2014

O risco do fracasso

por Franklin Leopoldo e Silva

Resumo

No pensamento de Bergson, a consequência mais relevante da oposição entre o conhecimento analítico, próprio do entendimento, e a apreensão intuitiva, direta e imediata, é a impossibilidade de que a intuição se expresse em discurso, uma vez que a linguagem habitual não pode dar voz às impressões profundas da interioridade subjetiva, que permanecem indeterminadas e aquém das articulações próprias da ordem objetiva da representação. Não deixa de ser paradoxal que a experiência mais intensa que o sujeito possa ter de si e daquilo que o transcende, o tumulto inerente ao fluxo das emoções, fique relegado ao silêncio, devido à desordem da temporalidade da consciência, inapreensível da perspectiva da estrutura lógica ordenadora do pensamento e da linguagem. Entretanto, a intuição desta dimensão interna próxima do inefável manifesta-se indiretamente na arte: a literatura, por exemplo, consiste no esforço para expressar tudo que foge à estrutura analítica da nossa relação pragmática com o eu e com as coisas. Para aproximar-se desta meta inatingível, o artista procura inventar a forma que o libertaria das convenções que ele necessita superar: o escritor torce e retorce a linguagem, interfere violentamente na estrutura da expressão, desloca os meios de significação, tudo isto para, ao menos, aludir ao que seria verdadeiramente indizível. Na literatura, o chamado romance de introspecção, também designado como “psicológico”, representa a tentativa de abandonar o “cânone realista” e instituir outro foco narrativo, que diria respeito às camadas obscuras da subjetividade que antecedem o contato do sujeito com a superfície do real, em que as representações fluem ordenadamente a partir de pressupostos de veracidade, verossimilhança, referências concretas e inserção efetiva no mundo – ainda que constituído pela realidade paralela da imaginação. A introspecção não deve ser considerada apenas uma alteração no procedimento narrativo, mas o esforço para que a expressão literária ocorra a partir da crise da representação que teria acusado as limitações das convenções realistas. Já não se admite como suficiente que o sujeito fale apenas a partir do mundo ou de sua própria exteriorização; é preciso que ele se dê a conhecer a partir da camada mais profunda em que a intensidade da vida interior. Ela cuja expressão é bloqueada pela impossibilidade da representação, pela inelutabilidade do silêncio. O tempo da alma revela a verdade do humano, não por via das articulações objetivas do “conhecimento”, mas pela experiência da dificuldade de se reconhecer no estranhamento algo como uma tensão trágica que divide o sujeito e vincula enigmaticamente a proximidade e a distância. É a partir desta tensão que a forma precisa ser reinventada, seja no nível da expressão linguística, seja no que concerne à estrutura narrativa. Joyce e Virgínia Wolf ou, entre nós, Lúcio Cardoso e Clarice Lispector são destacados exemplos que podem ser vinculados à redescoberta do tempo da consciência como devir absoluto da interioridade em Bergson. O desejo de expressão já não confia mais na força da adequação que tradicionalmente vinculava representação e representado. Experimenta, agora, o risco do fracasso, como destino da fala e da escrita diante de seu próprio enraizamento no silêncio.


Palavras e silêncios

Que jamais se encontrarão.

RAIMUNDO FAGNER E ZECA BALEIRO, Palavras e silêncio

O tema geral deste ciclo, tendo em vista que relaciona “silêncio” e “prosa do mundo”, sugere a pergunta: o silêncio pode ser expressivo? Na experiência afetiva por vezes vivemos situações em que o silêncio, longe de ser neutro e vazio, revela, responde e nos incomoda muito mais do que as palavras. Sabemos como pode ser angustiante a interrupção do diálogo, quando o interlocutor reage à nossa fala com um silêncio pleno de significação. Quando já não se tem o que dizer, quando já não se pode dizer mais nada, a ausência de palavras pode ser dolorosamente eloquente: uma falta sentida como uma carga intangível que pesa sobre nós e faz desfalecer nossas expectativas.

