2002

O risco da ilusão

por Adauto Novaes

É com certo espanto que lemos a primeira frase das “Flutuações sobre a liberdade”, ensaio de Paul Valéry publicado em 1938, pouco antes da Segunda Guerra: “Liberdade: uma destas detestáveis palavras que têm mais valor do que sentido”. Pensando no prestígio que a palavra “liberdade” adquiriu no mundo contemporâneo, somos levados a dar razão a Valéry.

Liberdade é uma palavra que tem sido usada de tal maneira que seria impossível circunscrevê-la a uma referência comum: ao longo da história, ela foi construída pela teologia, pela metafísica, pela moral e pela política até chegar ao que é hoje: Liberdade-ídolo, mistificação liberal inscrita nas bandeiras, nas constituições, na publicidade (“liberdade é uma calça jeans desbotada”) e até mesmo no nome do partido nazista da Áustria, hoje no poder — o Partido da Liberdade. Liberdade pode ser, portanto, um signo enganador, “complemento solene” da violência que leva a defender não homens livres mas idéias abstratas. A palavra liberdade traz, pois, na sua própria história, o seu contrário, isto é, a servidão, tanto quando se trata da política e das relações sociais como quando se fala do indivíduo. Pensada assim, a liberdade comporta sempre um risco de ilusão e fracasso.

Ao longo da história, a palavra “liberdade” sempre foi expressa em linguagem impura. É ainda Valéry quem nos alerta ao dizer que cada palavra de que nos servimos para descrever um pensamento e suas operações vem carregada de uma imensa acumulação de atitudes emotivas e noções religiosas e morais. Para ele, a linguagem ordinária é impotente para significar a realidade do mundo.

“As palavras de que nos servimos para exprimir nossas idéias foram criadas em épocas diferentes, nas mais diversas circunstâncias e pelos mais diferentes indivíduos ou grupos de indivíduos.” Elas são formadas não sobre “a natureza das coisas”; mas sobre necessidades instantâneas de designação — sem um acordo e um cuidado sistemático de correspondências com os sentidos. A palavra liberdade é isso: tem “mais valor do que sentido”. Mais grave ainda: os homens não têm consciência desta origem fortuita e desordenada e tendem a “atribuir a esta formação geológica acidentada propriedades de uma arquitetura”.

Ao lado desta origem imprecisa, confusa e impura, a palavra traz ainda para Valéry outro problema: o de nos impor, queiramos ou não, o pensamento dos outros. Ele diz: “A linguagem é o meio mais forte do Outro — alojado em nós mesmos”.

Em contrapartida, para qualquer sentido novo que se queira dar a uma idéia ou a um acontecimento, é geralmente à palavra que recorremos. Significações sedimentadas convivem, pois, com significações novas que se manifestam apenas em estado de vestígios. O trabalho de pensamento consiste em desvendar estes vestígios. Aceitemos, pois, o convite de Merleau-Ponty: “Entremos um pouco no diálogo — e inicialmente na relação silenciosa com o outro — se quisermos compreender o poder da palavra”; porque é a palavra que renova, sem cessar, a mediação do mesmo e do outro.

O avesso da liberdade, livro produzido a partir de um ciclo de conferências, construído, portanto, na forma de diálogo entre filósofos, procura compreender não apenas o poder da palavra liberdade mas também saber de que maneira a idéia de liberdade instalou-se no Ocidente.

