2014

O silêncio e sua representação

por Renato Lessa

Resumo

Um dos conceitos mais centrais introduzidos por Primo Levi, em seu esforço de testemunho a respeito do campo de extermínio de Auschwitz, está contido na ideia de “chegar ao fundo”. Nesse sentido, o conceito de “chegar ao fundo” possui implicações antropológicas importantes, já que submergir na direção do fundo – além do qual nada mais dotado de vida pode existir – exige o apagamento de toda experiência do sujeito. Ao chegar ao fundo, “a realidade nos foi revelada”, uma realidade que se apresenta como supressão radical de tudo que é ordinário. Levi em sua obra sugere uma instigante relação entre o Campo de extermínio e a ideia de verdade.

Um dos pontos recorrentes nos relatos de Primo Levi consiste em indicar o quanto a linguagem e as crenças do homem normal, recém-chegado ao Campo, colapsam diante do que agora aparece como inominável. As palavras simples e ordinárias, mesmo as que na vida civil designavam objetos de temor, aparecem agora como sons inarticulados e inadaptados à escala inaudita de malignidade, proporcionada pelo campo de extermínio.

O que se afigura na experiência do Campo é antes a inutilidade do pensamento e, por extensão, da linguagem que o supõe. O exemplo mais forte em Primo Levi dessa indução à inutilidade do pensamento pode ser encontrado no episódio da supressão do por quê.

Primo Levi, ao fim de horas de rituais intermináveis e de sede insuportável em sua chegada ao Campo, vê do lado de fora de uma janela “um bonito caramelo de gelo”. Estende a mão, colhe o caramelo que lhe é imediatamente arrancado por um guarda. Diante do ato, a pergunta ordinária, na verdade a mais ordinária das perguntas, balbuciada em seu “pobre alemão”: Warum?

A resposta, nada ordinária, é assustadora: “Aqui não existe ‘por quꔑ.

Um mundo onde não há por quê é um domínio no qual narrativas básicas – histórias – não podem ter lugar. É o próprio princípio da causalidade que está aqui em questão. Somos portadores de crenças causais, e a linguagem que exprime tais crenças exige o por quê como operador necessário. Diante de um mundo constituído segundo a lógica do Campo, os sistemas mentais apegados à pergunta humana básica a respeito do por quê das coisas perdem todo o sentido. Um ceticismo fundo resulta de tal supressão. Da supressão da linguagem ao silêncio: o nexo é mais do que evidente, é necessário. Não é, pois, acidental que na narrativa de Primo Levi, tanto em É isto um homem? como em A trégua, episódios pungentes de silêncio tenham lugar e espaço proeminentes.

O silêncio em Primo Levi possui, ao menos, duas valências: vale como registro da ontologia do Campo e como índice da recusa de uma explicação sistemática. Por se situar fora da normalidade, o Campo não é submetido a narrativas causais tradicionais, voltadas para revelar-lhe o sentido. O sobrevivente/ narrador é como que marcado por forte ceticismo: não há, para ele, sistema capaz de revelar o absurdo de Auschwitz em sua totalidade. Em outros termos, não há como explicá-lo ou submetê-lo a redes de causalidade. Mas tal contenção cognitiva – promovida filosoficamente pelo ceticismo – acabará contraditada por um imperativo de ordem moral: o de prestar testemunho. O resultado revela uma fisionomia compósita: um narrador cético que presta testemunho. Envolver o observador e interpelar a sua sensação autárquica é tarefa imperativa para as narrativas de testemunho. O testemunho é algo cuja produtividade depende da dissolução do halo protetor que envolve o espectador incólume.

É a percepção do caráter excessivo do fragmento que interdita a constituição do observador como espectador incólume. No caso de Primo Levi, a apresentação dos fragmentos vem acompanhada de um recurso coadjuvante. Uma voz nos interpela, com frequência, quando estamos diante dos fragmentos mais doloridos. A todo momento somos fustigados com perguntas, a maior de todas contida no título da memória maior do Campo: É isto um homem?.


O Holocausto é mais do que um tema: é um estado de espírito.

IMRE KERTESZ

[…] après Auschwitz, on ne peut plus écrire de poésie que sur Auschwitz.

PRIMO LEVI

ABERTURA EM FRAGMENTOS

  1. Auschwitz, em sua máxima expressão – a do aniquilamento completo de suas vítimas -, pode ser imaginado como vitória total do silêncio e supressão definitiva de vozes humanas.

1.1. Ao fim de tudo, impõe-se o silêncio, precedido tão somente da inutilidade e terminalidade dos sons humanos.

1.2 . Tal como um coro em desespero, as derradeiras vozes terminam por reconhecer o verdadeiro operador do silêncio – a morte -, e nele se dissolvem.

  1. Penso nos gritos, e revejo mentalmente a marca das unhas deixadas nas paredes, na primeira e pequena câmara de gás de Auschwitz. Reconheço em tais marcas sinais de uma partitura, cujos sons podem ser reconstituídos pelos que sabem a métrica e a harmonia da dor humana.

