1992

O tempo e os tempos

por Alfredo Bosi

Resumo

Em suas análises sobre a modernidade e, em especial sobre a obra poética de Baudelaire, Walter Benjamin aproxima paixão e política.

No mundo moderno, apegado a formas culturais que não acompanham as transformações e que se recusam a representar a realidade impositiva da mercadoria, há um desequilíbrio que determina uma constante expressão do velho no novo e constrói fantasmagorias. Para Benjamin, a imagem do Eterno Retorno do Mesmo permite representar os elementos específicos da modernidade. O mundo dominado por suas próprias fantasmagorias é a repetição do Mesmo. Que a morte, a transitoriedade sejam a sua paixão e beleza, explica-se na eternidade dessa repetição

Na produção capitalista, as mercadorias são esvaziadas de seus conteúdos concretos e tornam-se fetiches em um processo onde a novidade do produto é de extrema importância assim como a exigência de sua repetição em uma produção de massa. Diversos fenômenos da vida moderna se estruturam da mesma forma, na mesma repetição do Idêntico.

A moda, por exemplo, é uma forma do Idêntico na aparência da novidade. A reprodução fotográfica e fílmica é uma outra aparição do Mesmo. No entanto, a invenção dessas técnicas redimensionará as formas de arte tradicionais e o próprio conceito de obra de arte.

Na poesia de Baudelaire, considerada como alegoria, Benjamin encontrará a melhor manifestação das fantasmagorias do Segundo Império. Na alegoria, a significação importa mais do que a beleza. Nesse sentido, a alegoria é constitutiva da criação moderna. Obras alegóricas também têm afinidades com a crítica: elas se oferecem à crítica como ocasião de revelação de sua verdade. Assim, obras alegóricas só são belas na medida em que contêm uma verdade digna de ser objeto do conhecimento.

Se a modernidade é o “inferno do Mesmo”, ela é também a possibilidade, para os homens, de se libertarem do mito que caracteriza a História. A política é a via que permite essa liberação. A compreensão da política em Benjamin pode ser compreendida pela elevada opinião que ele faz de Auguste Blanqui, líder da revolução de 1848.

Para Benjamin, o impulso de felicidade da humanidade, tema insistente da obra de Proust, nos remete ao passado pois a imagem de felicidade relaciona-se à época a que pertencemos e que nos escapa. A nossa promesse de bonheur constrói-se com o passado. É o que poderia ter sido que mobiliza o nosso desejo.

Libertar-se da História é livrar-se do Mito. A modernidade, exacerbando a repetição do Mesmo, traz para a cena os mitos arcaicos que a Antiguidade figurara e o Iluminismo disfarçara. Entre esses, a História entendida como telos. A política como promesse de bonheur é astúcia e arrogância; é ela a paixão que pode nos arrancar do círculo do Mesmo e, nas ruínas da História, enfrentar o Mito.


DATAS

1492, 1792, 1822, 1922.

Datas. Mas o que são datas?

Datas são pontas de icebergs.

O navegador que singra a imensidão do mar bendiz a presença dessas pontas emersas, sólidos geométricos, cubos e cilindros de gelo visíveis a olho nu e a grandes distâncias. Sem essas balizas naturais que cintilam até sob a luz noturna das estrelas, como evitar que a nau se espedace de encontro às massas submersas que não se vêem?

Datas são pontas de icebergs.

A memória das sociedades, que a velha e hoje moça história das mentalidades reconquista com zelo e paixão; a memória das sociedades, que deve ter no historiador o seu ouvinte mais atento; a memória das sociedades precisa repousar em sinais inequívocos, sempre iguais a si mesmos; e o que há de mais inequívoco e sempre igual a si mesmo do que o número? Datas são números.

Datas são pontos de luz sem os quais a densidade acumulada dos eventos pelos séculos dos séculos causaria um tal negrume que seria impossível sequer vislumbrar no opaco dos tempos os vultos das personagens e as órbitas desenhadas pelas suas ações. A memória carece de nomes e de números. A memória carece de numes.

Mas de onde vem a força e a resistência dessas combinações de algarismos? 1492, 1792, 1822, 1922… Vêm daquelas massas ocultas de que as datas são índices. Vêm da relação inextricável entre o acontecimento, que elas fixam com a sua simplicidade aritmética, e a polifonia do tempo social, do tempo cultural, do tempo corporal, que pulsa sob a linha de superfície dos eventos.

A QUESTÃO DO SENTIDO

Um dos significados mais antigos da palavra número, em latim numerus, é precisamente este: parte de um todo, elemento de uma série ordenada.

Assim também é a data para a visão retrospectiva do narrador. Os fatos se passaram uns depois dos outros. Para contá-los, isto é, narrá-los, é preciso também contá-los, isto é, enumerá-los. Contar é narrar e contar é numerar. Contar o que aconteceu exige que se digam o ano, o mês, o dia, a hora em que o fato se deu. O ato de narrar paga tributo ao deus Chronos.

Para o olhar sequencial, tudo quanto sucede traz a chancela de um número disposto em uma série; logo, o momento passado, o momento anterior, já passou e, matematicamente, não volta mais.

Entramos assim a falar do tempo histórico em uma linguagem de irreversibilidade. Pertencem a essa concepção de tempo as ideias — só na aparência contrastantes — de passamento de cada instante e de prossecução. Cada minuto da História dura até apagar-se, isto é, esvai-se, mas para ser substituído por outro, e assim sucessivamente.