De início, procuramos evitar a polarização simplificadora liberdade — servidão. Como nos lembra Pierre Macherey na Introdução à Ética de Espinosa, quando se pensa em liberdade só há um caminho possível: procurar ser livre na servidão. Em outras palavras, não se trata de escolher, por uma decisão da vontade, sem nenhum condicionamento no seu princípio, entre dois estados — liberdade e servidão — “definidos de maneira completamente independentes um em relação ao outro; isso porque não há” senão uma natureza do homem, e é a partir dela que devem ser determinadas as condições de sua potência, fora das quais a liberdade humana seria absolutamente impensável”. Ora, o que define a natureza do homem? Ela se define pela necessidade da liberdade, isto é, uma “necessidade espontânea que brota da essência do próprio ser”. Isso quer dizer que o homem é livre por natureza. Não no sentido de que ele “nasce byre: mas no sentido de que ele tende naturalmente a se tornar livre. Mas não se pode esquecer de que, por estar no mundo, o homem está sujeito a determinações exteriores: assim, muitas vezes ele não realiza a condição natural e humana de sua potência (que é ser livre) para se deixar dominar, tornar-se servo. Podemos dizer com Merleau-Ponty que é a liberdade que faz aparecer os obstáculos à liberdade. É, pois, essa cisão entre Natureza e Cultura que deixa o homem dividido. No capítulo sobre a “Liberdade absurda” do livro O mito de Sísifo, Albert Camus interroga sobre o desejo de unidade e as exigências de clareza e coesão do homem e do mundo:

“Posso”; diz ele, “refutar tudo o que me cerca no mundo menos este caos, este acaso rei e esta divina equivalência que nasce da anarquia. Não sei se este mundo tem um sentido que o ultrapassa. Mas sei que não conheço este sentido e que me é impossível conhecê-lo no momento. O que significa para mim uma significação fora da minha condição? Só posso compreender em termos humanos. O que toco, o que me resiste, eis o que compreendo”.

A resposta para as interrogações de Camus está dada por ele mesmo na epígrafe do livro, uma citação de Píndaro: “Oh minha alma, não aspires à vida imortal, mas esgota o campo do possível!”.

Como circunscrever o campo do possível quando se trata de liberdade e quando se sabe que a história humana é definida pela criação imaginária, como nos lembra Cornelius Castoriades. Sabemos que a imaginação pode ser fonte de ilusão ou faculdade inventiva. Mas no contexto dado por Castoriades, imaginário significa “posição de novas formas, posição não determinada, mas determinante”. Através da sociedade, estas novas formas criam normas, instituições, valores e finalidades tanto para a vida coletiva quanto para a vida individual: “Deus é uma significação imaginária social; da mesma maneira, a racionalidade moderna também é uma significação imaginária social’, diz ele. Se o imaginário pôde criar Deus e a racionalidade moderna, pode criar também não apenas outras formas de liberdade mas principalmente a idéia de uma criação permanente da liberdade. Contra a idéia dominante de liberdade calcada apenas nos valores e normas já estabelecidas, a liberdade imaginária, tanto individual como coletiva e anônima, pode ser pensada como instituinte, que jamais pode ser explicitada completamente. Castoriades refere-se à política, mas o que ele diz vale também para a liberdade: a sociedade é democrática e livre quando é questionada por ela mesma, “por seu próprio imaginário que pode ressurgir e pôr em causa a instituição existente”. Sua conclusão é clara: “Diria que uma sociedade é autônoma não apenas quando ela sabe que faz suas leis, mas quando está apta a questioná-las”.

A democracia moderna, também tema deste livro, sofre dos mesmos males da liberdade: clássicos do século XIX a definiam como um Estado “espiritualista”. Os conceitos valiam mais do que as experiências. Confortavelmente instalada em conceitos estáticos ou em um conjunto de procedimentos e regras, como se tudo já estivesse dado e concluído de uma vez por todas e como se nada devesse ser posto e reposto a cada momento, esta definição de democracia abole a possibilidade do novo. Mais: o formalismo democrático não deixa o campo livre à experiência da indeterminação e à interrogação sobre os fundamentos clássicos. Como a liberdade, o seu contrário é também a servidão. Não apenas a servidão das leis e da ordem, como escreveu Rousseau (“Vós, povos modernos, não tendes escravos, vós o sois…”), mas a servidão do instituído, que se contrapõe à idéia que deu origem à própria democracia que é a criação permanente. Democracia e liberdade hoje são, pois, problema porque não são pensadas como desvio daquilo que já está inscrito.

