2010

O que significa “pensar”? Aventuras do pensamento entre a Antiguidade e a Modernidade

por Francis Wolff

Resumo

Se há, por um lado, a atividade cerebral objetiva e mensurável, há, por outro, sua experiência. Embora não se possa vê-la, a relação entre ambas é óbvia. Tanto que não há uma sem a outra. Ou seja: sem conexões elétricas entre bilhões de neurônios, nada de cheiro, som, amor, ódio, prazer, sofrimento, cálculo, discurso, Beethoven ou Carlos Drummond de Andrade. Eis, pois, o enigma: como movimentos físicos transformam-se em estados de consciência? Como a composição química da pera dá-lhe um sabor único?

O pensamento mesmo não corresponde à sua experiência, fracionária. De todo modo, ele, acompanhado de consciência, não é mais um processo físico, somente. É a experiência de um sujeito. Qual? Eu, pura e simplesmente. Um eu que, no automatismo da vida, costuma esquecer de sua própria consciência.

Para todos os efeitos, um pensamento completo e acabado é uma consciência e seu sujeito. É um ato, pensar, acompanhado de seu agente, eu. E eis que o conjunto propicia essa experiência única: “Estou pensando”, mesmo que muitas vezes não se controle o pensamento ou, como escreveu Nietzsche, ele ocorra não propriamente quando se quer, a exemplo das obsessões. É preciso então dobrar o pensamento à força de vontade, também função mental.

O paradoxo consiste, então, em não se poder decidir entre o “eu” criador dos pensamentos e o “eu” forjado por eles, já que o pensamento é constituído por uma dupla propriedade: a transitiva, que toma para si o objeto, e a reflexiva, que toma a si mesmo como objeto. Há ainda um terceiro grau do pensamento que, mais elevado e restrito, é constituído pela consciência do fluxo de consciência. Isso que culmina na “coisa pensante” assim como definida por Descartes.

Mas o que significa mais exatamente isso?

Para a antiguidade grega, tratava-se de uma racionalidade que, para além da mitologia, opinião ou fé, só reconhecia autoridade em suas próprias regras. De natureza filosófica ou científica, ela era constantemente posta à prova através da experiência dialógica, mesmo que interiorizada. Eis a definição mesma de racionalidade, para a qual concorriam, segundo Aristóteles, a vertente teórica, prática ou poiética.

O que as distingue?

A racionalidade teórica supõe que se esteja diante do mundo e que se deva compreendê-lo em toda sua variedade. “O que é?” e “por que é?” são seus principais recursos. Já a racionalidade prática, seja ela de natureza moral ou política, volta-se para o mundo desde seu interior, já que o esforço não é para compreendê-lo, mas para agir nele, com o objetivo de persistir no bem e tornar o mundo melhor. Na racionalidade poiética (ou técnica), enfim, a busca é por estar na natureza justamente para poder distanciar-se dela até que se esteja diante dela, mas, dessa vez, com o objetivo de transformá-la através do pensamento prático e para fins práticos. A ênfase recai, pois, sobre a utilidade ou a fabricação. De roupas, casas, instrumentos, ferramentas, armas, remédios etc.

A partir de tal classificação, o que se constata hoje?

Que as diferentes vertentes perderam a autonomia. E isso pelos seguintes motivos: elas estão cada vez mais sob a dependência da racionalidade econômica, dependem cada vez mais umas das outras, de forma que, progressivamente, perdem suas respectivas finalidades.


Como tentamos mostrar em nossa contribuição sobre A condição humana[1]a maior mutação no pensamento científico contemporâneo é a passagem, hoje em dia, de uma definição do homem feita pelas “ciências humanas” (sociologia, antropologia cultural, psicanálise etc.) do século XX, a uma definição puramente biológica: o “homem neuronal”, como se costuma dizer. De tal forma que parece fácil responder à pergunta: “O que significa pensar?”. O pensamento é uma atividade de nosso cérebro. Ou melhor, é a atividade do cérebro de certos mamíferos evoluídos, atividade que lhes permite adaptação a melhores condições na vida terrestre. Aprofundar mais é inútil. O pensamento é isso e só isso. A engenharia de imagens cerebrais progrediu tanto nos últimos anos que é quase possível ver “ao vivo” as áreas do cérebro solicitadas nas diversas atividades do sujeito, por exemplo, reconhecer um rosto, relembrar um perfume, fazer um cálculo mentalmente, ter um pesadelo, aprender a dançar etc.

Portanto, é possível observar inúmeros pensamentos de que não temos consciência e até analisar o processo mental complexo pelo qual passa nosso cérebro, sem nossa ajuda, para que possamos abrir a porta, fechar a janela, responder automaticamente a uma pergunta banal ou recuar a bola para um jogador livre de marcação. Tudo isso pode ser observado, tudo isso pode ser medido. Aliás, depois de um acidente cerebral, quando alguém se vê privado de determinada função mental, temos a prova de tudo o que era necessário pensar para poder simplesmente mexer, calcular, falar, atividades que fazíamos sem delas nos dar conta – isto é: sem vivenciá-las. Logo, o pensamento parece ser nada além de uma série de impulsões elétricas do cérebro, e constatamos que o continente do pensamento é muito mais vasto do que a ilha da consciência. A experiência consciente é apenas a parte emergida do iceberg do pensamento.

É por isso, aliás, que não podemos nos satisfazer com está primeira definição do pensamento pela atividade cerebral, se “pensar” – no sentido pleno do termo – significa “fazer” algo. Senão, seria como definir um quadro de Leonardo da Vinci pelos comprimentos de onda das cores ou uma música de Tom Jobim pelas vibrações do ar. É verdade que a mais bela música do mundo não passa de uma série de ondas mensuráveis em comprimento, intensidade, frequência etc. Porém, não há nada em comum entre essas medições fisicas e o que ouvimos numa música. As vibrações do ar são um fenômeno objetivo que não se ouve. Acontece que um som é audível, e ouvir é experimentar algo; e isso é um fenômeno subjetivo, algo que cada um pode experimentar. Ouvir significa sentir algo que os surdos não podem sentir, embora sejam capazes de entender, analisar e medir comprimentos de ondas sonoras. A verdadeira dificuldade é essa: como explicar que quando um corpo emite radiações eletromagnéticas cujo comprimento de onda é de 580 nanômetros… Vemos amarelo e pensamos “amarelo”?