2.1. Penso nos gritos suprimidos pelas campânulas de Zyklon B, que contêm a um só tempo o gás da morte e a antecipação do silêncio.

  1. Para o homo lager[1], o silêncio ainda em vida é imposição e, mais do que isso, efeito que resulta da supressão das línguas e da possibilidade da elaboração simbólica.

3.1 Se do ponto de vista existencial for possível dizê-lo, eis aqui o núcleo do efeito holocausto: erradica-se nele o atributo básico da natureza humana revelado por Kenneth Burke: Man is a symbol making using animal[2]

3.2. O silêncio do homo lager é seu confinamento ao grito primordial e ao reconhecimento de que só há a dor e, do ponto de vista da expressão, seu urro básico[3].

3.3. Uma dor sem nome.

3.4. Se submetido à pergunta filosófica básica de Willard Quine – “o que há?”-, o homo lager poderia, em uma suposição um tanto alucinatória, responder: a dor.

3.4.1 Poderia fazê-lo, mas não na linguagem ordinária que contém o signo dor.

3.4.2 A resposta poderia sobrevir por meio de um esforço gutural de superação do silêncio e da mais profunda autorrevelação, posto não haver aqui engano possível.

3.4.3 Trata-se de uma autorrevelação que dispensaria a própria linguagem – sede da sempre incerta adequação entre signo e mundo – e que se traduz como um dos sons possíveis do silêncio.

3.4.4 A expressão não simbolizada da dor configura a maior aproximação possível dos seres humanos com algo que poderíamos designar como verdade.

3.5 O que se apresenta, pois, é um silêncio que revela o homo lager como não sujeito, em dois planos cruciais.

3.5.1 Ele já não existe para os que o observam e, sobretudo, inexiste para dentro, para si: já não há mais sujeito ali.

3.5.2 No limite, ele é algo através do qual a dor impõe o seu império.

  1. Se o mundo humano é configurado por jogos de linguagem, como imaginar um mundo no qual a linguagem foi suprimida? Ou ainda: que linguagem adotar para designar e descrever um mundo no qual opera essa falha monstruosa? Como representar o silêncio?
  2. Toda linguagem está associada a uma experiência marcada pela finitude.

5.1 Quando o sujeito fala, são as suas circunstâncias que estão a falar.

5.2 A experiência com o ilimitado e com o eterno não pode reconhecer e acolher a presença da linguagem, posto que nomear é dar um limite e um tempo. Toda linguagem tem, pois, parte com a finitude.

5.2.1 Este é o sentido, por exemplo, das prescrições teológicas que dizem da irrepresentabilidade de Deus, tal como indica o conceito hebraico de ein sof, o que não tem limite, o que não se dá a ver.

      1. O não limite não releva da extensão sem limite, mas da ausência de invólucro existencial. Nada além dele pode existir.
      2. Não podemos sequer declinar o seu nome, pois isto seria involucrá-lo em uma voz humana, datada e inapelavelmente vinculada ao nosso próprio abismo.
      3. Nosso abismo é o infinito-para-dentro, que quando se esvai na linguagem se faz finito e perecível.

5.2.4.1. A agonia da condição humana muito devém desse hiato, dessa antinomia entre o infinito-para-dentro e a imposição de uma inscrição finita e precária na vida.

5.2.5 O não limite de Deus, posto pelas fontes judaicas medievais, se apresenta de modo claro em Spinoza – nesse particular, um pensador extremamente ortodoxo -, quando fala do divino como uma substância infinita composta de infinitos atributos infinitos.

5.2.5.1. A solução spinoziana para a ilimitação de Deus e para a impossibilidade de nomeação que disto decorre está presente na fórmula Deus sive Natura.

5.2.5.2 Um efeito nec plus ultra se estabelece: nada de maior pode ser pensado ou imaginado.

5.2.5.3 Quis, ainda, Spinoza que o infinito-para-dentro fosse uma expressão e um complemento do infinito-para-fora de nós.

5.2.5.4 Já não há, pois, abismo, mas complementaridade entre a potência humana e a totalidade da existência.

6. Imagine um experimento no qual o fundo de cada um, mais do que destruído, é tornado inacessível.

6.1 É que o homo lager já não dispõe dos meios linguísticos e simbólicos capazes de garantir o acesso ao que naturalmente cria ser a sede do seu sujeito.

6.2 O homo lager é possuidor da prerrogativa do maior esclarecimento possível: já não há mais fundo; já não há fundamento.

6.3 A antropologia do homo lager foi inteiramente prefigurada pelos enleamentos da teologia negativa: o não fundo e o não fundamento, para todos os efeitos, fazem de fundo e fundamento, pois nada além se pode atingir.

7. O silêncio dos que seguem para a morte é, ainda, como o silêncio metafísico: não há nada, ou melhor, só há o nada, o encontro com o absurdo e com o eterno.

7.1 Temos, pois, aqui um ato de elucidação final: a descoberta do eterno, o encontro com o absurdo e com o nada.

    1. Os que se dirigem ao eterno são como mônadas vazias, desprovidas de sentido e de linguagem.

8. Eis aqui o interesse filosófico em pensar o Campo: pensar a condição humana inscrita em um domínio no qual a vida é impossível. Penso não haver tema mais urgente ou relevante do que o do silêncio das vidas suprimidas.

