1988

O que Seurat será?

por Paulo Sérgio Duarte

Resumo

O abandono da pintura monumental, a preferência pelos formatos menores, o desprezo pelo tema, a busca direta da natureza através da pintura ao ar livre são princípios comuns aos fundadores do Impressionismo.

Seurat, já em sua primeira pintura importante, parte de uma reflexão sobre essa experiência impressionista. Une baignade, Asnières é uma pintura de passagem do Impressionismo à uma nova técnica. Em comum com o Impressionismo, o tema de uma cena ao ar livre, sem maior importância. É na pintura da grama e na superfície líquida do rio, que se anuncia a futura técnica e a aplicação atual do princípio da mistura ótica e das leis de contraste simultâneo.

Estabelecendo uma relação estreita entre a prática pictórica, as teorias da percepção e as leis óticas da visão, Seurat fixa as novas teorias cromáticas recuperando o problema da relação entre arte e ciência rompida desde o século XVI.

No ano que termina Une baignade, Asnières, Seurat inicia os trabalhos preparatórios para Un dimanche après-midi à l’ile de la Grande Jatte, sua obra mais conhecida. Considerada a obra inaugural do neo-impressionismo, Un dimanche après-midi à l’ilê de la Grande Jatte surge da radicalização do problema impressionista: o que alcança o olhar não são linhas, traços ou manchas de cor, mas relações cromáticas.

Figuras humanas e elementos naturais se superpõem a eixos traçados para organizar o quadro e nenhum movimento, nenhum elemento, perturba essa ordem. Economia que conduz à abstração.  São retirados elementos não essenciais; o efeito de profundidade não obedece às regras da representação em perspectiva, expande o campo de visão na superfície da tela. No lugar da mítica pincelada, pequenos pontos aplicam a técnica para se obter a síntese cromática na retina. Pontos justapostos que contêm as cores componentes da cor final obtida quando o quadro é olhado a uma determinada distância. Essa é a matéria-prima da técnica que será chamada de “pontilhismo”.

Seurat assume e explora os limites impostos pela modernidade. Se a unidade não é mais possível no conhecimento ela continua a residir no objeto real e o real, agora, é a própria pintura. Até Cézanne e Seurat, a arte tinha sido variações sobre a metáfora do olhar de uma cena imaginária ou de uma cena real. Seurat constrói o seu quadro como uma máquina de dissecação do olhar, um instrumento analítico.


A memória de Fausto Alvim Júnior, matemático, poeta e amigo.

I

Dois artistas, cujos trabalhos se desenvolvem, principalmente, na segunda metade do século XIX, condensam questões que serão exploradas na arte do século XX: Cézanne (1839-1906) e Seurat (1859-1891). Suas obras, como portas basculantes entre os dois séculos, saturam e radicalizam de tal forma o campo de problemas do Impressionismo que este não poderá mais contê-las. Além desse elemento comum, a comparação entre as duas obras é desproporcional e, num certo sentido, estas se opõem. O trabalho de Cézanne, no início, é de resistência ao Impressionismo, retoma traços românticos tanto na forma pictórica quanto na temática, para depois se transformar numa longa pesquisa e experiência que resultam na mais profunda operação de ruptura com os princípios que governavam a arte no Ocidente desde a Renascença. Cézanne não será líder de escola nem participará de grupos; ao contrário, retraído e pouco dado a encontros sociais, o mais importante de seu trabalho se realiza longe de Paris, na região de sua Aix-en-Provence natal. Para inaugurar um continente, sobre o qual serão delimitados diversos territórios da arte européia do início do século XX, sua existência é inteiramente possuída pelo trabalho, num árduo processo descrito por Merleau-Ponty num ensaio cujo título sintetiza o motor do seu método: “A dúvida de Cézanne”. O mesmo filósofo dirá que “A incerteza e a solidão de Cézanne não se explicam, no essencial, pela sua constituição nervosa, mas pela intenção de sua obra”.[1]