Quando refletimos sobre isto, observamos que o silêncio que se projeta na relação intersubjetiva corresponde a um tumulto na interioridade, como se a impossibilidade de falar decorresse de uma abundância desordenada da emoção, ou como se a falta de palavras fosse causada pelo excesso de significados inexprimíveis. Assim, quando chegamos a uma situação em que não sabemos o que dizer, experimentamos a impossibilidade de articular o que se passa na subjetividade profunda. Experimentamos aquele tipo singular de limite que não é apenas a linha divisória entre pensamento e linguagem, mas a pressão da desordem interior sobre o dique representado pela ordem habitual das palavras.

E assim percebemos que a passagem da consciência à sua expressão só é linear quando a própria ordem da linguagem retroage sobre o pensamento, proporcionando uma adequação pragmática entre ideias e palavras. Mas quando já não é o caso de vivências corriqueiras e adaptadas ao mundo, quando esta antecipação da linguagem em relação ao pensamento deixa de ocorrer, então pode acontecer a experiência da distância intransponível entre os estados de consciência e os termos que deveriam representá-los: os casos em que, sob forte emoção, torna-se impossível falar. E o tempo de que precisamos para recuperar a possibilidade da fala se define também como a traição da interioridade, pois, quando a emoção profunda emerge a ponto de se encarnar em palavras, o essencial já está perdido.

É neste sentido que a palavra sempre envolve o risco de uma expressão diminuída, algo que se definiria muito mais pela ausência do que pela presença. Como se a produção de significações e o advento da inteligibilidade fosse inevitavelmente a renúncia à expressão total. As filosofias sempre se depararam com o problema da possibilidade de transformar o mundo em pensamentos e os pensamentos em palavras, e a adequação representativa se concebe, assim, muito mais como um ideal do que como realização. Daí a luta pela apreensão do sentido e o drama da expressão, como se a anterioridade do silêncio não fosse apenas a condição, mas a marca da impossibilidade da expressão. Por isto, mesmo no nível da fala cotidiana, palavras e silêncios estão sempre de alguma forma mesclados, e o que dizemos frequentemente se traduz não como articulação entre palavras, mas das palavras com o silêncio.

Se prolongarmos estas considerações, poderemos chegar a dizer que nos expressamos tanto pela afirmação das palavras quanto pela negação envolvida no silêncio. A ansiedade que nos toma quando não podemos dizer tudo é constitutiva de tudo quanto dizemos. E mesmo quando falamos do mundo das coisas, temos de silenciar muito da experiência interna que fazemos da exterioridade que buscamos expressar. Ainda mais, quando falamos do outro, nos deparamos com a insuficiência da experiência subjetiva da alteridade. E, no limite dessa dificuldade, quando falamos de nós mesmos é inevitável que nos rendamos ao silêncio decorrente daquilo que não podemos representar acerca de nosso próprio Eu. O dramático dessa situação é que o indizível da experiência profunda é mais e mais real do que o que logramos traduzir em palavras. Sentimos, e até compreendemos parcialmente, o caráter redutor das palavras e os limites da expressão. A distância e a diferença estão de alguma maneira presentes à apercepção de nós mesmos e de nossos modos de exteriorização, e de alguma forma sabemos que ficamos sempre aquém de nós mesmos, embora não possamos explicar este entrelaçamento de presença e ausência na constituição expressiva da existência. A expressão é a experiência da falta, que o silêncio indica mas não pode suprimir.

