2005

O reino da contemplação passiva

por Anselm Jappe

Resumo

“O espetáculo não pode ser compreendido como um abuso do mundo visível, produto das técnicas de difusão massiva das imagens” escreve Guy Debord no livro A sociedade do espetáculo. Debord não só “profetizou” uma sociedade dominada por canais televisivos de entretenimento ou notícias-espetáculo como considerou que o espetáculo compreendido em sua totalidade é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente e de uma sociedade que funciona como um espetáculo.

Muitas considerações na chamada “ciência da comunicação”, não se interrogam nem mesmo sobre a estrutura do meio, não se põem a questão “o que é” a televisão. Nos debates públicos, não existe nenhuma conceitualização da relação entre sociedade e tevê.

O sucesso que a televisão obteve, desde seu início, no mundo inteiro seria o resultado de uma fome de imagens, uma fome congênita no homem. Nesse tipo de teoria, a televisão apresenta-se ligada a algo de muito mais geral, quase a uma pressuposta “natureza humana” de tipo antropológico ou ontológico. Tais considerações não são necessariamente erradas. Mas não ajudam a compreender a especificidade do fenômeno. O que se consegue é afirmar que os críticos da tevê e do espetáculo somente condenam o fascínio superficial e fútil pelas imagens, as formas visíveis e as cópias, porque distraem da compreensão intelectual.

No livro O homem é antiquado (1956), Günther Anders começou sua análise dos meios de comunicação falando do rádio e acrescentando pouco a pouco observações sobre a tevê. Nos traços essenciais, tevê e rádio são semelhantes entre si e não foram modificados desde o início: cada ouvinte e espectador está isolado em seu cubículo doméstico, onde o mundo lhe é fornecido em casa de forma escolhida pelos outros. A questão essencial não é se transmitem imagens, imagens e sons juntos ou somente sons. Essenciais são a relação social entre indivíduos e a relação entre o indivíduo e o mundo.

Foi precisamente nessa época que foram lançadas as análises mais apocalípticas no que concerne ao impacto da tevê sobre a sociedade e sobre a vida cultural, social, política e familiar.

Nos “Comentários sobre a sociedade do espetáculo” (1988), de Guy Debord comenta: o sucesso maior do espetáculo é ter feito crescer uma geração que jamais conheceu outra coisa senão o espetáculo, uma geração para a qual o espetáculo é todo o mundo e por isso lhe falta qualquer termo de comparação.

Uma sociedade que pôde inventar a televisão e fazer dela o supremo feitiço estava já evidentemente podre, e isto aconteceu porque era a continuação de outras sociedades inconscientes de si mesmas.

Este é o ponto capital. O ardor com o qual a televisão é aceita praticamente em todos os lugares e sempre não se explicaria se ela não encontrasse já uma situação de forte tédio que faz parecer preferível olhar uma tela. A tevê não foi um instrumento de emancipação ou de liberação dos costumes mas a continuação de outras formas de alienação social.

A tecnologia depende da sociedade, não é um fator autônomo. Não foi a invenção do tubo catódico que criou a sociedade do espetáculo. Mas quem criou a sociedade do espetáculo? Teóricos concordam sobre um ponto: a televisão não é um simples meio que pode ser indiferentemente posto a serviço de diversos objetivos. Sua estrutura, sua forma prejudicam fortemente seu uso. As análises mais críticas sobre a relação entre a televisão e a sociedade põem sobretudo em evidência a contemplação passiva e isolada a que conduzem os meios eletrônicos. Para além dos conteúdos, o espectador está sempre condenado a olhar o que fazem os outros, sem ter nenhum poder sobre a própria vida. O que caracteriza a televisão não é o fato de simplesmente se olhar para ela, mas de somente se olhar. O olhar imóvel, a contemplação inerte.


Convém começar precisando algumas ideias de Guy Debord, autor do livro A sociedade do espetáculo,[1] que dá, num certo sentido, o título a todo este ciclo de conferências. Como foi justamente sublinhado nas contribuições dos organizadores e de alguns dos conferencistas, a crítica radical do espetáculo formulada por Debord vai muito além de uma simples crítica à televisão e aos meios de comunicação de massa. Ele mesmo disse: “O espetáculo não pode ser compreendido como um abuso do mundo visível, produto das técnicas de difusão massiva das imagens”.[2] Reconhecer, hoje, um valor “profético” no livro de Debord publicado em 1967 é, portanto, fácil, mas também redutivo, se se vê a perspicácia de Debord somente no fato de ele ter pressentido uma sociedade dominada por uma dúzia ou uma centena de canais televisivos de entretenimento ou notícias-espetáculo. Atualmente está na moda, nos ambientes que se crêem mais inteligentes, torcer o nariz diante do “espetáculo”, e existem diretores de televisão e idealizadores de programas televisivos na Itália e ministros franceses que amam citar Debord e elogiá-lo. Debord já diz, todavia, em seu livro: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre indivíduos, mediada por imagens”.[3] Diz também que o espetáculo compreendido em sua totalidade é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. De fato, ele fala da sociedade do espetáculo, isto é, de uma sociedade que funciona como um espetáculo. Como Debord não é mais um autor “marginal” ou “maldito”, penso que já se conhece o conceito de sociedade espetacular que ele desenvolveu: trata-se de uma sociedade baseada na contemplação passiva, em que os indivíduos, em vez de viverem em primeira pessoa, olham as ações dos outros. Isto acontece não somente sob o plano televisivo, e não somente na publicidade, mas também sob muitos outros planos: na sociedade do espetáculo, também a política — incluindo uma boa parte daquela que se proclama revolucionária —, a cultura, o urbanismo, as ciências baseiam-se sempre na distinção entre espectador e ator. Não existe relação direta entre o indivíduo e seu mundo, apesar de este mundo ter sido produto dele. De fato, a relação é sempre mediada pela imagem, imagem esta escolhida propositadamente pelos outros, isto é, pelos proprietários da sociedade.

Talvez recordem também que Debord distinguia em 1967 dois tipos espetaculares principais: aquele chamado “difuso” das sociedades ocidentais, em que a vida real se aliena na abundância de mercadorias de consumo e em sua contemplação; e o espetacular “concentrado” dos países totalitários, fascistas ou stalinistas, em que a suprema mercadoria é a contemplação da perfeição do chefe. Em 1988 em seus “Comentários sobre a sociedade do espetáculo”,[4] Debord anunciou que esses dois tipos de sociedade espetacular fundiram-se no mundo inteiro, em um único tipo que se chama “integral”, isto é, em uma democracia da mercadoria com traços autoritários.

