2012

O rosto metafísico da preguiça, ou da preguiça como metafísica

por Renato Lessa

Resumo

Santo Anselmo, no  século XI, propôs-se, na obra de abertura da escolástica medieval – o Monologium -, a desenvolver uma prova da existência de Deus não dependente de argumentos de autoridade e da necessária preexistência da crença. Tratava-se de estabelecer, por argumentos racionais e lógicos, a necessidade de Deus, para além de suas manifestações por meio da revelação e do mistério da fé. Para tal, imaginou um truque conceitual, formalizado na expressão “uma perfeição além da qual nenhuma perfeição é possível”.

Da inteligibilidade lógica da expressão, passa-se ao domínio da necessidade ontológica: ora, um ser dessa natureza, dotado de uma perfeição além da qual nenhuma outra é possível, não pode existir apenas no pensamento: deve existir também no mundo, sob pena de violar a regra do nec plus ultra. A necessidade lógica faz-se pressuposição de existência.

Quais os efeitos da aplicação do princípio do nec plus ultra (nada de maior) sobre a ideia de preguiça?

Trata-se menos de inscrever a preguiça como recurso de reserva para permanecer no mundo e resistir à sua aceleração, e mais de imaginá-la em seu fundamento epistêmico, como base para um sujeito metafisicamente preguiçoso. Partindo de alguns argumentos críticos, desenvolvidos por Charles Sanders Peirce, dirigidos às ideias de introspecção, intuição e evidência, é possível estabelecer as propriedades necessárias da preguiça como metafísica.


POR UMA CRÍTICA DA PREGUIÇA PRÁTICA

A primeira tentação ao refletir sobre a preguiça é a de pensá-la como associada ao tema da resistência possível ao mundo do trabalho. Isso parece ser mesmo irresistível: diante dos processos de aceleração da vida, tanto sociais como biológicos e tecnológicos, alguma reserva de respiração — nem que seja a miragem da rede de Dorival Caymmi, sombreada pelas palmas de um coqueiro, também ele preguiçoso — se impõe como necessária. A defesa de um direito à preguiça, ao que parece, se imporia como fixação de um regime de presença no mundo, pelo qual recuperaríamos alguma autonomia, diante de processos sociais que nos instituem como seres da heteronomia, seres dos quais não se poderia dizer que sejam sujeitos plenos de seus próprios planos de vida.

Tal autonomia, propiciada pela adesão ao princípio da preguiça, seria passagem não para um usufruto intrínseco — um gozo autônomo da autonomia, em uma espécie de desfrute de uma autonomia liberada de sua motivação originária —, mas para a possibilidade de incursões no próprio mundo da vida, a sede por excelência dos engenhos de heteronomia. A preguiça, nessa chave, seria a um só tempo (1) propedêutica e (2) propiciatória de formas emancipadas de ação no mundo.

Antes de tudo propedêutica, pois o usufruto da preguiça seria um imperativo para a compreensão crítica das razões da aceleração social e do hiperativismo irreflexivo do Homo sapiens, em sua fase utilitarista e maximizadora. Poder-se-ia mesmo cogitar um imperativo categórico que a toda gente imporia um modo de observação das coisas baseado na hipótese da universalização da preguiça como nova forma de ser no mundo. O imperativo da preguiça — se assim pudermos nomeá-lo, como aplicação específica possível do imperativo categórico kantiano — seria requisito inegociável para a constituição de um ponto de vista geral e privilegiado de observação daquilo que seu oposto, o paradigma do movimento compulsório, semeia pelo mundo. Digo movimento e não ação porque esta exige esforços reflexivos e convoca a vontade — como potência autônoma — como condição de possibilidade. Já o movimento não parece ser tão exigente quanto a sua genealogia e suas condições de emergência, já que sempre é possível pensá-lo como resultado de reflexos de movimentos que, por sua vez, são reflexos de movimentos que podem bem resultar de processos extrínsecos ao sujeito que nele se move.

Mas voltemos à dimensão propedêutica da preguiça. Ocupar o lugar da preguiça como exigência para a refutação do paradigma do movimento compulsório — pela via hipotética ou existencial — ofereceria ao observador do mundo vantagens epistemológicas ímpares. O pensamento da aceleração, por oposição, mesmo afetado por chave crítica e “contra-hegemônica”, é parte integrante do processo de aceleração. Só pode operar em chave crítica forte ao princípio da aceleração o juízo que se põe como exterior à aceleração. A preguiça, pela arritmia que propicia a quem dela usufrui, pela perspectiva do freio no turbilhão temporal das coisas e da recusa ao deslocamento infrene no espaço, institui, ao menos, um contraste no que diz respeito a distintos ritmos de tempo: é possível, afinal, sermos mais lentos do que parece exigir o vórtice da aceleração.

(Lembro-me bem de uma ocasião na qual, em saudosa conversa com o geógrafo baiano Milton Santos, dele ouvi uma defesa dos homens lentos. Milton Santos o fazia não só por razões que relevam da natureza necessariamente lenta do pensamento — ao menos do pensamento digno de aplicação do termo —, mas como reserva política e cultural. Homens lentos seriam, portanto, resistentes fixados no vórtice da vida rápida.)

O lado propiciatório da preguiça estaria vinculado à presença de um ânimo anticapitalista e, mais do que isso, antimodernizador, não raro afetado por certo Kulturpessimismus. Aparece, em tal cariz, como momento negativo de afirmação de uma forma de vida na qual a vigência de uma sociabilidade “superior” tornaria desnecessária a preguiça, que assim acaba confinada ao tempo histórico que a impôs como contraponto necessário. Uma sociedade liberta de dinâmicas “alienadas” — para reintroduzir vocabulário em desuso — tornaria a preguiça um recurso desnecessário. Caçar e pescar pela manhã e, à tarde, fazer crítica literária parece exigir mobilidade e esforço. Na verdade, agraciados nesse patamar superior pela obrigação de usufruir da felicidade pública, reincidir na preguiça significaria desistir da autonomia conquistada. Assim como as revoluções devem, em algum momento, interromper seu ímpeto, a preguiça a serviço da instauração da boa sociedade esgota-se como recurso legítimo uma vez bem-sucedida.

A preguiça, assim posta, é algo que nos permite reconhecer a “loucura” das massas trabalhadoras, contaminadas por uma estranha ética de amor ao trabalho. A voz de Paul Lafargue se impõe, nessa modalidade de percepção das virtudes propiciatórias da preguiça. Sem tergiversações, Lafargue definia o apego proletário ao trabalho como sintoma de uma estranha loucura”: “Esta loucura consiste no amor ao trabalho, na paixão moribunda pelo trabalho, levada ao extremo aniquilamento das forças vitais do indivíduo e dos seus descendentes”[1]

O combate à forma social que pôs o trabalho na condição de objeto de adoração — uma adoração exercida por parte daqueles que o sofrem — não pode sustentar-se na simples afirmação do “direito ao trabalho”, e sim na defesa de um novo direito, pelo qual trabalhadores “embrutecidos pelo trabalho” e que “produzem como maníacos” teriam acesso a lazer e a consumo: “é preciso domar a extravagante paixão dos operários pelo trabalho e obrigá-los a consumir as mercadorias que produzem”[2].

A preguiça, assim sustentada, põe-se a serviço de nova modalidade de inserção social. Já não se apresenta como recusa do movimento tout court, mas de crítica a movimentos específicos instituídos por uma dinâmica social particular, a do capitalismo industrial. Seu exercício é propiciador da constituição de sujeitos coletivos “indóceis”, para utilizar a terminologia de Ortega y Gasset, que falava, em A rebelião das massas, de massas “indóceis frente às minorias; [que] não lhes obedecem, não as respeitam e, pelo contrário, olham-nas de lado e ocupam-lhes o lugar”[3]. Tal indocilidade, ainda segundo Ortega y Gasset, liga-se a uma ruptura nos padrões de comportamento e de consciência coletiva: “pela primeira vez encontramo-nos com uma época que faz tabula rasa de todo classicismo, que não reconhece, em nada pretérito, um possível modelo ou uma possível norma”[4]. Em resumo, da preguiça lafarguiana passa-se — de modo um tanto heterodoxo, concedo — à constituição de um sujeito coletivo para o qual as formas e os valores tradicionais não mais constituem os modos de ação. Perdeu-se, tal como se referiu Fernando Pessoa, ao falar do comerciário Bernardo Soares, no Livro do desassossego, “todo o respeito”:

“Pertenço a uma geração que perdeu todo o respeito pelo passado e toda crença ou esperança no futuro. Vivemos por isso do presente com a gana e a fome de quem não tem outra casa”[5].

