1999

O princípio da tirania

por Jean-Michel Rey

Resumo

O “Discurso da servidão voluntária” é um texto conciso, condensado, difícil de entender, pois propõe de maneira abrupta uma espécie de tese sem desenvolvê-la e sem explicitar seus pressupostos ou suas consequências, como em geral é o caso nos clássicos da teoria política. Como se, no fundo, o autor tivesse desejado deixar os leitores diante de um enigma elementar, dar-lhes a possibilidade de interpretar, isto é, de eventualmente encontrar uma continuidade para certas constatações. Ainda mais que o texto todo é atravessado e como que constituído por uma reivindicação radical de liberdade, de uma liberdade que jamais deve deixar de ser o lugar de uma troca e de uma partilha.

Sabe-se que não se trata de um panfleto nem de um escrito de circunstância, já que a história do momento quase não é evocada. Obra de extrema virulência, o “Discurso” não encontra equivalente no pensamento político. Pode-se apenas afirmar que esse texto (provavelmente redigido por volta de 1548) inscreve-se num contexto de grande efervescência intelectual. Tanto que, entre seus contemporâneos, estão Erasmo, Thomas Morus, Lutero, Rabelais, Calvino, Montaigne (que foi seu amigo) e Giordano Bruno.

Em boa parte, é talvez por referência a esses autores que se pode perceber a novidade radical do “Discurso”. Por isso indica-se (muito rapidamente) a maneira como cada um deles usa habilmente a retórica para expor ideias em geral inaudíveis, inacessíveis ao entendimento comum, fora do âmbito das preocupações do momento. Existe aí uma dimensão muito particular que está no princípio das estratégias de linguagem – ou dos jogos de linguagem –, cujas consequências me parecem da maior importância.

Pense-se, por exemplo, em Erasmo e no famoso “Elogio da loucura”. Ele se impõe tanto pelo que enuncia como pelo dispositivo discursivo que constitui para as necessidades de sua exposição, com um uso muito específico do humor. Erasmo é, sem dúvida, um dos autores que mais fortemente contribuem para modificar o que poderíamos chamar de cenografia teórica. Em sua obra, é mesmo possível perceber, como que ao vivo, transformações na cena do pensamento que afetam em profundidade as formas do discurso, o estatuto e o tratamento dos problemas, o modo de explicar um objeto; transformações que indubitavelmente modificam também o regime clássico do conceito. Vigora a liberdade de tom.

O mesmo acontece com o “Discurso”. A começar pela a estranheza inerente à expressão “servidão voluntária”. Ela que, paradoxal, destina-se antes de tudo a circunscrever o que parece ser um dos fenômenos políticos mais elementares, isto é, o processo visível pelo qual se organiza certa relação com o poder. Liberdade de tom significando também que “servidão voluntária” é um conceito que não pode ser encontrado no pensamento político, uma expressão impossível que, no entanto, é preciso produzir, contrariamente ao que se formula e se pode dizer normalmente. Pois, com esse livro, são os limites de um gênero – o da teoria política – que convém alterar, modificar, para que nele entre algo que ali não encontrava lugar e que aparece segundo certa necessidade. É, pois, com justeza que Pierre Clastres chama La Boétie de “Rimbaud do pensamento”. E isso por vários motivos, tais como a brevidade na enunciação, a fulguração do dizer, a consciência da dificuldade para nomear o mais elementar, a constatação das deficiências necessárias de uma língua e a necessidade de um afastamento em relação à tradição.

Fato é que o “Discurso” reinventa-se em autores cujas preocupações estão situadas à margem do que as teorias do momento propõem ou impõem. Isso certamente lhe confere força e, assim, uma contínua espécie de atualidade.


Do Discurso da servidão voluntária diremos, primeiramente, que é um texto conciso, condensado, difícil de compreender: um texto que propõe de maneira abrupta uma espécie de tese sem desenvolvê-la e sem explicitar seus pressupostos ou suas consequências, como em geral é o caso nos clássicos da teoria política. Como se, no fundo, o autor tivesse desejado deixar os leitores diante de um enigma elementar, dar-lhes a possibilidade de interpretar, isto é, de eventualmente encontrar uma continuidade para certas constatações. Ainda mais que o texto todo é atravessado e como que constituído por uma reivindicação radical de liberdade, de uma liberdade que jamais deve deixar de ser o lugar de uma troca e de uma partilha.