Esta separação é um tema relevante do pensamento de Bergson, e sua causa seria, segundo o filósofo, a conformação pragmática da linguagem, destinada naturalmente à comunicação utilitária, não podendo assim ultrapassar a condição de instrumento imediatamente voltado à satisfação de necessidades vitais, que opera no campo da inteligência considerada órgão de sobrevivência. A adequação entre o indivíduo, os outros, as coisas e as palavras ocorre no plano relativo das possibilidades e limites da relação empírica entre a consciência e as ações necessárias à estabilidade de nossa representação do meio em que vivemos. Mas entendemos também que, se esta fosse a única função da linguagem, não perceberíamos a falta que a constitui e os limites que, apesar de tudo, tentamos superar. Trata-se, portanto, de compreender os limites das possibilidades de duas maneiras: em primeiro lugar como o que encerra a linguagem nas delimitações da experiência externa ou do sujeito exteriorizado na representação do mundo como cenário de seus gestos que visam à sobrevivência, seja de modo imediato, seja através das mediações que a cultura proporciona. Em segundo lugar, limite também significa a representação indireta de tudo que estaria além dele e fora dos parâmetros da racionalidade instrumental. A segunda possibilidade deve ser compreendida não somente como a superação da linguagem a serviço da representação pragmática, mas também como a inversão dos parâmetros utilitários da relação entre consciência e realidade.

É desta forma que a linguagem pode buscar exprimir o que estaria, a princípio, fora dos limites demarcados pela natureza. É neste sentido que a inversão mencionada acima seria uma atitude antinatural, a qual apontaria para uma dimensão da realidade humana que só pode ser atingida pela superação da condição natural, aquela em que o ser humano se define como uma espécie entre os demais seres vivos. Esta possibilidade de transcender a natureza é também a possibilidade de transcender os limites instrumentais da linguagem. Não podemos entendê-la, isto é, explicá-la analiticamente, mas a ela podemos aceder por uma experiência direta ou um contato intuitivo com aquilo que se situa além de nossos hábitos de percepção e pensamento e que, por isso mesmo, está fora dos limites da expressão convencional, em que operam o senso comum e a ciência no cumprimento de sua destinação

pragmática.

É preciso observar, entretanto, que a linguagem, em sua dimensão natural, é completa em si mesma, isto é, cumpre satisfatoriamente sua função instrumental. Quando desejamos empregá-la além de sua própria funcionalidade, os limites que encontramos já supõem, de alguma maneira, que a forçamos para além daquilo que ela está destinada a fazer. Isto quer dizer que a linguagem não é naturalmente limitada; ela é o que é de acordo com a produção, pela evolução, dos instrumentos de que devem ser dotados os seres vivos. E as significações que a linguagem produz também são inteiramente coerentes com sua função natural. O que nos leva a conceber limites e a tentar ultrapassá-los é o desejo de expressar algo que, do ponto de vista natural, seria gratuito e desnecessário. Ocorre que a pretensão ao supérfluo pode ser vista como o essencial da condição humana – aquilo que se denomina vagamente como o espírito. É nesse sentido que captamos algumas realizações humanas como obras do espírito, e o significado implícito é que seriam coisas desnecessárias à sobrevivência material e imediata. Em outras palavras, pensamos além do que a natureza nos fez para pensar, e procuramos expressar isto que pensamos simplesmente por pensar.

Nisto consiste a arte e nisto também reside a dificuldade de expressão daquilo que percebemos e pensamos para além da adequação natural à comunicação utilitária. Deparamo-nos então com a insuficiência das significações cristalizadas nas palavras que escondem pragmaticamente o pensamento. Surge então o paradoxo: é com o que temos, com estas palavras e com estes modos de articulação que se procura exprimir algo que já não cabe em tais limites. Seria preciso expandir as possibilidades; mas o que pode ser dito além das palavras que não venha a ser dito por meio das próprias palavras? Certamente, a arte da palavra não pode adotar uma espécie de silêncio essencial e renunciar completamente à expressão. Mas a arte não é, para Bergson, uma função da linguagem naturalmente estabelecida. Assim, é de alguma forma entre o silêncio essencial e as palavras inadequadas que se produz a literatura, na medida em que a comunicação utilitária deve se transformar na criação do imprevisto e do gratuito. Ora, sendo as palavras inevitáveis, a criação é inevitavelmente limitada por elas. O escritor é aquele que faz uso das palavras e ao mesmo tempo mantém-se distante delas. Como isto é possível?