O desdobramento político, ainda no Pessoa do Livro do desassossego, não surpreende: “Seríamos anarquistas se tivéssemos nascido nas classes que a si próprias chamam desprotegidas, ou em outras quaisquer de onde se possa descer ou subir”[6].

É de temer pela consistência da ideia de preguiça diante de imagens tais como defesa ativa do direito ao ócio, indocilidade perda de respeito. Parece-me que uma escolha deve ser feita: ou ficamos com a defesa da preguiça ou organizamos um movimento de resistência ao mundo do trabalho alienado, no qual o tema da preguiça terá tão somente presença instrumental, já que teríamos diante de nós, para dizê-lo de modo moderado, imensas atribulações. A meu juízo, trata-se de defesa insincera da preguiça. Ora, a preguiça é algo que se afirma como experimento privado e íntimo: o lugar apropriado do seu desfrute é a alma e o corpo do próprio preguiçoso. A ideia de um movimento ativo de preguiçosos soa como algo pouco consistente.

Uma alternativa ao trabalho alienado — se pensarmos o termo alternativa como algo que implica reconfigurar um espaço público e comum — exige a construção de identidades coletivas ativas. Requer, portanto, esforço e construção de sujeitos coletivos. Gostaria de sustentar que a preguiça, por definição, só pode habitar sujeitos individuais. Um eventual proselitismo da preguiça, ainda que possa falar para muitos, visa falar para cada um de nós, individualmente. É nesse sujeito individual que localizaremos a sede genuína da preguiça. Nesse sentido, ela — a preguiça — não augura qualquer forma consistente ou, ao menos, tangível de ordem. Ela é a refração a qualquer ordem, já que representa o reconhecimento de que o grau mais alto de autonomia de um ser humano, tomado como indivíduo, reside em nada fazer e nem mesmo em se associar ativamente àqueles que decidem nada fazer. A verdadeira preguiça deverá ser intransitiva. Seu operador prático é um sujeito no qual autonomia e negatividade se encontram de modo compulsório.

Reconheço que há imenso interesse histórico e politico no tema da preguiça, mas tal ângulo implicará atribuir-lhe um papel prático e específico no mundo das coisas. Sua incidência será, portanto, relativa e contingente: o limite do argumento histórico-político é o âmbito da preguiça prática. O interesse filosófico no tema da preguiça propicia sua consideração como algo absoluto, e o modo de sustentar o absoluto da preguiça não pode depender de argumentos de natureza histórica ou política. É tal impedimento, tanto formal como substantivo, que prepara o salto necessário na direção da metafísica.

PASSAGEM À METAFÍSICA

Resisti à sedução da preguiça prática. Considerei-a um ângulo afetado por uma perspectiva instrumental, como se a preguiça fosse uma reserva moral ou política para permanecermos, de algum modo, residentes, ainda que resistentes, no mundo do movimento e das rotinas sociais. Mesmo reconhecendo na defesa da preguiça algum fundamento para valores, digamos, anti-hegemônicos, importa-me pensá-la fora de qualquer utilidade extrínseca, e não como apoio à crítica social.

A preguiça prática parte de uma configuração que, de modo necessário, opõe um sujeito a algum tipo de experiência externa a si mesmo. Assim disposta, apresenta-se como recusa e retração, mas não pode prescindir do primado da experiência, que lhe proporciona oportunidade de expressão. O mundo exterior e suas requisições definem, portanto, as possibilidades práticas de manifestação da preguiça. A defesa da preguiça, em tal configuração, não deixa de estabelecer um regime de fixação dos humanos no mundo, no pleno universo das contingências.

Importa-me, em direção diversa, imaginar a experiência da preguiça como algo inerente ao sujeito mesmo, fora de sua relação com a experiência. Algo que se dá, para dizê-lo de outro modo, em sua experiência consigo mesmo, em sua relação com suas próprias crenças constitutivas. Algo que, à falta de melhor termo, poderíamos denominar preguiça metafísica, por oposição a uma preguiça ontológica, ou mesmo preguiça epistemológica, preâmbulos necessários para a preguiça prática.

A preguiça ontológica tem como marcador uma vivência psicológica que bem poderia ter o seguinte enunciado: “é-me penoso estar neste mundo”; à preguiça epistemológica, de sua parte, corresponderia a sentença “é-me penoso pensar”. No primeiro caso, ausência de propensão à ação e ao movimento; no segundo, indisposição ao pensamento. Cabe-nos, na sequência, imaginar o modo próprio de expressão da preguiça metafísica. Mas, antes disso, algo deve ser dito a respeito das razões para uma metafísica da preguiça ou para uma representação /vivência da preguiça enquanto metafísica.

O que se apresenta, portanto, é o desafio de pensar a preguiça fora do âmbito de referência a qualquer experiência prática. O repto decorre da recusa em representar a preguiça como algo predicável da experiência, mesmo que por negação. Como predicado da experiência, o significado da preguiça será sempre dado por aquilo do qual ela supostamente decorreria, ou seja, a própria experiência. A preguiça seria mera replicação negativa do que a alimenta, condenada, portanto, ao contraponto com aquilo que nega e refuta, mas de que não pode deixar de depender como garantia de consistência. Já pensar algo fora de qualquer dimensão experimental exige aproximação com a metafísica, e é bem isso que desejo explorar: uma abordagem metafísica da preguiça.

Várias razões levam-me a essa alternativa de abordagem. Antes de tudo, penso que as questões verdadeiramente radicais são questões que devem ser postas — e assim postas, apenas — de modo metafísico, já que não limitadas por conveniências factuais. Questões factuais, por sua vez, são necessariamente precedidas da inapelável preexistência do que há. Só o vislumbre metafísico autoriza a ficção de ir ao fundo das coisas; o terror como forma de vida é algo que decorre da experiência prática de querer ir ao fundo de tudo. A experiência com o absoluto é, pois, algo necessária e exclusivamente metafísico. O mundo factual, espaço e lugar de possíveis particulares e relativos, é ele péssimo abrigo para experiências com o absoluto. O absoluto que nele se buscar — que é o que ocorre quando a atividade de busca passa ao ato — dá trânsito ao absoluto da ação que simula em seu excesso a detenção impossível do absoluto metafísico. Auschwitz, nesse sentido, é uma das passagens possíveis da metafísica ao ato: toda ambição de materialização metafísica exige o excesso e o extraordinário como norma de comportamento.

A metafísica não é apenas perigosa, ela é mesmo inevitável. Daí o imperativo de sua circunscrição, não só como marca de distinção disciplinar, mas como indicador de acesso a protocolos admissíveis de frequentação. Em outros termos, não se buscarão nos abismos da metafísica soluções substantivas para dramas ordinariamente humanos, assentados em conflitos de valores e de percepções. O máximo que a metafísica poderá nos dar nesses casos — ou melhor, o mínimo necessário de precipitação metafísica de que necessitamos em nossos assuntos práticos — revestir-se-á em uma filosofia de segunda ordem, que recomendará a adoção de procedimentos razoáveis e universalizáveis para lidar com o conflito de valores, este, em si mesmo e enquanto tal, insolúvel.

A inquirição metafísica sustenta-se na possibilidade de realizar juízos que não se limitem aos fatos ou à experiência, juízos que não se confundam com a experiência dos fatos e que contenha, muitas vezes, formas metafísicas de pensar. A formulação posta por António Marques bem ajuda a esclarecer os termos: “As formas metafísicas de pensar irrompem em variadíssimos contextos e basta haver a possibilidade de realizar juízos que não se limitem aos fatos ou à experiência para que essa forma de pensar possa surgir mais ou menos disfarçada, ou perfeitamente às claras”[7].

Uma pergunta não factual por excelência pode bem ter o seguinte enunciado: “o que há?”. A pergunta-fórmula parafraseia o título de um ensaio seminal de Willard Quine, de 1949[8]. Diante da pergunta, poderíamos responder por enumerações sucessivas de objetos que, em um primeiro momento, aparecem em nosso campo de visão. Diante da inevitável não exaustividade da enumeração, passaríamos a considerar séries cada vez mais extensas de objetos e eventos, para além do que percebemos, aí incluindo registros de experiências vividas por outros sujeitos e tudo aquilo que a imaginação puder nos proporcionar. Por mais extensa e fantástica que seja a enumeração — assemelhada à visão da borgeana Biblioteca de Babel, que continha todos os livros já escritos, todos os que ainda não o foram e suas refutações —, ainda assim o formulador da pergunta “o que há?” poderia apresentar razões invencíveis para estar ainda muito insatisfeito com nossas respostas. Mas o que há de errado nessas respostas?