É a mesma coisa para o pensamento em geral: há por um lado o pensamento como atividade cerebral, objetiva, mensurável; e há por outro lado a experiência que cada um faz ao pensar, ou seja, o fluxo permanente dos pensamentos diversos que passam pela nossa mente a cada instante. Não vemos a relação que existe entre os dois, apesar de saber que ela existe. Sabemos que sem a atividade cerebral não pensaríamos. Sabemos que a primeira é a condição da segunda. Sem cérebro, nada de pensamento; sem conexões elétricas entre os bilhões de neurônios, nada de cheiro, nem de cor, nada de amor nem de ódio, nada de prazer nem de dor, nem 2 + 2 = 4, nem B e A = BA, nada de Beethoven nem de Carlos Drummond de Andrade. Mas o que é impossível entender é a relação de causalidade entre corpo e mente, entre cérebro e pensamento, é o processo de transformação de impulsões elétricas em estados de consciência. Como movimentos fisicos se tornam uma experiência, um som, uma cor, uma lembrança; como a composição química da pera (que é possível analisar nos menores detalhes) dá a esta fruta seu gosto único de pera que experimentamos?

Esse é o problema maior da disciplina que chamamos “filosofia da mente” e que se chamava na Idade Clássica de problema da relação entre a alma e o corpo. Problema duplo, aliás: como movimentos do corpo (impulsões do cérebro) podem se tornar pensamentos em mim? E reciprocamente: como pensamentos podem se tornar impulsões do corpo? Por exemplo: quero sair daqui (é um desejo, logo um simples pensamento) e fui, já estou indo embora, é um movimento: meu pensamento é capaz de agir sobre meu corpo, uma ideia que passa pela minha mente é capaz de agir sobre minhas pernas. Milagre! É mágico: o pensamento tem capacidade de agir sobre o corpo! Melhor ainda: é possível mesmo que um pensamento controle um corpo alheio, o de um robô, por exemplo[2].

O pensamento é uma coisa e a experiência do pensamento, outra coisa[3]. A experiência do pensamento não é o pensamento todo, ela é geralmente sua parte mais nobre. Ela também é às vezes uma carga inútil. De qualquer jeito, segundo esta segunda definição, o pensamento acompanhado de consciência não é mais um processo fisico, um mecanismo cerebral, é a experiência de um sujeito. Que sujeito? Eu, pura e simplesmente. Cuidado, contudo: posso estar consciente de algo sem ter a consciência de que sou eu quem está consciente disso. É provavelmente o que acontece com um bebê, por exemplo. Ele tem consciência de sentir fome, de sentir sede, de sentir dor, ele tem consciência do que vê, ele reconhece rapidinho a voz ou o rosto de sua mãe, ele até reconhece rapidamente seu próprio braço, sua mão, porém ele não tem consciência de que se trata de sua mão, de que esta mão é dele, de que seu corpo é um conjunto e que este conjunto é ele, de que este ele é um eu, sempre o mesmo, este eu que ele ainda não tem a consciência de ser. Ele pode pensar muitas coisas antes de conseguir pensar a si próprio. Ele pode experimentar o mundo antes de experimentar a si mesmo.

Para todos os efeitos, um pensamento completo e acabado é uma consciência e seu sujeito. É um ato, pensar, acompanhado de seu agente, eu. E o conjunto propicia esta experiência única: “estou pensando”.

Isso não significa que eu seja o autor, a origem, o dono dos meus pensamentos, como se dependesse do meu bem-querer pensar isso ou aquilo. Na maior parte do tempo, o que estou pensando, penso sem querer, e, como dizia Nietzsche, um pensamento vem em mim quando ele quer e não quando eu quero. Ninguém é verdadeiramente o dono absoluto de seus pensamentos, embora cada um esteja convencido de que ele é o autor de seus pensamentos como é o sujeito gramatical de seus atos. Os pensamentos vão, vêm e se vão, muitas vezes independentemente da minha vontade: pensem nos pensamentos parasitas, obsessivos, ou ainda na incapacidade nossa muitas vezes de pensar no que deveríamos, de nos concentrar, de do­ brar nosso pensamento de acordo com nossa força de vontade – força essa que é apenas mais um pensamento, que na maioria das vezes também não depende de mim. Quando se diz que experimentar o pensamento significa ter a sensação de que sou eu quem pensa, não quer dizer que “eu” seria o criador dos meus pensamentos, como se estes me obedecessem. A relação entre mim e meus pensamentos é antes oposta: é porque experimento estes pensamentos o tempo inteiro, que eles criam em mim a sensação do eu, de um eu permanente e imutável. Não sou eu quem molda meus pensamentos, são antes meus pensamentos que me moldam. Afinal de contas, pensar, para um sujeito, significa poder saber que ele pensa. Não há experiência do pensamento sem um sujeito capaz de experimentá-lo.

E é aí, finalmente, que eu entro, eu. De vez em quando, com efeito, ocorre que este pensamento que está em mim como um fluxo permanente, este pensamento que viravolta sem parar de acordo com as circunstâncias da existência e para nos objetos os mais variados, ocorre que este pensamento para neste objeto específico que lhe serve de suporte permanente e que chamo de eu.

E então, em vez de pensar nisso ou naquilo, no tempo lá fora ou no terrorismo internacional, penso em “mim”, penso que estou pensando, penso, logo “eu”, os pensamentos parecem ser meus, penso que sou eu quem está pensando e o pensamento cessa de ser produzido em mim sem querer para parecer que é produzido por mim. Eu penso. Eu penso, isto é: penso que estou pensando, o que não significa nada além de penso que sou eu quem está pensando; penso-me como não apenas o centro focal onde ocorrem pensamentos, mas o sujeito, o sujeito único, o sujeito inicial de todos os meus pensamentos. Sou eu quem está pensando, penso, quando começo a pensar que, de fato, penso.

Ao experimentar o pensamento, percebo que ele tem, portanto, essa dupla propriedade surpreendente de ser ao mesmo tempo transitivo (ele possui um objeto exterior) e reflexivo (ele pode tomar a si mesmo como objeto), e este objeto que é ao mesmo tempo sujeito, eu o chamo de eu. Eis então o terceiro grau do pensamento, mais elevado, porém também mais restrito que os anteriores: não mais uma série objetiva de impulsões elétricas no cérebro de alguns animais, não mais uma pequena parte deste fenômeno cerebral, aquela que constitui o fluxo permanente que vivencio, mas uma pequena parte deste fluxo, aquela da qual posso me tornar consciente pensando que sou eu quem está pensando. E já que o pensamento que vivencio sempre é meu pensamento e que, reciprocamente, a cada vez que me dou conta de que estou pensando, também sei que sou eu quem está pensando, posso concluir que meu pensamento sou eu e que eu nada mais sou do que meu pensamento. Foi, aliás, a definição de Descartes, para quem nada sou além de uma coisa pensante.