Não me demorarei mais nos resumos das ideias de Debord. Gostaria somente de lembrar que o espetáculo do qual ele fala é uma categoria social total que pode ser seguramente útil para compreender a televisão de hoje, mas somente se se levar em conta o fato de que, em sua ótica, a televisão é apenas um caso particular de uma lógica bem mais ampla. Em outras palavras, a televisão-espetáculo pode ser compreendida somente como produto de uma sociedade espetacular. Essa afirmação pode parecer banal, mas a maior parte das considerações sobre a televisão não diz quase nada sobre essa conexão. Somente poucos comentaristas vêem na televisão o resultado lógico de uma específica forma de sociedade, ou seja, do capitalismo plenamente desenvolvido, fordista e pós-fordista, como veio a existir depois da Primeira Guerra Mundial. As outras teorias sobre a televisão ou alargam o campo excessivamente, ou então o restringem demasiadamente. Muitas considerações, sobretudo no âmbito jornalístico, sociológico, político e em toda a chamada “ciência da comunicação” (que pelo menos na Itália se transformou, há alguns anos, em uma verdadeira e própria faculdade universitária que produz, enfim, um número recorde de desocupados), não se interrogam nem mesmo sobre a estrutura do meio, não se põem a questão “o que é” a televisão e tampouco arriscam um juízo. Perguntam-se somente quais são os conteúdos transmitidos, quais análises semânticas lhes podemos dar, como satisfazer ainda melhor o público, etc. Na política italiana discute-se muito a televisão, sobretudo porque, como sabem, o primeiro ministro Silvio Berlusconi é também proprietário das três principais redes privadas. O objeto daquele debate é, contudo, somente decidir quem deve possuir a televisão e determinar-lhe, portanto, os conteúdos. Em outros países, como a França e os Estados Unidos, discute-se, ao contrário, animadamente, sobre a taxa de violência e obscenidade na tevê e sobre o efeito que isso tem sobre as crianças. Nestes, e em tantos chamados debates públicos, não existe, pois, obviamente, nenhuma conceitualização da relação entre sociedade e tevê, porque a existência da tevê, assim como a existência da sociedade na qual vivemos, é de tal modo evidente e “natural” para essas “opiniões públicas” e para seus representantes, que não pode nem sequer ser percebida, como tudo o que é bastante óbvio.

Neste texto trato sempre de televisão, no entanto, naturalmente este discurso se aplica a todos os meios eletrônicos em geral, ao cinema, à internet, à realidade virtual, etc. Mas, deixando de lado a inutilidade de repeti-lo todas as vezes, é verdade que, em nível de massa, a importância da tevê como meio de acesso ao mundo supera desde muito tempo atrás aquela de todos os outros meios colocados juntos. Não falo, porém, de “comunicação”. Rádio e televisão são meios eficientíssimos para impor unilateralmente as ordens a quem os escuta, mas, como comunicação entre indivíduos, os dois contam muito pouco.

Não me detenho mais sobre esse tipo de discussão — muitas vezes, aparentemente, apaixonante — que gira somente em torno dos detaIhes, senão simplesmente em torno da repartição do espólio, isto é, do acesso ao microfone. Neste ciclo de conferências, frequentemente, há maior andamento do tipo oposto de raciocínio: aquele que vê na televisão um caso particular de uma lógica secular, senão milenar, do “ver” e da “imagem”. Dado que a televisão é uma transmissão de imagens, muitos pensam que, para compreender a televisão, é necessário interrogar a própria faculdade visual do homem e a estrutura da imagem enquanto tal, e a forma de seu consumo. Nesses teóricos são abundantes, pois, as referências a isto que eles chamam “metafísica ocidental”, a Platão e a sua condenação das imagens, às teorias medievais sobre o ver, à fenomenologia da percepção, à relação entre a visão e os outros sentidos e à particular configuração que essa relação assumiu na história europeia. O sucesso que a televisão obteve, desde seu início, no mundo inteiro seria o resultado de uma fome de imagens, uma fome congênita no homem; o mesmo Debord cita o sociólogo americano Daniel Boorstin, que escreveu nos anos 1950 um dos primeiros estudos críticos sobre a televisão, e comenta:

Assim, o que acontece é que Boorstin vê a causa dos resultados que ele descreve no desgraçado encontro, quase fortuito, entre um excessivo aparato técnico de difusão das imagens e uma excessiva atração dos homens de nossa época pelo pseudo-sensacional. Deste modo o espetáculo dever-se-ia ao fato de que o homem moderno é demasiado espectador.[5]

Muitas considerações similares poderíamos fazer sobre autores mais recentes, como Neil Postman e seu livro, que em alguns aspectos parece interessante, Amusing Ourselves to Death (“Divertir-se até a morte”), publicado em 1985, mas que, até onde eu sei, não existe no Brasil, diferentemente de outros livros do mesmo autor.

Nesse tipo de teoria, o caso particular, a televisão, apresenta-se, portanto, ligado a algo de muito mais geral, quase a uma pressuposta “natureza humana” de tipo antropológico ou ontológico. Essas considerações não são necessariamente erradas. Mas não ajudam a compreender a especificidade do fenômeno. Tendem a “afogar o peixe”, como se diz em francês. É igualmente verdade que o excesso de tráfego automobilístico tem muito a ver com a necessidade humana de locomover-se, ou que toda produção material tem a ver com a necessidade de comer. Mas a partir de pressupostos tão gerais não se consegue nunca compreender por que o ver, o mover-se, o comer assumiram uma forma específica em um dado momento, seja em 1500, seja em 2000, e não uma outra qualquer. Afogar o conceito de sociedade do espetáculo num mar de considerações sobre a imagem enquanto tal, e sobre as críticas ligadas à imagem enquanto tal, como o faz o francês Régis Debray, inventor de uma suposta “midiologia”, ou procurar as supostas raízes metafísicas da — na verdade, rara — desconfiança nos meios eletrônicos serve, frequentemente, em meio a intenções polêmicas, para esquivar-se de qualquer debate sobre a tevê e a sociedade hoje. Em vez disso, o que se consegue é afirmar que os críticos da tevê e do espetáculo são somente a reedição de uma atitude que existe desde há 2 mil anos: aquela de condenar o fascínio superficial e fútil pelas imagens, as formas visíveis e as cópias, porque distraem da compreensão intelectual, poética das verdadeiras essências. Os fustigadores da crítica ao espetáculo não deixam de sublinhar, por outro lado, que essa crítica às imagens é, ao menos hoje, mas talvez desde sempre, anticientífica, antidemocrática, religiosa, antiprogressista. Criticar a televisão hoje equivale, a seus olhos, à condenação do livro efetuada por Platão, que em seguida escreveu muitos livros: uma atitude, portanto, ainda mais hipócrita e impraticável na realidade.[6] Mais vale, portanto, segundo eles, utilizar bem um novo meio, quando aparece.[7]