Esse tempo, quando esquematizado, é o que dele disseram, na era clássica, Hobbes e Descartes, a física de Newton e a filosofia que vai de Leibniz a Kant. É o antes-e-o-depois do movimento (Hobbes). É o número do movimento (Descartes). É a medida externa do movimento (Newton). É a ordem das sucessões (Leibniz). É a condição de existência da ordem causal (Kant). É, quando tomado em abstrato, o tempo mensurável da ciência newtoniana: t, t’, t”… O tempo que figura nas equações da Mecânica, portanto um número dentro de uma série. O tempo que presidiu à evolução das técnicas ao longo da era industrial.

Essa visão sintática do tempo dá suporte a duas opostas filosofias: uma, que é cumulativa e finalista; a outra, que é pontual e, com licença do neologismo, contingencial. Em ambas está presente o modelo do tempo como serialidade, sucessão, cadeia de antes-e-depois. Mas a questão do sentido separa as águas. E é a questão do sentido do tempo que preside as teorias da História.

Para a primeira concepção, por entre os elos da corrente cronológica passariam forças causais, determinantes, que conduziriam a uma justificação plena e final da História, isto é, levariam a um estado necessário e superior da Humanidade que instauraria o reino da felicidade almejado através dos milênios.

Para a segunda, as potências latentes nos acontecimentos, ao se desencadearem, se anulariam umas às outras assim como os vencedores, que dominam os adversários menos fortes, podem, com o tempo, ser superados por outros, mais fortes; mas, ao fim e ao cabo da linha, a todos os espera a morte. Uma sequência também, mas sem plenitude e sem telos.

* * *

Não exporei as múltiplas versões da teoria da História como vetor, via salvífica, preparação para a meta-História, fim de toda opressão, reino da liberdade, abolição do Estado, superação da cadeia de necessidades, paraíso reconquistado depois de guerras e apocalipses.

Essas visões do tempo são o sangue mesmo que circula há séculos pelas veias de nossas crenças judeu-cristãs, progressistas, evolucionistas, marxistas ou não.

As datas seriam momentos de uma série dramática: as fases de crise e negatividade preparam os avanços da humanidade, quer pelo domínio das forças naturais, quer pela realização indefectível de uma perfeita convivência social; quer, enfim, se a perspectiva é religiosa e milenarista, pelo triunfo do Bem sobre o Mal com a instauração do Reino. A última imagem volta com frequência nos Evangelhos (trinta vezes só em Lucas), tendo já comparecido na palavra dos profetas.

A data é, nessa perspectiva, um número-índice, o elo mais ostensivo de uma cadeia dotada de sentido. 1492: Colombo chega às ilhas do Caribe, o que significa um momento alto da expansão da cultura europeia e do catolicismo, de que o Novo Mundo seria continuador. 1792: Tiradentes é enforcado após uma abortada conspiração anticolonial; hora cruel, sem dúvida, mas prenunciadora de uma nova nacionalidade, o Brasil, que trinta anos mais tarde se destacaria de Portugal por obra de um príncipe, Pedro, neto daquela mesma dona Maria que ordenara o sacrifício dos inconfidentes. 1822: faz sentido como o que veio depois de 1792. O antes é a semente, o germe, a raiz do depois.

As datas seriam marcos, alto-relevos no bronze dos tempos, pedras miliares de um caminho árduo onde até as pedras testemunham. A História não se repete: eis uma das máximas gratas à visada teleológica do tempo.

Quem pensa na sequência dos acontecimentos em termos de grandes eras econômicas (e esta é ainda uma forma mentis que articula a cultura moderna) tende a reforçar a lógica progressiva desta primeira abordagem. A evidência é a própria série: feudalismo, mercantilismo, capitalismo industrial e… socialismo, diriam hoje, talvez com menor ênfase de convicção, os marxistas.

São os segmentos maiores da grande reta evolutiva dos últimos quinze séculos, os séculos que formaram a Europa medieval e, a partir dos descobrimentos, plasmaram as nações coloniais da América e da África.

A historiografia econômica já explorou detidamente os mecanismos pelos quais estas eras, que são nomeadas pelos respectivos sistemas de produção, ganharam uma fisionomia própria, uma identidade, entraram em crise, sendo enfim substituídas implacavelmente em escala mundial. O feudalismo foi dissolvido pelo capital mercantil, e este, passado o processo de acumulação, deu lugar ao capitalismo industrial. O imperialismo é o ápice do processo capitalista e, até bem pouco, o pensamento de esquerda ancorava-se na certeza de que o socialismo universalizado tomaria o lugar dos imperialismos em luta de morte. Estrutura serial dentro de um processo teleológico.

As dúvidas são hoje graves, mas a hipótese de que as fases não só se encadeiam mas se ultrapassam é ainda um cânon de leitura poderoso, parecendo imbatível quando se examinam os períodos de transição: a passagem do feudalismo ao mercantilismo e ao colonialismo na aurora dos tempos modernos, quinhentos anos: ou então, o trânsito do mercantilismo à era da indústria e do trabalho assalariado no século XIX.

Os dados estatísticos que comprovam a realidade dessas transições são tão copiosos e formam um acervo tão imponente que é praticamente impossível ao historiador recusar, sem mais, o princípio mais geral, progressivo e progressista, que dá razão daquelas séries consensualmente aceitas.

Convém lembrar que esse cânon está enxertado em certezas maiores que remetem à ideia de progresso, vinda das Luzes, e à ideia de evolução formulada no século XIX. Progresso e evolução: conceitos forjados embora por linhas filosóficas distintas, acabaram convergindo, como o fizeram o positivismo, com a sua lei dos três estados, o darwinismo e o spencerismo.

