corte oblíquo. Trata-se agora não mais de separar e contrastar os planos mortal e imortal, a sucessividade efêmera dos humanos e a presença perpétua dos deuses, e sim de operar outra divisão: ainda que só possamos apreender os fatos que vivemos através dos sentidos – e assim tudo o que ocorre no mundo é para nós da ordem do sensível -, tanto a natureza dos seres quanto a razão dos acontecimentos residem fora, irremediavelmente além, do campo da sensibilidade. Como em Homero, as vicissitudes dos homens são reflexos, consequências, de determinações e desígnios que lhes são exteriores; haveria, igualmente, outro domínio a partir do qual todo o sensível receberia sua razão de ser. Mas para Platão esse domínio não é mais o de entes divinos. A imagem que passa a esboçar é de fato radical, pois sua inspiração são os objetos matemáticos.
Examinemos os triângulos, todos os triângulos que se possam conceber ou desenhar, todos os triângulos do mundo: verificamos que invariavelmente exibem certas relações constitutivas entre seus componentes. A soma dos ângulos internos de qualquer triângulo mede dois radianos, ou 180 graus. Em qualquer triângulo retângulo vigora certa relação entre os quadrados construídos com o lado maior e os lados menores. Há relações entre as partes que são permanentes, ou seja, que de nenhuma maneira podem estar ausentes se aquele objeto é o encontro de três linhas. No entanto, nós de fato encontramos somente alguns triângulos. Tudo o que a sensibilidade, e mesmo a imaginação associada às coisas sensíveis, pode realmente nos oferecer é certo número de triângulos. Podemos supor que as regras que comprovamos valem para muitos triângulos, os que desenhamos até hoje, os que alguém desenhou no passado, até os que serão desenhados no futuro. Podemos sem dúvida passar de alguns, que é o que os sentidos de fato nos mostram, para muitos, muitíssimos. Mas há um salto absoluto, uma lacuna intransponível, entre o “muitos” e o “todos”. “Todo triângulo”, ou seja, todos os triângulos, é algo que jamais poderá ser experimentado. Uma propriedade universal, uma relação que seja válida em qualquer momento e em qualquer local, não é decidida­ mente da ordem dos fatos sensíveis.

Mas se assim é, diz Platão, então os triângulos têm a sua natureza definida a partir de um domínio extrassensível, em que habitam objetos que só podem ser experimentados enquanto puras ideias ou imagens – como as regras da triangularidade. A distinção é evidente: todo triângulo tem três lados, cada qual com certo comprimento, que em conjunto demarcam certa área -, mas a triangularidade, o princípio que os define, não tem lado algum, nem mede nenhum comprimento, nem se estende por nenhuma área. Trata-se de um objeto de natureza inteiramente conceitual, ou seja, não pode ser definido ou elaborado em termos da experiência sensível, mas somente a partir da atividade do intelecto. Tais princípios ordenadores são inteiramente exteriores e indiferentes às formas que organizam: qualquer que seja o comprimento original dado, a divisão desigual segundo a regra áurea fará surgir uma proporção harmoniosa. E então Platão nos propõe uma tese de audácia e amplitude quase ilimitadas: do mesmo modo que qualquer triângulo que desenhemos, isto é, que tornemos manifesto no plano sensível, está necessariamente subordinado ao princípio universal da triangularidade, assim também quaisquer outros seres sensíveis, bem como suas qualidades, relações mútuas e eventos de que participam, estariam igualmente submetidos a princípios abstratos, ou seja, extrassensíveis. Minhocas são minhocas por realizarem as regras da “minhoquidade”. Pelo mesmo argumento, atos honrados são honrados por manifestarem os princípios da honra. A universalidade dos objetos matemáticos é assim estendida a uma vasta classe de princípios definidores em que todos os seres se modelariam para realizar-se. Estes princípios não são alcançáveis pela sensibilidade, mas tão somente pelo entendimento, ou seja, são entidades exclusivamente intelectuais, ou inteligíveis. Platão institui assim os objetos matemáticos como modelo para os modelos dos seres sensíveis, seus atributos e vicissitudes. O mundo humano não está mais submetido aos caprichos das divindades imortais, mas sim ao rigor impassível dos modelos inteligíveis.
Ora, a temporalidade dos objetos matemáticos é ainda mais abstrusa, de nosso ponto de vista humano, que a temporalidade dos deuses. Nossas vidas são breves, demasiado breves; já os deuses subsistem por uma duração indefinida, quiçá perpétua; mas os objetos matemáticos se evadem de toda noção de duração, curta ou longa, de toda história; são, nesse sentido, rigorosamente atemporais. Quando Pitágoras demonstra seu célebre teorema, de nenhuma maneira isso significa que o teorema não existia até então e, súbito, passou a existir; pelo contrário, é como se Pitágoras tivesse conseguido formular, exprimir, algo que sempre esteve, sempre tinha estado e sempre estaria ali, algo ainda mais duradouro do que a própria imortalidade, algo mais distante ainda, mais abstrato ainda. Os próprios deuses, para adentrar o mundo, e nele fazer suas marcas, precisavam de narrativas. A reiteração dos mitos fixava no mundo suas presenças, para que seu presente divino se incluísse nos presentes humanos era preciso palavras que indicassem: esta árvore é sagrada, esta fonte, este templo.

Os objetos matemáticos, contudo, prescindem de toda narrativa para se constituirem. Seus atributos não são definidos por sua história, pelo canto de sua gênese. Não é o dom do poeta de fazer reverberar as palavras, de convertê-las de sopros efêmeros em memórias duráveis, que distingue e esclarece suas naturezas. Operam, isto sim, sob o regime do axioma, do enunciado que se sustenta por si mesmo e do princípio da demonstração, ou seja, a exigência de que cada etapa da argumentação possa ser rebatida sobre a etapa anterior de modo consistente, e que por­ tanto toda a cadeia de raciocínios seja inteiramente transparente. Este requisito garante que o teor de verossimilhança porventura presente no primeiro termo da cadeia seja transportado, sem perda ou desvio, até o último. O que houver de verdadeiro na premissa inicial será transmitido integralmente para a conclusão final. Trata-se de fato de um procedimento radicalmente distinto, quase que inverso, ao dos mitos: antes, a palavra potente do poeta dotava aquilo que era apenas um ente, uma árvore, uma rocha, de um caráter que não possuía – um indício do sagrado. Mas, doravante, é abolida a função da palavra de repartir e associar o sagrado e o profano, e sobre os discursos passam a reinar as regras da consistência e da transparência. Abandonam-se os fundamentos divinos, as origens míticas; entronizam-se os princípios lógicos, as estruturas axiomáticas. O jogo agora será muito diferente.