No seu curto tempo, a obra de Seurat se apresenta de modo diametralmente oposto. Seus primeiros trabalhos significativos partem de uma reflexão sobre a experiência impressionista já amadurecida na época de sua formação acadêmica na Beaux Arts (1878-1879), onde foi aluno de um discípulo de Ingres. Salvo o interregno do serviço militar (nov. 1879-nov. 1880) em Brestquando tem o primeiro contato com a paisagem marinha —, passará toda sua vida em Paris. Como Cézanne, era igualmente avesso à vida mundana e pouco comunicativo, mas manteria, no entanto, um tipo de contato com seus contemporâneos que lhe permite se afirmar precocemente como um líder de “escola”, conseguindo atrair, entre outros, Pissarro (1831-1903), um dos pioneiros do Impressionismo. Desenvolve um trabalho que evidencia uma estratégia, uma teleologia mesmo, e parece ter um objetivo desde o princípio. Este se realiza passo a passo de modo sistemático, rigoroso e controlado, durante os poucos dez anos de duração. Seu motor não é a dúvida, mas uma certeza: a fé na ciência como capaz de conduzir a uma técnica diretamente deduzida dos princípios teóricos.

II

O abandono da pintura monumental e a preferência pelos formatos menores, o desprezo pelo tema, sobretudo os históricos e mitológicos, a busca direta da natureza através da pintura ao ar livre com a intenção realista mas procurando retratá-la através de relações puramente cromáticas, são princípios comuns aos fundadores do Impressionismo. À excessão de Degas que resiste à paisagem e se dedica sobretudo a pintar personagens em interiores, tanto Monet, como Renoir, Pissarro e Sisley, se dedicam a longas sessões ao ar livre onde o que buscam é menos a paisagem externa, como pode parecer a um observador superficial, do que a sensação visual. Este é o novo “tema” e conteúdo a determinar a forma. Nesse mundo não será mais possível a ordem centralizada e a representação majestática, carregada de referências clássicas, de um jápiter implorado por Tétis de Ingres (1780-1867). O movimento e a emoção contidos em A morte de Sardanapalo de Delacroix (1798-1863) estarão igualmente apagados. Nem mesmo as nuvens de um Corot ou os campos de Daubigny ou Courbet terão mais lugar na pintura impressionista. A relação mais próxima será com Manet (1832-1883) que havia abandonado o efeito ilusório do claro-escuro para representar a luz e modelar a figura. Nos famosos Déjeuner sur l´herbe (208 X 264,5 — 1863) ou Olimpia (130, = 5×190 — 1863) a luz vem de todos e de nenhum lugar porque esta emerge da tela segundo as exigências estruturais do próprio quadro e revoluciona as relações entre figura e fundo, entre as coisas e o espaço que as contém, sublinhando na sua “artificialidade” o ato intelectual de construção da imagem na superfície. A busca da sensação visual dos impressionistas também participava desse partido: o cenário da pintura começa e termina na superfície da tela. Não se trata de representar algo que está fora e trazê-lo para dentro do quadro, mas de transportar a consciência imediata da percepção de uma imagem para o gesto pictórico. Daí o abandono da técnica do impasto pelas pinceladas curtas e imprecisas, tão incertas e fugidias quanto as luzes refletidas, seja pelas mudanças atmosféricas, seja pelo simples passar das horas e a mudança da posição do sol. O que alcança o olhar não são linhas, traços ou manchas de cor, mas relações cromáticas que serão transferidas através da pintura para a tela. Da radicalização desse problema surge o movimento neo-impressionista de Seurat.