Há nelas, na verdade, um erro básico: o de fornecer respostas experimentais — e, portanto, finitas e contingentes — a uma pergunta metafísica. Os termos da pergunta prestam-se, com certeza, a alguma confusão, na medida em que o verbo “haver” dá passagem a suposições de existência e factualidade, e estas bem podem ter abrigo em sentenças que designam coisas fixadas no mundo da experiência. Os próprios termos usados por Quine no ensaio mencionado estavam a serviço de um “compromisso ontológico”, mas o alcance da questão possuía indisfarçável cariz metafísico: tratava-se de especular a respeito das condições da existência. Não há, pois, resposta experimental exaustiva a ponto de satisfazer uma questão metafísica. É um pouco o que nos dizia Kant, quando asseverava que “a totalidade absoluta de toda a experiência possível não é, ela mesma, uma experiência”[9].

Nesse sentido, pus-me como questão o seguinte problema: como pensar a preguiça como “totalidade absoluta”? Ou, se quisermos, como conceber o absoluto da preguiça? Com tais perguntas em mente, já não posso mais satisfazer-me com exemplos, posto que estou possuído pela atração do abismo da definição absoluta.

Uma forma filosófica possível para a indagação a respeito do absoluto da preguiça pode ser encontrada em uma antiga e bela fórmula, posta pelo pensador medieval Anselmo de Cantuária, o Santo Anselmo dos católicos. Anselmo, no longínquo século XI, propôs-se, em uma das obras de abertura da escolástica medieval — o Proslógio (ou Meditação) —, a desenvolver uma prova da existência de Deus não dependente nem de argumentos de autoridade e nem da preexistência de imperativos de crença”[10]. Tratava-se de estabelecer, por argumentos racionais e lógicos, a necessidade de Deus, para além de suas manifestações por meio da revelação e do mistério da fé. A busca do absoluto distancia-se, assim, tanto do contingente e gracioso da revelação como da irredutibilidade ao racional, inscrita no âmbito da crença.

Para tal, Anselmo imaginou um truque conceitual — um operador filosófico formalizado na expressão “ser do qual não se pode pensar nada de maior”[11]. Trata-se de uma arma para demonstrar ao que não crê — o insipiente — a existência de Deus. Anselmo parte da evidência de que a expressão “ser do qual não se pode pensar nada de maior” é algo que pode ser escutado e compreendido, mesmo por insipientes. Assim sendo, acrescenta outro passo importante na demonstração: “aquilo que ele — o insipiente — compreende se encontra em sua inteligência, ainda que possa não compreender que existe realmente […] o insipiente terá que convir igualmente que existe na sua inteligência ‘o ser do qual não se pode pensar nada de maior’, porque ouve e compreende essa frase; e tudo aquilo que compreende encontra-se na inteligência”[12].

Da inteligibilidade lógica da expressão, passa-se ao domínio da necessidade ontológica, em salto de consequências nada desprezíveis: ora, um ser de tal natureza, dotado de uma perfeição além da qual nenhuma outra é possível, não pode existir apenas no pensamento: deve existir também no mundo, sob pena de violar a regra do nec plus ultra (nada de maior). Na passagem, a necessidade lógica faz-se pressuposição de existência: “[…] ‘o ser do qual não é possível pensar nada maior’ não pode existir somente na inteligência. Se, pois, existisse apenas na inteligência, poder-se-ia pensar que há outro ser existente também na realidade; e que seria maior. […] se […] existisse somente na inteligência, este mesmo ser do qual não se pode pensar nada de maior tornar-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário, pensar algo maior: o que certamente é absurdo”[13].

Proponho-me, nesta reflexão sobre a preguiça, um tanto distante das preocupações originais de Anselmo, a seguir parte da pista por ele aberta. Desde já, não se trata de provar existências, muito menos a de Deus, mas de partir da seguinte imagem: uma preguiça além da qual não se pode pensar nada de maior. A imagem pode ser refeita e posta como indagação: quais os efeitos possíveis da aplicação do princípio do nec plus ultra (nada de maior) sobre a ideia de preguiça?

A pergunta, parece-me evidente, não pode ser considerada nos termos da preguiça prática, por motivos simples: diante de um preguiçoso prático sempre se poderá pensar em — ou mesmo indicar — alguém ainda mais preguiçoso, sendo, pois, fugidia a imagem de uma preguiça além da qual nenhuma preguiça maior possa ser pensada. É essa a razão básica da orientação metafísica: questões dessa natureza não podem, por maioria de razão, ser experimentais, pois sendo o reino da experiência o domínio dos particulares possíveis, tal domínio não pode conter o absoluto, sob pena de descaracterizar-se como meramente possível.

A radicalidade da pergunta, que parece conduzir a uma metafísica da preguiça, ultrapassa, portanto, a consideração da preguiça como valor; como reserva ética para lidar com a imparável aceleração da vida, com a perda dos sentidos ordinários da experiência. Interessa-me pensá-la, portanto, em sua expressão máxima e, nesse sentido preciso, anselmiana: uma preguiça além da qual nenhuma outra pode ser cogitada. Para tal, o que se impõe à inspeção não é a relação entre o sujeito e o mundo, os avatares de sua experiência prática ou as táticas de evasão existencial que desenvolve.

Em direção distinta, trata-se de inspecionar que estratos epistêmicos mais fundos devem estar presentes como condição para uma dessensibilização para com a experiência do mundo. Mais uma vez, trata-se menos de inscrever a preguiça como recurso de reserva para permanecer no mundo e resistir à sua aceleração e mais de imaginá-la em seu fundamento epistêmico, como base para um sujeito metafisicamente preguiçoso, ou um preguiçoso metafísico, o único a poder desfrutar da preguiça como dimensão absoluta. Para tal, devo investigar que arranjos em suas intuições mais profundas se fazem necessários.

Parto, de uma forma parasitária e pragmática, de alguns argumentos críticos, desenvolvidos pelo filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce, dirigidos às ideias de introspecção, intuição evidência, para estabelecer as propriedades necessárias da preguiça como metafísica. Devo dizer que o recurso a Peirce é, no mínimo, perigoso, pois se trata de autor para quem os termos da preguiça que procuro estabelecer neste ensaio seriam — imagino — simplesmente inaceitáveis. Assim mesmo, tomo-o como referência e passagem para apresentação de meu argumento.

Após breve incursão peirceana, concluirei com a inspeção de duas modalidades de inscrição no mundo nas quais os operadores da metafísica da preguiça, a meu juízo, se fazem presentes: a noção de ataraxia, posta pelo ceticismo pirrônico, e a interpretação do shabat, desenvolvida pelo rabino Abraham Joshua Heschel. Ambos configuram o que poderíamos designar como exemplos de metafísica prática. Ao fim e ao cabo, busco tão somente formular, pelo uso abusivo de ideias confusas e indistintas, um argumento e de modo algum qualquer demonstração. Afinal, o próprio Anselmo acabou por demitir-se de seu racionalismo demonstrativo e clamou pela aparição do rosto de Deus”[14]. Como não posso — por razões de crença e de primeira filosofia — alimentar expectativas de tal natureza, basta-me a intuição do que poderia ser o rosto metafísico da preguiça.

DA PREGUIÇA ENQUANTO METAFÍSICA

O filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce, a certa altura, declarou que a introspecção é um estado impossível de ser atingido: não temos, na verdade, qualquer poder em obtê-la. Da mesma forma, afirmou que nossa capacidade de intuição, no sentido filosófico do termo, é nula[15]. Somos seres fixados existencialmente em uma longa série temporal, por definição mais extensa do que é capaz de reter qualquer um de seus instantes. Em outros termos, nenhum instante particular dessa série — e é imperativo estar em algum momento dessa série — qualifica-se como capaz de dar passagem a algo como o vislumbre de uma intuição ou de uma evidência. Somos, por decorrência dessa fixação existencial, acossados, todo o tempo, pela materialidade do espaço, presente nos incontáveis encontros com outros sujeitos e com os objetos do mundo.