A movimentação titânica que Platão empreende visa assim estabelecer um novo nexo, um novo vínculo regente, para organizar o tempo dos homens. O tempo das coisas sensíveis, que nascem, crescem e perecem, será mais uma vez governado de outra instância, porém agora ainda mais radicalmente estrangeira – não uma temporalidade mais dilatada, não um presente mais extenso, mas um domínio de objetos sem origens, sem percursos, sem histórias. Uma eternidade tal, uma plenitude perpétua tal, que nem mesmo o Âion divino logra lhe fornecer uma imagem adequada. O resultado será uma nova vinculação, uma nova distribuição entre os planos: não mais os mortais subordinados aos imortais, mas os sensíveis aos inteligíveis, os particulares aos universais, os transitórios aos eternos. Essa separação inaugural, instauradora, entre os planos sensível e inteligível servirá de fundamento para Platão proceder à análise de um antigo, muito antigo, problema (e promover, em consequência, a elaboração de uma cosmovisão singularmente original). Eis aqui as coisas do mundo, submetidas a uma transformação constante, sempre nascendo, crescendo e morrendo, sem cessar. No entanto, sem dificuldade colecionamos uma série de regularidades, certos conjuntos de distinções associadas que se repetem constantemente: as macieiras dão maçãs, as pereiras dão peras. Como então, no seio disso que não cessa de se transformar, ocorrem essas permanências, esses blocos repetidos de unidade? Essa constatação perturbadora foi o ponto de partida das primeiras cogitações “filosóficas” dos gregos, mas Platão adota uma nova estratégia para elidir a dureza do paradoxo. Para ele, esses blocos de constância nos conduzirão paulatinamente a considerar permanências que não sejam parciais, mas absolutas. Isto é, encontramos no mundo variedades de coisas, e coletando e comparando as regularidades que exibem acabamos por verificar que diferentes grupamentos de coisas possuem em comum certos atributos. Maçãs são vermelhas, limões são ácidos, e esses atributos comuns são inseparáveis, constitutivos mesmo, da apreensão dessas coisas. A diversidade individual dos membros no interior de cada grupo ou classe não encobre ou dispensa o fato de que, mercê de suas unanimidades, formam grupos e classes. Trata-se então de, nos encontros com o mundo, privilegiar o exame dos fatores em comum, descartando as diferenças meramente individualizadoras. Desse modo, pode-se passar da multiplicidade irredutível dos indivíduos em si mesmos, sempre vários, sempre variantes, para a estabilidade das generalidades. Estes conjuntos de atributos gerais, repetidos coletivamente por classes e classes de diferentes indivíduos, nos levam a intuir atributos universais, indiferentes à variedade de coisas e de suas particularidades, sempre constantes, sempre idênticos – e, tal como a natureza dos triângulos decorre de sua submissão à forma abstrata da triangularidade, será também na articulação entre esses conjuntos de atributos universais, ou essências, que repousará a harmonia profunda que ocultamente governa os acidentados transcursos das coisas no mundo.

Ao repartir as coisas sensíveis e suas essências inteligíveis, Platão estabelece como fundamental uma relação de mímese. O mundo sensível é agora o plano das cópias, das imitações dos modelos inteligíveis; ademais, essas cópias são necessariamente imperfeitas, porque sempre são particulares, meros reflexos parciais da unidade essencial; e transitórias, sempre estão em movimento, sempre sendo e deixando de ser. Em contraste, tal como no reino das Matemáticas, no plano dos modelos vigora a mais rigorosa e absoluta imutabilidade. Quando Platão afirma a subordinação das cópias aos modelos, está em paralelo indicando a referência que, na produção de conhecimento, o pensamento deve buscar: sob o trânsito infindável das multiplicidades em incessante variação, há algo que, não obstante, perdura; e é este núcleo de permanência que interessa pensar. Com isso, Platão e, em seguida, Aristóteles procederão à segunda, e indispensável, etapa do corte oblíquo: dentro do próprio campo do sensível, separar os caracteres que apontam para a permanência e a estabilidade profundas, reminiscentes da unidade do modelo, e os caracteres que encarnam o irredutivelmente mutável e diverso. A isto que permanece chamaremos de substância; àquilo que transita chamaremos de acidente. Uma é a base da generalidade, isto é, daquilo que é constante e comum; o outro veicula a diferença, ou seja, o que é singular e inclassificável. Com esse legado de distinção entre permanência e variância, Platão e Aristóteles balizarão o território do pensamento racional, quer dizer, do pensamento propriamente filosófico. Aquilo que vale pensar, aquilo que é preciso pensar, é a permanência. É a partir da permanência que se derivará o que é comum a vários, e proceder a generalizações, e delas abstrair princípios universais, e então estabelecer as verdadeiras razões, ou seja, as precisas proporções dos seres do mundo. E embora o plano dos acontecimentos envolva tanto a estabilidade quanto a mudança, tanto a repetição quanto o desvio, o deslizante e mutante não serve ao conhecimento: ou nos defrontaremos com o impensável, ou nos enredaremos com a ilusão. Em suma, com essa repartição redobrada, sensível/inteligível, essência/ acidente, Platão nos afirma que o objeto do pensamento, a substância, é algo que dura. Começamos então a compreender o paradoxo em que Borges nos lançou ao propor que “o tempo é a substância de que sou feito”: esta sentença exprime algo como “sou feito daquilo que transita”; ou, de outro modo, “o que dura em mim é o que flui”. Este paradoxo é, no entanto, o indício pelo qual devemos orientar o esclarecimento do problema do existir: de algum modo, ser consistiria nesse durar que, no entanto, é um mover-se.