Manet e os impressionistas haviam indicado a bidimensionalidade da tela como cena exclusiva da pintura, não há mais espaço para a exibição de valores imutáveis capazes de revelar para sempre a essência dos seres e coisas representados numa rígida composição, nem para a manifestação do drama das emoções exibindo a psicologia de personagens. Ali se processa o conhecimento da arte na pintura, todo e qualquer elemento externo passa a ser mero pretexto para o ato intelectual de pintar, por isso a escolha dos temas banais, das naturezas-mortas, do prosaico cotidiano. A pintura não narra, nem comemora, nem mesmo representa no sentido romântico ou realista do termo. O Sujeito do Impressionismo não é mais o Sujeito da Representação no sentido clássico, ele capta sensações visuais. Mas ainda mantém uma relação de caráter poético com a Natureza no ato de transferir para a tela as sensações. Esta relação será o objeto de crítica e transformação na obra de Seurat, exigindo uma nova postura diante dos princípios que estruturam e organizam um quadro. A liberdade poética dos impressionistas implica numa relação difusa e distante com os fundamentos positivos da teoria da cor. Seurat toma como necessária uma relação estreita e rigorosa da prática pictórica com as teorias da percepção e as leis óticas da visão estabelecidas por físicos como Helmholtz e Dove. Fixa-se, particularmente, nas novas teorias cromáticas que foram estabelecidas por Chevreul (De la loi du contraste simultané des couleurs, Paris, 1839) desde a primeira metade do século aquelas mais tarde desenvolvidas por Charles Blanc (Grammaire des arts du dessin, Paris, 1867), Ogden Rood (Modern Chromatics, New York, 1879) e David Sutter (Les phénomènes de la vision, artigos in L’Art, 18 de janeiro a 14 de março de 1880). Estava reposto, assim, por Seurat e pelo movimento que ele inaugura, o problema da relação entre arte e ciência.

III

Uma das angústias modernas é provocada pela perda da unidade da cultura desde a separação entre os campos de conhecimentos da arte e da ciência. O mundo a que pertence Seurat não mais permitirá recompor essa unidade que encontra seu paradigma na Renascença, quando prática artística e prática científica constituíam momentos de um mesmo processo e de certo modo se confundiam sob o mesmo Sujeito Humanista. Mais do que isso, os grandes princípios da teoria da arte do quattrocento foram erigidos tendo por base a pesquisa científica com o fim de fundamentar a prática artística.

O olhar renascentista é uma verdadeira subversão da visão medieval, resultado de uma mudança que transformara profundamente o quadro histórico-social. O artista medieval possuía uma visão do mundo que ele reproduz em suas imagens, essa visão é a sua verdade, e sua arte procura ilustrá-la, segundo princípios que não têm compromissos com a realidade natural e externa das coisas. Panofsky dirá que “A Idade Média não julga uma pintura ou uma escultura em relação ao objeto natural que elas procuram imitar, mas, sobretudo, em relação ao processo de elaboração que presidiu sua existência, quer dizer, em relação à projeção da “idéia” — existente no espírito do artista, mas não “criada” por ele — em uma substância visível e tangível. O pintor de mestre Eckhart, místico dominicano alemão, pinta uma rosa como Dante descreve um anjo, não segundo a natureza, mas segundo a “imagem que tem na sua alma”; e, em casos excepcionais onde se considerava o processo das artes de imitação em relação a um modelo visível, esse modelo se concebia, então, menos como um objeto natural do que como um “exemplo” ou como uma “réplica” — quer dizer, como uma outra obra de arte elevada ao nível de protótipo”.[2] Para o artista medieval tanto fazia uma outra imagem já ilustrada por outro artista, quanto uma imagem natural, como a “ideia” do objeto, todas podiam gozar do mesmo estatuto de modelo para o seu trabalho. Nessas circunstâncias a reflexão sobre as práticas se restringem aos manuais sobre técnicas e procedimentos sempre presos a casos particulares. Os diversos tratados medievais conhecidos não estabelecem diferenças nem hierarquias entre as “belas artes” e as atividades mais humildes do artesanato e ofícios. Não há, tampouco, necessidade de erigir uma teoria científica, isto é, construir princípios e leis gerais elaborados a partir da observação e da experiência de diversos casos particulares, capazes de explicar e orientar situações não previstas.