Mas o que é “uma coisa que pensa”? É, diz ele, “uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que também imagina e sente”[4]. Logo, pensar, para Descartes, significa ser consciente de qualquer coisa. E pensamos o tempo inteiro. Não conseguimos nos impedir de pensar. Tentem não pensar e logo esse esforço para não pensar será seu próprio pensamento.

(Daí o poder dos gurus! Eu notei acima que cada um de nós tinha o poder mágico de agir sobre o corpo com o pensamento: basta geralmente pensar que eu quero andar para que apenas este desejo faça que eu comece a andar. Mas, agora, vou fazer uma coisa melhor ainda. Posso lhes mostrar que tenho não somente o poder do meu pensamento para agir sobre meu corpo, mas também – como todo mundo – um poder mágico sobre os pensamentos de vocês mesmos. Posso, por exemplo, fazer com que vocês pensem num elefante cor-de-rosa. Tenho certeza disso. Vocês não acreditam? Vocês acham que conseguem agora mesmo não pensar num elefante cor-de-rosa? Muito bem. Então, vamos, tentem agora, neste instante, não pensar num elefante cor-de-rosa; vocês vão ver que é impossível. De fato, ao realizar o esforço de não pensar nisso, vocês vão pensar nisso, vocês vão pensar nisso como eu quis que pensassem e como vocês mesmo não queriam. Viram? Não é dificil ser um charlatão, um predicador que se diz dono de suas forças de vontade, um guru que se apodera de seus pensamentos contra sua vontade.)

Logo, o pensamento é a consciência. Ele é necessariamente indefinível, pois como defini-lo sem pressupô-lo? Não se pode dizer o que ele é, só se podem elencar seus diferentes modos. Pensar significa em primeiro lugar sentir, ou seja, perceber – porque quando sinto algo, quando vejo, quando ouço algo, tenho consciência de que sinto, vejo, ouço este algo. Consequentemente, ouvir um som, uma música, enxergar uma cor, um rosto, já é pensar. Talvez seja o grau mais baixo do pensamento, já que permaneço totalmente passivo: perceber significa receber algo que me é dado de fora, que me é quase que imposto; tenho de fechar os olhos, tampar os ouvidos se eu não quiser enxergar ou ouvir, mas não sou eu quem decide o que está para ser visto ou ouvido. Num segundo nível, posso também imaginar, isto é: representar-me mentalmente coisas sensíveis, as que eu poderia ver, ouvir, sentir, embora elas não estejam presentes no atual momento, como a Torre Eiffel ou o Cristo do Corcovado. Ao imaginar, já penso de maneira mais ativa, depende mais de mim, sobretudo sob a forma mais elevada da imaginação chamada criativa, a dos artistas ou romancistas; a imaginação é uma invenção de personagens possíveis, de lugares, de mundos verossímeis: foi deste pensamento imaginativo que saíram as maiores criações da mente. Eis uma experiência de pensamento propriamente humana! E paralelamente a essas duas formas de imaginação, existe o pensamento que nos permite viajar no tempo, este pensamento que é chamado memória, que também possui duas formas diferentes: a lembrança passiva e a rememoração ativa quando faço um esforço para procurar na minha memória algo que eu vi, que eu vivi ou simplesmente que eu sei. Sob sua forma geral, na escala de um povo ou da humanidade, essa experiência do pensamento é a história. Do mesmo modo que não há pensamento individual sem memória, não há pensamento coletivo e, portanto, não há coletividade, comunidade ou povo sem um passado, sem a crença num passado (seus mitos fundadores, o que ele considera como sua tradição, sempre em processo de reinvenção) e sem o saber sobre seu passado (trata-se da sua própria história, cuja constituição e reconstituição nunca acabam).

Acima da percepção, da imaginação, da memória, existe principalmente tudo o que tem a ver com o que Descartes chama “conceber”; ao que podemos acrescentar “afirmar”, “negar”, assim como refletir, raciocinar, enfim, os modos do pensamento racional.

Vamos considerar seus três graus. Há primeiro a “concepção”, que é preciso distinguir da “imaginação”. Um conceito é uma representação mental geral e abstrata, enquanto uma imagem é uma representação mental concreta e específica. Tentem imaginar um homem em geral: vocês não vão conseguir. Pois vocês vão imaginar ou um homem ou uma mulher ou uma criança ou um idoso ou um moreno ou um loiro, mas o ser humano em geral não é nem homem nem mulher, nem jovem nem idoso, nem moreno nem loir, já que ele pode ter qualquer uma dessas características. Porém, se é impossível formar a imagem de um homem em geral, é muito fácil conceber o homem. Quando penso em “homem”, incluo no meu conceito tudo o que há de comum entre todos os homens reais ou possíveis e somente isso; o conceito é o produto de um duplo processo de abstração (abstrai-se o que é específico e que, logo, pode ser imaginado) e de generalização (mantêm-se em mente todas as características humanas). Por exemplo, quando digo “o homem é um animal social”, refiro-me ao conceito de homem. Igualmente, é a partir do conceito de círculo que o geômetra raciocina. E o círculo do geômetra não é nem grande nem pequeno, ele não tem cor, seu diâmetro não possui espessura (o que é matematicamente necessário e fisicamente impossível) etc. É inimaginável e, no entanto, muito fácil de conceber. É simplesmente uma figura fechada na qual todos os pontos estão a igual distância de um mesmo ponto chamado “centro”. Eis de novo uma experiência de pensamento propriamente humana.

O segundo nível do pensamento racional é aquele que combina conceitos para transformá-los em proposições. Não se trata mais de refletir sobre o cão ou o animal, mas de pensar a relação entre os dois, de afirmar algo sobre algo: por exemplo, “os cães são animais”. Finalmente, a mais alta forma de pensamento ou pelo menos a mais complexa é o raciocínio, que combina proposições. Não se pensa mais a proposição “os cães são animais” ou “os animais são mortais”, pensa-se a relação entre as duas, podendo-se deduzir “os cães são mortais”.