Se a democracia moderna se constituiu a partir da aceitação da divisão originária do social, a democracia dos tempos do Pensamento Único estaria mais próxima de um tipo de totalitarismo, que se define pela denegação da divisão e, em conseqüência, pela recusa do conflito. Se não quisermos pensar a democracia como simples fórmula institucional, seremos levados a concordar com Lefort:

É verdade que ninguém detém a fórmula da democracia e que ela é mais profundamente ela mesma enquanto democracia selvagem. Talvez seja isso que faz sua essência: desde que não haja uma referência última a partir da qual a ordem social possa ser concebida e fixada, esta ordem social está constantemente à procura de fundamentos, de sua legitimidade, e é na contestação ou na reivindicação daqueles que são excluídos dos benefícios da democracia que a própria democracia encontra seu desenvolvimento mais eficaz.

Por “democracia selvagem” devemos entender a política aquém das “positividades sedimentadas”.

“À procura de fundamentos”; eis o grande paradoxo das democracias contemporâneas: se, de um lado, a democracia é a afirmação dos fundamentos clássicos de igualdade, justiça, felicidade etc., de outro lado é preciso reconhecer que tais fundamentos estão em crise, ou melhor, que eles não conseguiram realizar o ideal democrático. Ao propor a busca de fundamentos, Claude Lefort não estaria dizendo que os fundamentos clássicos, pelo menos tais como eles foram pensados até agora, não mais dão conta da realidade?

Talvez estivesse falando da democracia oriunda destes fundamentos quando Heidegger escreveu uma das frases mais enigmáticas, citada por Reiner Schürmann no livro Oprincípio da anarquia: “É para mim uma questão decisiva hoje: como um sistema político — e qual — pode, de maneira geral, ser coordenado com a era técnica? Não sei responder a tal questão. Não estou convencido de que seja a democracia”.

As discussões sobre democracia e liberdade devem ser, pois, permanentes. Mais do que idéias, elas devem ser entendidas como “matrizes de idéias” às quais devemos dar sentido e através das quais criamos novos emblemas que nos levam a ver o mundo de forma diferente e a refazer tudo aquilo que já estava sedimentado.

No mundo moderno, liberdade não vive sem democracia, nem democracia sobrevive sem liberdade. Se uma e outra têm o seu contraponto comum — a servidão —, a afirmação da liberdade e da democracia só se dá através da ação. O ato contra a sujeição.

Os homens são livres apenas durante o tempo em que dura a ação, nem antes nem depois; ser livre e agir são uma só e mesma coisa, ensina Espinosa. Ou, dizendo de outra maneira com Montaigne, “todo movimento nos descobre”. O homem é livre quando entra de posse de sua potência de pensar e agir. Como escreve Hannah Arendt no ensaio “O que é a liberdade?’; os filósofos começaram a se interessar pelo problema da liberdade “quando a liberdade não foi mais experimentada no fato de agir e de associar-se com outros, mas no querer e no comércio consigo mesmo, em síntese, quando a liberdade se tornou livre-arbítrio”. A liberdade só se manifesta, conclui Hannah Arendt, quando o eu quero e o eu posso coincidem. Isto é, não apenas desejo contra desejo, o que é próprio do livre-arbítrio, mas a junção de desejo e poder.

É na pólis que se inventa a democracia, mas é nela que se manifestam os entraves à democracia e à liberdade. “O homem nasceu livre”, escreve Rousseau; mas é preciso que a independência do indivíduo natural “não lhe seja roubada quando entra na sociedade e se torna um cidadão”; “o problema consiste em encontrar um sistema social em que as exigências da ordem e da liberdade não sejam contraditórias”, completa Jean Starobinski.

Este é, pois, o desafio dos nossos tempos: hoje, as grandes cidades concentram o melhor e o pior, o justo e o injusto, o novo e o velho, o natural e o artificial, a liberdade e a ordem e, principalmente, o simulacro através das novas formas de comunicação. Qualquer discussão sobre democracia e liberdade que não tome como ponto de partida as cidades modernas tende a ser mais uma abstração.