Sabemos que não se trata de um panfleto nem de um escrito de circunstância, já que a história do momento quase nem é evocada. Obra de extrema virulência, que não está ligada a circunstâncias históricas, o Discurso da seroidão voluntária não tem equivalente no pensamento político. Pode-se apenas dizer que esse texto (provavelmente redigido por volta de 1548) inscreve-se num contexto de grande efervescência intelectual. Para lembrar alguns nomes um pouco anteriores ou contemporâneos de La Boétie: Erasmo, Thomas Morus, Lutero, Rabelais, Calvino, Montaigne (que foi seu amigo) e, no fim do século, Giordano Bruno, em particular com seu livro intitulado De vinculis in genere. Em boa parte, é talvez por referência a esses autores que se pode perceber a novidade radical do Discurso da seroidão voluntária. Quero falar tanto do que esses autores enunciam – às vezes com alguns pontos em comum – como de sua maneira de abordar certas ideias elementares. Assim indico (muito rapidamente) a maneira como cada um desses autores usa habilmente a retórica para expor ideias em geral inaudíveis, inacessíveis ao entendimento comum, fora do âmbito das preocupações do momento. Existe aí uma dimensão muito particular que está no princípio das estratégias de linguagem – ou dos jogos de linguagem -, cujas consequências me parecem da maior importância;

Pensemos, por exemplo, em Erasmo e no famoso Elogio da loucura: texto que se impõe tanto pelo que enuncia como pelo dispositivo discursivo que constitui para as necessidades de sua exposição, com um uso muito específico do humor. Erasmo é, sem dúvida, um dos que mais fortemente contribuem para modificar o que poderíamos chamar a cenografia teórica. Em sua obra podem-se perceber, como que ao vivo, transformações na cena do pensamento que afetam em profundidade as maneiras de dizer, o estatuto e o tratamento dos problemas, o modo de explicar um objeto; transformações que indubitavelmente modificam também o regime clássico do conceito. Procurei mostrar num livro recente (intitulado La part de l’autre)[1] a importância de tal cenografia, comentando um texto de Erasmo de 1528 que tem por título O ciceroniano. Nesse texto – que versa em princípio sobre a questão canônica da “imitação” – um personagem, chamado Nosoponus, conta a um outro como ficou doente de verdade ao querer imitar inteiramente o próprio Cícero. Após o relato desse amor um tanto patológico, o segundo personagem mostra ao primeiro qual pode ser o caminho da cura – caminho que ele conhece por ter padecido (segundo diz) do mesmo mal. Ele diz simplesmente o seguinte, comum valor de conclusão: “Foi o Lógos que me curou pelo Lógos”. Lá onde havia a doença, advém, mais ou menos nos mesmos termos, o restabelecimento, isto é, o processo de “cura” no qual o médico e o remédio se confundem. Problema fundamental que concerne antes de tudo a uma reorientação dos afetos. O remédio aos males relativos à linguagem deve ser encontrado na própria linguagem, segundo um processo de certo modo homeopático. O conjunto é uma questão de crédito e de confiança – condensado no termo latino fides-, que se deve aprender a modificar e a transformar. Assim, o que se concedeu enquanto crédito deve poder a todo momento ser retirado. Na mesma perspectiva, Erasmo mostra com análises muito precisas que o fato de conceber como absoluta uma referência aqui, o texto de Cícero é considerado como ápice da perfeição, e portanto como norma de todo discurso – acaba simplesmente por desvalorizá-la, por arruiná-la a partir de seu interior. Surpreendente economia pela qual a coisa colocada como a mais elevada perde de um só golpe todo o valor.