O ponto em comum entre esses três graus do pensamento racional (o conceito, a proposição e o raciocínio) é que eles são impossíveis sem a linguagem e até sem uma linguagem realmente específica, própria ao homem: a linguagem articulada, que com alguns milhares de palavras pode fazer referência a uma infinidade de pensamentos. Talvez seja possível sentir, imaginar, desejar e até relembrar sem linguagem, mas não se pode conceber sem linguagem e, por conseguinte, nem afirmar nem raciocinar. A partir do momento em que há linguagem, o pensamento fica completamente diferente: ele se torna claro e distinto, inclusive a própria consciência. De fato, as palavras servem para comunicar, para serem dirigidas a outras pessoas; porem só se pode pensar consigo mesmo com as palavras comuns a todos. Dito de outra maneira, “pensar significa falar consigo mesmo”, como dizia Platão. Eis uma nova definição do pensamento. Por mais individual que seja qualquer pensamento, só se pode pensar bem, de verdade, com outros, graças a outros, mesmo quando se está sozinho. E às vezes contra outros, e com a ajuda deles! É o que se chama argumentar.

O pensamento racional começa com a comunicabilidade, com a dizibilidade. Sozinho, tenho meus humores, meus sentimentos, minhas crenças, minhas opiniões, minhas convicções. Se eu quiser inculcar minhas crenças, minhas opiniões, minhas convicções a uma criança, basta-me a autoridade: “Acredite em mim, estou lhe falando, sou seu pai, seu educador, seu superior, você precisa acreditar em mim”. Porém, se eu quiser convencer um ser que considero meu igual, preciso argumentar, e assim minha convicção poderá deixar de ser minha para se tornar um pensamento compartilhado. Preciso fornecer razões de pensar isso ou aquilo. E se eu encontrar razões válidas para todo mundo, a qualquer momento e em qualquer lugar, que fazem que qualquer outro ser falante, contanto que não tenha preconceitos e seja de boa-fé, tenha de acreditar em mim, então minha argumentação será universalmente válida e meu pensamento adquirirá o maior valor, o qual não será mais vinculado a mim, mas ao simples pensamento. Por exemplo: qualquer um pode demonstrar que 2 + 2 = 4 ou que a soma dos ângulos de qualquer triângulo é de 180 graus. Não é uma questão de opinião. É a forma mais alta de pensamento, o pensamento racional. E trata-se de um pensamento sem pensador.

Num primeiro nível, já se disse que o pensamento nada mais é que a atividade de um cérebro. Contudo, para que um pensamento seja completo, ele precisa ser pensado, ou seja, consciente. É o segundo nível, que também não é próprio ao homem. Num terceiro nível, essa consciência precisa se tornar consciência de si, é preciso que haja um sujeito (“eu”), subjacente ao pensamento para que este pensamento seja completo, acabado. Nesse nível, notamos que ainda existe uma série de gradações, dependendo de este “eu” ser, em maior ou menor grau, o autor do próprio pensamento: completamente passivo na percepção, mais ativo na imaginação criativa ou na rememoração voluntária, ele parece ser o criador dos próprios pensamentos quando estes se tornam racionais no pensamento conceitual e no raciocínio. Mas é aí que assistimos a uma estranhíssima reviravolta. O maior grau do pensamento é aquele de minha autoria e não aquele que escapa ao controle da minha consciência. Mas o maior grau do pensamento de minha autoria não é mais um pensamento cujo autor sou eu, mas um pensamento sem autor ou, melhor dizendo, um pensamento cujo autor somos nós. Quem “nós”? Não uma determinada coletividade, mas sim a humanidade inteira. O pensamento racional é de fato um pensamento que, mesmo quando sou eu quem o experimenta, permanece sem nenhum autor, a não ser a própria razão. Quando penso racionalmente, penso o que qualquer homem poderia e deveria pensar. Não sou mais eu quem está pensando, é o homem (o homem conceitual) que pensa em mim. Se eu penso que 2 + 2 = 4, não penso isso porque sou eu, mas justamente penso bem, penso corretamente, porque não o penso mais em meu nome, mas em nome da razão apenas, anônima, sem rosto, com a qual meu pensamento se identifica. É por esse motivo que foi um imenso progresso para o pensamento humano em geral o fato de poder pensar que 2 + 2 = 4. Agora, se eu penso – isto é: se eu acreditar – que 2 + 2 = 5, sou eu mesmo, eu sozinho quem pensa isso. Pois é minha individualidade, com suas carências e seus defeitos, quem comete erros ou é vítima de ilusões. Mas, quando penso certo, não penso mais em meu nome, penso em nome de toda a humanidade.

Parece estranho. Será que um grande pensamento, um pensamento genial, como o de um grande artista, de um grande cientista, de um grande filósofo não é um pensamento novo, singular, pessoal, aquele que ele é o único a ter tido e que ninguém outro poderia ter tido exceto ele? É verdade, de certa forma, embora seja preciso desconfiar do desejo individualista de se singularizar a todo custo e do culto moderno à originalidade: os grandes pensamentos, as invenções mais brilhantes são muitas vezes anônimas.

Quem inventou a roda ou a aspirina, quem descobriu o número zero ou os Dez Mandamentos?

É inegável, todavia, que alguns gênios são autores de pensamentos pessoais inéditos e singulares. Contudo, o gênio deles consiste justamente no fato de pensarem em nome de toda a humanidade. Eles pensam com sua personalidade, isto é, com seu estilo e seu talento próprios, mas não expressam sua opinião individual, seus gostos ou suas convicções, eles inventam novas maneiras de pensar das quais, depois, cada um poderá se apropriar, reconhecendo nelas um pensamento universalmente válido. Tomemos alguns exemplos: o gênio de Galileu não consistiu na expressão de um pensamento original, mas na defesa, sozinho contra todos, do sistema heliocêntrico imaginado por Copérnico, ou na formulação da lei da queda dos corpos. Ali, ele manifestava um pensamento que deveria ter sido o da humanidade inteira e que ia em breve ser incorporado ao saber desta humanidade. Igualmente, a filosofia de Platão ou de Kant não representa a exposição de seus pensamentos pessoais, embora os senhores Platão e Kant os tenham tornado seus. É o itinerário necessário, obrigado, de um pensamento que se submete aos imperativos universais do raciocínio e de que cada um de nós, ao lê-lo, ao entendê-lo, tentando percorrer o mesmo itinerário, pode se apropriar, recorrendo aos mesmos raciocínios e às mesmas experiências do pensamento. Eis que chegamos às mais altas formas da experiência humana do pensamento. São aquelas que cada um pode experimentar por não ser ninguém específico, são as experiências do pensamento racional. Quais são, porém, seus grandes gêneros? Com outras palavras: quais são as grandes atitudes possíveis do pensamento humano? Quais são as maneiras mais genéricas que o pensamento tem de se vincular ao mundo?