Para prosseguirmos na exploração desta questão tão árdua, convém seguirmos uma segunda linha de argumentação. Afirmamos anteriormente que seria possível constatar, na atualidade, a vigência em escala global de certa Imagem do Tempo, cuja característica mais decisiva seria a noção de um presente móvel, colapsado em um instante infinitesimal, que se deslocaria sem cessar. Afirmamos ainda que, para as Ciências contemporâneas, esta figura de temporalidade – que denominamos de Tempo Cronal – seria um artefato, isto é, uma construção cultural que não é encontrada em nenhum domínio natural, e sim projetada sobre os acontecimentos, para organizá-los de certo modo. E, finalmente, adiantamos que há outras figuras de temporalidade, que compartilham certos aspectos com a Cronalidade, mas não todos, e que de fato podem ser identificadas em diferentes campos de fenômenos. Estas temporalidades heterogêneas podem ser apresentadas, ainda que de modo meramente esquemático, através de uma espécie de arranjo hierárquico. Imaginemos uma estrutura piramidal. No topo, situemos a Imagem do Tempo hoje vigente em nosso cotidiano, isto é, o Tempo Cronal que praticamos desde a difusão planetária dos relógios mecânicos, um sofisticado objeto técnico que, a partir de nossa subjetividade, colocamos em operação sobre o mundo, e que, como todo artefato cultural, requer a linguagem para sua efetiva implementação. Ora, quais são os atributos mais marcantes do Tempo Cronal? Um breve inventário de suas características certamente envolveria a noção de três dimensões, passado, presente e futuro; em particular, o presente é móvel, o que significa que o passado é composto de presentes antigos, e o futuro, de presentes inéditos. O movimento do presente é sempre uniforme, não acelera, nem freia, nem se inverte; assim, é orientado, ou direcional. Toda a realidade cabe inteira de uma vez em cada momento ou, o que dá no mesmo, esse tempo é tanto único quanto universal. Tudo que acontece, acontece sempre com referência a um mesmo tempo. Não há diferentes tempos, ou seja, diferentes linhas temporais de referência. Admitamos que essas categorias são válidas e necessárias para a definição da Cronalidade. A questão então é: o que sucede quando progressivamente as retiramos? Podemos associar as figuras de temporalidade assim obtidas com algum domínio do mundo natural?

A resposta, segundo as Ciências contemporâneas, é enfaticamente positiva. Consideremos, como um primeiro exemplo, os organismos vivos. Evidentemente, a Vida é uma noção extremamente complexa, pois diferentes aspectos do problema do tempo estarão necessariamente envolvidos – para começar, pelo fato de que a Vida pode ser entendida como um tipo de sistema material organizado que realiza o prodígio de colocar em contato as durações microscópicas, os períodos de frações de segundo dos processos químicos e bioquímicos que ocorrem no interior das células vivas, com as vastas durações das transformações ambientais, os milhares de anos dos ciclos do clima, os milhões de anos das transformações geológicas, as centenas de milhões de anos das transformações astrofísicas. Tanto do ponto de vista da composição básica (os compostos orgânicos e, em última instância, os elementos da Tabela Periódica) como da regra de transformação (a Evolução por Seleção Natural), a Vida só pode ser compreendida a partir da conjunção que genes, organismos, espécies e ecossistemas realizam entre essas durações de escalas muito diferentes. Todavia, para o que nos importa aqui, vamos nos concentrar na unidade estrutural e funcional básica dos seres vivos: a célula.

Toda célula viva exibe uma invenção decisiva: a membrana. Trata-se de um envoltório, feito de gordura insolúvel, ou seja, que não se dissolve na água, que separa uma porção de fluido rico em moléculas orgânicas – antigamente chamado de “protoplasma” – do ambiente. Todas as membranas são similares, mas as células de diferentes organismos encerram variados componentes, ordenados numa arquitetura diversa de acordo com a espécie. Uma vez que a membrana é a separação física entre o organismo e o meio, tendemos a encará-la como um operador espacial, ou antes, topológico, que permite a dissociação entre as matérias que se encontram dentro do vivo e fora dele. Ora, dentro do vivo se encontra um manual de instruções, escrito na linguagem bioquímica do DNA, onde estão codificados os procedimentos para a construção dos equipamentos requeridos para a reimpressão desse manual. Isto é, um sistema cuja atuação dobra-se sobre ele mesmo; um loop lógico em que um conjunto de instruções é empregado para instaurar e regular um processo de fabricação cujo objetivo é a repetição do conjunto de instruções. Esse manual de instruções chama-se genoma, e a reprodução do organismo, do ponto de vista do genoma, não é senão a montagem do parque gráfico destinado a reimprimir um novo volume, uma nova cópia do texto bioquímico que especifica a constituição de cada exemplar de cada espécie. Richard Dawkins observa, não sem ironia, que embora costumemos nos referir a “nossos” genes, ou aos do C. elegans, talvez com melhor razão devêssemos, os organismos, nos dirigir aos genomas com mais humildade…

Afortunadamente, o pergaminho bioquímico em que os genomas são escritos é frágil. Ou seja, as ligações químicas entre as “letras” do texto em DNA são fáceis de fazer e de desfazer, sendo ambas as operações indispensáveis durante o processo de reprodução. Isto quer dizer que é fácil errar quando das sucessivas reimpressões – uma linha trocada, uma palavra faltando, uma página repetida… Graças à fragilidade do suporte desoxirribonucleico da escritura, surgem novas versões, modificadas, do manual; se a alteração não for drástica a ponto de impedir o processo de replicação, daí em diante haverá duas edições diferentes do texto em circulação. Entendemos então que a Vida é capaz não só de repetir formas antigas, mas também de engendrar novas; trata-se, de fato, de um sistema autonomizado de diferenciação que multiplica aceleradamente o número e a variedade dos modos de organização dos sistemas físicos de base.

O que é decisivo para nossa discussão, porém, é o entendimento de que a membrana separa, mas também une. Se a membrana fosse intransponível, o ser vivo inevitavelmente degeneraria, pois se envenenaria de desordem, de acordo com o Segundo Princípio da Termodinâmica (“qualquer sistema material fechado tende à homogeneidade, isto é, à desorganização”). É a transparência, ainda que seletiva, da membrana que permite que fluxos de matérias e atividade oriundos do meio exterior continuamente adentrem o organismo, participem dos ciclos energéticos que realizam o metabolismo da célula, e eventualmente sejam devolvidos ao exterior, sempre mantendo, enquanto isso for possível, uma unidade global que identificamos ao próprio organismo. Quando a coordenação sinfônica desses ciclos se rompe, o indivíduo desaparece, e seus componentes se difundem mais uma vez no ambiente. Um exemplo esclarecedor: aproximadamente a cada sete anos, cada um de nós, Homo sapiens, trocamos todos os átomos do nosso corpo. Isso significa que a cada sete anos somos materialmente outros, inteiramente distintos, em nível atômico, do que éramos. Como se houvesse um edifício, uma catedral, digamos, e periodicamente todos os seus tijolos fossem trocados, e ainda assim, e sempre, ela continuaria uma catedral – com a diferença de que uma célula típica tem o mesmo número de componentes de um jato transcontinental de grande porte, condensados em umas poucas frações de milímetro! Mal podemos discernir o prodigioso concerto dos processos de substituição contínua de componentes moleculares que, não obstante, mantém razoavelmente inalterada – algumas rugas a mais, alguns cabelos a menos – a integridade do conjunto.