Seres do movimento, por definição, não se qualificam para o exercício da introspecção e da intuição genuínas, modalidades de afastamento radical, capazes de apagar todas as suas pistas e projeções de permanência no mundo das coisas finitas. Ambas, introspecção e intuição, suspendem o mundo da experiência, calcado no fluxo do tempo e em seu rebatimento espacial. A experiência é, pois, algo da ordem de uma conexão imperativa entre espaço e tempo.

Se pensadas de forma radical, tanto a introspecção como a intuição são modalidades de experiência epistêmica que pressupõem a possibilidade de pensarmos sem signos. Uma evidência ou uma intuição são modos de afetação do espírito anteriores à linguagem que empregamos para nomear o vislumbre que ambas nos proporcionam[16]. Essa, na verdade, é a forma pela qual o pensamento da intuição, assim como o da evidência, pensa contornar as armadilhas do nominalismo: o nome é da ordem do que se acrescenta à intuição, de forma alguma daquilo que a precede. Foi esse o sentido do que Nietzsche disse a respeito de Tales de Mileto: “Assim contemplou Tales de Mileto a unidade de tudo que é: e quando quis comunicar-se, falou da água!”[17]. Pela passagem de Nietzsche tem-se a medida exata do quanto a intuição distingue-se da linguagem que, por meios finitos, procura exprimi-la.

Não há, pois, intuição que seja cativa de um nome, já que a finitude semântica necessária e inscrita no nome, e na própria finitude existencial de quem o diz, estará sempre aquém daquilo que a intuição promete proporcionar ao espírito. Este, na verdade, é o abismo no qual sucumbem todas as filosofias da evidência, obrigadas a acrescentar nomes a suas intuições originais. Partem, portanto, da crença na ilimitação da evidência e colapsam no limite do nome. Para Peirce a impossibilidade do pensamento sem signos interdita o usufruto da introspecção e de seus derivados — a intuição e a evidência. Pode-se a isso acrescentar que vivemos em um mundo povoado por nomes finitos, que parte alguma possuem com o absoluto. Este mesmo — o termo “absoluto” — terá os significados finitos e contingentes que lhe forem atribuídos: supô-lo revelador de um absoluto além do nome é uma das formas relativas possíveis de atribuição de sentido.

De outro ângulo, a pretensão à introspecção associa-se, de modo necessário, à perpetuação e à absolutização do instante em que ela se dá, o que pressupõe a instauração de um regime para lidar com a relação entre tempo e espaço. A introspecção é da ordem da sincronia — pois se dá em um instante — ou, se calhar, da acronia, ou atemporalidade — já que o desejo que a anuncia pressupõe a desconsideração da experiência do tempo como fluxo. O instante da introspecção é destacado do fluxo do tempo e converte-se naquilo que Abraham Joshua Heschel belamente designou como uma simulação da eternidade[18]Com efeito, não é a série de atos infinitesimais e, portanto, finitos que precedem a introspecção que dá sentido a ela. Antes o contrário, a introspecção rebela-se contra a série de eventos discretos que a precede. Se assim não fizesse, desfazer-se-ia e acabaria por reconhecer a inevitabilidade do vínculo do sujeito ao turbilhão do mundo.

Peirce, na verdade, afigura-se como péssima companhia para fundar uma metafísica da preguiça. Ao contrário, se nele há metafísica — e parece-me evidente que há —, trata-se de metafísica alicerçada em um forte vitalismo que interdita aos humanos a experiência da imobilidade. Mas, exatamente por isso, acaba por indicar os termos que devem ser subvertidos para que os princípios da preguiça metafísica possam ser pensados e enunciados. Ou seja, a refutação metafísica da preguiça estabelece os termos nos quais a metafísica da preguiça pode ser exprimida.

A filosofia de Charles Sanders Peirce baseia-se na aceitação ontológica do turbilhão como dimensão inelutável. Mais do que isso, insurge-se contra as filosofias da evidência, assentadas na possibilidade do instante eterno da introspecção como via para a intuição. A premissa do turbilhão incontável das coisas pressupõe um regime no qual tempo e espaço interagem e alimentam-se reciprocamente: movimento e mutação resultam da combinação entre tempo e espaço. Uma dupla descrição se torna, então, possível: o movimento releva de um espaço movido pelo tempo e de um tempo que exerce seu fluxo sobre o espaço. Somos seres de uma série temporal, histórica e, mais do que tudo, hipotética. Não nos é dado interromper o fluxo e fixar um instante sincrônico na série como momento privilegiado para um distanciamento do mundo e para a suspensão do tempo; não nos é dada, igualmente, a experiência do espaço sem a operação da intuição de tempo.

Mas o que dizer da preguiça a partir dessas razões de primeira filosofia? Há um atrator logicamente possível entre as ideias de introspecção e preguiça. O suposto, ao que parece, incontroverso é o de que não há extroversão possível na preguiça genuína (ora essa, um preguiçoso extrovertido!). Tão pouco parece haver na preguiça desejo de coextensividade com o tempo, com seu fluxo e com um espaço por ele afetado. Se for para valer, a preguiça exige ataraxia, apraxia e afasia, esta última entendida como recusa a nomear e a predicar.

Ou, se quisermos, mais do que isso, ela — a preguiça — exige a suspensão da associação entre tempo e espaço. Nessa chave, a preguiça pode ser pensada como retração a apenas uma das formas apriorísticas da sensibilidade: ou ao tempo, desprovido do espaço, que é condição para que dê passagem ao movimento das coisas; ou ao espaço, dissociado do tempo, como sede de uma imobilidade e de uma sensação de acronia. De qualquer forma, trata-se da recusa da associação entre tempo e espaço. Tal recusa inscreve-se no fundamento da metafísica da preguiça.

Na ausência da intuição de tempo, a intuição de espaço se faz domínio marcado pela imobilidade; na ausência da intuição de espaço, sobrevém uma intuição de tempo sem suporte para a duração, para o fluxo das coisas. É, com efeito, a intuição do tempo que permite que o espaço seja igualmente intuído como o lugar — a sede — do movimento. De modo simétrico, a intuição do espaço é condição para que o tempo seja percebido como fluxo, como dimensão cronológica na qual o movimento das coisas fixa seus objetos. Convenhamos, como pensar o movimento sem a intuição de um regime de associação entre tempo e espaço?

Se a preguiça pode ser vista como a supressão do tempo, o espaço tenderá a ser tomado como o âmbito de sua imobilidade. Do contrário, teríamos que aceitar a razoabilidade da ideia de uma preguiça hipercinética. Se for vista como a supressão do espaço, o tempo perde sua referência exterior para que se configure como fluxo, como sede da mutação ou, como queria Aristóteles, como número do movimento, segundo o antes e o depois.

A metafísica parece proporcionar a única oportunidade para a experiência da dissociação entre tempo e espaço. Nada há, com efeito, de mais avesso à experiência ordinária. Nossa própria percepção do presente — como cotidiano — o representa como uma unidacle’de tempo formada por intervalos heterogêneos e não comparáveis, cada um dos quais depende, até pelo seu comprimento, do número e da complexidade dos eventos percebidos[19]. Nossa percepção do tempo, tal como afirma Krysztof Pomian, faz do tempo quotidiano um tempo qualitativo: “Percebemos como simultâneos eventos na realidade sucessivos, contanto que não sejam nem muito numerosos, nem muito intervalados, ou díspares, e que se consideram compreendidos ora entre 0,15 e 5 segundos […] ora entre 4 e 7 segundos […][20].

Ora, a sucessão e a interligação entre tais eventos não pode dispensar a operação de uma sensação espacial. De qualquer modo, trata-se de pensar a experiência do tempo como dimensão mensurável e que, como tal, exige a presença de eventos espaciais discretos. A própria necessidade de marcação do tempo indica a vigência de uma forma de vida dominada pelo tempo mensurável. O tempo mensurável parece mesmo ser onipotente: é a interposição de eventos espaciais discretos que exige presença ou, ao menos, atenção ao mundo do espaço, algo que está na raiz da expressão: “Não tenho tempo para mais nada”.

Não há mensuração sem teoria do espaço: a numeração do tempo é uma exigência do espaço, de algo exterior ao tempo. A mensuração não é inerente ao tempo. Em outros termos, é a interposição do espaço que torna o tempo mensurável. Toda projeção de tempo implica a postulação de um regime de ocupação do espaço: todo desenho de uma ação futura deve ser submetido a operadores sob a forma de perguntas tais como “onde?”, “em que lugar?”.