Num trecho da Metafisica, Aristóteles nota: “todo pensamento racional é teorético, prático ou poiético”[5]. Isso significa que existem três grandes tipos de experiências do pensamento racional. Vejamos em cada caso em que consiste essa experiência.

Sou uma criança. Estou sozinho, à noite, olhando para o céu estrelado. Admiro a abóbada celeste, eu gostaria de entender o que são todos estes pontinhos luminosos: será que são deuses? Pedras? Fogos? Eu também queria entender o que são estes astros maiores, por que eles se movem com tamanha regularidade, quando nada parece levá-los a isso, por que outros parecem não seguir o mesmo ritmo? Dividido entre a admiração e a preocupação, eu ficaria satisfeito se soubesse responder a essas duas grandes perguntas: O que é? Por que acontece assim? Minha experiência de pensamento é “teorética”.

Sou uma criança e disponho de blocos de terra ou de massa de modelar. Espontaneamente, imagino o que posso fazer com isso: cilindros ou bolas bem regulares que eu tenho prazer em modelar da maneira mais regular e harmoniosa possível, e formas que imitam ou representam objetos conhecidos, “homenzinhos”, casas, e também talvez coisas úteis, vasos que poderiam conter flores, uma cumbuca para beber. Eu ficaria satisfeito se conseguisse fazer algo de belo ou de útil com essa matéria bruta. Minha experiência de pensamento é “poiética”. Sou uma criança e vejo ao meu lado uma mãe de familia que distribui fatias de bolo a um grupo de crianças. Vejo uma criança mais magrela que é visivelmente o alvo das zombarias das outras crianças e para a qual a mãe não dá nenhuma fatia. Ela está chorando. Dividido entre o desejo e o medo de intervir, tenho um sentimento de injustiça e até de revolta. Eu gostaria de mudar a situação. Eu ficaria satisfeito se eu, ou alguém, pudesse agir para restabelecer o que me parece ser a ordem justa. Minha experiência de pensamento é “prática”.

Essas três experiências de pensamento da criança também são as da humanidade. Na sua forma elaborada, abstrata, genérica, anônima, conceitual, elas se tornam as três grandes atitudes do pensamento diante do mundo. Existe a experiência teorética: é a da ciência e da filosofia; trata-se de entender a realidade, de explicar a natureza e o mundo para satisfazer à necessidade humana, meramente humana, de saber. Existe a experiência de pensamento poiética: é a da arte e da técnica; trata-se de fabricar, de confeccionar algo novo (de belo ou de útil) a partir de um material natural dado. Existe a experiência de pensamento prática: é a da moral e da política; trata-se de agir para transformar uma realidade insatisfatória em função de valores ou de normas universais.

O pensamento teorético supõe que o real seja deixado tal como está, para poder apreendê-lo assim pelo pensamento. O que nós pensamos é o que é – o “ser”. No pensamento teorético, estou diante do mundo e, por assim dizer, fora do mundo para melhor vê-lo, admirá-lo, entendê-lo. O mundo assim: constato isso, me surpreende, porém me contento com isso. Ele não é insatisfatório, portanto, não procuro nem melhorá-lo nem transformá-lo; ele é simplesmente surpreendente e até admirável, como o céu estrelado ou como um ser vivo cujo coração está batendo. Mas por que o céu é estrelado? E por que um coração bate?

A experiência de pensamento teorético combina dois pensamentos. Uma admiração, uma espécie de pausa do pensamento diante do ser: “Olhe só, é extraordinário, é assim”. É a curiosidade inata da criança ignorante ou a curiosidade insaciável do cientista. E também, ao mesmo tempo, uma questão coloca o pensamento em movimento: “Por quê? O que é que faz com que seja assim e não de outro jeito?”. O pensamento teorético é um pensamento “desinteressado”. Daí se tratar de um pensamento “de luxo”, por assim dizer. Se eu tenho uma mente teorética, quero entender o que é a água e por que ela evapora ao ferver ou se solidifica ao gelar. Mas isso somente se eu não estiver com sede! Pois se eu estiver sedento, a água nada mais é do que “boa para beber” e não “boa para pensar”. Do mesmo jeito, se eu estiver faminto, vai ser impossível olhar uma fruta ou um peixe com um olhar desinteressado. Quero simplesmente comê-los, isto é: possuí-los, fazer da sua carne minha própria carne, transformá-los em mim mesmo, para resguardar minha vida. Não é todo mundo que goza do luxo de poder experimentar um pensamento puramente teorético. A fome não é uma experiência de pensamento. É a experiência insuportável de uma carência física que impede de pensar.

Ao contrário disso, o pensamento prático e o poiético procuram não entender a realidade, mas transformá-la. O objeto desses pensamentos não é o ser, mas o não ser. Porém, não do mesmo jeito.

O pensamento poiético começa por uma constatação negativa: “Algo não vai bem”. Não é o mundo, sou eu. Falta-me algo. Tenho uma necessidade que preciso satisfazer. O mundo exterior me convém, pois ele pode servir para suprir essa carência interior, contanto que eu possa transformá-lo, que eu o molde à minha imagem, à imagem do que eu sou, do que eu quero. Assim faz a criança, que torna presente sua mãe ausente representando-a através de um desenho. Assim faz o artista que pinta, que esculpe, que conta, que representa através de qualquer suporte, que transforma uma matéria bruta para dar-lhe uma forma familiar. Assim também procede o pensamento técnico: fazer fogo com pedrinhas, confeccionar roupas com lã ou algodão, obter algodão a partir de plantas, construir uma casa para se abrigar, fabricar sapatos para andar, medicamentos para acalmar a dor ou curar ferimentos. A experiência do pensamento poiético também é dupla. Primeiro, uma parada, pensar: “Não, não estou satisfeito” e depois pensar: “Eu poderia estar aquecido, ter um abrigo, não sentir mais dores nos pés se eu fizesse outra coisa com esta terra, com estes pauzinhos, com estas plantas”. Consideramos a natureza tal como está, mas, ao contrário do pensamento teórico, a tomamos como uma simples matéria a ser moldada, para que corresponda aos nossos desejos e às nossas necessidades: o frio, a fome ou até simplesmente a necessidade para o homem de fazer de um mundo estranho ou hostil um mundo familiar, à sua própria imagem e, portanto, de modelar um objeto natural para imprimir-lhe sua marca própria. Como disse Hegel, na arte ou na técnica, o homem age “para despir o mundo exterior do seu caráter fundamentalmente estranho e para reconhecer a si mesmo na forma das coisas… Vejam as primeiras impulsões da criança: ela quer ver coisas que ela própria criou”.