São todas doutrinas que se vieram tangenciando e integrando ao longo dos séculos XIX e XX até constituírem uma espécie de senso comum e de linguagem corrente do homem culto médio de nossos dias. A imagem ilustrada da Humanidade formada de um Homem único, que permanece homem enquanto evolui de geração em geração; ou então a figura da corrida em que o atleta passa a tocha às mãos do companheiro e sucessor, que, por seu turno, fará o mesmo depois de cumprido o seu percurso: eis símbolos recorrentes da crença no progresso contínuo.

É vivo, porém, o sentimento de que o progressismo atravessa hoje uma das suas crises mais traumáticas. Devemos enfrentar animosamente ou, pelo menos, estoicamente, os sintomas e as causas dessa crise. Parece-me que ela resulta de frustrações na medida em que o avanço tecnológico, além de ter acarretado prejuízos terríveis à natureza, por si mesmo não curou as feridas de miséria do Terceiro e Quarto Mundo nem humanizou o convívio entre os povos em pleno fim deste milênio.

Não seriam essas decepções, na sua dinâmica, antes de mais nada expressões amargas de uma expectativa demasiada?

O desapontamento é tanto mais agudo quanto mais se acreditou na eficácia mágica do progresso industrial e dos seus efeitos positivos na vida do planeta.

Para se ter a medida da radicalidade da crise basta ler a obra de um dos maiores biólogos do nosso tempo, Konrad Lorenz, que estudou durante trinta anos o comportamento dos animais e do homem. Um dos seus livros mais contundentes, A demolição do homem, traz por subtítulo a expressão: “Crítica à falsa religião do progresso”. Foi editado na Alemanha em 1983.

Lorenz resume a sua teoria pela negação do nexo determinista entre tempo e causalidade:

Muitas pessoas acreditam que o curso da História do mundo esteja predeterminado e orientado para objetivos pré-definidos. Na verdade, a criação orgânica evolui por caminhos imprevisíveis.

O que estaria errado da “religião do progresso” não é, evidentemente, a justa aspiração que todos os homens nutrem de viver melhor, mas os hábitos de dominação que esse desejo foi gerando por via de uma tecnologia destrutiva de uma política de violência.

Em outras palavras: a sequência dos tempos não produz necessária e automaticamente uma evolução do inferior para o superior.

Mas, se o depois não é produzido qualitativamente pelo antes, que sentido teria a sucessão? A rigor, nenhum, a não ser o de uma temporalidade em si vazia, cega e irreversível. Os pontos do espaço-tempo seriam átomos em série que somem quando substituídos. “Por baixo” desses átomos haveria, sim, forças, mas irracionais e inconscientes; forças que levam o ser humano a fugir à dor e buscar o prazer, ou simplesmente repousar na inércia do sossego; forças que parecem não remeter a nada se não a si mesmas. Vontade de viver e de sob reviver seria o “sentido” imanente da série cronológica em que se inscreve a existência.

A História semelha uma cavalgada. Os impulsos levam os homens ora a se aproximarem por simpatia ou necessidade, ora a se afastarem por antipatia, indiferença ou presumida auto-suficiência. O horizonte de cada indivíduo e de cada grupo é fatalmente a morte. Como não evocar a leopardiana narração do delírio de Brás Cubas nas Memórias póstumas de Machado de Assis? O sentido dos tempos históricos aí resolve-se na pura alternância dos mecanismos de conservação, reprodução, destruição.

1492: Colombo descobre a América. Mas o que estaria submerso e invisível sob a ponta do iceberg, do número-marco? Para a concepção linear-progressista, já o vimos, 1492 foi a data que dividiu a História em Idade Média e Idade Moderna. Para os nativos deste lado do Atlântico, foi a exposição de um mundo a outro, o Novo que passa a ser objeto tanto da cobiça quanto do maravilhamento do Velho. Expansão da burguesia mercantil europeia, viragem das navegações encetadas pelos portugueses nas primeiras décadas do século XV. Primeiro ato do drama da colonização, da catequese, do capitalismo comercial em súbito crescimento…

No entanto, o olhar cético não se impressionará com a riqueza do processo, pois é próprio do ceticismo desprezar solenemente as chamadas lições da História; e se deterá, de preferência, no jogo das ilusões com que a memória se enganaria ao exaltar um fato que não se teria dado sem o concurso de paixões de alguns poucos indivíduos. Abramos as Operette morali de Giacomo Leopardi, escritas por volta de 1826 sob a inspiração de um dos espíritos mais desenganados de todos os tempos, para quem a crença no progresso era sentida como um lamentável engodo embalado por charlatães ou por mentes crédulas:

COLOMBO Bela noite, amigo.

GUTIERREZ Bela de verdade: e creio que, se vista da terra, seria mais bela.

COLOMBO Muito bem! também tu estás cansado de navegar.

GUTIERREZ Não de navegar de todo modo; mas esta navegação acabou sendo mais longa do que eu acreditava e me dá um pouco de tédio. Mas nem por isso deves pensar que eu me queixe de ti, como fazem os outros. Pelo contrário, podes ter a certeza de que qualquer deliberação que venhas a tomar sobre esta viagem, sempre te apoiarei, como já o fiz e com todas as minhas forças. Mas, já que estamos conversando, eu gostaria de que tu me declarasses precisamente e com toda sinceridade se ainda tens tanta certeza, como no princípio, de acabar encontrando um país nesta parte do mundo; ou se, depois de tanto tempo e tanta experiência em contrário, começas também a duvidar.