Convém então sublinhar, desde já, que a estrutura essencial da televisão não é somente ligada à imagem. A tevê não é essencialmente uma transmissão de imagens. Os meios eletrônicos podem também dirigir-se a sentidos diversos da vista sem que mudem muito. Basta a demonstração de um simples fato: algumas das críticas talvez mais pertinentes à televisão, como aquelas de Theodor Adorno e de Günther Anders — sobre as quais retornarei —, foram desenvolvidas nos anos 1930 e 1940 e se aplicavam, então, somente ao rádio, porque a televisão ainda não existia. No livro O homem é antiquado,[8] de Anders, publicado em 1956, vê-se que ele começou sua análise dos meios de comunicação falando do rádio e acrescentando pouco a pouco observações sobre a tevê, sem que mudasse nada de essencial em sua argumentação. As famosas considerações de Adorno e Horkheimer sobre a “indústria cultural” publicadas em 1947, foram desenvolvidas analisando o cinema e o rádio. A televisão apresenta muito menos analogias com o cinema — apesar de se tratar sempre de imagens e que um mesmo filme possa ser projetado no cinema ou transmitido pela tevê — do que com o rádio, embora as transmissões radiofônicas e televisivas não sejam interpermutáveis. Mas, nos traços essenciais, tevê e rádio são semelhantes entre si e não foram modificados desde o início: cada ouvinte e espectador está isolado em seu cubículo doméstico, onde o mundo lhe é fornecido em casa de forma escolhida pelos outros. A questão essencial não é se se transmitem imagens, imagens e sons juntos ou somente sons. Essenciais são a relação social entre indivíduos e a relação entre o indivíduo e o mundo. Além disso, hoje frequentemente nem mesmo se assiste à televisão, mas ela serve somente para proporcionar um ruído de fundo; outras vezes, com o zapping, com as telas divididas em mais telas, com os spots publicitários ou com os videoclipes, não se vêem nem mesmo mais imagens em sentido normal, mas somente um amontoado de cores em movimento no qual não se presta nenhuma atenção.

Alguns críticos da televisão, como o já citado Postman, associam sua crítica da tevê a uma crítica geral do predomínio moderno da imagem sobre a palavra falada e escrita, sustentando, por exemplo, que a imagem suporta tanto mais contradições ocultas quanto suporta o discurso escrito, e que no fundo somente a escritura, isto é, o texto isolado e impessoal, educa para o pensamento coerente, lógico, analítico, objetivo, destacado e racional, e ensina a classificar e a deduzir, enquanto a imagem, a partir da fotografia, é uma violenta exposição de fatos desordenados e fora do contexto que frequentemente contém juízos dissimulados. Esse tipo de consideração é sem dúvida interessante, mas, diferentemente do que se afirma muitas vezes, a crítica aos meios eletrônicos não é a simples continuação de uma longa tradição, sobretudo francesa, de desconfiança em relação ao olhar, e a favor do corpo ou de outros sentidos, ou a favor de uma noção fetichizada de imediatismo.[9] Em cada caso essa filiação da crítica do espetáculo a uma pressuposta desconfiança geral na imagem não é, com certeza, reencontrável em Debord, que não somente realizou cinco filmes, diversas obras de colagem e uma revista — a Internacional Situacionista — que estava entre as primeiras revistas intelectuais a conter imagens, mas também escreveu no prefácio do Panegírico II, composto quase exclusivamente por fotos com legendas e publicado postumamente:

As mentiras dominantes da época estão em condições de fazer esquecer que a verdade pode ser vista também nas imagens. A imagem, que não foi intencionalmente separada de sua significação, acrescenta muita precisão e certeza ao saber. Ninguém duvidou disto antes dos recentes últimos anos. Eu me proponho a lembrá-lo agora. A ilustração autêntica esclarece o discurso verdadeiro, como uma proposição subor­dinada que não é nem incompatível nem pleonástica.[10]

Não quero, todavia, repetir as diversas análises críticas sobre a televisão enquanto produto da sociedade capitalista tardia, dado que seguramente vocês já as conhecem. Sem pretender necessariamente exigir que se trate das melhores, ou das únicas, críticas, utilizo como pressuposto aqui os textos sobre os meios de comunicação de massa escritos por Debord, por Theodor Adorno e por Günther Anders. Vi que a crítica que Adorno e Max Horkheimer dirigiram à “indústria cultural” é objeto de uma outra palestra que terá lugar aqui, e que seus livros estão traduzidos no Brasil e são bem conhecidos por certo público. Por isso, não me deterei nisto. Não parece, ao invés, existir uma tradução em língua portuguesa de O homem é antiquado, a obra maior de Günther Anders, um filósofo alemão nascido em 1902 e morto em 1992.[11] Anders era na origem fenomenólogo e discípulo de Husserl e de Heidegger, mas a experiência do nazismo e do exílio na América, onde teve de trabalhar em uma fábrica, conduziu-o a uma crítica fundamental da sociedade industrial. Particularmente famosas são suas considerações sobre a bomba atômica. Encontram-se em seu pensamento algumas referências ao marxismo, mas ele consiste essencialmente em uma consideração sobre a relação entre homem e mundo com categorias fenomenológicas às vezes similares àquelas de Husserl ou de Heidegger. Falam, porém, de fenômenos atuais e levam a consequências políticas radicais. O próprio Anders indica então suas três teses fundamentais: nós homens não estamos à altura da perfeição de nossos produtos; aquilo que produzimos excede nossa capacidade de imaginar e nossa responsabilidade; acreditamos que nos é lícito ou absolutamente obrigatório fazer tudo aquilo que podemos fazer. O tema principal de Anders é a discrepância que existe entre os novos meios técnicos criados pelo homem, dos quais o caso mais visível é a bomba atômica, de um lado, e, de outro, suas capacidades de imaginar, sentir, pensar, que ainda são as mesmas — portanto, antigas, antiquadas. No primeiro volume de O homem é antiquado, Anders dedica os dois capítulos principais à bomba atômica, ao rádio e à televisão. Tratarei disso novamente. Evidentemente não posso aqui fazer um resumo detalhado da obra de Anders, mas seria bastante desejável que um editor brasileiro se lançasse na tarefa, não fácil, de uma tradução de seus textos, cuja atualidade é ainda mais ampliada com a invasão da biotecnologia.