Eis então uma célula viva, demarcada por sua membrana, e dentro dela está o núcleo, em que habita o genoma. Assim, no interior do ser vivo reside seu passado; ali se encontram os princípios, as plantas e os organogramas que dirigirão o processo de elaboração desse indivíduo. Dentro do vivo, o passado. Fora do vivo, no exterior da membrana, distribuem-se elementos com que o vivo ainda irá se encontrar: em alguns casos serão nutrientes, que ele assimilará e que vão mantê-lo, em outros casos serão venenos, que em última instância acabarão por decompô-lo, isto é, por desfazer a unidade coletiva que chamamos de indivíduo, restando apenas blocos estruturais menores. Fora do vivo, o futuro.

Portanto, ao realizar as operações topológicas de separar e de unir o dentro e o fora do vivo, a membrana cumpre também, e inseparavelmente, uma função temporal: conectar o dentro do vivo, o passado, com o fora do vivo, o futuro. Podemos assim imaginar que a membrana atua como um presente, uma dimensão entre o passado e o futuro, mas aqui não se trata de um presente móvel, que viaja numa estrada já dada, e sim do território ou instância em que tem lugar um nó, um dobramento, em que o passado e o futuro se enlaçam. Ao conectar o passado e o futuro do vivo, a membrana eventualmente permite que o futuro, os encontros que o vivo terá, altere o passado, ou seja, que substâncias assimiladas a partir do meio modifiquem o DNA que carrega consigo de tal maneira que, ao se reproduzir, a cópia resultante seja diferente. Ao vincular passado e futuro, o presente imóvel encarnado na membrana dá lugar a uma dupla orientação, pois agora o futuro pode agir e alterar o passado. Portanto, dentro dos nossos próprios corpos vivos não vigora a imagem do presente móvel. Na célula, o componente estrutural básico da Vida, encontramos as três dimensões do tempo, mas o presente do vivo não se move; ele enlaça.

Para enfocarmos a seguir um nível mais abaixo de nossa hierarquia, tomemos por objeto as trocas de atividade de qualquer tipo, que descreveremos como trocas de energia. Energia pode ser definida como a capacidade (que pode estar sendo exercida ou não) de realizar uma ação física – de mudar o estado de movimento ou o regime de atividade de dado sistema material. Todas as ações físicas podem assim ser expressas em termos de mudanças de atividade, medidas pelas variações da grandeza energia. Ora, examinamos os mais variados sistemas físicos e nos deparamos com uma regularidade evidente: se pomos em contato dois corpos, um frio e outro quente, a experiência invariavelmente nos demonstra que logo estarão ambos mornos. Por outro lado, nunca testemunhamos a ocorrência do processo inverso – dois corpos em equilíbrio térmico espontaneamente diferençarem suas temperaturas. Parece haver um princípio geral (de fato, o mais geral que conhecemos) governando esta assimetria dos processos térmicos. Podemos então exprimir o caráter unidirecional dessa transformação associando-a a um Antes e um Depois, que distinguiremos simplesmente observando que antes há diferença (um corpo quente/ um corpo frio) e depois não há (ambos igualmente mornos). Esta é a chamada Flecha Termodinâmica do Tempo. Muito haveria a dizer acerca desse conceito (inclusive, a aparente violação do princípio executada pelos seres vivos), todavia, para o que nos interessa aqui, basta observar que a distinção passado-futuro imposta pela Flecha Termodinâmica não requer uma dimensão intermediária – não precisamos definir um presente; basta o antes e o depois. Obviamente, se quisermos podemos associar o processo de variação térmica a um relógio externo, e dizer que havia diferença quente/frio ao meio-dia, e o equilíbrio foi alcançado à uma da tarde. Do nosso ponto de vista, o relógio continua­ mente indicou uma série de momentos consecutivos entre os estados inicial e final – mas para o desenrolar do processo, para a transformação do sistema, essa cadência externa é inteiramente irrelevante! Para as leis da Termodinâmica, tudo o que importa é que havia certa configuração, ou seja, uma distribuição dos componentes e certo regime de atividade, e passa a existir outra, com outra distribuição e regime: antes e depois, passado e futuro, flecha orientada; mas sem presente. Portanto, quando investigamos o dinamismo básico dos sistemas materiais, o que encontramos é um tempo que não tem presente.

Se considerarmos um nível ainda mais fundamental da hierarquia de temporalidades, nos depararemos com os processos mecânicos: corpos se chocando, maçãs caindo, astros orbitando. Examinando as leis da Mecânica que nos foram legadas por gigantes como Newton, Laplace, Hamilton e Poincaré, descobrimos com consternação que estas leis, que descrevem processos tão fundamentais quanto o simples mover-se de um corpo, não distinguem nem mesmo o Antes do Depois. Dito de outra maneira: os sistemas mecânicos são essencialmente reversíveis, e assim as mesmas leis são usadas para prever configurações futuras e passadas, em que a Lua estará mês que vem onde esteve mês passado. Só o que importa é o período entre as configurações, o prazo de um mês; a direção em que contamos este período é irrelevante.