Nesse texto de Erasmo há um cuidado muito particular com o modo de nomear. Toda a abordagem consiste em mostrar, por meio de uma verdadeira teatralidade, os diferentes e heterogêneos desafios do velho problema (suposto simples ou unívoco) da “imitação”. Aliás, isso leva Erasmo a abordar problemas que não têm nome ou que têm nomes impróprios – por exemplo, a relação de amor a uma doutrina ou a um texto supostamente perfeito e, portanto, imitável em todos os pontos, relação na qual o sujeito se priva de toda possibilidade de falar e se aliena totalmente, na qual ele se perde. A maneira de proceder de Erasmo nesse texto, como também no Elogio da loucura, demonstra uma espantosa liberdade de tom.

Ao evocarmos o Discurso da servidão voluntária, falaremos de uma liberdade de tom teórico equivalente. Primeiro para sublinhar a estranheza intrínseca da expressão forjada por La Boétie, “servidão voluntária” – essa expressão paradoxal destinada antes de tudo a circunscrever o que parece ser um dos fenômenos políticos mais elementares, isto é, o processo visível pelo qual se organiza uma certa relação com o poder. Liberdade de tom significando também que “servidão voluntária” é um conceito que não pode ser encontrado no pensamento político, uma expressão impossível que, no entanto, é preciso produzir, contrariamente ao que se formula, contrariamente ao que se pode dizer normalmente. Pois, com esse livro, são os limites de um gênero – digamos, para simplificar, a teoria política – que convém alterar, modificar, para que nele entre algo que ali não tinha seu lugar e que aparece segundo uma certa necessidade. Pôde se falar com justeza, a propósito de La Boétie, de um “Rimbaud do pensamento” – a expressão é de Pierre Clastres. Penso que se devem entender com isso várias coisas ao mesmo tempo: uma brevidade na enunciação, uma fulguração do dizer, o fato de levar em conta obstáculos para nomear o mais elementar, a constatação das deficiências necessárias de uma língua, a necessidade de um afastamento em relação à tradição.

Algo impressiona muito particularmente na leitura do Discurso da servidão voluntária: tudo se articula para que a exposição não se detenha numa fórmula – ou algo equivalente -, para que ela possa ser continuamente retomada, para que se retomem os mesmos aspectos de um enigma, insistindo sempre sobre o mesmo tema. O que isso pode ser? Que nome daremos a isso? Como nomeá-lo? Isso, isto é, “esse vício monstruoso[…] a que não corresponde nome suficientemente infame”, isso, essa coisa impensável que se impõe à atenção e, ao mesmo tempo, “que a língua se recusa a nomear”.

(Cumpre observar o estilo das questões de La Boétie. Primeiramente, o essencial é perguntar se como isso que não tem nome pode se chamar, mesmo sabendo-se que a língua em seu estado atual não dispõe de nenhum termo adequado. Cumpre, em suma, partir dessa deficiência da língua, conviver com esse elemento aparentemente negativo para compreender o que representa, no caso, o ato de nomeação e quais suas consequências. Para compreender como algo pode se impor à atenção a ponto de remodelar o conjunto da situação. Pensamos, a esse respeito, em Nietzsche. “O que é a originalidade? É ver algo que ainda não tem nome, que ainda não pode ser nomeado, embora esteja sob os olhos de todos. Os homens habitualmente precisam primeiro de um nome para que uma coisa lhes seja visível. Os originais foram na maioria das vezes os que deram nomes às coisas.” Podemos pensar igualmente em Péguy, em seu estilo, na necessidade de digressões contínuas, o que faz com que a frase de Péguy não pare de se descentrar ao mesmo tempo que se enriquece. Em todos esses autores, o estilo é evidentemente um modo de pensar consciente das dificuldades mais elementares de nomear o que está sob os olhos de todos.)

A meu ver, há uma certa proximidade entre o procedimento de La Boétie e o que Erasmo desenvolve na pequena dramaturgia do Ciceroniano. Erasmo também recorre a expressões impossíveis para descrever os diferentes aspectos de uma doença da alma que a medicina não conhece, que não está classificada em parte alguma e que causa danos imensos. Uma certa inumanidade está igualmente presente nessa situação.