É digno de nota, porém, que muitas observações sobre a televisão que mesmo hoje parecem muito pertinentes — como aquelas de Adorno, Anders ou Debord — foram feitas em uma época na qual a televisão estava ainda em seu início, ou se aplicavam até então ao rádio, como eu já disse. Era a época das transmissões somente em preto-e-branco, em um só canal, transformando-se em seguida em dois ou, no máximo, três, todos estatais, muito educativos e pouco divertidos, quase sem publicidade, e que em cada caso transmitia somente da metade da tarde até a meia-noite, no máximo, quando terminavam com o hino nacional: os mais jovens entre vocês só a muito custo acreditariam nisto. Foi, todavia, precisamente naquela época, que hoje pode parecer bucólica ou arcaica, que foram lançadas as análises mais apocalípticas no que concerne ao impacto da tevê sobre a sociedade e sobre a vida cultural, social, política e familiar. Naquele tempo, personagens notórios — se me recordo bem, até o chanceler alemão da época — propunham instituir um dia semanal sem a televisão, porque esta era considerada bastante intromissora. Hoje, com a televisão ocupando na vida social um espaço que tem, em relação àqueles primórdios, um valor centuplicado, quase todas as críticas desapareceram. Propor um dia semanal sem a tevê suscitaria algo de hilariante, comparável àquilo que talvez provocasse a proposta de todos nós caminharmos de quatro patas. Por um lado, isto tem a ver com o fato de que frequentemente é mais fácil reconhecer, e, portanto, criticar, os traços distintivos de um fenômeno quando este está em seu início, apesar de seus contornos poderem ser ainda disformes. Mas o que conta é sobretudo isto: somente quem cresceu em uma sociedade sem televisão foi capaz de notar a passagem e de observar as mudanças. Para quem, diferentemente, a conhece desde seu nascimento, pode parecer divertido discutir se a tevê deve existir ou não, do mesmo modo que se poderia fantasiar um mundo sem gravidade. Vejo isto nos estudantes do curso de “Arte-mídia” na Academia das Belas-Artes em que eu dou aulas: as críticas à tevê lhes interessam, não lhes falta espírito crítico, sobretudo no que diz respeito aos conteúdos das transmissões. Mas a existência da tevê é para eles tão evidente e natural como a do ar que respiramos. Vem logo à mente a afirmação contida nos “Comentários sobre a sociedade do espetáculo“, de Guy Debord, de 1988: o sucesso maior do espetáculo é ter feito crescer uma geração que jamais conheceu outra coisa senão o espetáculo, uma geração para a qual o espetáculo é todo o mundo e por isso lhe falta qualquer termo de comparação.

Partamos, pois, do pressuposto de que seja a sociedade contemporânea a criadora da televisão e que a televisão não obedeça a uma lógica autônoma. Não é a relação entre o raio de luz e a retina que nos explica a televisão, mesmo porque essa relação não foi muito diferente para os antigos egípcios ou no tempo de Platão. Isto não significa, todavia, que a televisão e os outros meios eletrônicos caíram do céu: eles foram implantados sob a influência de antigos males. Uma sociedade que pôde inventar a televisão e fazer dela o supremo feitiço estava já evidentemente podre, e isto aconteceu porque era a continuação de outras sociedades inconscientes de si mesmas. Este é o ponto capital frequentemente esquecido por aqueles críticos que apresentam a televisão como uma espécie de gênio maligno, uma caixa de Pandora, vindo inexplicavelmente perturbar uma vida que antes era harmoniosa e feliz. Na verdade, o ardor com o qual a televisão é aceita praticamente em todos os lugares e sempre não se explicaria se ela não encontrasse já uma situação de forte tédio que faz parecer preferível olhar uma tela. A solidão que comporta a televisão não seria suportada por quem vive em um mínimo de comunidade verdadeira. É particularmente difundido lamentar o impacto negativo da tevê sobre a vida familiar. Fez-se notar que a tradicional mesa de jantar, em torno da qual a família se reunia olhando-se no rosto e falando, desapareceu em proveito da televisão em frente à qual os membros da família alienam-se olhando para um ponto de fuga comum em vez de olharem um para o outro — isto se os membros da família não dispõem de uma tevê em cada quarto. Mas essa forma demente de vida familiar não seria difundida assim tão rapidamente se as pessoas não estivessem fartas de ouvir pela milésima vez os relatos do avô sobre a guerra e dos pais sobre o trabalho, ou as queixas sobre o tempo, ou sobre o preço dos tomates, discursos que são eles mesmos fruto de uma vida tornada esvaziada pela razão econômica. A mesa familiar era também um instrumento de controle em que ninguém escapava do olhar vigilante do chefe da família que queria ver se a filha se envergonhava ao ouvir determinado nome. Tudo isto não significa, porém, como querem muitos, que a tevê foi um instrumento de emancipação ou de liberação dos costumes, mas significa que a específica forma de alienação que representa a tevê é a continuação de outras formas de alienação social, e não o resultado mecânico de uma invenção técnica.