Seja […] uma personagem de romance do qual me contam as aventuras. O romancista poderá multiplicar os traços de caráter, fazer o seu herói falar e agir tanto quanto lhe aprouver: nada disto irá valer o sentimento simples e indivisível que eu experimentaria caso coincidisse por um instante com a própria personagem. Então pareceriam fluir naturalmente, como da fonte, as ações, os gestos e as palavras. […] Símbolos e pontos de vista colocam-me, portanto, fora dela (personagem); só me entregam aquilo que ela tem em comum com outras e que não lhe é próprio. Mas aquilo que é propriamente ela, aquilo que constitui sua essência, não poderia ser percebido de fora, sendo, por definição, interior[1].

Configura-se a dificuldade ou o paradoxo de que falamos: a multiplicidade das palavras que operam em termos de descrição externa não me permite compreender a “essência”, que permaneceria como uma referência inatingível, pois é, “por definição, interior”. A verdadeira compreensão se daria pela experiência de coincidir, por um instante que fosse, “com a própria personagem”. Situando-me na origem das descrições e ali onde tudo se condensa, as palavras seriam, no limite, desnecessárias. Pois a descrição externa teria sido substituída pela experiência interna. Não seria neste caso o símbolo mediador, mas a coincidência com a própria pessoa. E assim Bergson enuncia a condição impossível: a compreensão imediata, a coincidência com o outro, a personagem, como o modo de realização da leitura verdadeiramente compreensiva, como o modo de escapar do estatuto simbólico, portanto exteriorizante, das palavras. Estas, ao escandirem o tempo da consciência na descrição narrativa, ocultam o fluxo diferenciado enquanto experiência da personagem com a qual o leitor deveria coincidir.

Ora, o chamado “romance de fluxo de consciência”, cujos exemplos mais característicos seriam Joyce e Virginia Woolf, já foi considerado, por críticos e historiadores da literatura, como relacionado com a temporalidade da consciência tal como Bergson a considera, na concepção de tempo por ele designada como duração. Com efeito, a representação dos estados de consciência como justapostos uns aos outros a partir do modelo de objetos físicos espacialmente relacionados não faz justiça ao caráter eminentemente temporal da psique, tratando-se no caso de uma tradução do fluxo da consciência (duração), num esquema adequado aos critérios metodológicos derivados de uma epistemologia de raiz kantiana e, portanto, comprometida com o paradigma físico-analítico aceito como condição de objetividade.

Como poderíamos encontrar, numa relação entre a duração da consciência em Bergson e no romance “psicológico”, elementos que pudessem levar ao exame da questão colocada acerca da necessidade de o escritor mover-se entre a ordem das palavras e o tumulto silencioso da consciência íntima?

Shiv Kumar[2] assinala que a eventual apreensão do fluxo da duração não deve ser entendida como o contato com a interioridade, uma vez que esta pode ser – e foi – definida como subjetividade ou entidade metafísica, nem muito menos como instância transcendental, mas como um contato absoluto com o próprio fluxo: justifica-se o termo “absoluto” uma vez que, para Bergson, a dimensão do relativo seria mais bem definida como analítica e conceitual. Assim, o fluxo da consciência pode ser designado como absoluto, se por este termo entendermos a realidade em sua manifestação primordial: o tempo não é apenas atributo do ser; ser é tempo. Por isso, o contato com o movimento da consciência, que é o seu fluxo temporal, é mais preciso do que a representação simbólica do tempo e da realidade da consciência. O sujeito é absolutamente o que é no movimento do fluxo temporal (dos estados) da consciência.