AUSCHWITZ-BIRKENAU: UMA EXPERIÊNCIA PESSOAL COM O SILÊNCIO DOS CAMPOS

Entrei em Auschwitz em uma manhã invernal, em fevereiro de 2004. As semanas anteriores, na região em torno de Cracóvia, haviam sido pesadamente atingidas por nevascas e severas quedas de temperatura. Ao frio de cerca de 20 graus negativos somavam-se as montanhas de neve e placas de gelo sobre o piso escorregadio. A olhos tropicais, como os meus, o cenário conservava um quê de convite à ludicidade, a despeito da simbologia mais do que cristalizada da iminência da visão da casa dos mortos e de suas dores. Mas, de toda forma, as associações da infância acabam sempre por nos governar. David Hume diria que um operador infantil se apoderou, por um átimo, da minha fábrica de associação de ideias.

Preparara-me para alcançar Auschwitz por meio do ônibus regular que sai da estação de Cracóvia, em uma pequena viagem de cerca de hora e meia. No trajeto do bairro judeu à estação, onde imaginava embarcar no primeiro ônibus da manhã, o taxista polonês ofereceu-se para conduzir-me ao Campo por razoáveis 400 zlotych, o que incluía a visita ao campo original – Auschwitz I, Auschwitz II-Birkenau -, a espera e o regresso a Cracóvia. Esse arranjo inesperado – e excelente – fez com que minha chegada ao Campo antecedesse em cerca de uma hora a dos demais visitantes do dia.

Devo dizer, portanto, que entrei em Auschwitz só, por volta da oito e meia da manhã de um dia de inverno. Os contornos dessa descrição parecem apropriados à iminência de um evento traumático. No entanto, o contato doloroso foi mediado e atenuado pela entrada em um recinto, análogo ao de qualquer museu, que antecede o ingresso propriamente dito no Campo.

Um pavilhão de entrada, com uma pequena loja de lembranças, um guichê para doações – é gratuita a visita a Auschwitz – e uma porta lateral, ao fundo. Ao lado desse pavilhão há um café, no qual se reúnem os motoristas poloneses enquanto seus clientes deambulam pelo Campo. Não resisti à curiosidade de provar o café de Auschwitz, apenas para encontrar o gosto do absurdo completo de estar em Auschwitz a tomar café.

Depois da mediação da entrada, o ingresso no Campo e a passage sob o seu pórtico. A hora prematura e o inverno inclemente cuidavam do rigoroso silêncio das aleias de Auschwitz. Devo dizer que havia beleza nas ruas internas cobertas de branco, na simetria dos blocos dispostos em intervalos rigorosamente regulares e devidamente numerados. Beleza e silêncio.

Parte dos blocos contém museus temáticos, destinados a vítimas de diferentes países. A nacionalização das vítimas e a crescente apresentação de Auschwitz como um santuário polonês – nacionalista e católico – deixaram claro para mim a exigência de um esforço de abstração como forma de aceder ao horror original.

Em outros termos, ao silêncio invernal das aleias – muito devido à ausência de visitantes – sucedeu-se a experiência de um mundo, dividido em fragmentos museográficos, que acaba por constituir-se como lugar de uma evidência excessiva, de uma verdade exposta com a clareza e o didatismo de um quadro sinóptico. Como se o horror fosse parcimonioso e ordenado em suas manifestações originais. Como se o horror maior do Campo não fosse a sua radical opacidade e a sensação de que o monstruoso é da ordem do que não se mostra, do que não é revelado. De um suposto sem forma, sem possibilidade de representação antecipada: aqui a imaginação é inútil e colapsa diante do espaço-tempo opaco que se interpõe entre o sujeito e o momento de sua morte.

A lógica do memorial e do museu está presente, ainda, na catolicização de Auschwitz, em sua transformação em espaço polonês e em sede de uma martiriologia católica: há aqui sinais católicos eloquentes, cruzes, procissões, imagens…

Da mesma forma, trata-se de um espaço não immune à pior das profanações: as flores ao pé da forca na qual foi justiçado Rudolf Hoess, o último comandante de Auschwitz, o demonstram (flores de alemães, segundo contou-me um funcionário do Campo).

Ao entrar nos espaços museológicos de Auschwitz descobri um evento ruidoso, um esforço por fazer falar o silêncio do Campo, da maneira mais clara, sinóptica e didática possível, com a consequência bizarra de interditar a experiência própria com o silêncio. O erro talvez tenha sido meu: é possível que eu tenha ido a Auschwitz para perceber o silêncio básico e original do Campo. E esse não há mais. É errado supor que os mortos deixaram atrás de si o silêncio.

Antes que os ruídos humanos ordinários dos visitantes se impusessem, meu motorista levou-me a Auschwitz II-Birkenau, o Campo maior. Seria ingênuo dizer que não há cuidados museológicos em Birkenau.