COLOMBO Falando francamente, como se pode com pessoa amiga e sigilosa, confesso que estou entrando um pouco em dúvida; tanto mais que durante a viagem não poucos sinais que me haviam despertado grande esperança mostraram-se vãos; como foi o vôo daqueles pássaros que passaram sobre nós vindos do poente poucos dias depois que partimos de Gomera, e que eu julguei fossem indício de terra pouco longínqua. Do mesmo modo, vi, dia após dia, que o efeito não correspondia a mais de uma conjectura e a mais de um prognóstico feito por mim antes de nos largarmos ao mar, sobre diversas coisas que nos teriam ocorrido, supunha eu, durante a viagem. Por isso venho pensando que, como aqueles prognósticos me enganaram, embora me parecessem quase certos, assim também poderia ser que se mostrasse também vã a conjectura principal, isto é, que se deva encontrar terra além do Oceano.

[Colombo, nessa altura, passa a enumerar dúvidas sobre dúvidas a respeito do que se poderia encontrar, de fato, em uma terra estranha: seria habitável? Não sabia; em caso positivo, que raça de gente nela moraria? Racionais? Irracionais? Humanos? Gigantes? Que portentos e maravilhas encontraria?…]

Mas quero somente inferir, respondendo à tua pergunta, que, embora a minha conjectura esteja fundada em argumentos probabilíssimos, não só a meu juízo, mas no de muitos geógrafos, astrônomos e navegadores excelentes, com os quais a conferi na Espanha, na Itália e em Portugal; apesar de tudo isso, pode acontecer que a minha conjectura venha a falhar: porque, torno a dizer, vemos que muitas conclusões escavadas de ótimos discursos não resistem à experiência; e isto sobrevém principalmente quando pertencem a coisas em torno das quais se tem pouquíssimo lume.

GUTIERREZ Com que então tu, na verdade, arriscastes a tua vida e a dos teus companheiros sobre o fundamento de uma simples opinião especulativa.

COLOMBO Assim é: não posso negar. Mas, ressalvando o fato de que os homens todos os dias se expõem a perigo de vida com fundamentos muito mais frágeis, e por motivos de escassíssima importância, ou até mesmo sem pensar em nada; considera um pouco. Se agora tu e eu e todos os nossos companheiros não estivéssemos nesta nave, no meio deste mar, nesta solidão incógnita, em estado incerto e arriscado; em que outra condição de vida nos acharíamos? em que estaríamos ocupados? de que modo passaríamos estes dias? Será que mais alegremente? ou não estaríamos ao contrário entre maiores tormentos e afãs, ou então roídos de tédio? O que quer dizer uma condição livre de incerteza e perigo? Não quero insistir sobre a glória e a utilidade que alcançaremos se esta empresa suceder de modo conforme à esperança. Mas se outro fruto não vier desta navegação, me parece que ela seja proveitosíssima enquanto por algum tempo nos mantém libertos do tédio, nos faz cara a vida, tornando estimáveis muitas coisas que de outro modo nem sequer tomaríamos em consideração. […] Quantos bens que, quando se têm em mãos, não se cuidam, aliás quantas coisas que nem sequer recebem o nome de bens, parecem caríssimas e preciosíssimas aos navegantes, só porque delas estão privados! Quem jamais contou entre o número dos bens humanos ter um pouco de terra que te sustente? onde pôr os pés? Ninguém, salvo os navegantes, e principalmente nós, que pela muita incerteza do êxito desta viagem, não temos maior desejo que o da vista de um cantinho de terra: e este é o primeiro pensamento que nos assalta ao despertarmos, e é com ele que adormecemos: e se alguma vez descobrirmos ao longe o cimo de um monte ou de uma floresta, ou de coisa semelhante, não caberemos em nós de contentes; e descendo a terra, só de pensar que nos achamos de novo em cima de algo estável, e só o fato de andar para cá e para lá caminhando à vontade nos faz crer por muitos dias que somos uns bem-aventurados.[1]

Schopenhauer considerava Leopardi o único poeta moderno comparável aos gregos. A antiga Hélade não concebia a História como progresso indefinido.

Em palavras simples, pode-se dizer que para Leopardi o tempo de cada ser humano é inteiramente gasto em procurar a satisfação de desejos e em construir representações o mais das vezes falazes, subtraindo-se, o quanto possível, às sensações dolorosas e às chamadas verdades duras e amargas. Bom é o que eu quero, verdadeiro o que represento em meu espírito. Vontade e representação que podem bem ser, no nível de uma psicologia atomizada e sensualista, capricho e auto-ilusão. E no intervalo entre prazer e dor, o sujeito se arrasta no tédio, poeira que enche as horas neutras de saciedade ou alívio. Mas o tédio prolongado também é letal, daí a necessidade da ação, incerta embora e pontuada de riscos.

Se assim é, a história pública só é traduzível, para Leopardi, em termos de motivações individuais, o que não deixa de guardar algum liame com os motivos pseudo-racionais que a Economia liberal clássica alegava serem as razões últimas da produção e do consumo das mercadorias nas quais o “capital simbólico” não é menor do que o real. Uma economia pessoal de ganhos e perdas, ainda que perdas e ganhos efêmeros, estaria subjacente àqueles grandes eventos que a história das eras sócio-econômicas vê como resultantes de projetos coletivos. Para fugir ao tédio do cotidiano Colombo pôs em perigo a sua vida e a dos companheiros em uma aventura que, afinal, mudou o curso da História…

Quando se lê com atenção o nosso Machado de Assis percebe-se uma atitude em face dos acontecimentos históricos bastante afim à de Leopardi e à de Stendhal para não falar na influência inegável de Schopenhauer. O que aparece na vida pública só se entende por dentro examinando as vaidades e as veleidades dos seus atores. Essa negação da consistência do tempo político, todo devorado pela vontade de satisfazer interesses egóticos, é um dos fulcros do realismo cético de que as Memórias póstumas de Brás Cubas dão o cabal exemplo. É minha convicção de que esse modo de sentir e pensar desabusado permitiu a Machado universalizar a sua perspectiva de narrador maduro e anti-romântico. O mesmo ceticismo deu uma coerência de tom e de estilo às suas observações certeiras sobre o cotidiano do Rio no Segundo Império.