Outras noções de tempo ainda mais intrigantes surgem quando consideramos processos em que há deslocamentos muito rápidos, com velocidades próximas à velocidade da luz. Fenômenos envolvendo grandezas dessa ordem ocorrem tanto em escala astronômica como microscópica: astros em detonação, átomos em fragmentação. Para descrevê-los, devemos lançar mão da Teoria da Relatividade, que permite correlacionar os pontos de vista – e as tabelas de medições – de observadores em distinto estado de movimento. Contudo, logo verificamos que as categorias que usualmente empregamos para definir os processos dinâmicos perdem a eficácia ,quando velocidades relativísticas estão envolvidas. Isso significa que até mesmo a distinção, tão fundamental para nosso cérebro mamífero, entre medidas de espaço (distâncias) e medidas de tempo (duração) deixam de ter um caráter invariante, ou absoluto, e tornam-se meros aspectos particulares, associados à perspectiva específica de cada observador. Digamos, por exemplo, que certo observador, dotado de uma régua para medir distâncias e um relógio para medir durações, observe o movimento de dado corpo, tabelando valores de altura, largura, profundidade e duração. Outro observador pode abordar o mesmo fenômeno e realizar suas medições empregando uma regra diferente de etiquetação para suas medições – altura, duração, profundidade e largura. Ou seja, uma medida de comprimento, para um, será equiparada a uma medida de duração. As leis físicas que governam o fenômeno não podem, evidentemente, depender dessa escolha arbitrária da ordem da etiquetação; portanto, a própria distinção que, em nosso cotidiano, é perfeitamente cristalina entre distâncias e durações, entre bordas e prazos, entre quilômetros e minutos, essa distinção é irrelevante. Em consequência, uma vez que cada observador pode agora escolher livremente sua forma de definir medidas de distância e durações, segue que resta abolida a univocidade tradicionalmente conferida ao tempo: haverá tantas formas legítimas, e autônomas, e descompassadas, de determinar e medir o tempo quantos observadores houver.

Ainda mais notável é o quadro que se forma quando a argumentação relativista é estendida para levar em conta o grande agente estruturador do universo astronômico, a gravitação. A Teoria da Relatividade Geral, de Albert Einstein, teve exatamente este objetivo, e ao longo do século XX sua aplicação ao estudo dos processos gravitacionais levou a uma compreensão radicalmente inovadora acerca do Universo em larga escala. Examinando os aspectos referentes ao tempo nesta teoria, verificamos que não apenas a distinção habitual entre espaço e tempo é apenas relativa à perspectiva de cada observador, como surgem configurações gravitacionais em que o ritmo de contagem do tempo, e mesmo sua direcionalidade, tal como são aferidos por diferentes observadores, podem mudar.

Um observador que empreendesse um mergulho conjectura! (e suicida) em um buraco negro teria seu percurso indefinidamente distendido para outro observador em órbita do objeto singular; para ele, uma duração finita até a aniquilação, para o outro, uma queda sem fim. Da mesma maneira, ocorrem configurações plausíveis em que seria possível a um observador seguir um caminho que, eventualmente, retornaria sobre si mesmo, ou seja, uma curva fechada no tempo. Embora as circunstâncias necessárias para este retorno sejam muito diferentes das da Terra, em princípio é teoricamente concebível que dado observador, ao se encaminhar para seu futuro, acabe por se reencontrar com seu passado. Toda espécie de paradoxo causal pode se apresentar aí: se voltei ao passado e matei meu avô, então não pude nascer, logo não pude voltar ao passado para matar meu avô, mas neste caso pude nascer e voltar ao passado para matar meu avô, e da capo…

Mas talvez a figura de tempo mais provocante que a Cosmologia Relativista, a ciência contemporânea do Universo fundada na Relatividade Geral, nos ofereça seja aquela ligada à constatação de que a própria Totalidade, o universo astronômico entendido como a expressão mais abrangente do existir natural, possui uma variabilidade intrínseca. A Totalidade é dinâmica, ou seja, o peculiar sistema físico que podemos identificar a Tudo-o-que-Existe exibe uma história. É importante observar que não se trata aqui de um sistema global em cujas partes, e somente nelas, ocorre transformação. O Todo, como um todo, ele mesmo evolui – o que significa que a Totalidade, por ser histórica, é inacabada, é uma obra sempre em construção. E será sobre este processo evolutivo propriamente cósmico (se recordarmos o sentido original do termo grego Cosmos, Todo Organizado) que assentaremos o surgimento de todos os tipos de formação da Matéria, os átomos e seus compostos, as galáxias e seus aglomerados, os sistemas estelares e seus planetas; aí também assentaremos a emergência das organizações da Vida e seus ritmos suplementares – a repetição das gerações, o desvio das mutações – pelos quais se dá a Evolução biológica; aí assentaremos, por fim, as problematizações da Vida, que darão lugar à aparição de um novo plano de ocorrência, ainda mais intenso, ainda mais acelerado que o plano do Pensamento. Em suma, será no âmbito desse Cosmos inerentemente evolutivo que seremos levados a entender que tudo o que podemos apreender do mundo natural, até mesmo nas escalas mais vastas, está embebido de mudança, de transformação. Está embebido de tempo.

E, se finalmente nos dirigirmos ao nível mais fundamental de nossa hierarquia, aquele dos processos microscópicos constitutivos de todas as formações materiais e que hoje chamamos de processos quânticos, descobriremos estarrecidos que, nesta instância autenticamente fundamental, nem sequer o atributo mais característico de nossa noção habitual do tempo, a distinção de antes e depois, tem qualquer significado; de fato, as (notavelmente eficazes) descrições quânticas dos eventos microscópicos parecem prescindir de toda temporalidade endógena. Tomemos como exemplo esclarecedor do problema – ou talvez não, pois, como assinala Richard Feynman, “ninguém compreende a Física Quântica!” – a entidade física mais básica e universal que conhecemos: o Vazio.