Eles são reconhecidos nas discretas indicações: as latrinas, o campo feminino, a escola, os crematórios, a rampa nova na qual desembarcaram os hungaros etc. Mas o que ressalta da experiência da visita a Birkenau é que ela extenua o visitante, pela imensa extensão do Campo e por seu estado de ruína intocada. As portas dos barracões estão como que entreabertas; descuidadamente entreabertas, como se há pouco fossem habitados, como se a supressão da agonia fosse recente.

Enfim, a experiência do silêncio. Silêncio como tempo congelado – metáfora fortemente apoiada nas circunstâncias climáticas da visita. Não há didatismo em Birkenau, apenas a imobilidade dos barracões e das ruínas (há mesmo uma especialização técnica dos arquitetos envolvidos com patrimônio histórico em Cracóvia, a respeito dos limites éticos e estilísticos de preservação de uma ruína). Há, ainda, a exigência de esforço físico do visitante, dadas as dimensões gigantescas de Birkenau. Ao visitar esse lugar da morte é quase impossível não se sentir como um interno. Em outros termos, embora Birkenau seja um lugar de memória, a gramática e a semântica dos museus não se apresentam do modo usual. Birkenau mostra-se, enquanto o Campo original-Auschwitz I – apresenta-se como esforço de explicação.

Por fim, tal como frascos antigos e lacrados que, uma vez descobertos por arqueólogos, revelam o ar e os odores de suas épocas, Birkenau, ainda hoje, segrega o silêncio originário do Campo, ou a forma final da Shoah.

O SILÊNCIO EM PRIMO LEVI: “CHEGAR AO FUNDO”

Um dos conceitos mais centrais introduzidos por Primo Levi, em seu esforço de testemunho a respeito de Auschwitz, está contido na ideia de “chegar ao fundo”[4]. Ao mesmo tempo em que os sinais de aniquilamento exterior das vítimas aí estão mais do que presentes, o conceito revela algo que opera para dentro. O nada interno encontra correspondência em um processo externo de destruição do sujeito. Chegar ao fundo, pois, significa o trabalho completo de transformação do homo sapiens em homo lager.

Nesse sentido, o conceito de “chegar ao fundo” possui implicações antropológicas importantes, já que submergir na direção desse patamar último – além do qual nada mais dotado de vida pode existir – exige o apagamento de toda experiência do sujeito. O “fundo”, portanto, é um mínimo vital, cuja vigência desprovida de outros atributos exige a destruição do seu portador. O ensinamento antropológico? O de que atingimos o nosso fundo/fundamento apenas através de processos de aniquilamento do sujeito em nós. Não vale, pois, a pena retrocedermos excessivamente a montante.

Ao chegar ao fundo, “a realidade nos foi revelada”, uma realidade que se apresenta como supressão radical de tudo que é ordinário. O cético Levi, nessas passagens sugere uma instigante relação entre o Campo e a ideia de verdade[5].

A iminência da chegada ao fundo possui, ainda, indicadores claros. Em primeiro lugar, é a própria linguagem ordinária que perde qualquer sentido. Esse é um dos pontos recorrentes nos relatos de Primo Levi: indicar o quanto a linguagem e as crenças do homem normal, recém-chegado ao Campo, colapsam diante do que agora aparece como inominável. As palavras simples e ordinárias, mesmo as que na vida civil designavam objetos de temor, aparecem agora como sons inarticulados e inadaptados à escala inaudita de malignidade, proporcionada pelo campo de extermínio. O registro de Primo Levi é preciso: “[…] pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem”[6].

Mas seria uma simplificação supor que o colapso da linguagem deve-se apenas ao caráter inédito dos fenômenos inauditos do Campo. O ineditismo fenomênico sempre foi tratado pelo animal humano através de jogos metafóricos e analógicos e neologismos renovados e, dessa forma, a linguagem logra capturar o universo dos eventos. Não. O que se afigura na experiência do Campo é antes a inutilidade do pensamento e, por extensão, da linguagem que o supõe.

O exemplo mais forte em Primo Levi dessa indução à inutilidade do pensamento pode ser encontrado no episódio da supressão do por quê.

Tendo sobrevivido à seleção inicial, Primo Levi percorre os rituais de entronização no Campo, sempre pontuados por longas esperas – de pé e em silêncio – entre etapas nas quais se mostrava uma curiosa mescla de absurdo e método (nudez, tosquia, banho, desinfecção, tatuagem etc.). Ao fim de horas de rituais intermináveis e de sede insuportável, Primo Levi vê do lado de fora de uma janela “um bonito caramelo de gelo”. Estende a mão, colhe o caramelo que lhe é imediatamente arrancado por um guarda. Diante do ato, a pergunta ordinária, na verdade a mais ordinária das perguntas, balbuciada em seu “pobre alemão”: Warum?

A resposta, nada ordinária, é assustadora: “Aqui não existe ‘por quꔑ.