O escritor que puder colocar o leitor numa posição de maior proximidade com o fluxo terá operado uma flexibilização da representação, em grande parte devido a um esforço de imaginação para dar a entender a autêntica sucessão no ritmo da consciência, habitualmente traduzido em justaposição espacial. Observe-se que neste caso a tradução simbólica afeta diretamente a natureza do original, por via do que Kumar denomina a “simplificação prática da realidade”. O procedimento literário que recebeu o nome de monólogo interior vem sendo, desde o século XIX, utilizado como uma tentativa de contornar as convenções da narrativa e fazer aparecer, de modo menos mediato, a corrente de pensamento em que os estados de consciência se associam livremente. A representação literária deste fenômeno pode chegar a um significativo deslocamento da escrita, que consiste justamente em mostrar, através da descontinuidade das palavras, o ritmo contínuo da duração da consciência. O esforço para mostrar a subjetividade sempre em devir, e até mesmo uma errância do Eu, é visto agora como uma forma mais originária de narrar a vida da consciência.

Mas o deslocamento da escrita pode ser também entendido como um testemunho da insuficiência das palavras e das regras de articulação. Sobretudo porque este deslocamento é precedido por outro: o monólogo interior ocorre em silêncio, como se o tumulto e a desordem do fluxo da consciência anulassem a fala. Nos monólogos de Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf, e de Molly Bloom, do Ulysses, de James Joyce, observamos inversões de cronologia por via de associações do presente com o passado, quebra da linearidade e até mesmo da unidade narrativa, num ritmo que não poderia ser reproduzido na articulação da fala. É a consciência, notadamente a memória da personagem, que passeia mais ou menos aleatoriamente pelas sensações e lembranças, pela consciência do presente e pelas reminiscências, sem grande respeito pelas leis de associação e, sobretudo, sem levar em conta a prevalência da realidade.

Anatol Rosenfeld[3] chama de “desrealização” ao procedimento que consiste em colocar a realidade objetiva entre parênteses para deixar fluir a temporalidade da consciência de modo alheio à sucessão convencional das representações quando subordinadas à adequação. O universo fragmentário que então se cria não é apenas uma reconstituição representativa do real, mas pressupõe a autonomia da consciência e, por consequência, outras relações entre a alma e o tempo, o pensamento e a linguagem. A ausência de encadeamento causal e de verossimilhança com o modo da narrativa tradicional pode ser remetida à consciência solitária que se desorganiza diante de si, da vida e da morte. Não se trata apenas de um silêncio que precede a fala e a prepara, mas de um silêncio que recusa a fala pela experiência da desilusão da fala comunicativa. Não é difícil perceber, no livro de Virgínia Woolf, que Clarissa Dalloway fala abundantemente e com todos no desempenho de seu papel social, e que apesar disto fala em vão, como se os sons das palavras que ela emite se perdessem no vazio, assim como o sentido intencional de sua fala em constante dissolução, que é também o limiar em que ela se situa, já que sofre mortalmente de coisas que não a afetam, como comentou a própria autora a respeito de sua personagem.