Nossa incursão metafísica, a esta altura, se apresenta como abertamente hipotética: como seria um estado perceptual no qual uma das duas dimensões é esterilizada (basta esterilizar uma delas). Tal hipótese nos conduz à metafísica da preguiça. A preguiça, no viés aqui esboçado, apresenta-se como pretensão de confundir-se ora com o espaço que a contém, livrando-o, ao mesmo tempo, da erosão do tempo e do fluxo, ora com o tempo, livrando-o das intuições de movimento. A associação entre tempo e espaço — como dissolução do espírito, como passagem para a operação das urdiduras causais e como projeção no imponderável e ignoto — é inimiga da introspecção mais radical possível: o usufruir de uma experiência do sujeito consigo mesmo, esvaziada de símbolos e signos.

Menos do que atestar a consistência existencial dos experimentos de dissociação entre tempo e espaço, importa descrevê-los. Ainda que inatingíveis, tais estados permanecem como horizontes e referências para versões a respeito do que deva ser uma vida boa. Ao fim e ao cabo, e qualquer que seja o resultado, a preguiça, na chave aqui indicada, parece exigir imenso trabalho.

EXERCÍCIOS DE METAFÍSICA PRÁTICA

Ataraxia: da preguiça dos pirrônicos

Uma passagem clássica, retirada de uma das obras de Sexto Empírico, ajuda-nos a identificar o núcleo central da argumentação cética. É necessário expor, ainda que de modo breve, tal núcleo, para que o tema da ataraxia emerja com alguma nitidez. A passagem referida define o ceticismo como uma disposição (dynamis), ou atitude mental, que opõe diferentes juízos a respeito da real natureza das coisas, como algo distinto do modo pelo qual parecem ser, apresentando tais juízos como equipolentes, ou com idêntica força. Em outros termos, juízos opostos e inconciliáveis são postos como equivalentes em suas pretensões de verdade, em um estado de equilibrio e de indecidibilidade que, para o cético, acaba por conduzir à suspensão (epoché) de seu próprio juízo. Diante de juízos rivais a respeito da natureza do mundo ou do fundamento de alguma questão, o cético recusa-se a dar assentimento a quaisquer das proposições em disputa, ao mesmo tempo que não se dispõe a sustentar que alguma delas seja falsa. Tal atitude de suspensão, uma vez obtida, proporciona um estado de tranquilidade, ou de ausência de perturbação (ataraxia)[21]A ataraxia repousa sobretudo na desistência em dizer o que as coisas são verdadeiramente e por natureza.

Três características cruciais do ceticismo pirrônico estão já contidas nessa rápida referência, a saber:

  • o princípio da isostheneia: equivalência entre juízos dogmáticos a respeito de assuntos não evidentes (adelón), ou fora da nossa percepção ordinária, tais como átomos, hexâmeros, substâncias, Formas etc.;
  • a atitude da epoché (suspensão), que se impõe diante de diferentes juízos discrepantes com pretensão de verdade, plausíveis porém inverificáveis;
  • o desfrute da ataraxia: um estado de quietude, ou ausência de perturbação, que sobrevém com a cessação do ânimo dogmático, por meio de uma interrupção proporcionada pela suspensão.

A passagem mencionada corrobora a referência de Aristocles de Messena a Timon, um dos discípulos de Pirro de Élis, reproduzida por sua vez por Eusébio de Cesareia, em sua Preparação para o Evangelho. Em tal comentário, como se verá, os operadores céticos acima indicados — equipolência, suspensão e ataraxia — aparecem como ações do sujeito a serviço de uma busca da felicidade (eudaimonia). Trata-se de interessante associação entre um conjunto de procedimentos de ordem cognitiva, a serviço, porém, de uma finalidade moral, a da obtenção de felicidade ou prazer. Segundo a menção a Timon, a obtenção da felicidade deriva da consideração de três problemas:

  • qual é a verdadeira natureza das coisas;
  • que atitude deve ser tomada diante de tal natureza verdadeira;
  • o que resultará dessa atitude.

As respostas, pela ordem, são as seguintes:

  • a verdadeira natureza das coisas é indeterminada, sendo nossos juízos a respeito delas nem falsos, nem verdadeiros;
  • diante da indeterminação do significado real das coisas, a atitude que se segue é a da suspensão, ou não asserção;
  • como resultado dessa suspensão sobrevém a afasia, a ataraxia e o prazer[22].

Nesse jogo de perguntas e respostas, são indicados três aspectos distintivos da tradição do pirronismo, presentes também no fragmento de Sexto Empírico já referido:

  • o problema da natureza das coisas;
  • a atitude cognitiva cética diante delas; e
  • os efeitos de tal atitude.

Tais aspectos traduzem-se na já conhecida sequência: equipolência (isostheneia), suspensão (époché) e tranquilidade (ataraxia). É importante atentar, em acréscimo, para a ideia de que a natureza das coisas possui caráter indeterminado. Dito de outra forma, não nos é dado tomar como incontroversos os juízos que atribuem propriedades imanentes e objetivas e sentidos ocultos para as coisas. É claro que não somos impedidos de proferir tais juízos, e, com efeito, o fazemos o tempo todo. O que os céticos estão a dizer é que parece não estar a nosso alcance fazê-lo de modo incontroverso, de uma forma tal a tornar impossível a formulação de qualquer juízo diverso e alternativo. Em seu combate ao dogmatismo, os céticos não disputam a verdade ou a falsidade de juízos que pretendem revelar o que está além da percepção comum. Argumentam, assim e tão somente, que juízos a respeito de assuntos não acessíveis à experiência comum (adelón) não são capazes de obter assentimento incontroverso.

O ponto de chegada do percurso equipolência-suspensão é a ataraxia — tranquilidade ou ausência de perturbação. Tal resultado, de acordo com o relato de Aristocles de Messena, confunde-se com o da obtenção de felicidade. O ponto é crucial em meu argumento, já que a ideia de felicidade que aqui se apresenta pode ser tomada como a versão pirrônica da metafísica da preguiça. Duas questões se impõem para tornar o ponto minimamente claro: em que medida a proteção contra os jogos dogmáticos é condição para a felicidade? De que felicidade, afinal, se trata?

Para Sexto Empírico, o homem feliz é conduzido por duas orientações, a saber: (1) nada deve ser, por natureza, objeto de desejo ou aversão; (2) as preferências humanas são determinadas por diferenças de circunstância e de tempo[23]. Não há como, portanto, justificar adesões absolutas, mas tão somente circunstanciais. Pode-se, portanto, supor que o homem feliz é portador da crença de que nada é intrinsecamente dotado de qualidades objetivas. Nesse sentido, ele não se ocupa da natureza da felicidade. Ao contrário, os que aceitam a existência da objetividade do bem e da verdade são hospedeiros — potenciais ou reais — de uma vida infeliz.[24] Tal infelicidade decorre tanto da necessidade de perseguir o que se julga ser um bem autêntico, verdadeiro e indispensável, como do espectro sempre presente da privação de seu gozo.

As condições para que a ataraxia conduza à eudaimonia parecem agora claras: trata-se de eliminar do campo de reflexão, como tema obrigatório, a questão de saber se existem coisas boas ou más — desejáveis ou indesejáveis — por natureza. A felicidade obtida é, antes de tudo, a ausência de vontade de inserção nos jogos agônicos dogmáticos, na determinação compulsória do que é — e deve ser — verdadeiro. Sobretudo, trata-se de uma recusa a um desenho de mundo no qual a ação humana exige o estabelecimento de premissas universalmente verdadeiras.

A dimensão existencial da ataraxia pode bem ser atestada no modo cético de lidar com os dogmáticos. Há, também com relação a esse ponto, uma passagem esclarecedora de Sexto Empírico, segundo a qual o cético — enquanto philantropos — pretende curar pela palavra o dogmático de sua precipitação e do amor desmedido por seu próprio logos[25]Trata-se de passagem especialmente rica para uma reflexão a respeito da natureza do ceticismo pirrônico, a partir da formalização proposta por Sexto Empírico. Ressalta, antes de tudo, o ânimo terapêutico, orientado por uma perspectiva de aproximação com os demais seres humanos, pelo uso do termo philantropos. Mas o que importa destacar, no contexto dessa busca de um fundamento pirrônico para a preguiça, são os traços atribuídos aos dogmáticos, tidos como precipitados e narcisistas. O ponto merece melhor explicitação.

O dogmático é apresentado, a despeito da disposição filantrópica de curá-lo pela palavra, de modo, no mínimo, desfavorável: ele crê em entidades não evidentes, torna absolutos os termos dessa crença, é precipitado na sua ostensão através do discurso e, por fim, é dotado de incontrolável amor de si quando examina seus próprios juízos. Temos, pois, a persona de um precipitado narcisista, alguém que não hesita em dizer a verdade, ao mesmo tempo que venera a si mesmo como sujeito capaz de proferi-la.