No conjunto do Discurso da servidão voluntária, La Boétie tenta descobrir, inventar modos de designação adequados para um objeto inédito, para uma coisa inconcebível. Trata-se ao mesmo tempo de circunscrever algo que ainda não foi dito e de praticar a linguagem, qualificar esse objeto e interrogar-se sobre os recursos da língua. Trabalho paciente que lança mão das possibilidades da retórica. Todo o procedimento do Discurso é constituído, em suma, de tateamentos em direção a uma afirmação. Uma espécie de hipótese maior, que tem por pano de fundo um vastíssimo problema: como falar da inumanidade no homem? como designar e analisar o inumano que é característico do homem? Uma interrogação dessa ordem percorre o livro inteiro, modulando-se, procurando enunciar o paradoxo maior que se acha contido naquilo que cumpre chamar a servidão voluntária. O paradoxo é o seguinte: colocar-se voluntariamente no estado de servidão é algo que pode ainda ser chamado “viver”? Pois é isso que é – o que deve ser – propriamente insuportável para alguém que tem “semblante humano”. Um dos pontos mais enigmáticos do processo descrito por La Boétie é, de certo modo, uma inversão de valores, e esse processo está muito próximo do que Nietzsche buscará analisar especialmente sob o nome de “niilismo”. O que se assemelha à morte torna-se a forma da própria vida; o que é propriamente inumano – e que mesmo os animais não aceitam – torna-se característico do homem. A questão aqui é saber como abordar – portanto, como compreender – o mecanismo pelo qual alguém – um indivíduo ou um povo – organiza sua própria destruição, quer sua subjugação, deseja de fato a privação de liberdade.

A questão, precisamente, é sempre da ordem do como e não do por quê. Como se explica que alguém esteja num estado de servidão? Como tal situação pôde se engendrar? Em outros termos: de que acontecimento passado o presente é o efeito ou o resultado? Ou ainda: como conceber o tempo nessa perspectiva? O trabalho de análise tem seu ponto de partida no presente – no presente narrado, evocado, de certas situações históricas – e a partir daí procura – ou inventa – antecedentes.

Para La Boétie, há uma urgência em compreender o como: como, em suma, é possível que “tantos homens, tantas cidades, tantas nações suportem às vezes um só tirano”. Não há enigma maior, mais inacreditável. Com a servidão voluntária toca-se o que há de inacreditável na espécie humana, o que ultrapassa o entendimento e a crença. Donde, da parte de La Boétie, há uma espécie de hipótese necessária nessa perspectiva: a que consiste em supor numa anterioridade indeterminada o acontecimento de uma “desgraça”, de um curso maléfico das coisas que culmina numa servidão consentida e, o que é mais, reforçada por um esquecimento fundamental do que precede, a saber, o estado de liberdade. Eis aí, para o autor do Discurso da servidão voluntária, a figura mesma da maior catástrofe. O que ele chama “o veneno da servidão” é o processo de tal esquecimento. Assim, La Boétie escreve: “É verdade que no começo serve-se obrigado e vencido pela força; mas os que vêm depois servem sem se lastimar e fazem de bom grado o que seus antecessores fizeram por obrigação. É isso, que os homens nascidos sob o jugo, e depois alimentados e criados na servidão, sem olhar mais adiante, contentam-se em viver como nasceram […], tomam como algo natural o estado de seu nascimento”. O “nós” está sempre ameaçado de perder a memória dos lugares onde se formou, das formas de seu engendramento, ameaçado de esquecer as figuras de sua afirmação. O “costume” vai como que obrigatoriamente em sentido oposto à memória.

(Toda teoria política, de uma maneira ou de outra, depara-se com essa dimensão fundamental e deve, por conseguinte, tratá-la, buscar remediá-la explicitamente.)