Nossa concepção costumeira de vazio está associada à noção de ausência: examino um dado local e nada encontro ali. Podemos tornar essa concepção um pouco mais rigorosa através de um procedimento de sondagem: lançamos projéteis, digamos, sobre a região-alvo e verificamos que não sofreram desvio por algum obstáculo; concluímos então que a região se acha desprovida de ocupantes, isto é, vazia. Contudo, quando aplicamos este procedimento de sondagem às escalas microscópicas dos constituintes elementares das matérias – partículas, átomos, moléculas -, as regras da Física Quântica têm de ser invocadas, e estas regras acarretam que toda medição de propriedades dos objetos microscópicos é inerentemente incerta. Simplificadamente, isto equivale a afirmar que qualquer sistema microscópico não tem limites bem definidos; tudo se passa como se nossa incerteza, inerente ao procedimento de medida, sobre as propriedades dos objetos sob exame, correspondesse à efetiva ausência de uma forma bem definida desses objetos – ou por outra, como se não tivessem uma forma estável e contínua, como se houvesse todo um repertório de formas diversas, e instáveis, coabitando o sistema; quando realizamos uma série de medidas, uma sequência aleatória de configurações se tornará manifesta. Como num rolar de dados, as configurações possíveis se apresentarão sucessivamente, em ordem casual – isto é tudo o que pode ser afirmado com segurança sobre o sistema, qualquer sistema. Imediatamente, nos damos conta do paradoxo: os objetos macroscópicos contínuos e duráveis com que lidamos, as coisas de nosso mundo, têm por constituintes entidades descontínuas e aleatórias; as coisas não são feitas de coisas. Vamos então aplicar essas noções perturbadoras ao exame do sistema físico mais geral que conhecemos, o Vazio. Para descrever seus caracteres, precisamos realizar uma sondagem. Mas a incerteza intrínseca da medição nos leva a concluir que também os atributos do Vazio são imprecisos, difusos – o que equivale a dizer que algo quase está lá ou, inversamente, que quase algo está lá. Esta indefinição sugere que o Vazio não é a ausência de tudo, e sim que é semiocupado por entidades efêmeras demais para deixar registro em nosso aparato de medida. O estatuto dessas entidades instabilíssimas é o de uma quase existência, e os físicos as denominam de partículas virtuais. O Vazio, portanto, é pleno de virtualidades… Agora, quando procuramos delinear uma figura de temporalidade para esses quase objetos que abundantemente quase ocupam o Vazio, concluímos que simplesmente não é possível. Tudo se passa como se as partículas virtuais habitassem um domínio anterior a qualquer temporalização objetiva. Dito de outro modo: a realidade será temporalizada daí para cima, quando as estruturas mais sofisticadas e estáveis das chamadas partículas reais tiverem lugar, mas na instância fundamental do Vazio o tempo ainda não começou a ser.

Frisemos bem: o que nosso olhar sobre os estratos mais profundos da realidade natural nos descortina não é que o tempo tenha uma origem, um marco zero da estrada, e sim que podemos conceber um estágio pré-real, virtual, em que o mundo físico manifesto ainda não se estabeleceu. Um pré-Cosmos, portanto, identificado ao Vazio quântico, e logicamente “anterior” ao Universo e, por conseguinte, ao tempo ele mesmo. Hoje em dia, para muitos cosmólogos, esta é a abordagem mais adequada para estudar a mãe de todos os problemas: porque existe algo (e.g., o Cosmos) e não nada? Por outro lado, talvez possamos esboçar, com alguma licença de retórica, uma figura de temporalidade para esse não tempo do Vazio, para este “tempo antes do tempo começar”. Lancemos mão de um conceito da filosofia medieval cristã, que Duns Scot, um dos doutores da escolástica, tomou de empréstimo do médico e filósofo árabe Avicena: a complicatio. Plica em latim é dobra, assim o termo complicatio denota o estatuto de algo que está dobrado sobre si mesmo. Avicena representa este estado de complicação por uma rosa, mais exatamente, por um botão de rosa cujas pétalas ainda não se separaram. A rosa em seguida desabrocha, e cada pétala adquire sua individualidade. Mas, enquanto elas estão sobrepostas, estão no regime da complicatio. O objetivo do argumento seria responder à pergunta temível: o que Deus fazia antes de criar o mundo? A resposta de Santo Agostinho, bem sabemos, foi muito objetiva: Deus criava o Inferno, para quem faz esse tipo de pergunta! Mas, para Avicena e Duns Scot, tudo se passaria como se “antes” da criação o mundo se encontrasse em estado de botão, isto é, de complicatio, no qual as dimensões do tempo coexistem, como que superpostas; passado, presente e futuro não estão ainda concatenados, ainda não são consecutivos. O começo do tempo não é uma origem em que o tempo começa; é a ocasião do encaixe. Quando suas partes se engatam e se tornam sucessivas, o tempo está montado, sua construção está completa; passado, presente e futuro passam a operar em sequência, e se estabelece a direção natural para as séries causais. Não há um momento zero do tempo, um instante que não é precedido por outro instante – noção que, segundo Borges, tangencia o inconcebível -, mas dois estágios do tempo (e, portanto, do mundo): as dimensões desconjuntadas e sobrepostas do botão primordial, as dimensões encaixadas e consecutivas do mundo florescido. Talvez a figura da complicatio possa de algum modo sugerir uma imagem para o trânsito entre o Vazio pré-cósmico e o Cosmos constituído.

Nosso exame dos sucessivos estratos da pirâmide das temporalidades, ainda que necessariamente breve, nos permitiu decerto colecionar elementos suficientes para traçar algumas conclusões. Há não uma, mas múltiplas, diversas e por vezes divergentes, figuras do tempo em vigor em diferentes áreas das Ciências contemporâneas. Observando a hierarquia de modos temporais em seu conjunto, entendemos que, longe de ser um conceito unívoco, que remete a um referente monolítico e isolado, o tempo que vivenciamos em nosso cotidiano bem mais se parece com um padrão global, uma figura de gestalt que – aqui, a palavra-chave – emerge da combinação de vários subcomponentes. É somente a partir de certo grau de complexidade que ocorre uma síntese dos caracteres que atribuímos ao tempo; se consideramos um nível suficientemente básico da cadeia, o tempo se desfaz. Bem para além da imagem da estrada, esse tempo complexo talvez possa ser mais bem representado como trama, um entremeado de linhas ou fios de tempo, cada qual associado a um processo distinto no âmbito de dado sistema, cuja combinação faz emergir um padrão global que nos permite apreender a transformação do sistema como um todo. Desse ponto de vista – o tempo entendido como síntese, uma propriedade emergente de sistemas complexos-, a natureza fundamental do tempo seria o diferir.

Compreendemos também que as concepções inovadoras advindas das Ciências contemporâneas inevitavelmente acarretam problemas filosóficos renovados. Para assinalar alguns aspectos desse campo de problemas, tomemos como ponto de partida um episódio muito significativo da história das ciências e das técnicas: a descoberta do “Tempo Profundo”. Sucede que os mineiros de carvão, na Inglaterra do século XVIII, tinham de lidar com inundações frequentes, e para facilitar a tarefa de esgotar a água das minas foram desenvolvidas as primeiras bombas a vapor. Tratava-se, inicialmente, de geringonças muito ineficientes, mas sucessivos aperfeiçoamentos – como os de James Watt- acabaram por aumentar sua eficácia, e os mineiros puderam então explorar veios cada vez mais profundos. Foi feita então uma descoberta perturbadora: podiam ser observadas camadas de sedimentos em sequência rigorosamente idêntica em locais separados por centenas de quilômetros! Como era possível que ocorresse tal uniformidade em localidades tão distantes entre si? Que agente de abrangência continental seria responsável por depósitos tão similares?