A passagem exibe algo próximo ao impensável: um mundo onde não há por quê. Um mundo onde não há por quê é um domínio no qual narrativas básicas – histórias – não podem ter lugar. É o próprio princípio da causalidade que está aqui em questão. Os seres humanos são animais que atribuem causas, que constroem associações imaginárias nas quais eventos e ideias sucedem-se uns aos outros, e que podem ser elucidadas a partir de perguntas causais. De modo mais simples, o que se está a dizer é que somos portadores de crenças causais, e a linguagem que exprime tais crenças exige o por quê como operador necessário.

Diante de um mundo constituído segundo a lógica do Campo, os sistemas mentais apegados à pergunta humana básica a respeito do por quê das coisas perdem todo o sentido. Um ceticismo fundo resulta de tal supressão. Mais uma vez, uma passagem de Primo Levi acaba por impor-se: “Diante desse mundo infernal, minhas ideias se confundem: será mesmo necessário elaborar um sistema e observá-lo? Não será melhor compreender que não se possui sistema algum?”[7].

Da supressão da linguagem ao silêncio. O nexo é mais do que evidente, é necessário. Não é, pois, acidental que na narrativa de Primo Levi, tanto em É isto um homem? como em A trégua[8], episódios pungentes de silêncio tenham lugar e espaço proeminentes. Dois episódios, penso, são suficientes para indicar o peso e a centralidade do silêncio.

Em primeiro lugar, o episódio de Hurbinek – o menino mudo de Auschwitz -, narrado em A trégua.

Hurbinek era um menino de três anos de idade, “um filho da morte, um filho de Auschwitz”, “o mais inerme entre nós… o mais inocente” e incapaz de falar. O nome fora-lhe atribuído a partir de uma interpretação das silabas que emitia, de quando em quando.

Diz Primo Levi:

Estava paralisado dos rins para baixo, e tinha as pernas atrofiadas, tão adelgaçadas como gravetos; mas os seus olhos, perdidos no rosto pálido e triangular, dardejavam terrivelmente vivos, cheios de busca de asserção, de vontade de libertar-se, de romper a tumba do mutismo. As palavras que lhe faltavam, que ninguém se preocupava de ensinar-lhe, a necessidade da palavra, tudo nisso comprimia o seu olhar com urgência explosiva: era um olhar ao mesmo tempo selvagem e humano, aliás, maduro e judicante, que ninguém podia suportar, tão carregado de força e de tormento[9].

Cuidado diligentemente por Henek, vizinho de cama de Primo Levi na enfermaria do “Campo Maior” de Auschwitz, Hurbinek balbuciava um som incompreensível para todos, algo como mass-klo ou matisklo.

Segue o relato de Primo Levi:

Hurbinek continuou, enquanto viveu, as suas experiências obstinadas. Nos dias seguintes, todos nós o ouviamos em silêncio, ansiosos por entendê-lo, e havia entre nós falantes de todas as línguas da Europa: mas a palavra de Hurbinek permaneceu secreta. Não, não devia ser uma mensagem, tampouco uma revelação: era talvez o seu nome, se tivesse a sorte de ter um nome; talvez (segundo uma de nossas hipóteses) quisesse dizer “comer” ou “pão”; ou talvez “carne” em boêmio, como sustentava, com bons argumentos, um dos nossos, que conhecia essa língua.

Hurbinek, que tinha três anos e que nascera talvez em Auschwitz e que não vira jamais uma árvore; Hurbinek, que combatera como um homem, até o último suspiro, para conquistar a estrada no mundo dos homens, do qual uma força bestial o teria impedido; Hurbinek, o que tinha nome, cujo minúsculo antebraço fora marcado mesmo assim pela tatuagem de Auschwitz; Hurbinek morreu nos primeiros dias de março de 1945, liberto mas não redimido. Nada resta dele: seu testemunho se dá por meio de minhas palavras[10].

Hurbinek vale, penso, como uma metáfora do Holocausto. Na verdade, Hurbinek encerra em si mesmo o Holocausto, na sua mais intensa e inacessível imanência, no seu silêncio mais irredimível. Nada dele se sabe, exceto que sofria e não podia dizê-lo. Alguém terá de fazê-lo em seu lugar. Hurbinek, nesse sentido, pode ser percebido como um evento sem testemunha, para empregar a expressão de Shoshana Felman, empregada a propósito de uma discussão sobre o filme Shoah, de Claude Lanzmann. O segundo episódio é apresentado logo ao início de É isto um homem?, e descreve a atividade diligente das mães no Campo de Fossoli, antes da transferência para Auschwitz.

Aqui o que emerge é a cena das mães em silêncio, como que a seguir os seus instintos, como mães animais, precisas e irreflexivas. As mães a seguir o destino do seu próprio instinto: cuidar dos filhos, de suas roupas, alimentá-los, limpá-los, vesti-los etc. Mesmo na iminência da ida para o campo de extermínio.

Primo Levi observa as mães em silêncio e quando, anos mais tarde, as inscreve em seu texto de testemunho volta-se ao leitor/ observador e o interpela: “Será que vocês não fariam o mesmo? Se estivessem para ser mortos amanhã, junto com seus filhos, será que hoje não lhes dariam o que comer?”[11].