Não se quer dizer com isto que a personagem procurasse dentro de si um silêncio essencial que a reporia em sua integridade, ante a fragmentação da exterioridade e das relações mediadas pelas palavras. Pelo contrário, o fluxo de consciência, por se dar à margem das convenções objetivas da fala comum, apresenta de modo mais forte e intenso o caráter de desagregação. Talvez se possa dizer que um dos paradoxos do sujeito na fase tardia da modernidade é que ele se encontra e se perde, simultaneamente, na fragmentação. Encontra-se, na medida em que só na fragmentação pode procurar a si próprio, pois é este o seu único contexto de busca; e se perde, pela razão óbvia de que se achar na dispersão é o mesmo que se perder. Mas a simultaneidade contraditória é significativa: a solidão faz com que nos encontremos no silêncio e que ao mesmo tempo nos percamos na impossibilidade de exprimir este encontro em palavras. Quando nos recolhemos em nós mesmos e encontramos o que dizer, é então que já não podemos dizer – não porque se tenha perdido a oportunidade, mas porque se constituiu a impossibilidade. A solidez do mundo e do próprio sujeito se desfaz quando refletida na instabilidade de um fluxo de consciência irredutivelmente subjetivo. No romance psicológico, e certamente por injunção dos avatares da contemporaneidade, o escritor já não conduz as personagens “ao longo de um enredo cronológico de encadeamento causal”: manifesta-se uma crise do procedimento mimético em seu significado mais habitual. A perspectiva não é mais a da onisciência que, embora subjetiva, pretende-se absoluta. Toma-se consciência de que qualquer perspectiva é parcial e que, no limite, pode ser uma ilusão. Assim serão postas em questão a solidez, a estabilidade e a segurança que a cultura moderna forjou em sua vertente racionalista e em sua tradição iluminista, e serão colocados em dúvida os pressupostos da universalidade da representação e da exclusividade da ordem de reprodução da realidade. Desse modo se instituirá outro modo de representação ao qual se atribuirá valor estético: não mais a cronologia como medida convencional, mas a experiência temporal que se dá em níveis de consciência anteriores à articulação analítica.

Correspondentemente, se perceberá também que este fluxo, enquanto movimento de fusão, não comporta a articulação completa e o controle consciente. Robert Humphrey[4] define: “O monólogo interior é, então, a técnica usada na ficção para representar o conteúdo e os processos psíquicos da personagem parcial ou inteiramente inarticulados, exatamente como estes processos existem em diversos níveis de controle consciente antes de serem formulados em fala deliberada”. A precariedade de algumas afirmações contidas no trecho não nos impede de nele ressaltar o efeito notado por Rosenfeld: a figura demiúrgica do narrador é substituída por um autor observador que acompanha a corrente de consciência da personagem. Qualificar o autor de observador talvez seja pouco. Ele não abandona a onisciência porque se põe de fora, mas porque imerge completamente, por um esforço de imaginação, no fluxo de consciência da personagem, substituindo o ponto de vista externo pela imaginação coincidente. Shiv Kumar[5], que faz estas observações, conclui que “este esforço, na terminologia bergsoniana, pode ser chamado de intuição”. Este relativo desaparecimento do autor, designado aqui como sua imersão na trama psicológica, produz consequências importantes na transformação da estrutura do enredo.

Interessa-nos destacar, no entanto, o que isto implica na apreensão da personagem: a relação entre o silêncio e a fala. O leitor de Mrs. Dalloway a conhece muito mais pelo fluxo de consciência do que pelas suas palavras e, em algumas circunstâncias da narrativa, não reconhece a personagem que se revelou no silêncio naquela que se expõe em sua fala. Como se a vida interior precipitada no fluxo da consciência encontrasse, no limiar da fala, o obstáculo das convenções exteriores que a detém, mas também a ameaça do rompimento que permanentemente ronda o equilíbrio aparente da personagem. E é entre o comportamento socialmente construído na ordem da fala e a torrente precariamente contida pelo controle consciente dolorosamente exercido sobre si que se constrói a personagem, numa tensão sempre na iminência de se romper numa explosão de vida que pode levar à decisão da morte. Pois o que a personagem de Mrs. Dalloway experimenta é a contradição entre a força dos sentimentos e a banalidade dos fatos. Por isso ela pode morrer daquilo que aparentemente menos a afeta, a rotina medíocre de sua vida exterior. O que se reflete na forma do romance: entre a descrição dos fatos e a notação dos sentimentos é também uma tensão que constitui o estilo da narrativa. A tensão entre o silêncio e o que Merleau-Ponty chama, em A prosa do mundo, de “fala falada”, a conformação da expressão de si às palavras socialmente cristalizadas e aos significados impessoais.