Leopardi e Schopenhauer, Stendhal e Machado são psicólogos que intuíram a precariedade do sujeito literalmente arrastado pelo redemoinho das suas motivações. Toda a psicologia atomista vem, há mais de um século, “explicando” os comportamentos pelo mesmo esquema, aliás terrivelmente simples, de busca do prazer e fuga à dor. Por esse esquema, o que viriam a ser a História e as suas datas magnas? Eventos em fluxo sem peso próprio nem possibilidade de perdurar em memória viva e constante. Lembra-se tão só o que interessa aqui e agora, o resto se esquece: les morts vont vite, diz o Conselheiro Aires, versão só aparentemente mitigada do humor negro de Machado. E quando os mortos se vão depressa, não há História consistente. Cada momento que sobrevém é o atestado de óbito do que se foi, só resta a imediação do corpo lutando pela sua sobrevida.

Estaremos descrevendo, sem o dizer, o tempo do consumismo cultural de hoje? É possível, mas vou fugir ao desprazer de enfrentar esse tema ingrato e passar depressa ao prazer de falar de outra experiência do tempo. A que luta contra a indiferença e a entropia. E, ao lutar, afirma que a mera sucessão dos instantes não garante a passagem do inferior ao superior, mas a torna possível.

MEMÓRIA: O RECORRENTE E O SIMULTÂNEO

Volto à obsessão do ritornello.

Datas. Mas o que são datas?

Pela concepção vectorial de tempo, o que há sob os eventos em série? Sistemas que se podem caracterizar, causas e fins da produção material e simbólica, regimes condicionantes que limitam a suposta contingência dos fatos. No fundo, nada é aleatório: in natura non datur casus, é Kant que o diz, retomando as certezas de Newton. As datas anunciam o ponto de partida daqueles regimes, ou o seu ápice, ou, enfim, o momento exato em que cedem lugar ao período que os vai superar.

Pela concepção pontual e contingencial do tempo, que ninguém se deslumbre com a importância conferida a datas. Em torno destas só há um formigamento de interesses individuais, de paixões não raro inconfessadas que se acendem e se apagam. Os efeitos teatrais que essas paixões ensejam (eventos tão celebrados e identificados por suas datas) na verdade logo foram modificados por outras microconjunturas nas quais novas ou velhas motivações se repropuseram ocupando e afinal engolindo os dias que foram passando… Tempus edax, tempo voraz.

No entanto, pode-se sondar mais fundo e mais pacientemente o que está sob a ponta do iceberg. Será que as massas submersas, que são a matéria do passado, se reduzem a blocos homogêneos, àquelas macroestruturas econômicas que a primeira leitura do tempo dava como base última do seu discurso? Na realidade, esses grandes quadros sucessivos, quando olhados de perto, se mostram animados pela intersubjetividade de homens, mulheres, famílias e grupos culturais que não deveriam perder a sua face nem reduzir-se à classificação de produtores, mercantes, senhores, escravos etc., que lhes aplicou o léxico forçosamente simplificador da historiografia sociológica.

Que desejos e pensamentos habitaram o cotidiano e que ideais e paixões animaram os gestos dos atores que nos aparecem “descobrindo a América em 1492” ou “morrendo para libertar a colônia mineira em 1792”?

O historiador que não quer, ainda que só movido por um sentimento de charitas pelos mortos, tudo resumir em uma catalogação dos tempos pretéritos (homem feudal, homem mercantil, homem industrial), mas se propõe avançar colhendo o sentido das intenções que enformaram a trama social no interior daqueles sistemas, deverá conviver com volições, atos expressivos, atos cognitivos, produções simbólicas, em suma, significados e valores que constituem o teor do culto e da cultura.

As formações simbólicas (cantos, poemas, danças) e todas as manifestações litúrgicas desenrolam-se em um tempo existencialmente pleno. Mais rigorosamente: são essas formações que tornam o tempo existencialmente pleno.

É um tempo que a presença humana qualifica. É um tempo no qual a ação dos afetos e da imaginação produz uma lógica própria, capaz de construções analógicas belamente ordenadas, como o viu com agudeza Lévi-Strauss, e como o disse antecipadoramente a Ciência nova de Giambattista Vico ao estudara lógica poética dos antigos gregos e romanos.

Se a economia procede mediante um jogo que alinha os mecanismos da produção, da oferta e da demanda, dispondo-os em séries, logo medindo-os (pois o tempo vale produção que, por sua vez, vale dinheiro), isto não significa que esta lógica seja a única regra interativa que aproxime estavelmente os homens em sociedade. Lévi-Strauss formulou uma hipótese segundo a qual o universo do mito, em que vivem os povos indígenas (e uma das dimensões cognitivas e afetivas em que vivem os modernos), se realiza como linguagem, pelas suas analogias, e constroi-se à maneira de uma pauta musical com seus retornos, acordes e suas correspondências horizontais e verticais.