Passemos à experiência do pensamento prático. Como o pensamento poiético, ele começa por uma constatação negativa. “Algo não vai bem.” Porém, desta vez, não sou eu, mas o mundo. No pensamento prático, o homem depara com algo exterior a ele mesmo que lhe parece detestável, insuportável: “É injusto!”. Ou seja, o ponto de partida da experiência de pensamento prático é um “não” ao mundo. A experiência do pensamento prático começa não comigo – como no pensamento poiético -, mas com o mundo – como no pensamento teorético. Todavia, ao contrário deste, ela não é um “sim”, “Que o mundo seja assim! (Amém)”, mas um “o mundo não é aquele que deveria ser”: olhe a colheita perdida, a criança maltratada, os homens explorados! Não é mais a constatação surpresa, admirativa diante do ser; é uma queixa, um protesto ou um grito de revolta. Mas a experiência do pensamento prático não para neste “não” para o ser. Como no pensamento poiético, esta reação negativa espontânea é completada por um pensamento positivo: o mundo deveria ser outro. Trata-se também, pois, de um pensamento duplo: “não” ao estado real das coisas e “sim” a um estado ideal das coisas. Contudo, ao invés de tomar o mundo como uma matéria que posso transformar em qualquer objeto que poderia satisfazer às minhas necessidades, quero agir no mundo para moldá-lo à imagem do que eu gostaria que ele fosse, à imagem, portanto, que meu pensamento tem do que ele deveria ser. Não basta pensar “é injusto”, é preciso pensar ao mesmo tempo “eis o que tem de ser feito para chegar à justiça”: distribuir a mesma fatia de bolo para cada um, abolir os privilégios desmerecidos, fazer um mundo em que nenhum homem passaria fome etc. Logo, é preciso pensar ao mesmo tempo não a situação existente e sim a uma situação imaginada ou, melhor, concebida. É preciso almejar uma outra situação, uma outra humanidade, um outro mundo – o que supõe que o pensamento disponha de normas (a igualdade, por exemplo), de valores (a justiça, por exemplo), de princípios (não fazer a outrem o que você não gostaria que este lhe fizesse, por exemplo). Assim é o pensamento prático.

As três experiências de pensamento, sejam elas as de um indivíduo, de uma criança ou da humanidade inteira, têm em comum o fato de requererem um duplo movimento do pensamento, um olhar parado no ser ou no sujeito (positivo “é assim” ou negativo “não deveria ser assim”), e um movimento do pensamento, ou seja, um certo tipo de questionamento: “Por que é assim?”, com o desejo de entender ou de saber; “Como poderia ser?”, com o desejo de moldar ou fabricar; “Como deveria ser?”, com o desejo de agir, sozinho ou com outros. Tais experiências de pensamento, cada um de nós pode vivenciá-las diariamente, o tempo inteiro. Ou, melhor dizendo, cada um poderia vivenciá-las. As ocasiões não faltam, porém, na maioria das vezes, não levamos essa experiência de pensamento a cabo. Para satisfazer nosso desejo de saber ou nossa simples curiosidade, uma resposta geralmente nos basta. “O céu está bonito, hoje à noite, ele está desanuviado.” “Ah, e por quê?” Responde-se sem pensar: “Porque o tempo está geralmente bonito nesta estação”. Não aprofundamos mais. Igualmente, a necessidade de melhorar nosso estado se contenta muitas vezes com um gesto automático: está frio demais hoje? Coloco um pulôver. Estou com muito calor? Ligo o ventilador. Igualmente, nossa vontade de agir se satisfaz a maior parte do tempo com um ato ou às vezes até com uma abstenção: um mendigo me pede ajuda; dou-lhe esmola ou finjo não ouvi-lo. E depois não penso mais nisso, é tão corriqueiro.

Nesses três casos, evidentemente, não penso que atrás das minhas reflexões confusas, dos meus gestos automáticos, dos meus atos mecânicos, há toda uma experiência de pensamento além de mim, que é o pensamento humano em geral, anônimo, universal; um pensamento que não depende de ninguém, mas que é apenas o prolongamento indefinido das minhas re-flexões, dos meus atos, dos meus gestos. E estas experiências de pensamento completas se chamam ciência ou filosofia, arte ou técnica, ética ou política.

Assim, por exemplo, atrás do meu pensamento banal sobre o tempo que faz hoje existe na verdade uma ciência, a meteorologia, que estuda os fenômenos atmosféricos (as nuvens, as depressões e as precipitações), ciência complexa que mobiliza a mecânica dos fluidos, mas também outros ramos da fisica ou da química, e que se apoia em modelos matemáticos muito elaborados. E a palavra “meteorologia” vem do grego antigo, em que meteor designa as partículas em suspensão na atmosfera e logos significa discurso ou conhecimento racional. Pois a reflexão sobre o saber racional que chamamos de ciência nasceu no pensamento grego clássico. Atrás do simples gesto de me cobrir se eu estiver com frio ou de ligar o ventilador se estiver com calor, há toda a técnica humana (a domesticação do carneiro, a tecelagem da lã, sem falar da eletricidade) que foi possibilitada por milhares de descobertas e de invenções devidas à engenhosidade humana: em suma, existe uma experiência milenar de pensamento acumulado. E a palavra “técnica” provém do grego techne, que significa know-how, e é à reflexão grega clássica que devemos a reflexão sobre este know-how racional que chamamos de “técnica”. Finalmente, atrás do meu ato banal de dar esmola ou não ao mendigo, há (ou poderia haver) todo um pensamento sobre os deveres de socorrer um ser humano, sobre as consequências de meu gesto (melhorar provisoriamente a situação de um indivíduo? Ou, pelo contrário, incentivar a mendicância?), sobre os princípios do meu gesto (aliviar-me de um sentimento de culpa? Ou, ao contrário, tratar qualquer outro como um igual?) ou sobre as virtudes, por exemplo, sobre a caridade individual, que tem a ver com ética, ou sobre a justiça social, que tem a ver com política. As palavras ética e política também vêm do grego, da palavra ethos, que significa costumes, e de polis, que significa vida em sociedade. E a reflexão sobre as normas, sobre os valores universais das condutas, sejam elas individuais ou coletivas – isto é, a ética e a política -, nasceu no pensamento grego clássico. Eis a experiência de pensamento mais completa que pode haver atrás do meu ato ou da minha abstenção: o pensamento ético ou político.