As implicações dessa interpelação serão tratadas adiante. Antes importa refletir a respeito de uma questão instigante: como representar o silêncio?.

COMO REPRESENTAR O SILÊNCIO? (OU MOSTRAR POR FRAGMENTOS)

Da mesma forma que exemplos de silêncio estão presentes nas narrativas de Primo Levi, fragmentos ali são legionários. Em É isto um homem?, por exemplo, o leitor não encontrará um fio narrativo continuado, mas o suceder de episódios, cuja força expressiva máxima dá-se a ver através de pormenores.

Alguns exemplos, creio, são suficientes para indicar a força desse esquema formal, o do proceder por fragmentos.

É o caso de voltarmos ao episódio das mães que seguem o destino do seu instinto, em um dos mais eloquentes fragmentos construídos por Primo Levi. Por um breve momento, observa o que faziam as mães, a preparar “com esmero as provisões para a viagem”, a dar banho em suas crianças, a arrumar suas malas e a lavar suas roupas. O fecho textual está contido em uma das frases mais fortes de todo o livro: “Ao alvorecer, o arame farpado estava cheio de roupinhas penduradas para secar”[12]. O fragmento capta, a um só tempo, o detalhe, o absurdo e o destino. E prossegue: “Elas não esqueceram as fraldas, os brinquedos, os travesseiros, nem todas as pequenas coisas necessárias às crianças e que as mães conhecem tão bem”[13].

São pormenores pungentes: a banda de música, o ritual de engraxar o tamanco, de fazer as camas à perfeição dentro dos barracões. David Rousset, por seu lado, viu nesses rituais uma dimensão ubuesca do Campo, em seu livro L’Univers concentrationnaire: “[…] os campos são de inspiração ubuesca. Buchenwald vive sob o signo de um enorme humor, de uma bufoneria trágica”[14].

A própria história, aqui já aludida, de Hurbinek é um fragmento mínimo do experimento Auschwitz. Ao mesmo tempo encerra uma imensa capacidade metonímica: sem dar passagem à visão do todo, sugere ao leitor, por sua força sintética, algo que pertence à essência mesma do Campo. Do mesmo modo, a imagem do “caramelo de gelo” suprimido vale muito mais do que qualquer enunciado conceitual a respeito da metafísica da ausência de sentido. É como se, pelo fragmento, um efeito ímã pudesse atingir o leitor/ observador, pelo fato de carregar consigo uma voz subentendida: imagine-se nessa condição.

Mas, para além de listar eventos textuais nos quais o proceder por fragmentos se apresenta, cabe indagar: que nexo se constitui entre o silêncio e a narrativa fragmentária? Em que medida o esforço desmedido de representar o silêncio dá passagem a uma forma estética particular?

O silêncio em Primo Levi possui, ao menos, duas valências: vale como registro da ontologia do Campo e como índice da recusa de uma explicação sistemática.

Por se situar fora da normalidade, o Campo não é submetido a narrativas causais tradicionais, voltadas para revelar-lhe o sentido. O sobrevivente/ narrador é como que marcado por forte ceticismo: não há, para ele, sistema capaz de revelar o absurdo de Auschwitz em sua totalidade. Em outros termos, não há como explicá-lo ou submetê-lo a redes de causalidade. Mas tal contenção cognitiva – promovida filosoficamente pelo ceticismo – acabará contraditada por um imperativo de ordem moral: o de prestar testemunho. Como sabemos, o imperativo impôs-se à dúvida cética, mas sem suprimi-la. O resultado revela uma fisionomia compósita: um narrador cético que presta testemunho. Tal tensão, Primo Levi a reconhece no próprio ânimo dos internos, ainda não destruídos em seus atributos humanos básicos. Em um conto intitulado “Auschwitz, cidade tranquila”, Primo Levi recorda a condição básica dos prisioneiros, que tinham “fome de pão e também de entendimento”. No entanto, a “fome de entendimento” mostrava-se – tal como seu correspondente fisiológico – impossível de ser saciada, dado o permanente estado de confusão ontológica na qual seus portadores estavam inapelavelmente inscritos. Esse parece ser o sentido da seguinte passagem:

O mundo ao nosso redor parecia de cabeça para baixo, portanto alguém devia tê-lo virado, e por isto estar ele também de cabeça para baixo: um, milhares, um milhão de seres anti-humanos, criados para torcer aquilo que era direito, para sujar o limpo. Era uma simplificação ilícita, mas naquele momento e naquele lugar não éramos capazes de conceber ideias complexas[15].

Trata-se, pois, de dar a saber de um mundo no qual aqueles nos quais o sujeito não havia sido destruído eram incapazes de “conceber ideias complexas”.

A positividade desse narrador exige, portanto, a solução – a um só tempo formal e substantiva – de um problema incontornável, o da representabilidade do silêncio e de um mundo no qual ideias complexas não podiam ser concebidas. O modo de resolvê-lo põe em ação uma definição/ apresentação do observador despido de sistemas como sujeito de uma experiência que se reconstitui a partir da apresentação de fragmentos. Em outros termos, a ausência de sistemas – “ideias complexas” – não erradica a ordem dos fenômenos, e são eles que acabam por ser retidos pela memória e se constituem em matéria básica do testemunho.