O tempo em que se dizem os mitos e o tempo em que se cultuam os mortos também se caracterizam por ser uma composição de recorrências e analogias. A sua nota principal é a reversibilidade. Reversibilidade que é estrutural, pois abraça retornos internos. E reversibilidade que é histórica, pois as suas formas voltam e se transmitem de geração a geração. É uma lógica que parece reproduzir os movimentos cíclicos do corpo e da natureza. A reiteração dos movimentos, feita dentro do sujeito, faz com que este perceba que o que foi pode voltar: com essa percepção e com o sentimento da simultaneidade que a memória produz (recordo agora a imagem que vi outrora) nasce a ideia do tempo reversível. O tempo reversível é, portanto, uma construção da percepção e da memória: supõe o tempo como sequência, mas o suprime enquanto o sujeito vive a simultaneidade. O mito e a música, que trabalham a fundo a reversibilidade, são “máquinas de abolir o tempo”, na feliz expressão de Lévi-Strauss. Ora, a condição de possibilidade do mito e da música é a memória, aquela memória que se dilata e se recompõe, e à qual Vico chama fantasia. A memória vive do tempo que passou e, dialeticamente, o supera.

Considero, para ilustrar o fenômeno da reversibilidade, um provérbio português que se difundiu no Brasil desde os tempos coloniais:

Casamento e mortalha no céu se talha.

Se analisarmos a estrutura sonora do adágio, percebemos que boa parte da impressão e coerência que dele vem reside na rima que aproxima MORTALHA e TALHA; mais do que uma rima, é um eco, no qual o verbo talha, que significa “corta”, se contém em mortalha, roupa que se talha para o morto. Há, pois, na contextura fonética do período, uma redundância, pela qual a identidade de uma palavra retorna pouco adiante. A linguagem oral-popular, que é a primeira forma da fala, tende a durar, isto é, a manter a sua própria temporalidade graças à repetição das sensações auditivas que provoca.

Ritmicamente acontece um processo análogo. A primeira parte do provérbio, casamento e mortalha, é constituída de dois versos anapésticos, isto é, dois segmentos em que duas sílabas breves e fracas são seguidas, de cada vez, por uma sílaba longa e forte: O mesmo ritmo, encurtado e acelerado, volta na segunda parte: no céu se talha, em que há uma sílaba rápida e uma longa de cada vez:

Rima e ritmo são procedimentos de retorno, de encurvamento, de reversibilidade interna, estrutural.

Mas, se historicizarmos a locução oral-popular modulada nesse provérbio, encontraremos o fenômeno da tradição sapiencial, gnômica, que se exprime em relação a eventos fundamentais da existência, o casamento e a morte, aqui considerados como resultantes não do arbítrio humano, mas da vontade divina, da Providência ou, numa perspectiva, pré-cristã, do Destino, sempre fora do alcance dos mortais. É no céu que se talha, é lá que se tecem os fios que levam às núpcias e ao passamento final. Ora, essa visão sapiencial repropõe-se, sob a forma do resignado provérbio, em cada geração, transmitindo-se de pais a filhos, de avós a netos, dentro de um tempo qualificado que não morre com os mortos, mas lhes sobrevive. Ao lado, ou junto da reversibilidade formal, temos a reversibilidade histórica.

MEMÓRIA, CULTO E CULTURA: A “SUPERAÇÃO” DO TEMPO

A memória articula-se formalmente e duradouramente na vida social mediante a linguagem. Pela memória as pessoas que se ausentaram fazem-se presentes. Com o passar das gerações e das estações esse processo “cai” no inconsciente linguístico, reaflorando sempre que se faz uso da palavra que evoca e invoca. É a linguagem que permite conservar e reavivar a imagem que cada geração tem das anteriores. Memória e palavra, no fundo inseparáveis, são a condição de possibilidade do tempo reversível.

Eu me lembro do que não vi porque me contaram. Ao lembrar, reatualizo o passado, vejo, “historío” o que outros viram e me testemunharam.[2] “A História é a ressurreição do passado” (Michelet).

A liturgia é a celebração presentificante dos eventos que se deram há vinte séculos. A Eucaristia, por exemplo, é memória da Última Ceia, cuja comemoração solene se faz em toda quinta-feira santa. Por sua vez, a instituição da ceia comunitária, tal qual se deu no relato dos Evangelhos, aconteceu nos dias em que os judeus comemoravam a sua Páscoa, isto é, quando reviviam o dia da passagem dos hebreus pelo mar Vermelho contada no Livro do Êxodo, e que se teria efetuado treze séculos antes de Cristo. O culto de hoje recorda o culto de ontem que já celebrava o de anteontem. Uma tradição de trinta e três séculos assumida e reconstruída pela linguagem litúrgica.

Falo de religiões que desenvolveram um agudo senso histórico e até cronológico: a Escritura está pontuada de datas, algumas precisas, e durações de vida contadas em anos ou em gerações. Quanto ao Novo Testamento, é a religião do Verbo que se fez carne e “habitou entre nós”, isto é, se realizou na temporalidade histórica.

Mas, se passarmos às religiões que não compartilham o calendário judeu-cristão (os cultos xamanísticos por exemplo), sentiremos de modo pregnante a mesma reversibilidade. Os espíritos dos antepassados podem reaparecer quando chamados pelos crentes, porque tudo aquilo que eles foram não desapareceu: existe ainda agora, continua vivo. Os séculos não destruíram as entidades que neles viveram: o tempo ontológico dos espíritos está fora e liberto do tempo do relógio, embora possa habitá-lo e penetrá-lo nos momentos de epifania.