A vida se projeta na linguagem, o relato da vida se faz na linguagem, e na ficção a imaginação deve tornar-se linguagem. Benedito Nunes apresenta esta última exigência com nitidez: “Dado que no plano do mundo imaginário qualquer modalidade temporal existe em função de sua apresentação na linguagem, o tempo da obra […] é um dos correlatos do discurso. Do discurso, enquanto linguagem concreta, efetuada, cabe lembrar a linearidade ínsita […] não pode ordenar senão sucessivamente todas as representações, mesmo as simultâneas”[6]. Isto nos faz reencontrar a dificuldade que vimos no início, e que em Bergson diz respeito ao caráter instrumental da linguagem ou à impossibilidade de expressão da intuição. Com efeito, como já vimos, o ritmo da duração da consciência é essencialmente oposto à articulação descontínua das palavras. Assim, na impossibilidade da expressão direta, somos fatalmente intérpretes, a começar de nós mesmos. É visível que a transformação da literatura ocorrida com o advento do romance de introspecção representa um enorme esforço de evitar a interpretação, imergindo inteiramente na realidade que deve ser expressa. As observações de Bergson e de Benedito Nunes nos levam a afirmar que este esforço está fadado ao fracasso. A introspecção somente deixa de ser uma condenação ao silêncio quando se torna extroversão, isto é, quando se manifesta na exterioridade das palavras, que inevitavelmente são símbolos da interioridade. Mas a extroversão é também, e por natureza, a interpretação redutora da interioridade. Toda palavra trai o silêncio porque nenhuma o expressa em sua natureza. Qualquer artista que se satisfaz com a sua obra vendo-a como expressão completa do que haveria para dizer assume uma atitude delirante. Mas este delírio também é vivido em toda tentativa de expressão, como expectativa em relação ao que é por natureza inatingível.

Não prestamos atenção à forma como interpretamos o mundo quando o fazemos de maneira habitual, com o grau de segurança e estabilidade requerido pela inserção prática no mundo. Na verdade, não vemos a relação prática com o mundo como interpretação, pois os recortes perceptivos e intelectivos que fazemos neste caso nos parecem necessários e mesmo os únicos possíveis. Não há muita latitude de opções na vida comum porque a uniformidade e a homogeneidade são elementos imprescindíveis nas condutas práticas. Mas, quando eventualmente nos situamos além do nível da consciência pragmática, “interpretamos ações, estados e caracteres pelo ângulo oscilante e incerto da experiência interna”[7]. A instabilidade, neste sentido, por ser do domínio do fluxo da consciência, está de alguma forma relacionada com o silêncio. A palavra convencionada não inclui risco porque ela se insere na ordem do mundo enquanto estrutura prática. Como vivemos num mundo em que a articulação simbólica desempenha função decisiva, a fala, desde que se dê de acordo com esta articulação, é fator de segurança objetiva. É o silêncio que instabiliza o mundo comum, subjetivando-o de alguma maneira e assim instaurando o risco da singularidade, se entendermos que a ausência da fala retirado universo de nossas relações as referências que permitem aos outros julgarem quem somos. Por isso o silêncio envolve suspeição ao impedir que assimilemos o outro por via de suas manifestações. É o aparecer (que pode ser aparência) que condiciona a vida em comum. Suspeitamos que aquele que permanece em silêncio pode (re)inventar a si mesmo – e o seu silêncio não nos dá pistas. É pela expressão que aparecemos no mundo e seremos bem-vindos se a aparição – a expressão – ocorrer segundo as expectativas e as antecipações da racionalidade prática e instrumental. É preciso sempre falar a partir de outra fala, responder e corresponder à sociabilidade operante.