A cultura da Renascença não permitirá mais a visão medieval com sua multiplicidade de relações com o modelo que tanto poderia ser um fantasma, uma quimera ou outra imagem qualquer. A Renascença tem Um Modelo: a Natureza. Para imitá-la será necessário Um Olhar capaz de conhecê-la. Representar um objeto implica, primeiro saber o que ele é, conhecer sua estrutura íntima. Se este objeto é um céu noturno é necessário pesquisar o que são os astros e o que é o céu; se uma tempestade, o que é esse fenômeno atmosférico; se um corpo humano, conhecer sua anatomia — por isso os artistas renascentistas, bem antes dos médicos, praticarão a dissecação de cadáveres. Segundo, põe-se o problema de como reproduzi-los. A reprodução, atentendo às novas exigências, será sua representação direta e fiel, portanto, verdadeira. Conhecimento da matéria e da forma estão na base da estética renascentista e a arte passa a ser “[…] um processo de conhecimento cujo fim não é tanto o conhecimento da coisa mas o conhecimento do intelecto humano, da faculdade de conhecer.[…] a forma é representação dos fenômenos e fenômeno em si mesma, é fenômeno absoluto, chave para entender o mundo dos fenômenos.[3]

Enquanto a ciência se mantinha presa aos dogmas doutrinais e subordinada à teologia, o Humanismo encontra na arte o campo livre para explorar o conhecimento da Natureza sem o confronto com princípios sagrados. O conhecimento da arte tem um fim imediato que parecia esgotá-lo: dar instrumentos ao artista na sua tarefa de melhor imitar a obra do Criador, mas sempre limitado pela finitude de sua condição humana. Afinal, não era sobre o espaço finito da tela que ele iria representar a ilusão do ponto de fuga, vértice projetado da pirâmide visual? Não é sobre os limites da pedra ou do molde, matérias mortas, que ele vai procurar imitar seres vivos na escultura? A ciência da arte pode se expandir e explorar outros campos do conhecimento sem provocar a Igreja, guardiã dos dogmas da fé.

O Humanismo renascentista ordenará os conhecimentos no tempo e no espaço. O passado da antiguidade clássica, tomado como ideal, detém os valores que a nova cultura deve fazer renascer, para conhecê-los e situá-los na correta distância que os separam do presente quattrocento, é preciso distribuir racionalmente os fatos ao longo do tempo, a história será a disciplina que selecionará o necessário do irrelevante, e procurará seu encadeamento lógico. A essa disciplina da distância temporal corresponde uma da distância espacial: a perspectiva. Esse novo universo é relacional, onde os objetos estão representados no espaço a partir de razões e proporções passíveis de serem traduzidas em medidas. A ciência da perspectiva deve fazer corresponder o pensamento da imagem ao que o olho percebe, é antes um ato mental segundo um conceito íntegro e indivisível de representação do espaço do que uma tentativa de captar as sensações visuais. É um conceito determinando o modo de perceber e representar, é mais conceptum, produto de concepção intelectual, do que perceptum, algo colhido ou recebido pelos sentidos. Os objetos naturais existem no espaço, é preciso da mesma forma organizar racionalmente a representação da Natureza, tal como a história organiza o conhecimento da Humanidade, e “(…) como o mundo é natureza e humanidade, perspectiva e história se integram e formam, juntas, uma concepção unitária do mundo”.[4]

A relação entre arte e ciência na Renascença é, portanto, bem diferente da situação moderna na qual deve se situar Seurat. As primeiras grandes descobertas científicas do quattrocento, devem-se à arte e será um artista — Leonardo (1452-1519) — que terá a primeira ideia de aplicação da matemática à natureza, abrindo o caminho para uma ciência capaz de estabelecer leis. Leonardo se encontra na fonte da futura ciência clássica, sobretudo daquela que nascerá a partir de Galileu (1564-1642), ao lançar as bases de uma ciência autônoma e da futura cisão entre os dois campos.

IV

O homem contemporâneo, em permanente contato com conquistas da ciência e da tecnologia, dificilmente pode imaginar o significado do esforço do artista-cientista do quattrocento numa época em que, para citar apenas um exemplo de Lenoble, “[…] o instrumento mental do cálculo ainda é gravemente imperfeito. O uso dos algarismos chamados arábicos ainda não havia se generalizado na Renascença. Ora, tente-se somente dividir, MDCXXII por VI”.[5] O mundo de Seurat é bem mais próximo do mundo que vivemos que daquele de Leonardo. Não apenas a unidade entre arte a ciência está rompida desde o século XVI, mas a própria unidade da ciência capaz de ser pensada por Laplace no século XVIII não é mais possível ser reestabelecida.