O que retém mais particularmente minha atenção nessa análise da servidão voluntária é o gesto que está no princípio de toda a operação, a saber: uma certa forma de doação. De fato, toda a abordagem de La Boétie gira em torno do verbo dar. Isso se percebe muito claramente no que ele diz do “corpo” do tirano. Esse corpo é como que incessantemente aumentado até tornar-se monstruoso, e unicamente em razão daquilo que os homens subjugados lhe fornecem. Esse corpo – que poderíamos dizer fantasmático – não cessa de crescer, com todas as contribuições que têm por único efeito reforçar o poder tirânico. A tese principal de La Boétie é conhecida: tudo o que o “corpo” do tirano possui em matéria de poder, ele o recebeu dos homens subjugados sem sequer o haver exigido. Existe aí um processo de doação contínua do poder em favor do tirano: uma cessão que é ao mesmo tempo um gesto de abandono. Os homens se enfraquecem voluntariamente para tornar o tirano forte. O que significa que, na verdade, estão em conluio com ele. Não poderia haver antagonismo efetivo entre o tirano e o “povo” dominado. La Boétie enfatiza antes de tudo o processo rudimentar pelo qual o poder do tirano é fabricado. Pois o que o tirano detém em matéria de grandeza e de poder – seu próprio ser, em suma – não é constituído senão do que lhe foi oferecido. O que ele toma não é senão o que o povo lhe deu. O engendramento da tirania obtém o essencial de seus recursos do que lhe concedem, fortalece-se com o que lhe proporcionam. Seria como um movimento contínuo, uma procuração incessante. O que faz com que, no limite, não haja, em sentido estrito, ato de instauração da tirania. O crédito concedido ao poder tirânico acarreta uma perda de liberdade, de memória, de julgamento, de sensibilidade – em suma, despoja o sujeito de tudo que lhe é essencial, de tudo que é suscetível de defini-lo como um ser particular. Concede-se tudo ao tirano antes mesmo que este exija sua parte. E, quanto mais o tirano destrói, mais lhe é dado. La Boétie espanta-se profundamente com essa forma no míni mo excessiva e irracional de “doação”. Pois quem doa desse modo priva se de toda liberdade, perde a memória dessa liberdade, e reforça a tirania.

(La Boétie indica muito claramente, várias vezes, o efeito propriamente anestesiante da doação que está no princípio da tirania. Por outro lado, ele insiste no fato de que o tirano, ao tornar-se invisível, suscita a crença, dá todo o espaço à imaginação. Onde aparentemente não há nada, pode-se imaginar tudo. Essa seria mesmo uma das motivações mais rudimentares do poder. Assim, segundo La Boétie, em certos regimes o tirano retarda o momento de aparecer, deixando desse modo uma espécie de lugar vazio a ser preenchido pela imaginação dos que estão subjugados. Isso faz parte dos “pequenos meios” de que se servem os tiranos para assentar seu poder, a ponto de o povo às vezes temer alguém que ele jamais viu de verdade.)

A apresentação dessa “doação” tida como fundamental é acompanhada de dois outros motivos que contribuem, penso eu, para esclarecer o conjunto do pensamento de La Boétie.

O primeiro diz respeito ao movimento inverso ao da “doação”. Em uma palavra, trata-se do gesto que é preciso realizar para não cair nessa desgraça extrema que é a tirania, para subtrair-se à sua lógica infernal. É como o esboço de uma estratégia por esquivamento que nada tem a ver com o que Hegel descreverá como luta de morte do Mestre e do Escravo. Não estamos aqui na perspectiva de um ataque ou de uma guerra contra o tirano, pois isso, no caso, não faz nenhum sentido, não é de maneira alguma apropriado ao tipo de situação que a tirania representa. Trata-se antes da postura mais elementar que resultaria num gesto de abstenção. Vimos que, segundo La Boétie, o tirano é realmente feito, fabricado, por uma certa vontade do povo. Se esse mesmo povo não consente em sua servidão, se ele nada doa ao tirano, se o povo não faz nada contra si mesmo, a consequência pura e simples é que o tirano “é derrotado por si mesmo”, sem nenhum combate. (O que também significa que esse “grande colosso” é de certo modo frágil. Num sentido aproximado, Valéry fala dos “grandes condutores” cujos sistemas de ideias são como “pinturas leves sobre gazes trêmulas”, por trás dos quais há “a fraqueza real de sua força real”. E ele acrescenta o seguinte: “Sua força é mais de três quartos imaginária, fiduciária, e essa parte maior exige, para existir e agir, que eles próprios não tenham consciência clara de sua fraqueza real”.) Em suma, se ninguém obedece, se ninguém oferece nada, o tirano fica nu e derrotado, perde tudo aquilo pelo que se distinguia. Não tem mais razão de existir. É como uma raiz que, privada de todo alimento, torna-se um galho morto.