Um testemunho que sobrevirá como registro de fragmentos. A estética dos fragmentos permite que o narrador mostre, mais do que explique, pois que utilidade haveria em elaborar ex post facto “ideias complexas” para iluminar um mundo no qual elas eram impossíveis? Ao operar com pormenores, por outro lado, um poderoso mecanismo metonímico é posto em ação: cada detalhe, ou história parcial, fala de sua positividade intrínseca, mas ao mesmo tempo sugere ao leitor os contornos gerais de uma (des)ordem gigantesca que o contém.

A operação metonímica, por sua vez, não se completa como um efeito de conhecimento, mas como estabelecimento de um nexo de ordem mais moral do que cognitiva, que exige do leitor adesão, solidariedade e uma moralidade compartilhada. Falo de um operador moral, e, por certo, cognitivo, movido por alguma sensibilidade à dor humana e ao absurdo.

O DILEMA DO ESPECTADOR INCÓLUME

Hans Blumenberg, em um pequeno livro notável, chama-nos a atenção para a oposição que se estabelece entre o naufrágio – como metáfora – e o seu observador[16]. O naufrágio – na verdade – é uma das possibilidades de uma metáfora maior, a da navegação como forma de denominar a própria existência[17]. Segundo Blumenberg, “o naufrágio, neste campo de representação, é algo como a consequência ‘legítima’ da navegação”. A força da metáfora do naufrágio, contudo, depende da relação que se estabelece entre o relato e o seu leitor, ou, se quisermos, entre o naufrágio e o espectador. Um espectador que, de forma necessária e diante do que lhe é dado a ver pela metáfora, ocupa uma posição protegida: a de um observador que é, à partida, um espectador incólume.

Michel de Montaigne percebeu, a propósito de Lucrécio, o caráter complexo da relação entre o naufrágio e o espectador: “ver a nossa compaixão excitada pela catástrofe e posta em jogo provoca-nos sensações mesmo assim agradáveis”[18]. Em outros termos, o que caracteriza o espectador incólume, mesmo diante da tragédia, é, por comparação, sua sensação de autopreservação – uma “sensação agridoce de maligno agrado”[19]. A posição desse espectador pode ser apresentada como um dilema: ao mesmo tempo em que, como receptor, é uma condição necessária para a produtividade da metáfora, o efeito de autopreservação, por contraste, o afasta do evento metaforicamente transmitido. Envolver o observador e interpelar a sua sensação autárquica é, pois, tarefa imperativa para as narrativas de testemunho. O testemunho é algo cuja produtividade depende da dissolução do halo protetor que envolve o espectador incólume.

A estética de fragmentos, praticada entre outros por Primo Levi, pode ser percebida como forma de lidar com o dilema do espectador incólume. Não são as faculdades da razão, do raciocínio etiológico e sinóptico, que são mobilizadas para capturar o observador/ouvinte e neutralizar a sensação de incolumidade. Ao contrário, tais faculdades têm como con traponto uma crença no real como algo estruturado por redes de causalidade, diante das quais a surpresa com os eventos toma a forma de uma atitude infantil e pré-cognitiva, a ser ultrapassada pela avaliação racional. Afirma-se, portanto, uma grave incompatibilidade entre a compreensão racional e a empatia existencial, e é exatamente sobre essa última dimensão que a estética dos fragmentos busca intervir.

Os efeitos gerados pela estética dos fragmentos exigem a adesão moral do observador, para que os fragmentos possam falar – ou seja, incorporar uma dimensão transitiva – e para que o efeito de vislumbre daquilo que permanece obscuro seja produzido. As roupas no arame farpado, por exemplo, não revelam a natureza completa e objetiva do Holocausto, mas produzem uma centelha de sentido, um efeito metonímico falhado e incompleto, já que o todo não se dá a perceber pelo pormenor. Ainda assim, a adesão moral do observador percebe o caráter excessivo do fragmento, o que impede que ele seja percebido como uma instância autárquica desprovida de sentido. É exatamente a percepção do caráter excessivo do fragmento que interdita a constituição do observador como espectador incólume.

Em que consiste esse caráter excessivo do fragmento?

O crítico de arte Ernst van Alphen, ao analisar algumas das obras do artista plástico francês Christian Boltanski, sugeriu que delas resulta o que designou como “efeito Holocausto”[20]. Tal efeito resultaria de uma ação de apresentação ou reencenação, por meio de um ato performativo, que provoca no observador a sensação de uma experiência direta com o Holocausto. Não se trata de representá-lo, de incluí-lo em uma estratégia explicativa, voltada para a elucidação, mas de reencenar alguns de seus efeitos e, por essa via, ultrapassar o limiar da incolumidade.