Ora, o escritor fala a partir do silêncio, a condição em que é gestada a sua expressão. Fala a partir do inexprimível e projeta no mundo algo que parecerá estranho. Sua fala é, segundo Merleau-Ponty, “falante” e não “falada”, o que quer dizer que ele inventa a expressão, na tentativa de dizer o que até então era indizível. Podemos reconhecer suas palavras, mas estranhamos o modo como ele as usa porque, mesmo quando nelas projeta o mundo comum em que vivemos, sentimos que se trata da parte do nosso mundo que não reconheceríamos se ele não a tivesse desvendado. A estranheza, portanto, permeia a literatura, e conhecê-la não é o mesmo que conhecer a língua. Pois aquilo que não conhecemos instala entre a palavra e seu significado a barreira da opacidade, como se fosse uma língua estrangeira. Esta é a razão por que, ainda que os livros estejam escritos em nossa língua, precisamos aprender a lê-los. É também a razão por que aquele que deixa o mundo comum e acede à dimensão intuitiva encontra primeiramente a impossibilidade da fala e a inexorabilidade do silêncio. Depois virá a luta pela expressão e o trabalho da obra, que nunca romperão totalmente o silêncio.

Dentre as maneiras pelas quais o trabalho que corresponde ao processo expressivo procurará contornar a dificuldade de expressão está, para Bergson, a metáfora como um modo de reinventar a linguagem, fazendo com que ela diga, ainda que alusivamente, aquilo que naturalmente não poderia dizer. A metáfora cumpre esta função, tendo em vista que instaura a linguagem imagética cuja finalidade é substituir parcialmente o significado cristalizado pela inventividade da imagem. O escritor foge da articulação habitual em que as palavras são (pré)conceitos e as rearticula para dizer o que antes não fora dito. A literatura se vale deste procedimento para que se possam dizer outras coisas com as mesmas palavras. Hábitos mentais que são principalmente hábitos linguísticos poderiam então ser superados no âmbito do que se denomina processo criativo, designação que deve ser vista a partir de suas possibilidades e de seus limites, resguardando a impossibilidade da expressão completa da intuição, ou da experiência interna de si e do mundo. A expressão metafórica pode aproximar-se da introspecção ou do fluxo da consciência porque desordena a linguagem e indetermina as significações por via de uma utilização das palavras que, do ponto de vista da instrumentalidade, equivaleria à confusão e à indistinção. A linguagem metafórica não é mais clara do que a linguagem instrumentalmente exata; ela é mais sugestiva, e torna abertas configurações semânticas que antes eram fechadas numa determinação fixa. Se a liberdade consiste na indeterminação, a metáfora é uma tentativa de escapar da prisão dos signos estabelecidos. Mas, como a metáfora é construída com palavras, ela não pode ultrapassar completamente a linguagem constituída. Poderíamos dizer talvez que esta recusa da linguagem constituída seria uma volta ao silêncio para, a partir daí, instituir novas significações; mas ainda será preciso retornar às palavras para romper o silêncio.

Liberdade, para Bergson, envolve risco, que se corre sempre ao se abandonar a esfera do mundo já constituído e o plano da linguagem instituída. A indeterminação ou a virtualidade do silêncio é a origem do risco e, assim, é também a possibilidade do fracasso. A literatura surge e se renova sempre que se decide correr este risco.

Notas

  1. Henri Bergson, “Introdução à Metafísica”, em: O pensamento e o movente, São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 185-86.
  2. Shiv Kumar Kumar, Bergson and the stream of consciousness novel, New York: New York University Press, 1963.
  3. Anatol Rosenfeld, “Reflexões sobre o Romance Moderno”, em: Texto e contexto, São Paulo: Perspectiva, 1969, pp. 91 ss.
  4. Robert Humphrey, O fluxo da consciência, São Paulo: McGraw Hill, 1976, p. 22.
  5. Shiv Kumar Kumar, op. cit., p. 19.
  6. Benedito Nunes, Tempo e narrativa, São Paulo: Ática, 1989, p. 25.
  7. Benedito Nunes, op. cit., p. 57.

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