Essa última evidência deveria ser suficiente para contrariar as muito conhecidas teorias de Marshall McLuhan, que apresentou, com tom entusiasta, “a aldeia global” criada pelos meios eletrônicos como o resultado de uma revolução tecnológica comparável às revoluções produzidas pela invenção da roda, do estribo, ou da imprensa: invenções que, segundo McLuhan, teriam a cada vez criado um novo tipo de sociedade, de mentalidade, de cultura, de economia. Para reduzir a justas proporções essa teoria, basta recordar que as invenções, enquanto feito técnico, não se difundem nunca antes de existir já uma sociedade que necessite delas. De fato, muitas invenções foram feitas mais vezes na história, mas inicialmente sem consequências, permanecendo um mero brinquedo, enquanto não existisse o contexto apropriado para elas. A máquina a vapor foi já inventada na Antiguidade, em Alexandria. Mas em uma sociedade na qual o trabalho era desenvolvido pelos escravos não existia necessidade de máquinas que mecanizassem o trabalho, porque, segundo a mentalidade então dominante, os escravos seriam os únicos beneficiários. Somente uma sociedade como a inglesa do final do século XVIII, na qual existia uma larga disponibilidade de mão-de-obra “livre” — e que foi ela mesma o resultado de uma longa história de expropriação —, sabia utilizar-se de uma máquina a vapor que permitisse a um operário produzir vinte camisas no lugar de uma. Nos séculos antecedentes, máquinas capazes de incrementar a produtividade — e, portanto, de diminuir o número de operários necessários para a produção — foram inventadas, mas propriamente por esse mesmo motivo — isto é, teriam tirado o trabalho dos pobres e perturbado a ordem social — foram algumas vezes queimadas junto com seus inventores, em vez de serem postas na produção. Existem também os exemplos de canhões e espingardas, dos submergíveis e aparelhos voadores inventados na Idade Média pelos chineses, mas não utilizados, ou das rodas conhecidas pelos maias, mas utilizadas somente para brinquedos. Em suma, a tecnologia depende da sociedade, não é um fator autônomo. Não foi a invenção do tubo catódico que criou a sociedade do espetáculo.

Mas quem criou então essa sociedade? Teóricos, mesmo divergentes como McLuhan e Anders, concordam sobre um ponto: a televisão não é um simples meio que pode ser indiferentemente posto a serviço de diversos objetivos. Sua estrutura, sua forma prejudicam fortemente seu uso. Como disse McLuhan, “o meio é a mensagem”. Ele o diz com intenção apologética, quando os críticos da tevê apresentam a mesma afirmação como uma crítica. Mas qual é finalmente essa estrutura, se não é meramente tecnológica, nem é um simples caso particular da lógica da visão e da imagem?

As análises mais críticas sobre a relação entre a televisão e a sociedade põem sobretudo em evidência a contemplação passiva e isolada a que conduzem os meios eletrônicos. Para além dos conteúdos, o espectador está sempre condenado a olhar o que fazem os outros, sem ter nenhum poder sobre a própria vida. O que caracteriza a televisão não é o fato de simplesmente se olhar para ela, mas de somente se olhar. O olhar imóvel, a contemplação inerte: é isso que caracteriza o assistir à televisão e faz dela a expressão de uma sociedade na qual tudo é espetáculo, como disse Debord. Porque nem tudo é espetacular, no sentido de sensacional, colorido, emocionante, vistoso — de fato, como Anders observa, com razão, a televisão nem sempre sensacionaliza os eventos, às vezes ela banaliza e apresenta certos eventos, por conta do formato pequeno de sua tela, do acompanhamento musical etc., em uma roupa mais inocente do que eles têm na realidade. Se Debord disse que tudo é espetáculo, foi pelo fato de que tudo, da política ao tráfico, das cidades à cultura, tende a produzir e reproduzir o indivíduo isolado, portanto, massificado, que se encontra em um estado de completa impotência diante do mundo que, na verdade, é o resultado de suas ações. Ele não faz outra coisa senão olhar este mundo, portanto, ser um espectador do espetáculo.

Mas essa contemplação não é fruto de uma preguiça ontológica, mas o resultado de uma ordem social que vive graças à passividade. E é esse fato que liga a temática da televisão àquela da mercadoria. Essa conexão é frequentemente afirmada, mas raramente desenvolvida (Debord a desenvolve, porém, mais do que outros). Por que a televisão é uma mercadoria? Não somente porque os aparelhos são mercadorias e por que em geral se paga para receber as transmissões — um fato que é quase insignificante. E não somente porque, como todos sabem, as emissoras televisivas jogam um papel de primeiro plano ao promover as vendas de cada gênero de mercadorias. E não só porque propõem incessantemente os estilos de vida baseados propriamente sobre um incessante consumo de mercadorias. Um motivo, que é o mais fundamental, está na estrutura da mercadoria, e particularmente no fetichismo da mercadoria. Esse conceito foi desenvolvido por Karl Marx e se apresenta a uma atenta observação como uma espécie de núcleo secreto de toda a sua análise da sociedade capitalista. Mas poucos de seus presumíveis discípulos, isto é, os marxistas, retomaram esse conceito. Entre esses poucos, encontramos, porém, Debord, assim como György Lukács ou Adorno, mesmo que o tenham feito de modos diversos. Nos últimos tempos foi sobretudo o grupo alemão Krisis — conhecido também no Brasil através de diversas traduções e de artigos regulares de Robert Kurz publicados no jornal Folha de S.Paulo — que desenvolveu as análises do fetichismo da mercadoria.