É no contraste com tal persona que a disposição do cético ganha imagem mais vívida. O dogmático, para o cético, aparece, antes de tudo, como alguém que fala em excesso; alguém que se apresenta como um obcecado pela predicação. É pela predicação que o dogmático, para além de dogmatizar, exerce sua precipitação. Esta, por sua vez, pode ser compreendida como obsessão de controle sobre o tempo. A precipitação do dogmático implica um regime de captura do tempo futuro: a pressa em dizer o que há — ou, de forma ainda mais evidente, o que será ou deve ser — revela um regime de existência no mundo para o qual o controle do tempo aparece como crucial. A própria estrutura gramatical da predicação denota duração, sobretudo quando preenchida por enunciados no tempo futuro.

A predicação é o suporte gramatical da existência dos humanos. O cético não pode, dessa forma, evitá-la. Adota, no entanto, como regime próprio o que poderíamos designar como um regime de predicação mínima, no qual o operador “é” cede lugar ao operador “parece ser”, tal como em famosa asserção de Timon: “Eu não asseguro que o mel seja [realmente] doce, mas que ele parece ser [doce] eu garanto”[26]. Mais do que filigrana discursiva, a escolha do operador “parece ser” como marcador de presença decorre de uma teoria da existência precisa: ao recusar-se a extrair implicações práticas de enunciados dogmáticos, os céticos orientam-se pelo comum ou, em outras palavras, por aquilo que aparece: um mundo constituído por fenômenos cuja ocorrência é compartilhada com outros seres humanos. As obrigações que se impõem ao cético são aquelas tornadas possíveis pela sua experiência com a vida comum, sede de valores e práticas compartilhadas. Em tal domínio, incontáveis formas de predicação aparecem como condições necessárias para a vida prática, e com relação a elas a suspensão é impossível, já que o ceticismo não é, de modo algum, uma forma de solipsismo.

A predicação dogmática, de modo distinto, instaura um regime agônico para lidar com o tempo, na medida em que este aparece como o lugar de materialização de verdades absolutas e imperativas. A suspensão cética, mais do que se afastar do conteúdo das proposições dogmáticas, afasta-se de um regime no qual o tempo aparece como marcador fundamental de existência. Dessa forma, tomar os fenômenos — aquilo que ordinariamente aparece — como marcadores existenciais traz consigo um elogio da possibilidade de vivência do espaço sem a agonia da precipitação no tempo. É evidente que o cético distinguirá o dia de hoje do de ontem, como bem o fazia, no século passado, John Ellis McTaggart (o que não o impediu de refutar a existência do tempo)[27]. O que o cético pirrônico parece recusar é a participação em uma metafísica que faz do tempo o lugar de materialização de verdades detectadas pelos logoi dogmáticos.

Temos, pois, aqui uma base poderosa para sustentar um argumento a respeito da suspensão do tempo, um dos requisitos por mim postos para a metafísica da preguiça. Tal argumento dá passagem à vivência de um espaço sem direção predeterminada, sem orientação normativa compulsória para qualquer futuro, sem o imperativo da precipitação e da aceleração, já que o futuro exige predicação. Em termos mais concisos, uma afirmação do espaço, sem a agonia da precipitação no tempo.

O tempo, para o dogmático, é lugar de agonia. O dogmatismo exige predicação absoluta, que é uma condição lógica para juízos a respeito do que são e devem ser as coisas. (No limite, sua experiência com o mel de Timon só se faz inteligível porque educou seus sentidos segundo a métrica de um conceito abstrato e universal de doçura.) A linguagem do dogmatismo exerce-se por meio de predicações absolutas: um juízo dogmático é uma doação de sentido, com pretensões de verdade. Trata-se de dizer o que são — ou devem ser — as coisas, para além do modo pelo qual parecem ser. O cético, ao adotar o critério da aparência, orienta-se por uma predicação mínima, aproximada mesmo da redundância. Para si, o que comumente se define como “realidade” será um efeito de impressões e assentimentos moderados e costumeiros. Tais termos indicam a presença de um sujeito que manifesta um mínimo de envolvimento epistêmico com suas próprias proposições a respeito do mundo.

Para o cético, o fenômeno é o marcador de existência: eis aqui uma representação do tema do critério de realidade que exige uma ambiência espacial, já que o fenômeno retira sua inteligibilidade de conjuntos de circunstâncias que afetam tanto os objetos como os próprios sujeitos da percepção. A metafísica pirrônica da preguiça ergue-se, portanto, sobre uma atitude filosófica de proteção da experiência do espaço contra a precipitação contida no tempo, como objeto de desejo dos obsessivos da predicação. Ainda que ativo, entre os demais humanos, o cético é habitado por uma reserva metafísica preguiçosa, que imuniza o espaço dos jogos de precipitação/predicação responsáveis pela aceleração do tempo.

SCHABAT, PREGUIÇA E SIMULAÇÃO DA ETERNIDADE

Trata-se, agora, de apresentar um argumento a respeito da supressão do tempo como fundamento possível para uma metafísica da preguiça. Para tal, tomarei como referência matricial um belo ensaio de Abraham Joshua Heschel a respeito da ideia e da experiência judaicas do Schabat[28], publicado em 1951[29]. Um dos aspectos notáveis do ensaio é a presença de uma perspectiva abertamente filosófica que, sem descurar do referente teológico, prescinde da menção litúrgica ou ritual. Não há, como seria expectável em um texto dedicado ao dia santificado do Schabat, menção aos 39 tipos de trabalho que devem ser evitados, no período de tempo compreendido entre os finais de tarde de sexta-feira e sábado. Quem buscar no livro orientações práticas a respeito de como se comportar nesse espaço curto de 24 horas sairá sem respostas precisas, embora preenchido por significados um tanto mais amplos. Minha referência a Heschel acompanhará a ênfase por ele pretendida no ensaio aludido: um conjunto de argumentos filosóficos que, mesmo mantendo com a teologia vínculo indisfarçável, pode ser tomado como exercício de metafísica a respeito da experiência de suspensão do espaço como marcador existencial.

A experiência do Schabat, tal como interpretada por Abraham Joshua Heschel e pela interrupção das rotinas presentes nos demais dias, recusa a “capitulação incondicional do homem ao espaço, sua escravização às coisas”[30]. Como alternativa a tal “capitulação”, propõe um regime próprio para lidar com o tempo, aproximando-se, dessa forma, de uma experiência de dissociação entre tempo e espaço. Tal regime parte da premissa de que “a civilização técnica é a conquista do espaço pelo homem”[31].

A primazia conferida ao espaço como domínio de realização humana, para Heschel, fez-se — e faz-se — com o “sacrifício de um ingrediente essencial da existência, isto é, o tempo”: “Na civilização técnica nós gastamos tempo para ganhar espaço”. O predomínio do espaço como esfera de realização indica, ainda, a supremacia do ter sobre o ser. O argumento permite que o principal marcador de existência seja, para Heschel, o tempo: ser e tempo, nesse sentido, possuem uma afinidade recíproca e necessária:

“O tempo é o coração da existência”, premissa também apresentada e desenvolvida por Heschel em um de seus livros mais importantes, Man is not alone: A philosophy of religion[32].

Primeira implicação da premissa: A vida vai mal quando o controle do espaço, a aquisição de coisas do espaço torna-se nossa única preocupação”[33]. O fundamento da “civilização técnica” reside particularmente no desejo de submeter e manipular as forças da natureza. Trata-se, pois, de um investimento no espaço: “A manufatura de ferramentas, a arte da fiação e do cultivo, a arte de construção de casas, o mister na navegação — tudo isso tem lugar no espaço que envolve o homem”[34].

Heschel a isso contrapõe uma proposição teológica: “Deus”, para ele, não é referenciável em termos espaciais e não pode ser representado, portanto, por uma “noção de que a deidade reside no espaço”: “Há muito entusiasmo pela ideia de que Deus está presente no universo, mas esta ideia é adotada para significar Sua presença no espaço mais do que no tempo, na natureza, mais do que na história; como se Ele fosse uma coisa, não um espírito”[35].

O panteísmo, para Heschel, é “uma religião do espaço”, uma forma religiosa que exige o espaço como condição de inteligibilidade e de culto. De modo alternativo, Heschel imagina uma experiência religiosa sem a referencialidade espacial, como base para uma ética assentada na primazia do tempo, como possibilidade de suspensão — e de observação — do que fazemos no — e com o — espaço[36].