Kant (1724-1804) — o último grande filósofo a construir um sistema fundamentado na unidade da ciência clássica — pôde elaborar sua teoria do conhecimento baseado na hipótese da existência de duas intuições puras, isto é, “todas as representações nas quais não se encontra nada que pertença à sensação”,[6] o espaço e o tempo. Essas intuições puras ou categorias a priori, do entendimento humano que deveriam servir de base a todas as outras intuições encontravam sua legitimidade científica no espaço tridimensional euclidiano, o mesmo que permitia a construção da perspectiva renascentista e sobre o qual repousavam as explicações de mudanças de matéria e dos movimentos dos corpos segundo os princípios da mecânica newtoniana. As invenções e descobertas do século XIX obrigam a traçar limites de validade dos conceitos da geometria de Euclides e da física de Newton, destruindo sua universalidade e obrigando à revisão do sistema kantiano do conhecimento. A pureza do edifício da ciência não restará intacta a partir das geometrias não euclidianas baseadas no abandono do 5° postulado dos “Elementos”, conhecido como o “postulado de Euclides” ou postulado das paralelas. Mas estas construções matemáticas permaneceriam ainda muito tempo sem aplicações à física. Coube, primeiro, ao desenvolvimento das teorias ondulatórias da luz, introduzindo a noção de campo eletromagnético, verificar um tipo de comportamento da matéria onde não se aplicava o conceito euclidiano de espaço.[7]

A unidade da ciência não será fraturada apenas pelos princípios clássicos contrariados. Há, igualmente, uma vertiginosa difusão das especialidades com o surgimento de inúmeros campos de conhecimento novos. Terminava a época do sábio universal e o século dos enciclopedistas e começava o mundo dos especialistas. O século de Ricardo e Marx, de Darwin e Mendel, assiste à mais profunda transformação da Europa desde a Renascença, com a presença hegemônica das duas novas forças sociais — Capital e Trabalho — e suas possibilidades, pela primeira vez na história da humanidade, de realização do projeto esboçado desde o mercantilismo: expansão em escala planetária do capitalismo. É um tempo de fé cega no progresso e para conquistá-lo a ciência e a técnica se encontram no posto de comando, assegurando o triunfo da Razão.

Ainda hoje, o espírito filisteu que reclama da multiplicação dos ismos na arte e seu consequente hermetismo demonstra ignorar a própria época que vive e a natureza necessariamente fragmentada do Sujeito da Modernidade. Seurat participa desse mundo e acredita que, partindo das teorias mais recentes sobre a cor, poderá construir uma espécie de escala bem temperada dos tons cromáticos.

V

A primeira pintura importante de Seurat, Une baignade, Asnières é uma pintura de passagem do Impressionismo à nova técnica.

Figura 1. Georges Seurat, Une Baignade, Asnière
Figura 1. Georges Seurat, Une Baignade, Asnière

Embora os estudos a óleo preparatórios sejam tributários do movimento precedente, o resultado final já evidência e aplica os princípios teóricos que haviam sido objeto de estudo e reflexão do jovem pintor. Trata-se de uma grande tela representando uma cena de banhistas à margem do Sena, em Asnières, nos arredores de Paris. Em comum com o Impressionismo possui o tema de uma cena, sem maior importância, ao ar livre, trata-se, no entanto, de um trabalho de estúdio precedido de diversos esboços em crayon conté além dos óleos já citados, elaborados no local. Sua composição contraria o movimento e a liberdade antes encontrada num Monet ou num Degas, por exemplo, e tende a uma simplificação onde predominam verticais, uma grande horizontal ao fundo acompanhando a linha da ponte, e algumas diagonais: dominando a do corpo do personagem estendido sobre a grama e a da margem do rio, como se estas determinassem o ângulo de variação de todas as outras poucas diagonais presentes. Nesse trabalho, é na pintura da grama e, sobretudo, da superfície líquida do rio, que se anuncia de forma mais evidente a futura técnica e a aplicação atual do princípio da mistura ótica e das leis de contraste simultâneo.