A filosofia grega clássica teorizou, portanto, estas três grandes expe­ riências de pensamento humano que chamamos de ciência, de técnica, de ética ou de política. Desde a Antiguidade e até os dias de hoje existe uma continuidade. Herdamos do pensamento antigo esses três grandes tipos de experiência de pensamento racional. Contudo, entre a experiência antiga da ciência, da técnica e da política, e o pensamento moderno, também existem rupturas.

A primeira grande diferença é que na Antiguidade clássica, tratava-se de experiências finitas, quando hoje temos experiências do infinito.

Para os Antigos, a ciência é um saber racional acabável. Aquele que “possui” a ciência ou o saber sabe tudo o que é possível saber sobre qualquer coisa. Embora na verdade nenhum homem saiba tudo sobre qualquer coisa, embora nenhuma ciência seja acabada ainda, mesmo assim a ciência sobre algo é por definição acabável. Mesmo que não saibamos tudo hoje sobre a Lua e o Sol, saberemos um dia explicar completamente o que são e por quê se movem daquele jeito, naquela velocidade, naquela distância etc. Dito de outra maneira, a convicção do saber científico antigo baseia-se na possibilidade pelo menos teórica de um saber total e unificado. O modelo do saber é a demonstração matemática, que parte de princípios certos e deles tira todas as consequências possíveis.

A ciência moderna, pelo contrário, é marcada pelo menos desde o século XVIII pela ideia do progresso indefinido. Sabemos hoje que sabemos mais do que ontem, mas também sabemos que nunca saberemos tudo. Não somente porque sabemos que existem limites absolutos ao pensamento humano (nunca conheceremos as primeiríssimas causas, os primeiros princípios: por que existe um mundo, e por que existe este mundo e não outro, e por que existem estas leis da natureza e não outras), mas também porque a condição do conhecimento científico é a divisão entre as diferentes disciplinas científicas (não há uma ciência, mas uma diversidade de ciências heterogêneas); revela-se impossível ou pelo menos não científico ter como intenção reuni-las num só corpus de saber. A ideia de saber total é hoje contraditória com a ideia de ciência. É por isso que desde o advento da Modernidade esta ideia de ciência é associada à de “pesquisa”. Para nós, a ciência é a indefinida “pesquisa científica”. Acontece que, para um grego da Antiguidade, a ideia de “pesquisa científica” representaria uma contradição nos termos. Enquanto uma pessoa pesquisa, significa que ela não faz ciência, ou pelo menos que ela não possui a ciência. É até por causa disso que os céticos, isto é, precisamente aqueles que não acreditam na possibilidade do saber, se definem como “pesquisadores”. É porque acham que a ciência é impossível que eles atribuem ao pensamento a tarefa indefinida de continuar a pesquisar.

É a mesma coisa com a técnica. A essência da técnica é a satisfação das necessidades humanas. Os homens têm carências naturalmente, eles tentam supri-las transformando o mundo. Mas o que se sabe hoje é que as carências humanas nunca serão supridas, porque os progressos da técnica também são indefinidos. Por um lado, eles satisfazem necessidades; por outro, eles não param de criar novas. Eu nunca precisei de telefone celular antes de eles serem inventados. Mas desde que o foram, que se espalharam e que todo mundo, ou quase, possui um, eles se tornaram indispensáveis. Não sentíamos falta deles antes. Porém, eles criaram essa carência; e assim por diante, ao infinito, para as próximas invenções. Acontece a mesma coisa na área da técnica em que os progressos são os mais incontestáveis: a medicina. O desenvolvimento da higiene, da farmácia, da anestesia e da cirurgia permitiu uma significativa redução da mortalidade infantil e um notável progresso da esperança de vida nos países desenvolvidos. Mas sabemos também que a medicina não nos torna imortais. Não existe, portanto, um fim para esse progresso, se é que ele vai continuar.

De certa forma, ocorre a mesma coisa com o pensamento ético e político. O que está claro, mais do que nunca, é que nada mais está claro hoje em matéria de política. Faz duas ou três décadas que não há mais horizonte nítido do que seria o fim, o derradeiro fim da vida política. Houve durante muito tempo o horizonte religioso do fim da história e da redenção humana definitiva; ele cedeu lugar, nos séculos XIX e XX, nas filosofias da história e depois nas utopias revolucionárias, aos sonhos de libertação total do homem, de fim definitivo da exploração do homem pelo homem. Este sonho está adormecido desde que ele se chocou com a realidade.

Como vimos, toda experiência de pensamento ético e político, de fato, se for completa, necessita de dois pensamentos simultâneos. De um lado, uma razão para agir: é o pensamento que diz que o mundo vai mal. Do outro, uma finalidade para a ação: é o pensamento que sabe o que é preciso fazer para que o mundo vá bem. Se eu tiver que resumir a experiência do pensamento político hoje, eu a definiria assim: sabemos bem o que é ruim, nao sabemos muito bem o que seria bom. E até suspeitamos que almejar a todo custo um Bem absoluto, uma libertação total, seria o fim definitivo da história humana, esta esperança, quando tenta quebrar na realidade e não no sonho a história do homem em dois (entre um antes e um depois), causa tantos ou mais males que aqueles aos quais ela pretendia pôr fim. O que faz com que afinal de contas, saber em que consistem as injustiças sem saber definir com precisão ou almejar a justiça absoluta talvez não seja tão ruim: porque talvez nos permita almejar e fazer com que regridam aos poucos injustiças reais aqui ou acolá, em vez de forçar a instauração da Ideia de uma Justiça final. Dá para ver que, na área política pelo menos, a experiência do ilimitado tem vantagens. Ela nos protege contra todos os sonhos de Pureza e de Absoluto que ainda alimentam os terrorismos e as ideologias da redenção.

A segunda grande diferença entre a experiência antiga da ciência, da técnica e da política, e a experiência contemporânea é que esses três tipos de pensamento perderam hoje uma grande parte de sua autonomia.