Ora, os processos sedimentares, a partir da erosão das rochas nas montanhas e do transporte dos fragmentos para as terras baixas por aluviões, podiam ser estudados em campo. Pouco a pouco se consolidou a opinião de que a sequência de estratos observados nas minas podia ser o resultado desses mesmos processos – mas a profundidade que estes estratos alcançavam implicava longos, muitos longos, períodos de sedimentação. A cada aluvião, os depósitos vão se sobrepondo, assim os estratos mais profundos são também os mais antigos, e quando a idade desses estratos foi estimada, os geólogos chegaram a valores não de centenas ou milhares de anos, mas de milhões e de dezenas de milhões. Esta, diz Stephen Jay Gould, foi a entrada em cena do Tempo Profundo – a primeira vez que durações muitíssimo mais vastas que as registradas pela história humana se tornavam aparentes na Natureza. A carne da Terra é antiga, muito mais antiga do que supõe nossa vã recordação.

A descoberta do Tempo Profundo teve importância capital para o entendimento da Evolução biológica. Dado prazo suficiente, correspondente a um número apropriado de gerações, as variantes nos desenhos dos organismos podiam ser selecionadas em função de sua adaptação às mudanças ambientais, e isso explicaria a imensa variedade de formas encontradas no registro fóssil. Darwin não teria se convencido da eficácia da Seleção Natural por Adaptação para explicar os fatos da Evolução se Charles Lyell não tivesse lhe apresentado as evidências sobre a longa duração dos processos geológicos. Mas o conceito de Tempo Profundo também representa um desafio grave a nosso intelecto, porque nos lança defronte a uma antiguidade concreta, não conjectura!, mas efetivamente inumana. Com efeito, o Tempo Profundo envolve grandezas da ordem dos milhões, dezenas de milhões, centenas de milhões, bilhões de anos. E somos assim obrigados a comparar – diria Platão, a fazer a razão – entre as durações da cultura, os períodos da civilização, e essas extensões vastíssimas das bases materiais de nosso ser enquanto Matéria e Vida. Somos levados a confrontar a brevidade dos exíguos dez mil anos desde a invenção decisiva da Cidade com os cento e tantos milênios desde o surgimento de nossa própria espécie, com os 3,5 bilhões de anos desde a aparição da Vida na Terra, e os cerca de 13 bilhões de anos desde a emergência do próprio Cosmos. Torna-se inevitável nos reconhecermos como muito recentes, como breves, efêmeros. Este reconhecimento é difícil, pois equivale a uma revolução copernicana, um deslocamento radical do pensamento, não do centro do espaço, mas do centro do tempo. A inumanidade dos períodos indicados pelo Tempo Profundo acarreta dificuldades que vão desde aspectos existenciais e éticos – como conviver com essas amplidões, como agir perante tais infinitudes? – até questões filosóficas de peso.
Consideremos a noção, apresentada por Francis Wolff, de objetos-mundo. Seriam objetos sem os quais a experiência de “mundo” não pode se realizar, por exemplo, a linguagem e a consciência. Conhecer alguma coisa é estar consciente desta coisa; se não apreendemos as vicissitudes desta coisa em seus encontros no mundo, nada sabemos dela. A existência de algo só pode ser assegurada se estamos conscientes de sua presença no mundo. Mas só podemos compartilhar a consciência da presença deste ser pela linguagem; só poderá haver uma comunidade de coisas, isto é, um mundo compartilhado, se houver uma comunidade de falantes. Este tipo especial de objetos, portanto, funda a possibilidade de experimentar e conhecer o mundo. Nesse sentido, diz Wolff, constituem uma espécie de jaula transparente, porque inevitavelmente temos de estar dentro deles, envolvidos por eles, para podermos nos dirigir ao mundo que está lá fora. Mas, ao mesmo tempo, se não houver o mundo, se não houver algo de que estar consciente, se não houver algo de que falar, a consciência e a linguagem são inúteis, não têm nenhum conteúdo, são nada. Os objetos-mundo têm então a característica de estar sempre dentro e ao mesmo tempo fora de nós.

Vamos então, a partir dessa imagem, procurar definir mais precisamente o significado de “experimentar o mundo”. Experimentar o mundo seria, antes de tudo, presenciar. Algo existe, algo sucede, quando se dá perante uma consciência que o apreende. Tomemos como exemplo o procedimento de representação descrito por Descartes: encontro um corpo, isto é, meus sentidos percebem algo que ocorre na extensão, e esta percepção suscita a aparição de uma imagem ou ideia do corpo em minha mente. Esta imagem representada será a base do conhecimento, ou seja, é quando o corpo se faz presente uma segunda vez, não como ente extenso, mas como ideia no pensamento, que o conhecimento pode se realizar. Desse modo, a existência da coisa externa é assimilada à sua representação pelo sujeito; se não há a relação sujeito-objeto, não pode haver experiência de mundo, logo não pode haver mundo. Vamos então nos fazer agora a seguinte interrogação: para a Ciência, há evidências incontroversas de que a Vida surgiu na Terra há aproximadamente 3,5 bilhões de anos. Se o organismo é o suporte material indispensável para que a consciência possa surgir e operar, qual o estatuto do sujeito – e, portanto, do mundo – quando ainda não havia Vida? Dito de outra maneira, se o sujeito não pode prescindir de um corpo vivo, como avaliar o mundo e seus conteúdos tal como eram antes do surgimento do sujeito, isto é, desvinculados de toda e qualquer possibilidade de representação? Eis, como o denomina Quentin Meillassoux, o problema dos objetos ancestrais.