O “fetichismo da mercadoria” não significa somente uma adoração dos bens de consumo, um excessivo investimento afetivo sobre eles, como o termo poderia fazer pensar à primeira vista. Não indica, nem mesmo, somente uma forma de consciência mistificada, que vela o verdadeiro funcionamento da exploração capitalista, como quer a vulgata marxista. O conceito de fetichismo indica sobretudo isto: na sociedade capitalista da mercadoria, a produção não acontece para seu conteúdo, para seu valor de uso. Acontece para incrementar o valor, o valor de troca das mercadorias, e este valor é determinado pela quantidade de trabalho que foi necessária para produzir a mercadoria — quer seja material ou imaterial, isso não tem importância. Não é determinado pela quantidade de trabalho concreto e real, mas de trabalho simplesmente, de trabalho indiferenciado, de trabalho abstrato, como disse Marx. Na ótica da produção capitalista de mercadorias, a produção de objetos concretos é somente um aspecto secundário; o que conta é transformar o trabalho vivo em trabalho morto, objetivado, passado, e essa transformação deve acontecer segundo os parâmetros de produtividade vigentes naquele momento. O destino de um produto, e de toda a produção, não depende de sua real utilidade para alguém, nem de sua beleza, nem de seu valor simbólico, mas de sua capacidade de ser vendido, de modo que o valor de troca contido nele volte a alimentar um ciclo sempre ampliado de produção e consumo. A questão de, por exemplo, produzir caças bombardeiros ou pães não depende de uma decisão consciente e coletiva que leve em conta as necessidades sociais, mas depende do proveito que se pode obter com uma ou outra coisa. Isto, todos nós sabemos. Não se trata, contudo, somente de uma aberração moral, ou de um defeito imputável exclusivamente à avidez de certos indivíduos ou classes sociais. A sociedade baseada na produção de mercadorias apresenta-se a cada um como um sistema já dado. Embora essa sociedade seja incontestavelmente um produto da ação humana, ela é opaca e impõe a cada um as suas regras. Na sociedade da mercadoria, o sujeito não é o homem, o sujeito é o valor e a mercadoria, o dinheiro e o capital, o mercado e a concorrência. São essas criações do homem que governam a sociedade humana, sem que nela exista sequer a consciência desse fato, porque esse processo apresenta-se como “natural” aos sujeitos envolvidos. Nem toda sociedade é, porém, uma sociedade da mercadoria, porque a mercadoria não é uma categoria supra-histórica, como o “bem” ou o “produto”, mas é uma determinada forma histórica deles.

A sociedade da mercadoria criou forças muito maiores do que aquelas de que dispunham outras sociedades, chegando a ponto de poder devastar o mundo inteiro. Mas, ao mesmo tempo, o homem moderno tem ainda menos poder sobre essas forças do que seus predecessores tinham sobre as forças do passado. Ele não pode fazer outra coisa senão contemplá-las e fazer-se governar por elas.[12] “Não poder fazer outra coisa” não significa que se trata de um destino invencível em absoluto, mas que esta é uma consequência lógica enquanto se vive em uma socie­dade da mercadoria.

Compreende-se, então, que o conceito de “sociedade do espetáculo”, em que o homem é reduzido a um papel de espectador, imerso em uma contemplação passiva, indica uma sociedade historicamente bem determinada, isto é, a sociedade da mercadoria plenamente desenvolvida, assim como veio a existir, grosso modo, dos anos 1920 em diante. E esta é a primeira frase do livro A sociedade do espetáculo: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos”.[13] De fato, essa frase é idêntica à primeira frase d’O capital de Marx, que começa precisamente com uma análise fundamental da mercadoria. Debord somente substituiu a palavra “mercadorias” pela palavra “espetáculos”, com a técnica situacionista do “desvio” (détournement). Compreende-se logo isto: que o espetáculo do qual fala Debord é um estágio no desenvolvimento da mercadoria. O segundo capítulo de seu livro chama-se “A mercadoria como espetáculo”, e os primeiros dois capítulos juntos constituem uma retomada extremamente importante da análise marxiana do fetichismo da mercadoria.

Como dissemos, na produção das mercadorias desaparece o conteúdo concreto do objeto e do trabalho que o produz, conta somente o trabalho como mera quantidade de tempo empregado, que Marx chama “trabalho abstrato”. Toda a produção de mercadoria baseia-se num processo de “abstratificação”, de “tornar-se-abstrato”, porque prevalece a mera quantidade sem qualidade. Isto é a abstração de cada conteúdo. O espetáculo com sua redução do mundo a um mero parecer, à imagem, não é, portanto, outra coisa senão, como disse o próprio Debord, uma etapa posterior no processo secular do “tornar-se-abstrato” do mundo, iniciado no Renascimento e continuado com maior força desde o final do século XVIII. Fenômeno que não é fruto de uma misteriosa “metafísica ocidental”, como gostaria de dizer talvez um Heidegger, mas que é o resultado de um processo material e social bem determinado, e por isto, no limite, também modificável. A televisão é, portanto, uma espécie de apogeu da sociedade da mercadoria não somente porque faz vender, mas porque potencializa a estrutura fundamental da sociedade moderna: a contemplação inerte, isto que o homem criou sem sabê-lo e igualmente sem o querer. Aqui não desenvolvo essa análise, porque eu já a fiz de um modo mais detalhado na primeira parte de meu livro sobre Guy Debord, publicado no Brasil pela Editora Vozes.

Devo, porém, acenar com outro elemento de importância capital: o espetáculo, assim como o entende Debord, não chega absolutamente a ocupar a realidade inteira. Muito diferentemente do que acontece segundo Jean Baudrillard, cujas elucubrações são confundidas às vezes pelos observadores mais superficiais com a teoria de Debord. Para Baudrillard, cópia e realidade são enfim indistinguíveis, não existe mais uma realidade, um original, um significado, e talvez nunca tenha existido. A resignação satisfeita é a consequência lógica dessa perspectiva. A análise de Debord, muito pelo contrário, considera a invasão das cópias em detrimento do original, da aparência em detrimento da realidade, um escândalo. Não porque poderia realmente alguma vez ter êxito, no final das contas. Mas porque estes são danos bastante reais infligidos à realidade. O predomínio da mercadoria e do espetáculo significa igualmente um grande empobrecimento da vida vivida. A mercadoria e o espetáculo são a abstratificação e a glacialização da vida, são “uma negação da vida que veio a ser visível”. Estes constituem um reverso negativo, uma forma pervertida da vida, mas não podemos nunca substituí-la por tudo.

Também Anders observou, já nos anos 1950, uma inversão operada pela televisão: quando o fantasma se torna real, a realidade torna-se fantasmagórica, escreveu, precisando que o fantasma não é nem uma realidade nem uma simples imagem, mas um ser do meio, com um estatuto ontológico diferente. Assim, os contatos entre os homens reais e os fantasmas assumem os contornos das clássicas histórias de fantasmas. Seguramente, aqui levantaremos questões para afirmar que o aspecto fraco dessa teoria, seu lado “envelhecido”, superado, seria propriamente seu apego a noções como “original” e “real”, “cópia” e “aparência”, categorias que têm a forma essencialista e pertencem a uma procura impossível do autêntico e do verdadeiro, do qual o pensamento contemporâneo nos últimos decênios estaria felizmente liberado. É evidente que nós assumimos, aqui, outro ponto de vista: somente quando finalmente cresceu uma geração já mencionada — que desde seu nascimento não conheceu outra coisa senão a cópia e a aparência, uma geração para a qual, desde pequena, a realidade era a que a televisão transmitia, e não aquela da qual eventualmente se podia fazer uma experiência direta, pois bem, somente quando essa geração chegou às cátedras pôde difundir-se a tese pós-moderna de que a realidade não existe, e não por acaso isto aconteceu antes nos países em que a desrealização da vida cotidiana estava já mais avançada.