A primazia do espaço teria sido para Heschel marca do pensamento de Espinosa: “Deus sive natura tem a extensão ou o espaço como seu atributo, não o tempo; o tempo para Espinosa é meramente um acidente do movimento, um modo de pensar. E seu desejo em desenvolver uma filosofia more geometrico , ao modo da geometria, que é a ciência do espaço, é significativo de sua inclinação pelo espaço”[37].

Com efeito, Espinosa pretendeu associar evidência e ação: ao mesmo tempo que não abriu mão da possibilidade da certeza filosófica, adotou uma ideia de existência que se manifesta na potência do acontecer, ou seja, no domínio da ação. Tal domínio exige a primazia do espaço e do movimento, sendo, assim, o tempo um acidente, um mero modo de pensar.

A abordagem de Heschel, por oposição, afasta-se do elogio a uma filosofia da ação que não seja precedida pelo pôr-se na perspectiva de uma existência/identidade fixada fora do espaço, no tempo puro e absoluto. Algo, na verdade, muito difícil. A adoção dessa perspectiva contraria um hábito fortemente inscrito na imaginação dos humanos: pensar a existência como algo que se dá primordialmente no espaço: “[…] é no reino do espaço onde a imaginação exerce a sua influência”. O rebatimento teológico de tal hábito é imediato: “Dos deuses é preciso ter uma imagem visível; onde não há imagem não há deus”[38], do que decorre a reverência ao monumento, a lugares tidos como sagrados: “Em todo lugar a profanação de santuários sagrados é considerada um sacrilégio, e o santuário pode tornar-se tão importante que a ideia que ele representa é destinada ao olvido. O monumento torna-se um auxiliar da amnésia”[39].

Ou seja, a marca física e espacial, a serviço de uma ideia, acaba por adquirir vida própria e, nesse sentido, dá passagem à amnésia: já não sabemos mais por que isso existe. Trata-se da ilusão de combate à amnésia pela fixação de coisas no espaço. Coisas, por definição, sujeitas aos jogos do esquecimento, ou das memórias conflitantes e múltiplas, de múltiplos deslocamentos possíveis de sentido. A fixação no espaço, assim, não é condição suficiente para a memória, antes o contrário: estando “as coisas do espaço […] à mercê do homem”, estarão sempre sujeitas ao esquecimento de seus motivos originários.

Abre-se, aqui, a alternativa de pensar a relação entre tempo e memória: a memória sem referência a acontecimentos — que exigem o espaço — só pode ser a memória da eternidade, do absoluto. O que se refuta é uma ideia de tempo como propriedade inerente de coisas que acontecem no espaço, em prol de uma concepção emancipada da finitude das coisas.

A própria categoria “coisa” aparece para Heschel como problemática. O termo sequer teria correspondência no hebraico bíblico, tendo a palavra davar — adotada pelo hebraico posterior como designando “coisa” — como significados originais possíveis “palavra”, “fala”, “conselho”, “mensagem”, “pedido”, “promessa”, “história”, entre outras, a denotar significados imateriais, cujo sentido prescinde da extensão e da representação espacial[40].

Para Heschel, a “coisificação” representa uma concepção de realidade marcada por uma “cegueira” que afeta a nossa percepção do tempo — ou falta de percepção: “sendo desprovido de coisa e de substância [o tempo] nos aparece como se não tivesse realidade”[41]. O regime de vida ordinário dos humanos teria, então, tornado o tempo “subserviente” ao espaço. Sua própria progressão se faz tangível pela série temporal de aquisições e perdas — que sofremos ao longo da vida. O curso da vida se faz, assim, compreensível como sucessão de eventos, espacialmente referenciados. Para Heschel, no entanto, “as coisas, quando ampliadas, são contrafações da felicidade, são uma ameaça para nossas próprias vidas”.[42]

A versão do judaísmo apresentada por Heschel define-o como uma “religião do tempo visando a santificação do tempo”[43]O Schabat é, por decorrência, apresentado como algo vinculado a uma “arquitetura do tempo”, resultado de uma arte de lidar com o tempo. Mas, ao contrário de outras marcas no calendário judaico, caracterizadas por práticas que lhes são próprias — tais como as inscritas no calendário das festas o Schabat distingue-se mais pela suspensão da ação do que pela obrigatoriedade de desempenho de práticas que lhe são específicas. O motivo para tal resulta de uma representação de nossa vivência com o espaço como experiência de viver sob uma “tirania”: “Seis dias da semana vivemos sob a tirania das coisas do espaço; no Schabat tentamos nos tornar harmônicos com a santidade do tempo. É um dia em que somos chamados a partilhar no que é eterno no tempo, para fugir dos resultados da criação para os mistérios da criação, do mundo da criação para a criação do mundo”[44].

Embora finito, o tempo curto do Schabat encerra em si mesmo uma experiência de tempo ilimitado, graças à suspensão das referências ao espaço. Nesse sentido, pode ser definido como uma simulação de eternidade. É tal simulação que desmonta no interior do sujeito a associação habitual entre sensações de tempo e de espaço como vivendas necessariamente complementares. O Schabat, à la Heschel, é antes de tudo uma experiência metafísica com o tempo, na qual os limites da contingência espacial são neutralizados. Sendo este um texto laico, importa-me menos a dimensão teológica e religiosa do Schabat, e mais — muito mais — o que revela de experimento metafísico e de sensibilidade metafísica para o absoluto.

Assim como a metafísica dos céticos, que contém implicações de ordem prática, a metafísica de Heschel não é isenta de consequências possíveis. A radicalidade da metafísica da preguiça, versão Heschel, pode bem ser atestada em uma das histórias que incluiu em O Schabat:

Certa vez, um pio fez um passeio à sua vinha durante o Schabat. Ele viu uma brecha na cerca e, então, decidiu consertá-la quando terminasse o Schabat. Ao expirar o Schabat resolveu: uma vez que o pensamento de reparar a cerca ocorreu-me durante o Schabat não devo repará-la jamais[45].

Devo a isso acrescentar, apenas, que poucas imagens se ajustam tão bem à ideia de uma preguiça além da qual nenhuma outra pode ser pensada.

MARCAS FINAIS

Não se exigirá da metafísica da preguiça um programa prático de ação no mundo. Tal demanda deverá ser dirigida aos adeptos de uma política da preguiça, cujo sucesso — de modo necessário — implicará a descaracterização dos propósitos iniciais do, digamos, movimento. Isso porque a emergência de um leninismo da preguiça — ou mesmo de um contraponto seu moderado, à la Eduard Bernstein — exigirá a apresentação de um guia prático a respeito de como agir.

A metafísica da preguiça é um experimento com o absoluto. O que fiz aqui foi sugerir quais operadores aparecem como necessários para que tal quimera preguiçosa seja possível. O cético e o rabino aqui comparecem como exemplos de supressão — na ordem devida — do tempo e do espaço. Tal como sugeri antes, a supressão de qualquer um dos termos do composto espaço-tempo faz do sobrevivente um âmbito absoluto. Ora, a metafísica da preguiça exige a hipótese de um absoluto que, em termos formais, proíbe compartilhamento com algo que de si difere. Se tempo e espaço comparecem em nossa experiência do mundo, assim o fazem porque cada um desses aspectos dá sentido e estabelece limites ao outro.

O que pedir, então, à metafísica da preguiça, ou melhor, ao programa da preguiça metafísica? Sugiro que algo análogo ao que pedimos ao programa do princípio do prazer, com o devido cuidado de reconhecer que, para seu descobridor /inventor, nada tem ele de metafísico. Mas, tanto quanto o princípio da preguiça metafísica, o programa do princípio do prazer é impraticável, mas parece ser pouco recomendável que os dispensemos como requisitos compulsórios para uma vida não muito infeliz.