O princípio da mistura ótica, decisivo para o neo-impressionismo, está claramente exposto por Rood, um dos teóricos cuja obra foi objeto de estudo de Seurat. O físico explica dois modos opostos e governados por diferentes leis de se obter uma determinada cor: o princípio aditivo baseado na mistura de luz e o princípio subtrativo de mistura de pigmentos. Ele demonstra, através de diversas experiências com os discos de Maxwell, que o princípio aditivo obtém uma maior luminosidade, enquanto a mistura de pigmentos ou princípio subtrativo tende para o negro na medida em que se acrescentam os diferentes tons. “Enquanto se estende neste assunto, descreve muitas outras técnicas de mistura colorida de luz (além do disco de Maxwell e da projeção de raios de luzes coloridas sobre uma tela), incluindo uma inventada por Mile que foi de especial interesse para Seurat e seus amigos: de acordo com Mile, pequenos pontos de cor colocados próximos uns aos outros, quando olhados à distância, alcançavam os mesmos efeitos que as misturas obtidas através da rotação de discos ou da projeção de raios coloridos de luz.”[8]

Ainda em 1884 — quando conclui Une baignade e tenta mostrá-lo no Salão oficial e é recusado —, Seurat inicia os trabalhos preparatórios para aquela que se tornará sua obra mais conhecida: Un dimanche après-midi à l’ile de la Grande Jatte.

Figura 2. Georges Seurat, Un Dimanche Aprés-Midi à l'île de la Grande Jatte
Figura 2. Georges Seurat, Un Dimanche Aprés-Midi à l’île de la Grande Jatte

Esta é a obra de ruptura e inaugural do Neo-impressionismo, termo forjado pelo crítico que se tornará o teórico do movimento, Félix Fénéon. Ela será exibida pela primeira vez na oitava e última Mostra Impressionista, organizada por Berthe Morisot e seu marido, irmão de Manet, em 15 de maio de 1886, propositalmente, junto com outros trabalhos do grupo, então composto por Paul Signac (1863-1935), Dubois-Pillet (1846-1890), Camille (1831-1903) e seu filho Lucien Pissarro (1863-1944). Essa participação não é pacífica, enfrentando a resistência de diversos artistas, e só foi possível graças à intermediação de Pissarro. Ainda mais polêmica foi a repercussão junto ao público e à crítica, conquistando, além da aliança com o crítico Félix Fénéon, somente a simpatia do grupo dos XX de Bruxelas, criado em 1884 por vinte jovens artistas com o único objetivo de promover a nova arte sem maiores programas doutrinários.[9]