Em um plano muito geral, podem-se aproximar as descidas de santo dos cultos africanos e os sacramentos em que a presença do sagrado é atestada pela comunidade crente.

Na música, na poesia e na dança, o tempo é trabalhado internamente para, no conjunto, ser suspenso. Essa anulação subjetiva resulta de um processo de recorrências que despistam a serialidade das notas ou dos segmentos coreográficos. Na música o efeito de simultaneidade constitui uma conquista pela qual o sentimento, que é difuso e abrangente, se faz energia sonora indivisa.

Também na cultura leiga há momentos de ressurreição do tempo passado. A fase exemplar desse desejo de recuperar um tempo de idade de ouro foi a Renascença italiana. O nome já diz o conceito. Renascer reconhecendo, relendo e refazendo as obras que se consideravam imortais. Clássico é, para o humanista italiano do século XV, o que resiste ao tempo. Incorpora-se a outra hora (outrora) a esta hora (agora, de bac hora); e, nesse processo, a serialidade da diferença temporal é absorvida e superada não só pela evocação interna como também pela refacção do pensamento e do estilo antigo.

O diálogo com o passado torna-o presente. O pretérito passa a existir, de novo. Ouvir a voz do outro é caminhar para a constituição de uma subjetividade própria.

Lembro uma carta que Maquiavel escreve a seu amigo Francesco Vettori, datada de 10 de dezembro de 1513; carta que o saudoso Italo Bettarello nos lia, a nós estudantes de Literatura Italiana e seus alunos no fim dos anos 50. Nela o secretário florentino, exilado da pátria e confinado em um vilarejo rústico perto de Sancasciano, narra como passava o seu mísero dia.

De manhã, desde cedinho, em um sítio meio abandonado, altercando com lenhadores e vizinhos rapinosos que querem trapaceá-lo cortando e levando a sua madeira sem pagar ou regateando tostões na hora de comprá-la. Ao meio-dia, engolindo uma parca refeição que toma na vila com sua mulher e os quatro filhos. À tarde, de volta à hospedaria, passa o tempo com um moleiro, dois padeiros e um carniceiro jogando carta e dados (os jogos tinham então sonoros nomes, crícca e tricche-tracche): é a hora em que explodem mule contese e infínití dispetti, mil contendas e infinitos despiques, mas é também o momento de “tirar os miolos do mofo e desafogar a malignidade desta minha sorte”. O verbo usado para dizer esta catarse dos humores é sfogare, que Stendhal julgava uma das mais estranhas e belas palavras italianas; e, de fato, o francês parece não ter para o mesmo significado uma palavra que se emparelhe em expressividade com esse sfogare, que deita fora o fogo do coração. Nós a temos, “desafogar”.

E depois? Como findava Maquiavel aquela sua jornada tão mesquinha e inglória?

Quando cai a noite, volto para casa e entro no meu pequeno estúdio; e no limiar da porta me dispo daquela veste que usei durante o dia, cheia de lama e pó, e envergo trajes reais e curiais; e revestido condignamente, entro nas antigas cortes dos homens antigos, onde, recebido amoravelmente por eles, me nutro daquele alimento que verdadeiramente é meu, e para o qual eu nasci; então não me envergonho de falar com eles e perguntar-lhes a razão das suas ações; e eles, por humanidade, me respondem; e não sinto por quatro horas de tempo nenhum tédio, esqueço toda aflição, não temo a pobreza, não me assombra a morte; todo inteiro me transfiro neles.

E porque, diz Dante, não se faz ciência sem reter o que se entendeu, eu anotei aquelas coisas de que ia fazendo cabedal durante a conversação, e compus uma obrinha, De principatibus, onde me aprofundo quanto posso nas cogitações dessa matéria, disputando o que é um principado, de que espécie sejam os estados, como se adquirem, como se mantêm, porque se perdem.

E nesta altura, Maquiavel está contando ao amigo, com divina simplicidade, a gênese do Príncipe, esta obrinha, como a chama, que fundou a ciência moderna da Política, e que aparece formando-se no diálogo sempre vivo entre o Exilado e os textos latinos não só lidos mas interpelados noite a dentro naquela solidão povoada de vozes mortas e vivíssimas: “[…] me nutro daquele alimento que verdadeiramente é meu, e para o qual eu nasci […]”.

O reencontro do tempo antigo pelo moderno faz pensar em um fenômeno que tende a aprofundar-se e a estender-se em nossos dias: o do convívio dos tempos. Muitos consideram peculiar à pós-modernidade a coabitação de estilos de vida e de pensamentos distintos. Essa convivência pode ser forçada, artificial, promovida pelo mercado cultural, moda parente da morte. Mas pode acontecer espontaneamente, sinal de que o tempo que se vive não é homogêneo. Senha de riqueza e contradição que instiga a nossa mente e exige deciframento.

Gostaria de concluir voltando o olhar para o Brasil.

Já que começamos recortando datas-símbolo e especulando sobre elas, apraz-me recordar uma, que não será tão remota: 1956.

Debaixo dessa ponta de iceberg, o que vamos encontrar?

Em 1956 o presidente bossa-nova, Juscelino Kubitschek, recém-empossado, lança o seu ambicioso Programa de Metas que incluirá a mudança da Capital para o Oeste, a ousada construção em pleno e ermo cerrado de uma cidade inteiramente planejada, Brasília, pensada por dois paladinos da nossa modernidade artística, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer.