Desde a filosofia crítica de Kant, a correlação entre o sujeito que presencia e o fenômeno presenciado tornou-se o território no qual legitimamente se poderia especular sobre os entes e suas naturezas. Toda afirmação sobre a existência de algo ou a ocorrência de certo evento só teria sentido no âmbito desta correlação, ou seja, se enunciada do interior da jaula transparente de que fala Wolff. A coisa em si, o objeto em si mesmo, por assim dizer no exterior da jaula, não pode ser conhecido. Eis, essencialmente, a crítica que Kant realiza às filosofias dogmáticas do passado, nas quais a razão poderia ter acesso a objetos absolutos. Todavia, o problema da ancestralidade parece oferecer um desafio, engendrado a partir da eficácia descritiva da Ciência, exatamente ao núcleo da filosofia crítica: a correlação. Pois, se para os cientistas temos evidências sólidas, fornecidas por aperfeiçoados métodos de datação, acerca de eventos ocorridos a vários bilhões de anos – a formação da Terra, por exemplo -, qual seria o estatuto de realidade, a modalidade de existência, desses eventos anteriores a qualquer correlação com qualquer sujeito?

Um correlacionista convicto poderia levantar uma objeção assinalando que é hoje, ao observar seus instrumentos de medida, que o cientista deduz a ocorrência de eventos remotos. Mas, nesse caso, seria de crer que o objetivo do cientista seria fazer suas medidas simplesmente para presenciá-las, e não para consolidar uma evidência, para ele inteiramente objetiva, de um processo ancestral! Outra objeção seria comparar a datação de um evento ancestral com a ausência de um observador que presencie certo fato; uma folha caiu de uma árvore no coração da Amazônia, digamos, e ninguém estava lá para testemunhar o fato. Esse acontecimento existiu ou não existiu? Ou seja, haveria em relação às separações espaciais o mesmo tipo de problema surgido com as separações temporais. Ora, diz o correlacionista, trata-se de um falso problema, pois se lá houvesse alguém testemunhando o cair da folha, a existência do fato seria evidente, e até mesmo banal. O mesmo se daria, segue o argumento, para eventos remotos como a formação da Terra ou a emergência da Vida; bastaria que lá estivesse alguém para presenciá-los, e sua ocorrência não traria nenhuma dificuldade. Mas a comparação entre eventos distantes no espaço e eventos remotos no tempo é na verdade falaciosa – pois o que está em foco quando se aborda os objetos ancestrais são exatamente circunstâncias anteriores a toda possibilidade de existir um sujeito; nem mesmo por hipótese haveria uma consciência com a qual o acontecimento pudesse se correlacionar. As práticas da Ciência, portanto, parecem lidar, com toda tranquilidade, com eventos que para toda uma corrente filosófica deveriam estar no domínio do impensável. Abre-se assim todo um campo de investigação em torno da própria capacidade e alcance do pensamento.

Pode o pensamento explorar uma ocasião em que nunca esteve, em que nunca poderia ter estado? Pode o pensamento pensar sua anterioridade, sua exterioridade, seu vazio? Qual modalidade de razão poderia penetrar semelhante feixe de paradoxos?

Quando tomadas em conjunto, estas revisões, ou reformulações, ou transfigurações da noção habitual do tempo que procuramos expor nestas páginas parecem indicar uma conclusão assaz desafiadora: a de que seria possível definir o ato de existir não como sucedendo no tempo (como referente externo), mas do tempo. Dito de outro modo: se um dos grandes feitos do pensamento foi a descoberta de que o mundo natural consiste essencialmente de uma mesma “coisa” básica, para as Ciências contemporâneas este fundamento corresponderia não a uma substância, mas a um processo. A instância constituinte mais profunda ocorreria não em blocos, mas antes em fluxos, elementares de construção; em Tudo-o-que-Há, distinguiríamos matéria-energia em incessante transcurso.

Isso, finalmente, nos traz de volta a nosso problema original, quando Valéry insinua que o tempo poderia, ele mesmo, se mover, quando Borges sugere que nossa consistência é o tempo. Talvez os poetas estejam nos advertindo contra a tradição tão ocidental de pensar a partir da conversão do múltiplo no contrário, do diverso no contraditório. Ou seja, de esterilizar o paradoxo como operador de inteligibilidade, reduzindo-o sempre à mera oposição – contrapondo o permanente e o precário, o duradouro e o efêmero, o essencial e o disperso, o geral e o particular… Talvez, quando procedemos segundo esta tradição, estejamos aplicando uma proporção equivocada; quiçá convenha retrocedermos a uma anterioridade primeva, a um vazio original da razão, e considerarmos uma vez mais plenamente a sentença de Heráclito: Panta rei, “Tudo flui”. Todos os seres que efetivamente encontramos no mundo estão sempre imersos na mudança, sempre embebidos na transformação. E talvez seja um engano o entendimento de que, para poderem possuir uma unidade comum e serem apreendidas como uma classe, precisam de um fundamento que se furte ao fluxo, que se abstraia do tempo. Quem sabe, a partir das novas feições dos tempos multiplicados e diferenciados, venham a ser elaboradas categorias inovadoras pelas quais se possam basear as fundações da existência, de todas as variantes dos aconteceres, não em uma raiz pétrea, em conceitos de granito que se furtam ao fluir, mas inversamente, em uma condição de movimentação intrínseca e inesgotável. Não é o bastante pensarmos as substâncias somente em termos de uma vocação desmedida para a atemporalidade dos objetos matemáticos; é preciso aprendermos com a não linearidade dos sistemas naturais e concebermos essas substâncias num estado radical de permanente movimento, de perpétuo deslizamento. Absoluta permanência, absoluta transitoriedade. O mundo então se afigurará não apenas como uma coleção de essências estáveis, mas também como uma constelação de processos. Um coletivo de inumeráveis cadências, cuja integração disparatada conforma uma marcha em união, um desfile, que de fora apreendemos e apreciamos e dizemos uns aos outros: eis o tempo. Mas se afinarmos o olhar no timbre correto, se focarmos o ouvido no matiz harmônico, distinguiremos em toda parte, e sempre, o estado de processo.

Se for legítimo experimentar com essas noções, então a sentença de Valéry não é senão um truísmo, e o parágrafo de Borges tão somente a enunciação de um axioma. Quer dizer, somos feitos de tempo, porque tudo é feito de tempo. A existência flui pelos múltiplos braços dos múltiplos rios do tempo, e mirando nessas águas, reconhecemos que sim, somos o rio que nos arrebata, somos o tigre que nos dilacera, somos o fogo que nos consome. O que mais poderíamos ser?

BIBLIOGRAFIA

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