Ainda que fosse a única obra de Seurat, La grande Jatte entraria na história da arte. Aquela tarde de domingo nunca foi realmente observada. Durante dois anos, foi inventada e construída no atelier, a partir de numerosos estudos em desenhos e em óleos sobre madeira que acompanhavam a elaboração do trabalho principal. Um olhar mais descuidado vê nesse processo uma retomada de hábitos acadêmicos já abandonados pelos impressionistas. A estrutura da composição é extremamente simplificada, aprofundando o curso já evidenciado em Une baignade, figuras humanas e elementos naturais se superpõem a eixos traçados para organizar o quadro e nenhum movimento, nenhum elemento, perturba essa ordem. Essa economia, que depura ao extremo, conduz à abstração onde são expurgados todos os elementos não essenciais; o efeito de profundidade, ainda existente, não obedece às regras da representação em perspectiva, apenas expande o campo de visão na superfície da tela. A essa macro-organização do espaço pictórico corresponde um análogo procedimento no detalhe que tornou famoso Seurat e seus seguidores: a mítica pincelada, objeto de culto em toda história anterior da pintura e especialmente venerada pelos impressionistas, é abolida. No seu lugar pequenos pontos aplicam a técnica recomendada por Mile, no livro de Rood, e por Charles Blanc, para se obter a síntese cromática na retina, ou, como dirá Gombrich, “no cérebro”, e não mais na superfície através da mistura de pigmentos. Assim, as cores percebidas não se encontram “realmente” pintadas, os pontos justapostos contêm as cores componentes da cor final obtida quando o quadro é olhado a uma determinada distância. Da paleta de Seurat estão, agora, banidos os tons terra e o preto, porque, segundo as teorias da mistura ótica, estes podiam ser obtidos através de outros componentes, além de não estarem presentes no espectro solar. Ele trabalha com onze tons do espectro prismático em plena intensidade, distribuídos separadamente no sentido longitudinal da paleta. Abaixo dessa primeira linha de distribuição dos tons “puros” se encontram os mesmos tons mais claros, misturados ao branco; por final, uma terceira linha paralela de tintas distribui ordenadamente o branco puro, para cada um dos tons coloridos de intensidade variável que se encontram nas duas linhas acima. Essa a matéria-prima da técnica que será chamada de “pontilhismo”. Vê-se o quanto foi caricatural a idéia que persistiu durante muito tempo de que todos os efeitos cromáticos obtidos por Seurat partiam da combinação de algumas poucas cores, incluindo as primárias. Não só sua paleta variava do vermelho ao violeta como, explorando onze tons, excedia em muito a de diversos pintores impressionistas que trabalhavam com cinco ou seis tons.[10] É necessário lembrar que a experiência que passava a ser chamada de “pontilhismo” já havia sido realizada antes na pintura e Seurat seguramente a observou em detalhes de obras de mestre que ele estudava, mas antes nunca ocupava mais do que pequenas áreas e nunca chegou sequer a chamar maiores atenções em relação às outras técnicas combinadas. O novo era tomá-la como base homogênea, meticulosamente empregada para a elaboração cromática numa tela de mais de 2 x 3 metros de dimensão.

La grande jatte é o ponto de partida de uma experiência que se desenvolverá por mais cinco anos, interrompida tragicamente pelo desaparecimento precoce do artista. A grande tela tem sua harmonia ainda sustentada pela introdução de diversos pontos de pigmento próximos à cor “local”, como o verde azulado na grama, e se não existe mais a tradicional pincelada existe a conciliação entre os pontos e curtos traços uniformes. Os matizes são ainda atenuados, acentuando o contraste entre as áreas de luz e de sombra, através de um “laranja solar” que invade toda a tela e que Félix Fénéon chamou de “luz colorida”. A partir de Les poseuses toma à la lettre o princípio da pintura exclusivamente com pequenos pontos e da cor produzida por mistura óptica. Com o completo domínio dessa técnica seu trabalho procura uma maior simplificação formal, abstraindo-se ainda mais de elementos acessórios para compor uma cena, onde restarão apenas as figuras estritamente necessárias a preencherem os eixos que organizam a composição. São desse último período os estudos em torno dos efeitos das linhas na transmissão de estados emocionais. Traduzem essa preocupação dois refinados sistemas de cruzamento de linhas retas e curvas, onde estão presentes dinamismo e movimento, elementos raros no conjunto de sua obra: Le chahut e o inacabado Le cirque.

Qual o preço pago por um trabalho que se encontra num momento de passagem, num presente onde ainda predominam valores que não são aqueles que ele anuncia? Muitos críticos já apontaram a “frieza” das cenas representadas por Seurat, o ar de manequim de suas figuras humanas. É verdadeiro esse sentimento que nos inspiram aqueles seres produzidos por um sujeito consciente de que não são nada mais que pintura, só pintura. Nenhuma relação, nenhuma troca de olhares, nessa redução radical que evita a intervenção da subjetividade. Tudo se apresenta como se a opção de Seurat, tomando o partido do que lhe parecia mais positivo no seu tempo — progresso, ciência e objetividade —, fizesse retornar, sob forma de compromisso, o próprio elemento recalcado, o Humanismo, que ressurge na forma de uma humanidade deformada.