No caso de Primo Levi, a apresentação dos fragmentos vem acompanhada de um recurso coadjuvante. Uma voz nos interpela, com frequência, quando estamos diante dos fragmentos mais doloridos. Assim, no episódio das mães que seguem o destino do instinto, uma voz interdita qualquer sensação de conforto por não nos confundirmos com os personagens e suas dores. Ao indagar se nós não alimentaríamos nossos filhos se estes estivessem para morrer, Primo Levi institui um universo hipotético que não mais nos deixará, se dispusermos das mais ordinárias faculdades de fellow feeling ou de simpatia, para introduzir o léxico particular de David Hume.

A todo momento somos fustigados com perguntas, a maior de todas contida no título da memória maior do Campo: É isto um homem?. Pergunta posta logo à saída, no poema de abertura do livro, cuidadosamente denominado Shemá (Escuta), o nome da mais pungente reza da liturgia judaica: Shemá Israel, Adonai Eloheinu, Adonai Echad (Escuta Israel, o Eterno é nosso Deus, o Eterno é um[21]. É a analogia com o canto dos chazanim que acaba por se impor. Na liturgia, trata-se do imperativo de uma escuta, que faz com que os seus praticantes sejam sujeitos de um nexo único. A transposição da linguagem da Shemá para o universo de Auschwitz tem por finalidade impedir que a dor originária, imanente e inatingível se afaste de nós. Não há, com efeito, como compatibilizar o enunciado da Shemá com qualquer sensação de incolumidade[22].

Notas

  1. A expressão homo lager é da lavra de Paul Steinberg, utilizada em seu relato memorial intitulado Speak you also, Londres: Penguin Books, 2000. Ela designa o habitante do Campo, cujas marcas humanas ordinárias começam a ser desfeitas. O homo lager de Steinberg é o equivalente do muselmann – o muçulmano – referido por Elie Wiesel e Primo Levi. Steinberg é o personagem Henry, do livro de Primo Levi, É isto um homem!, Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
  2. Cf Kenneth Burke, Definition of man, em: Kenneth Burke, Language as symbolic action: Essays on life, literature and method, Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1966.
  3. Apresenta-se aqui o caráter radicalmente antirrousseauniano do Campo. Para Rousseau, o urro básico que se segue à dor é um operador suficiente de solidariedade. A piedade rousseauniana é pré-categorial. Ela antecede à linguagem. Falo, pois, do ponto de vista de um mundo distinto, no qual os operadores de solidariedade dependem da linguagem. O regresso ao urro é a precipitação na incomunicabilidade da dor humana. Sendo a dor a máxima expressão possível da verdade, segue-se que esta é incomunicável. Eis, portanto, a demonstração, por via dolorosa, pero no lacrimosa, de uma máxima há muito sustentada pelo sofista Górgias: se algo existisse, seria incognoscível e incomunicável. O Campo prova imensas coisas.
  4. Cf. Primo Levi, op. cit., p. 25.
  5. Como químico, Primo Levi sabe que há uma associação entre verdade elementar e ausência de vestígios humanos. Em determinada altura, Primo Levi falou de sua própria opção pela química em função da possibilidade de lidar com elementos imunes ao fascismo. Em outra chave, o que se está a afirmar é que a verdade só pode se pôr em um contexto no qual os elementos se mostram diretamente, não mediados pelas interpretações humanas. Ao contrário dos elementos básicos, o mundo humano é o império da diaphonía e da fertilidade simbólica. Aqui, o esclarecimento final, por mais absurdo que isso possa aparecer, exige a supressão do animal que crê e fala.
  6. Primo Levi, op. cit., p. 25.
  7. Idem, p. 40.
  8. Cf. Primo Levi, A trégua, São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  9. Idem, ibidem, pp. 28-29.
  10. Idem, p. 29.
  11. Primo Levi, op. cit.,1988, p. 14.
  12. Idem, ibidem, p. 13.
  13. Idem, ibidem, p. 14.
  14. Cf. David Rousset, L’Univers concentrationnaire, Paris: Les Éditions de Minuit, 1965.
  15. Ver ”Auschwitz, cidade tranquila”, em: Primo Levi, O último Natal da guerra, São Paulo: Berlendis, 2002.
  16. Cf. Hans Blumenberg, Naufrágio com espectador, Lisboa: Vega, 1990.
  17. Um dos argumentos centrais de Blumenberg sugere que a metáfora da existência como navegação, presente originariamente em Lucrécio, teve um papel recorrente e estruturante em diversas reflexões, até a modernidade, sobre os significados da vida. O próprio Primo Levi incorrerá na metáfora em seu último livro, Os afogados e os sobreviventes, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990
  18. Cf. Michel de Montaigne. Ensaios, III, apud Hans Blumenberg, op. cit., p. 31.
  19. Cf. Hans Blumenberg, op. cit., p. 31.
  20. Cf. Ernst van Alphen, Caught by History: Holocaust effects in contemporary art, literature and theory, Stanford: Stanford University Press, 1997.
  21. Sigo a tradução adotada em Kabalat Shabat: serviço vespertino de Shabat, Rio de Janeiro: Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro, 1986-5746.
  22. Este ensaio retoma, em versão modificada, o texto de minha autoria, de mesmo título, publicado em Edelyn Schweidon (org.). Memória e cinzas: vozes do silêncio, São Paulo: Perspectiva, 2009.

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