(A relação com o fiduciário, tal como Valéry o analisa, poderia ser retomada nessa perspectiva, poderia ajudar a esclarecer alguns aspectos da atitude de La Boétie. Mas poder-se-ia dizer igualmente o seguinte: as intuições fortes de Valéry a esse respeito só foram efetivamente possíveis graças ao acontecimento do Discurso da servidão voluntária.)

Notar-se-á que essa abstenção tem condições de se tornar, apesar das aparências, um gesto positivo. Ao sublinhar o alcance dela, La Boétie esclarece seu propósito. Pois acentuar esse evitamento crucial equivale a explicitar o gesto contrário, a mostrar o caráter profundamente negativo, o aspecto destruidor da doação. Isso permite também indicar que a desgraça, a ruína, a devastação não provêm de um inimigo, nem de algo dessa natureza, mas sim de sujeitos nos quais “se implantou uma obstinada vontade de servir”. Donde as fórmulas particularmente abruptas de La Boétie para tentar descrever esse estado de fato: “É o povo que se escraviza, que se corta a garganta, que, podendo escolher entre ser servo ou ser livre, escolhe o jugo, consente em seu mal”. Ou ainda, de um modo igualmente radical: dir-se-ia que “o povo, assim que se sujeitou […] não perdeu sua liberdade, mas ganhou sua servidão”.

O outro motivo está evidentemente muito ligado ao que acaba de ser dito. Pois se trata da maneira pela qual o autor do Discurso da servidão voluntária se dirige a todos os que se puseram nessa posição de extrema dependência nessa atitude em que podem apenas manter e prolongar o poder tirânico. É sob a forma mais elementar que isso ocorre: um “vós” interpelado, apostrofado, de todas as maneiras possíveis, um “vós” a quem se busca, antes de tudo, fazer entender o que ele pratica ou o que ele praticou, fazer compreender o que ele instala sem necessariamente avaliar a dimensão desse ato. O “vós” não é aqui um simples substituto do “se” indeterminado. O “vós” indica um grupo indistinto que contém todos aqueles que se submeteram, que fizeram tudo para se destruir. O Discurso da servidão voluntária dirige-se especialmente a todos os que estão nessa posição, dando a entender ao mesmo tempo o que há de profundamente enigmático numa tal relação consigo. Dizer “vós”, nesse contexto, é começar a nomear o estranho gesto de “doação” que alimenta a posição do tirano. Dizer algo como “Sois vós que dais…” é a primeira etapa de uma designação que é ao mesmo tempo uma análise. Dizer, aqui, adquire valor de análise: momento em que uma unidade artificial começa a aparecer como o que ela é; momento em que ela se decompõe, em que ela se desfaz. Dizer é deixar desfazer-se um conjunto que repousava basicamente sobre a adesão – ou sobre a crença – de um certo número de sujeitos. Assim, em certas condições, pode haver uma eficácia muito particular do dizer – especialmente para tentar reduzir, nessa direção, a parte do imaginário, para tentar limitar, ou mesmo suprimir, o peso do fiduciário.

É preciso conformar-se ao “vós” com o que essa invectiva pode ter de um tanto cruel. Mas aquele que fala dirigindo-se assim ao “vós” é o indivíduo que, de uma maneira ou de outra, não se deixa – ou não se deixa mais – fascinar pelo Um, que se tornou independente. O mesmo acontece no Ciceroniano de Erasmo com aquele que indica o caminho da “cura”. Em ambos os casos não poderia se tratar de uma autoridade, mas sim do que constitui sua figura antagônica – a de um saber que se construiu, que foi conquistado sobre aquilo que o nega ou o destrói. Em ambos os casos, é uma certa relação do sujeito consigo mesmo que lhe permite falar como ele o faz, sem precisar recorrer a uma doutrina instituída, sem ter de reivindi car uma autoridade qualquer. A semelhança é impressionante.