1956 significará também a abertura do país ao capitalismo internacional e a criação da indústria automobilística. 56, na cabeça dos políticos modernizado-res, representa o ano do deslanche do desenvolvimento, a aceleração dos ritmos. Cinquenta anos em cinco, eis um lema sintomático que, para nós, tem tudo a ver com a imagem daquele tempo vectorial, daquele tempo-flecha que avança na direção de um estágio que deverá superar os anteriores. Um ritmo que quer queimar etapas, de resto, sabe-se que acelerar o processo se diz também: aquecer a economia.

Aos olhos de uma sociologia reducionista da cultura, pela qual o externo dos fatos sociais se converte no interno das criações da arte, o programa modernizador de Juscelino teria encontrado a sua imagem especular no lançamento da Poesia Concreta em São Paulo naquele mesmo ano quente de 56.

Tratava-se de um movimento sem dúvida atualizador da nossa literatura, animado por um projeto coerente de construção semântica mediante o uso dos espaços da página, e que já corresponderia a mecanismos da informática nascente.

Brevidade, agilidade, simultaneidade, espacialidade. No fundo, uma tentativa de racionalizar a lógica poética, dela subtraindo os componentes sentimentais, românticos, e dela excluindo também, e polemicamente, os resíduos folclóricos e toda complacência com saudades do Brasil arcaico. O Brasil avançava também na trilha da superação estética, e a poesia brasileira que se propunha como vanguardeira abria-se às exigências internacionais da revolução eletrônica e computacional.

Havia igualmente começado, na mesma década de 50, o fascínio pela TV. E coerentemente formulavam-se teorias visuais — e não mais estritamente verbais — do fenômeno literário. No espírito do enfoque inicial destas páginas, 1956 seria mais um ponto na linha-vetor em que o depois sempre ultrapassa em valor o que veio antes.

Mas o tempo da criação, como diz Konrad Lorenz, traz no bojo o imprevisível, o diferente e, acrescentaríamos, o resistente.

1956 não é só o ano do take off desenvolvimentista. 1956 não é só o ano da instauração do concretismo. 1956 é também o ano em que Guimarães Rosa, o maior escritor brasileiro do século, lança o seu Grande sertão: veredas. Agora, debaixo da ponta do iceberg, as massas submersas apresentam outra e estranha consistência.

Em Rosa a linguagem narrativa não é só sintaxe, sequência, é também mito e poema. Como tal, alcança reviver, polifonicamente, as riquezas e os enigmas da sabedoria arcaica mediante a travessia pelas mentes e pelos corações sertanejos e pela sua oralidade tal como se manifestava nas Minas Gerais do começo do século.

A cultura literária complexa e, em alguns aspectos, sem dúvida moderna, de Guimarães Rosa dobra-se até o solo cultural do homem rústico, do homem iletrado que é o jagunço. Os seus dramas de agora e de sempre, envolvendo o amor e a morte, buscam uma tradução metafórica em categorias metafísicas de Destino, Salvação e Danação, palavras cujas origens no tempo são para nós, modernos, inalcançáveis.

Em Grande sertão: veredas é o pacto com o demônio que interpreta, medieval e fausticamente, a luta de morte com o inimigo. É o mito que veicula o real terra-a-terra e dá-lhe sentido.

Em Grande sertão: veredas é o intenso e solene sentimento da natureza que modula a relação do homem com a mulher, do homem com o companheiro amado até a angústia do impossível, do homem consigo mesmo, do homem com o transcendente.

Em termos de estruturas linguísticas: aqui é o provérbio, a expressão feita, a cantiga breve e insólita, dotada de recorrências misteriosas e arcanas, que permitem o reconhecimento do cotidiano e a sua compreensão.

Mas onde estamos em 1956? No mito, na linguagem arcaica e popular, na evocação do contexto jagunço, na volta apaixonada à natureza mais agreste? Ou na arrancada para a modernização definitiva?

João Guimarães Rosa, cidadão que, na vida profissional e pública, foi estreitamente ligado ao governo de Juscelino, dá as costas para qualquer veleidade modernizante. O seu tempo existencial é outro. Outra é a sua matéria vertente.

* * *

A cronologia, que reparte e mede a aventura da vida e da História em unidades seriadas, é insatisfatória para penetrar e compreender as esferas simultâneas da existência social.

Nos países de passado colonial como o Brasil (e isto valerá agudamente para o México e o Peru, a co-habitação de tempos é mais evidente e tangível do que entre alguns povos mais sincronicamente modernizados do Primeiro Mundo.

Talvez o nosso processo de aculturação euro-afro-americano ainda esteja longe de ter-se completado. E certamente os seus descompassos e a sua polirritmia ferem os ouvidos afinados pelo som dos clarins e das trombetas evolucionistas. Por tudo isso, é preciso escutar a nossa música sem pressa nem preconceito. Com delicada atenção. É um concerto que traz um repertório de surpresas, é verdade, mas que, no seu desenrolar-se, está constituindo a nossa identidade possível. Somos hoje a memória, viva ou entorpecida, do ontem e do anteontem e o prelúdio tateante do amanhã.

Enfim, para ser fiel à imagem expressa na abertura destas linhas: o que seriam hoje as datas, aquelas pontas de icebergs, se fossem cortadas e destacadas das suas massas submersas?

Blocos soltos, blocos erráticos que vagariam na superfície crespa das águas e, chocando-se uns nos outros, se destruiriam no mar cruel da contemporaneidade.

As datas, como os símbolos, dão o que pensar.

Notas

[1] Marcel Conche, Epicure — Lettres e Maximes, Épiméthée, op. cit.

[2] As palavras visão, ideia e história têm raiz indo-europeia comum.

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