Notas

  1. Paul Lafargue, O direito à preguiça, Lisboa: Dom Quixote, 1971, p.15. 
  2. Idem, ibidem, p. 48. 
  3. José Ortega y Gasset, La rebelión de las masas, Madri: Alianza, 1997, p. 55. 
  4. Idem, ibidem, p. 67. 
  5. Fernando Pessoa, Livro do desassossego, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 469. 
  6. Idem, ibidem, p. 428. 
  7. António Marques, O essencial sobre metafísica, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, p. 5. 
  8. Willard Quine, “On what there is”, From a logical point of view, 2ª ed., Cambridge: Harvard University Press, 1980. 
  9. Immanuel Kant, Prolegomènes à toute Metaphysique Future, § 40, Paris: J. Vrin, 1968, p. 106. 
  10. Anselmo de Cantuária, Proslógio, in Santo Anselmo de Cantuária e Pedro Aberlardo, Col. Os Pensadores, São Paulo: Abril, 1973. Para uma análise apurada dos argumentos anselmianos, ver o incontornável livro de Karl Barth, Fides quaerens intellectum: La preuve de l’existence de Dieu d’après Anselme de Cantor-béry,Neuchatel: Delachaux Niestlé, 1958. Fernando Gil desenvolveu interpretação iluminada em A convicção, Porto: Campo das Letras, 2003. 
  11. Idem, ibidem, p. 102. 
  12. Idem, id. ibidem. 
  13. Idem, id. ibidem. 
  14. Ver, em especial, o capítulo I do Proslógio, “Exortação à contemplação de Deus”, em que Anselmo põe-se na posição do “servo” que se dirige a Deus como alguém que “suspira só por ti e não conhece o teu rosto” (Cf. Anselmo de Cantuária, op. cit., p. 99). 
  15. Charles Sanders Pierce, Philosophical works, Mineola: Courier Dover, 1955 (1868), 2:213. 
  16. Remeto aqui ao genial ensaio de Fernando Gil, ‘Aquém da existência e da atribuição: crença e alucinação”, Modos da evidência, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986. 
  17. Friedrich Nietzsche, A filosofia na época trágica dos gregos, § 3, in José Cavalcante de Souza (Sel.), Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários, Col. Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 12. 
  18. Abraham Heschel, O Schabat: seu significado para o homem moderno, São Paulo: Perspectiva, 2000. 
  19. Krysztof Pomian, “Tempo /temporalidade”, in Fernando Gil (coord.), Enciclopédia. Einaudi, 29, Lisboa: Einaudi/Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993, pp. 11-91. 
  20. Idem, ibidem, p. 32. 
  21. Sextus Empiricus, Outlines of pyrrhonism (HP), I, 8, trad. R. G. Bury, Cambridge/Londres: Harvard University Press/Heinemann, 1987. Para uma tradução mais recente, ver Sextus Empiricus, Outlines of scepticism, trad. Julia Annas & Jonathan Barnes, Cambridge: Cambridge University Press, 1994. 
  22. Sigo, aqui, a tradução proposta por Jean-Paul Dumont: “Puisque, déclare-t-il, les choses ne manifestent aucune différence entre elles et échappent également à la certitude et au jugement, ni les sensations ni les opinions ne peuvent ni nous révéler la vérité ni nous tromper. C’est pourquoi il ne nous faut par leur accorder crédit, mais demeurer sans opinions, sans penchants et sans nous laisser ébranler, nous bornant à dire de chaque chose qu’elle n’est pas plus ceci qu’ellen’est cela, qu’elle est et en même temps qu’elle nest pas, ou bien ni qu’elle est, ni qu’elle n’est pas. Pour peu que nous connaissions ces dispositions, nos connaîtrons, dit Timon, d’abord l’aphasie, puis l’ataraxie et, dit Aenésidème, le plaisir”. Cf. Aristoclès de Messène, in Eusébio de Cesareia, Preparatio evangelica, XIV, 18, p. 1245, apud Jean-Paul Dumont, Le scepticisme et le phénomène, Paris: J. Vrin, 1985, pp. 140-141. 
  23. Sextus Empiricus, Adversus Mathematicus (m), XI, 118. Retomo aqui o argumento por mim desenvolvido no ensaio “Vox Sextus: dimensões da sociabilidade em um mundo possível cético”, in Renato Lessa, Veneno pirrônico: ensaios sobre o ceticismo, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997, p. 156. 
  24. Sextus Empiricus, (M), XI, III. 
  25. O cético, “being a lover of his kind (philánthropos), desires to cure by speech, as best as he can, the self-conceit (oiesín) and rashness (propeteian) of the Dogmatists”. Cf. Sextus Empiricus, HP, III, 280. 
  26. 0 fragmento pertence a um tratado perdido de Timon — Sobre os sentidos—, citado na Poética de Aristo-des de Messena, frag. 74, apud Charlotte Stough, Greek skepticism: a study in epistemology, Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1969, p. 21. O mesmo fragmento aparece em Sexto Empírico: […] honey appears to us to be sweet (and this we grant, for we peirceve sweetness through the senses), but whether it is also sweet in its essence is for us a matter of doubt, since this is not an appearance but a judgement regarding the appearance”. Cf. Sextus Empiricus, HP, I, 20. 
  27. Para o argumento de McTaggart, a respeito da não realidade do tempo, ver a ótima edição italiana, com longa e instrutiva introdução elaborada por Luigi Cimmino: John Ellis McTaggart, Eirrealtà del Tempo, Milk): BUR Saggi, 2006. 
  28. A transliteração do termo permite a grafia, mais usual, da forma “shabat”. Mantenho, no entanto, por razões de unidade a grafia adotada na tradução brasileira do ensaio de Heschel, que optou por “Schabat”. 
  29. Abraham Heschel, O Schabat: seu significado para o homem moderno, op. cit. Um comentário biográfico, mesmo breve, a respeito de Abraham Joshua Heschel excede os limites deste ensaio. Um excelente tratamento biográfico pode ser encontrado em Edward Kaplan e Samuel Dresner, AbrahamJoshua Heschel: Prophetic witness, New Haven: Yale University Press, e em Edward Kaplan, Spiritual radical: Abraham Joshua Heschel in America, New Haven: Yale University Press, 2007. 
  30. Abraham Heschel, op. cit., p. 16. 
  31. Idem, ibidem, pp. II e 43. 
  32. Abraham Heschel, Man is not alone: A philosophy of religion, Nova York: Farrar, Straus and Girox, 1951. 
  33. Abraham Heschel, O Schabat…, op. cit., p. 12. 
  34. Idem, ibidem, p. 12. 
  35. Idem, ibidem. 
  36. A ênfase de Heschel na dimensão do tempo esteve longe de ser incontroversa entre intelectuais do judaísmo. Trude Weiss-Rosmarin, editora do Jewish Spectator, refutou de imediato, já em 1951, as teses de Heschel, para ela sustentadas em “untenable premisses”. Ao criticar a aversão de Heschel à dimensão do espaço, Weiss-Rosmarin sustentou que “the evidence of the most authoritative Jewish sources proves on the contrary that Judaism identifies God with space, viz., the usage of makom — space — as synonym of God in the Mishna, Talmud, medieval literature, and coloquial Hebrew speech”. In Judaism I, 3 (julho 1951), pp. 277-78, apud Edward Kaplan, op. cit., p. 128. 
  37. Abraham Heschel, O Schabat…, op. cit., p. 13. 
  38. Idem, ibidem. Para Heschel, ao contrário, “um deus que pode ser moldado, um deus que pode ser confinado, não é senão uma sombra do homem”. 
  39. Idem, ibidem. 
  40. Idem, ibidem, pp. 16-17. 
  41. Idem, ibidem, p. 14. 
  42. Idem, ibidem, p. 15. 
  43. Idem, ibidem, p. 18. 
  44. Idem, ibidem, p. 22. 
  45. Idemibidem, p. 50. 

    Tags

  • ação
  • ação no mundo
  • afasia
  • agonia
  • amor
  • anticapitalismo
  • antimodernização
  • ataraxia filosófica
  • ceticismo
  • Charles Sanders Peirce
  • classicismo
  • desejo
  • Deus
  • direito ao trabalho
  • escolástica medieval
  • espaço
  • espaço público
  • Espinosa
  • experiência
  • experiência do mundo
  • Fernando Pessoa
  • hiperativismo
  • homens lentos
  • imperativo da preguiça
  • introspecção
  • intuição
  • Kant
  • loucura
  • memória
  • metafísica
  • movimento
  • natureza das coisas
  • nec plus ultra
  • Nietzsche
  • Ortega y Gasset
  • paul lafargue
  • prazer
  • preguiça
  • preguiça epistemológica
  • preguiça metafísica
  • preguiça ontológica
  • preguiça prática
  • privação do gozo
  • quietude
  • ser do qual não se pode pensar nada de maior
  • simulação da eternidade
  • sociedade
  • Tales de Mileto
  • tempo
  • tempo finito
  • teologia
  • totalidade absoluta
  • trabalho
  • utilitarismo
  • virtude