Lemos em Maquiavel, na análise de Claude Lefort (Le travail de l’oeuvre,1971), que toda cidade se ordena, se constrói a partir de uma divisão primeira que se manifesta em uma das mais fortes expressões da paixão. o desejo. Ou melhor, da divisão do próprio desejo: desejo dos grandes de comandar e oprimir, desejo do povo de não ser comandado nem oprimido — desejo de liberdade.

Mas, para chegarmos às cidades modernas, antes temos que fazer outro percurso: ao dizer que só é livre “aquilo que existe e age apenas pela necessidade de sua natureza”, Espinosa relaciona a liberdade com o tema clássico da ausência de constrangimento externo — isto é, “de uma necessidade espontânea que brota da essência do próprio ser, contrapondo-a à necessidade de uma causa externa que força alguma coisa a uma existência ou ação que, por si mesma, não possuiria nem realizaria” (Marilena Chaui, A nervura do real). Cada coisa (o “aquilo” de que fala Espinosa), entre elas o homem, é completamente determinada pela própria natureza, que é também o princípio de sua potência, isto é, “sua capacidade de produzir, enquanto causa, certo tipo de efeitos”. Ora, é essa noção de liberdade que torna o homem inteiramente humano, sem abrir espaço para uma moral de super-homem ou de antinatureza, como escreveu Pierre Macherey em sua exaustiva análise da Ética de Espinosa: “Trata-se antes de tudo”, comenta Macherey, “de saber o que pode o homem, na medida em que ele é naturalmente portador de certa potência de conhecer e compreender e, sabendo, identificar as condições através das quais ele está em condições de fazer tudo o que ‘pode’ tendo em vista sua liberação, e não mais que isso”.

Liberdade e constrangimento externo, eis a contradição para quem vive em sociedade. Ora, por constrangimento entenda-se paixão, e são as paixões (o medo, o ódio, a glória etc.) e a servidão humana que decorre delas que devem ser o nosso ponto de partida. A liberdade humana, o ponto de chegada. Só a análise das paixões pode dar resposta à grande questão posta por Espinosa na sua Ética: “No conflito entre afetos contrários, os homens vêem o melhor e seguem o pior”. Traduzindo livremente: por que, no lugar de serem livres pela própria natureza, os homens seguem voluntariamente a servidão?

É certo que, se vivemos em sociedade, submetemo-nos a certas normas morais formais e exteriores: ora, todo o problema consiste em desfazer a tensão entre necessidade das normas e espontaneidade da natureza.

Por fim, ao fazer a famosa pergunta “o que pode o homem?”, Espinosa estava criticando um dos fundamentos da idéia de liberdade no Ocidente, que estima a liberdade ligada ao princípio da vontade. Todo o esforço da Ética consistiu em romper o liame tradicional entre a liberdade e a vontade, como numerosos comentadores já assinalaram. A vontade pressupõe fazer o que se quer, como se quer e por que se quer: o que Espinosa demonstra é que não existe realmente autonomia da vontade, como podemos ler na proposição 48 do livro II da Ética: “Não há na alma nenhuma vontade absoluta ou livre”. A vontade — acrescenta ele — jamais pode ser chamada causa livre, isso porque, finita ou infinita, ela é sempre um modo determinado por outra causa. Ora, se pensarmos com Espinosa, é livre apenas aquilo que decorre da própria essência, isto é, causa de si. De outra maneira, a liberdade não passa de uma “ilusão fundamental da consciência na medida em que ignora as causas, imagina o possível e o contingente, e acredita na ação voluntária da alma sobre o corpo”.

O homem só é livre, pois, não pela vontade, mas quando entra de posse da sua potência de agir.

A invenção da liberdade, os caminhos da democracia e as cidades modernas, construídas sobre concepções, na maioria ilusórias, de democracia e liberdade, são, portanto, os três grandes temas deste livro.