No mundo definitivamente fragmentado pelo progresso do conhecimento e pela divisão técnica e social do trabalho não é mais possível restaurar o mito da Totalidade, a não ser como projeto histórico, como promessa de um devir, um vir-a-ser hegeliano. Seurat assume e explora os limites impostos pela modernidade, se a unidade não é mais possível no conhecimento ela continua a residir no objeto real e o real, agora, não será a referência externa à qual se reporta o quadro. Para Seurat, o real é a própria pintura. Esta deverá, para isso, se constituir numa estrutura íntegra de elementos solidários, num Sistema. Essa mesma autonomia que se esboça desde Manet alcança um ponto inédito na obra de Seurat. Não se trata de captar a sensação visual de um fenômeno externo, compreendendo e comunicando os efeitos dos processos sensoriais implícitos na observação de uma cena, como faziam os impressionistas, mas de produzir esse fenômeno, fabricá-lo na superfície pictórica. Até Cézanne e Seurat, a arte, desde a Renascença, tinha sido variações sobre a metáfora do olhar de uma cena imaginária ou de uma cena real, regida por princípios que mudavam segundo as circunstâncias históricas, sociais e culturais. Nesse momento de ruptura, prevalece um processo metonímico, o artista, através da pintura, não “substitui” o objeto imaginado ou observado, mas, por contiguidade, pensa e produz o olhar desse objeto que, por sua vez, é a própria pintura. Seurat constrói o seu quadro como uma máquina de dissecação do olhar, um instrumento analítico, para isso deve tentar fundar uma “ciência da pintura”. Esta vai lhe interessar mais que todas as teorias da percepção e da formação da cor, mais do que qualquer estética. Consciente, dirá a seu amigo e companheiro de movimento, Charles Angrand: “Eles — escritores e críticos — vêem poesia naquilo que eu faço. Não, eu aplico meu método e isto é tudo”.

Figura 3. Georges Seurat, Les Poseuses
Figura 3. Georges Seurat, Les Poseuses
Figura 4. Georges Seurat, La Parade de Cirque
Figura 4. Georges Seurat, La Parade de Cirque
Figura 5. Georges Seurat, Le Chahut
Figura 5. Georges Seurat, Le Chahut
Figura 6. Georges Seurat, Le Cirque
Figura 6. Georges Seurat, Le Cirque
  1. Maurice Merleau-Ponty, “Le doute de Cèzanne” Sens et Non-Sens, Paris, Nagel, 1966, p. 33. Existe tradução brasileira de autoria de Marilena Chaui, no volume Merleau-Ponty, coleção “Os Pensadores”, Abril.
  2. Erwin Panofsky, La vie et Part d’Albrecht Dürer, Paris, Hazan, 1987, pp. 362-63.
  3. Giulio Carlo Argan, Storia dell’arte italiana, Sansoni, vol. 2, p. 76.
  4. Idem, ibidem, p. 79
  5. Robert Lenoble, “Origines de la pensée scientifique moderne” in Histoire de la science, Encyclopédie de la Pléiade, Paris, Gallimard, 1957. p. 375
  6. Emmanuel Kant, Critique de la raison pure, trad. A. Tremesaygues e B. Pacaud, Paris, Presses Uni-versitaires de France, 1971, P. 54.
  7. M.-A. Tonnelat, “L’évolution des théories de la lumiére” in Hátoire générale des sciences, tomo 3 — La science contemporaine, vol. I — Le XIX siècle, Paris, PUF 1961, pp. 175-92. Para uma introdução geral ao quadro histórico da ciência no século XIX ver no mesmo volume o artigo de Charles Morazé, “Le génie du XIX siécle”, pp. 1-6.
  8. William Innes Homer, Seurat and the Science of Painting, Cambridge, MA, The MIT Press, 1964, p. 37. Uma das principais deficiências de muitas críticas, mesmo prestigiosas, sobre Seurat, consiste na excessiva simplificação de sua relação com as teorias cromáticas e da arte em geral. Esse artigo, por razões de espaço, ‘incorrerá na mesma falha, que pode ser corrigida pela leitura do exaustivo e indispensável trabalho do prof. Homer
  9. Para uma visão dos fatos desencadeados pelo movimento neo-impressionista e uma compreensão do período v. John Rewald, Post-Impressionism — from Van Gogh to Gauguin, New York, The Museum of Modern Art ed., 1978, especialmente o cap. II.
  10. V. Homer; op. cit., pp. 146-53.

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