Em última análise, a televisão contribui para criar o homem-mercadoria: um ser humano que não é simplesmente forçado, pela necessidade, a entrar no ciclo de trabalho alienado e consumo de mercadorias, como acontecia nos primeiros tempos da dominação capitalista, na qual existia ainda um real conflito entre uma esfera capitalista da vida e outra esfera — a família, a aldeia, o bairro, a corporação — não dominada pela lógica da mercadoria, ou, ao menos, não completamente domina­da. O triunfo dos meios eletrônicos iniciado entre as duas guerras mundiais coincide com uma penetração capilar da mercadoria em cada esfera da vida, com uma “colonização da vida cotidiana”, como a chamou Debord. Com a televisão desaparece o “fora” e o “dentro”, não existe mais uma esfera separada da mercadoria. Exceto para pequenas minorias, não existe mais o desejo de beber que não seja o desejo de beber coca-cola, ou outro produto do qual é feita a publicidade na tevê. Não existem mais brinquedos feitos pela própria criança, mas somente aqueles vistos sobre o plano televisivo. Não existem comportamentos amorosos diferentes daqueles das telenovelas etc. Não quero repetir análises já feitas por outros sobre como a realidade vem, enfim, sendo percebida somente por intermédio dos esquemas mentais e perceptivos impostos pela tevê. Anders disse, há meio século, que agora os homens já não criam a própria linguagem, assim como não assam mais o próprio pão em casa. Gostaria, porém, de sublinhar que isto confirma nossa análise da mercadoria como “forma social total”: um sujeito em forma de mercadoria, para o qual cada objeto de percepção, desejo, sentimento ou pensamento é representado sob forma de mercadoria.

Também a função de “democratização” que muitos querem atribuir à televisão consiste justamente no fato de todos tornarem-se iguais em frente a ela. A televisão repete nos confrontos dos sujeitos o mesmo processo universal induzido pela lógica da mercadoria: reduzir tudo a diferentes expressões quantitativas da mesma substância indeterminada sem qualidade.

Podemos também falar de uma verdadeira e própria “antropogênese negativa” ou “regressiva”. Os esforços milenares do homem para aperfeiçoar a própria existência e enriquecer sua relação com o mundo correm o risco ainda de anular-se, e o homem de cair em um estado de pobreza existencial que, na verdade, jamais existiu. Günther Anders insiste no empobrecimento, ou melhor, na quase abolição da experiência individual que se dá quando todo o mundo se encontra abastecido em casa, como acontece com o gás ou com a eletricidade. Todas as categorias tradicionais do ser-no-mundo, da relação dos homens com seu mundo, vêm sendo postas em discussão pela existência do rádio e da tevê, e não somente quando existem cem canais, mas já quando aparece sua estrutura embrionária. O fora e o dentro, a distância e a proximidade, o particular e o universal, substituídos pela sucessão, a simultaneidade e a presença verdadeira, o ser e o aparecer: todas essas distinções desaparecem. A televisão, disse Anders, faz desaparecer o mundo sob a imagem do mundo. O mundo como mundo apresenta-se substituído por um modelo de mundo em uma escala reduzida que serve para aprender e interiorizar os comportamentos que se deve ter depois nos confrontos do mundo real. No fundo, toda a sociedade da mercadoria é uma tal antropogênese negativa, um passo atrás da humanidade. Em frente aos ídolos do mercado e da rentabilidade, da mercadoria e do capital, o homem moderno não demonstra absolutamente uma autonomia maior que a que tinha o assim chamado homem primitivo diante de seu ídolo de madeira ao qual atribuía aqueles poderes que, na verdade, eram os da comunidade humana.

O entusiasmo com o qual recebemos essa regressão é grande merecedor de uma explicação. Provavelmente nada é tão comum a todos os habitantes do globo quanto a vontade de assistir à tevê. Sobre alguns conteúdos podem pesar as diferenças culturais, as bailarinas seminuas suscitam talvez um escândalo na Arábia Saudita. Mas, se se trata de assistir aos desenhos animados, podemos estar seguros de que pelo menos isto aproximaria palestinos e israelenses, chechênios e russos, habitantes das favelas e milionários americanos, aiatolás e atrizes pornográficas. Anders afirmou, já no ano de 1956, que muitos de seus contemporâneos prefeririam estar na prisão tendo uma televisão para assistir a seus programas (na verdade, ele disse “tendo um rádio”) a ser livres sem um tal aparelho. O que devemos dizer hoje?

A primeira coisa que foi feita no Afeganistão depois da derrota dos talibãs foi recomeçar as transmissões televisivas. Esse universalismo da tevê explica-se, por um lado, pelo fato de que ela é a vanguarda da mercadoria, também nos lugares em que a mercadoria não existe, ou praticamente não existe. Aquela maioria da humanidade que não tem acesso a quase nenhuma das mercadorias promovidas na tevê não se cansa, porém, de olhar a promessa destas, o espetáculo do espetáculo. No país mais pobre e retrógrado da Europa, a Albânia, próxima à Itália, os habitantes assistiam à televisão italiana durante a longa ditadura stalinista, e depois da derrocada do regime em 1990 uma boa parte deles pôs-se em movimento para alcançar a Itália e ver a terra prometida, de modo que, finalmente, o então primeiro-ministro italiano Giulio Andreotti, conhecido por seu cinismo, exclamou: “Mas essa gente pensava realmente que toda a Itália fosse como nos espetáculos televisivos?”, e mandou depois o Exército reenviar os iludidos para casa.