A autonomia antiga dessas três experiências de pensamento vinha, entre outras coisas, do fato de que os três porquês que as alimentavam eram de natureza diferente. O porquê do pensamento teorético pedia geralmente uma resposta essencialista, ou seja, uma definição, como em matemática: “se soubéssemos o que são realmente a Lua, o Sol e a Terra, saberíamos tudo sobre sua atividade, sua evolução, seus movimentos”. A explicação científica era assim uma causa formal, pelo menos na época clássica de Platão e Aristóteles: é o que são as coisas na sua essência eterna que deve explicar como se comportam. O porquê do pensamento técnico era outro: ele pedia uma resposta em termos mecânicos, ou seja, uma causa motriz. É sabendo como os movimentos produzem outros movimentos, dependendo das matérias que compõem as coisas, que se poderá agir sobre elas e transformá-las à vontade, já que a técnica nada mais é que um determinado movimento exercido sobre materiais. É assim que foi possível conceber empiricamente polias, engrenagens, alavancas, mecanismos diversos, casas que ficam em pé, barcos que flutuam etc. Quanto ao porquê da ética e da política, ele pedia uma resposta em termos de causa final, de objetivo: o Bem, a Pólis justa, o Estado perfeito etc.

Hoje, as três experiências de pensamento perderam sua autonomia. Primeiro, porque a técnica moderna desde o século XVII é cada vez menos empírica, cada vez menos fruto do acaso, do tateamento, da engenhosidade inventiva – e cada vez mais uma aplicação das descobertas científicas. Pen­ semos na medicina, que se tornou científica no fim do século xrx; pense­ mos em todas as aplicações civis ou militares da energia elétrica ou da com­ posição atômica da matéria no decorrer do século XX; pensemos hoje nas biotecnologias, aplicação direta da revolução da biologia molecular, seja na área agrícola, seja na alimentar ou na médica. A experiência do pensamento técnico depende cada vez mais da compreensão científica da natureza. Mas a recíproca é verdadeira: está havendo desde o século XVII uma formidável promoção da causa motriz no campo científico. As ciências da natureza (sobretudo a fisica) vêm concebendo o mundo cada vez mais como uma sequência de eventos ou de movimentos que se encadeiam, e elas querem entender como um dado movimento causa necessariamente aquele outro movimento (ou outra reação) de acordo com leis constantes. Foi assim na verdade que o pensamento científico passou a raciocinar a partir do modelo de pensamento técnico. Dá para entender por que o pensamento científico e o pensamento técnico muitas vezes se embaralham, e por que entender como “funciona” o mundo significa muitas vezes se perguntar como transformá-lo em nosso beneficio. Logo, tornou-se dificil hoje dizer se a medicina é uma ciência ou uma técnica. Do mesmo modo, quem poderia dizer, na conquista espacial dos anos 1960 e 1970 e nos seus prolongamentos atuais, o que dizia respeito à ciência (entender melhor nossa situação no universo), o que dizia respeito à técnica (instalação de satélites artificiais em órbita geoestacionária com fins civis ou militares) e o que dizia respeito à política (rivalidade Estados Unidos-União Soviética durante a guerra fria)? E mesmo se a maioria dos cientistas em muitas áreas, por exemplo, na matemática ou na fisica quântica, são motivados apenas pelo eterno desejo de saber, é preciso convir que a maioria dos laboratórios de pesquisa, seja em física, biologia ou a fortiori em informática, são financiados por uma pesquisa privada que conta, evidentemente, com desdobramentos tecnológicos em termos de patentes industriais. E até as pesquisas mais importantes com financiamento público dependem obrigatoriamente das políticas das grandes nações.

Em tais condições, não é de surpreender que os laboratórios de pesquisa farmacêutica – sejam eles privados ou públicos – trabalhem mais para desenvolver medicamentos de conveniência para os habitantes dos países ricos do que para lutar contra a malária, que mata uma criança a cada trinta segundos na África e entre um milhão e três milhões de pessoas por ano, segundo estimativas da OMS, porém todas elas nos países pobres, que são completamente dependentes da medicina dos países ricos para seu aprovisionamento farmacêutico.

Logo, fica patente que se o pensamento científico e o pensamento técnico perderam um pouco de sua autonomia um em relação ao outro, eles também perderam qualquer autonomia em relação à política, seja ela doméstica ou internacional. Seu desenvolvimento depende das políticas dos governos e de suas prioridades orçamentárias. Não devemos, portanto, incriminar nem o pensamento técnico nem o pensamento científico pelos males do nosso planeta. O pensamento científico em si nos permitiu entender cada vez melhor nosso mundo e a natureza, ele fez com que a superstição, os preconceitos e inúmeras concepções arcaicas recuassem. Nem devemos incriminar o pensamento técnico: ele permitiu a emancipação do homem, a conquista da natureza, o progresso médico. Não é a técnica que assola os povos da África que morrem de aids ou de tuberculose, como todos os que, no mundo inteiro, passam fome. Pois é justamente o pensamento técnico que permite hoje tratar a aids ou curar a tuberculose e ele poderia fazer com que sete bilhões de seres humanos comessem. O escândalo é precisamente que essas técnicas não chegam até eles. Eles não sofrem por causa da técnica, mas pela sua ausência. O problema não é nem um pouco técnico, mas político. O que o espetáculo da ciência ou da técnica contemporânea nos inspira não é a sua potência ilimitada nem a sua impotência, é antes a impotência ou a potência ilimitada da política.

O pensamento político às vezes peca pelo excesso de potência quando substitui a religião querendo estabelecer imediatamente na terra a Pureza, o Absoluto, o Ideal, em vez de decidir combater os males reais. A política às vezes peca pela impotência quando esquece sua própria finalidade, que é o único valor em que se baseia a vida em comum entre os homens: a justiça.

E se eu tiver de advogar, nesta conclusão, em favor das experiências de pensamento de amanhã, eu defenderia a ideia de uma ciência que fosse novamente autônoma e resgatasse o sentido do puro desejo de saber; a ideia de uma técnica que também redescobrisse seu sentido, suprir necessidades humanas, e em primeiro lugar onde elas são as mais gritantes; e a ideia de um pensamento político autônomo, ele também, que definisse seus próprios meios a partir da única finalidade concebível para a vida política: a justiça.

Notas

  1. Ver Francis Wolff, “As quatro concepções do homem”, in A condição humana: as aventuras do homem em tempos de mutações, São Paulo: Edições SESC SP/Agir, 2009, pp.37-73. 
  2. Ver Joelle Proust. “Autocontrole: em direção a um novo homem?”, in A condição humana: as aventuras do homem em tempos de mutações, ed. cit., pp. 341-373. 
  3. Ver em particular, hoje, David J. “Chalmers, The Conscious Mind”, in Search of a Fundamental Theory, Oxford, New York: Oxford University Press, 1996. 
  4. Descartes. “Méditation seconde”, in Méditations métaphysiques,1x. 22, Paris: Adam-Tannery, 1983. 
  5. Aristóteles, Metafísica, livro épsilon, capítulo 1, coluna b, linhas 24-25, p. 1025. 

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