Em uma perspectiva ainda mais ampla, também necessariamente vaga, poderia dar-se que o triunfo da televisão é tão universal porque ela vem ao encontro de um profundo infantilismo da humanidade e de um desejo de regressão. Assim como o indivíduo, também a humani­dade poderia sentir cansaço e resistência diante do processo de tornar-se adulto. A cultura da epopeia ou do romance burguês é claramente uma cultura dos adultos. De fato, as crianças não entendem um romance, uma epopeia ou uma poesia. A televisão, diferentemente, como notava Adorno nos anos 1960, dirige-se a um espectador com a idade de 11 anos. Desde então, esta idade-alvo foi ainda notavelmente diminuída. Os desenhos animados, dos quais falava antes como o produto mais universalmente amado pelos telespectadores, são perfeitamente desfrutáveis por um menino de 3 anos. Vi recentemente, durante uma breve viagem por mar, que determinado canto do navio, com brinquedos e a possibilidade de assistir a desenhos animados, foi proposto para que ali ficassem as crianças a fim de evitar que vissem o mar e a costa. Mas a maior parte dos espectadores que lá permaneceram era de pessoas ditas adultas. “Em nenhuma parte existe acesso à idade adulta”, dizia Debord em um de seus filmes, nem sequer à infância verdadeira, podemos acrescentar, mas somente à “infantilização”. Porque nisto tem razão Neil Postman, com o seu livro O desaparecimento da infância, publicado também no Brasil:[14] os espetáculos televisivos, indistintamente propostos aos espectadores de todas as idades, têm de fato abolido aquela infância que a cultura do livro impresso ajudou a criar, enquanto a televisão trata de novo as crianças como pequenos adultos — mas adultos por ela tornados infantis, devemos acrescentar.

Mas a antropogênese negativa da qual a televisão constitui um fator poderoso é verdadeiramente fatal, como afirmam com resignação Postman, Baudrillard e tantos outros? É bastante cedo para dizê-lo. Posso afirmar que no povoado italiano onde vivo — que seguramente não se trata de exceção — os mesmos idosos que não querem permanecer uma noite em casa sem a tevê exprimem frequentemente nostalgia para com o tempo passado no qual à noite eles se reuniam para cantar, ou no qual as mulheres lavavam as roupas juntas na fonte, trocando fofocas da aldeia, em vez de assistirem cada qual sozinha às telenovelas.

Não é impossível que muita gente, se fosse deixada sem televisão, depois de um momento de perturbação, esfregaria os olhos perguntando-se de que sono despertou. É inacreditável, mas semelhante experiência parece nunca ter sido feita em nenhum país dito “civilizado”. Qualquer gênero de experimentação sobre a vida das populações é considerado lícito, do uso de amianto ao cultivo de campos transgênicos. Mas deixar uma pequena cidade um mês sem televisão, com objetivo experimental, disto nunca se ouviu falar.

Talvez se vejam um dia, contudo, ações mais fortes. Segundo uma tradição citada por Walter Benjamin nas teses “Sobre o conceito de história”,[15] durante a revolução de 1830 em Paris, ou, segundo uma outra versão, durante a Comuna de Paris de 1871, ou ainda durante a revolução espanhola de 1936, os revolucionários disparavam nos relógios públicos. Quem sabe não veremos rapidamente ou tardiamente outros disparos, agora nas televisões?

Uma utopia? Conheci pessoalmente, há vinte anos, na Califórnia algumas pessoas que não eram revolucionárias, mas que tinham decidido tirar o televisor da casa na qual viviam juntas e fechá-lo em uma despensa. Mas acontece que num dia um deles, e em outro dia outro, queria ver “somente determinada transmissão”, e a cada vez o aparelho era reposto em funcionamento.

Até que um dia se cansaram, colocaram-no em um jardim sobre um pequeno muro, posicionaram-se a certa distância, tomaram cada um, como bons americanos, o próprio revólver e atiraram todos contra o televisor. Desde então, não se viu mais televisão naquela casa.

Tradução: Juliana Zanetti de Paiva.

Notas

[1] Guy Debord, A sociedade do espetáculo (Rio de Janeiro: Contraponto, 1997).

[2] Ibid., § 5.

[3] Ibidem.

[4] Guy Debord, “Comentários sobre a sociedade do espetáculo”, em A sociedade do espetáculo, cit.

[5] Guy Debord, A sociedade do espetáculo, cit. § 198.

[6] Platão parece em geral o demônio dos defensores modernos da tevê, que fazem dele uma espécie de precursor dos talibãs (e não mais de Stalin ou de Hitler, como fez Karl Popper).

[7] Faço com que notem, incidentalmente, que essa equiparação de críticas, na verdade, pertencentes a contextos muito diversos, isto é, os da condenação platônica da arte e os das críticas modernas à sociedade espetacular, corresponde ao sofisma de quem responde, aos críticos do uso da energia nuclear, que também os primeiros trens foram recebidos às vezes por medos apocalípticos e pela demonstração de sua extrema periculosidade, e que se trata, portanto, em ambos os casos, de simples capricho diante do novo.

[8] Günther Anders, Die Antiquiertheit des Menschen (Munique: Beck, 1956). Ed. francesa: L´obsolescence de l’homme (Paris: Editions de l’Encyclopédie des Nuisances/Editions Ivrea, 2002).

[9] Essa afirmação está presente, por exemplo, no histórico americano da filosofia de Martin Jay em seu livro (com um título significativo): Downcast Eyes: the Denigration of Vision in Twentieth-Century French Thought (Berkeley/Los Angeles/Londres: University of California Press, 1994), isto é, a “Difamação da vista no pensamento francês do século XX”, em que ele fala também de Debord.

[10] Guy Debord, Panégyrique, tomo segundo (Paris: Arthème Fayard, 1997).

[11] Acrescento, porém, que vi que esse livro foi discutido recentemente na USP e que pelo menos um texto de Anders, aquele sobre Kafka, foi publicado no Brasil em 1969, e que Sérgio Buarque de Holanda, em seu ensaio de 1952, menciona esse livro sobre Kafka, que então havia sido publicado apenas na Alemanha.

[12] Não farei aqui considerações sobre outras formas de alienação e fetichismo que reinavam em sociedades precedentes, que naturalmente não constituíam um Éden.

[13] Guy Debord, A sociedade do espetáculo, cit., p. 13.

[14] Neil Postman, O desaparecimento da infância (1º ed. Rio de Janeiro: Graphia, 1999).

[15] Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”, em Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura, trad. Sergio Paulo Rouanet, vol. 1 (São Paulo: Brasiliense, 1985).

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