Mais perto de nós, Valéry é um dos que se mostraram particularmente atentos a gestos desse gênero, como o fizeram Péguy, Nietzsche e também, certamente, Michelet. Eis como Valéry modula essa ideia e lhe dá um outro prolongamento: “Poucas coerções sociais – justiça, guerra, sistema fiscal, formalidades etc. – suportam ser enunciadas com toda a clareza, sem se mostrarem em seguida aplicações arbitrárias da força, e a troca de um mal real por um bem hipotético”. Com o “vós” e tudo o que ele envolve nessa perspectiva, La Boétie se dá os meios de enunciar “com toda a clareza” o que a servidão voluntária implica: o tipo de aquiescência e adesão que é seu princípio, o modo de crença que a acompanha. Dessa maneira ele se distancia desse objeto: faz com que ele seja visto designando, para alguns, seu mecanismo mais rudimentar, sem utopia, sem solução milagrosa ou mágica.

Escrever um texto como o Discurso da servidão voluntária seria, para o autor, um acerto de contas com a tirania – e certamente também com as diversas formas de poder-, dar-se no fundo a liberdade de compreender como um sujeito – individual ou coletivo – pode às vezes ser conivente com o poder mais tirânico. Escrever tal discurso é também saber o que se deseja e conhecer (em princípio, ao menos) os caminhos para chegar lá. É igualmente, de algum modo, uma decisão de não ir contra si mesmo, é ter aprendido o que podem significar, no caso, dar e não-dar.

Sabemos que Nietzsche, à sua maneira, e num contexto bem diferente, retoma em sua abordagem crítica um motivo da mesma ordem – a propósito do que ele chama os “valores”, termo que tem uma extensão muito grande em seu pensamento. Tanto nele como em La Boétie, a “doação” inicial – que em todo caso devemos supor a mesma – é acompanhada de um esquecimento fundamental, parece mesmo ser exatamente contemporânea desse esquecimento. Entre muitas outras formulações desse processo, veja-se esta: “Mas supondo que projetamos nas coisas certos valores, em seguida esses valores re-agem sobre nós depois de esquecer mos que éramos seus autores”.

Há uma insistência contínua de La Boétie em seu modo de dirigir-se ao “vós”. A título de exemplo: o tirano é aquele indivíduo que tornais poderoso; esse homem tem “a vantagem que lhe dais para vos destruir”; os olhos que ele tem para ver, as mãos que ele tem para vos bater, os pés que ele tem para vos esmagar, são vossos, é principalmente de vós que ele os obtém. Ele não tem poder sobre vós senão graças a vós. Sois cúmplices do assassino que vos mata. Bastaria que não mais o sustentásseis para que ele desabasse. Enfraqueceis à medida que o tornais forte.

Nesses modos de designação, o “vós” é a cada vez redobrado. É sobretudo por esse viés que se inicia a análise do que não pode ser enunciado. Tal redobramento significa, no fundo, uma única coisa: que a vontade está separada dela mesma, que o querer se divide; como se uma parte dessa instância viesse violentamente opor-se a uma outra, produzindo assim uma estranha “patologia”. (O termo alienação, tal como aparece em Hegel e em Marx, não é suficiente para abordar esse tipo de processo. Restaria saber o que pode haver em comum com Rousseau desse ponto de vista.) Assim, multiplicando as formulações a esse respeito, repetindo algo de idêntico endereçado ao “vós” sob formas um pouco diferentes, La Boétie parece ter como preocupação única o seguinte: fazer entender essa inconcebível para a qual não temos conceito – que a vontade possa ir contra si mesma, que ela possa desejar contra toda a razão submeter-se, que ela seja capaz de dar, sem nenhuma contrapartida, todo o poder a uma tirania. Transposto em outros termos, isso se diz assim: às vezes o povo cria mentiras para em seguida acreditar nelas.

La Boétie foi certamente o primeiro a enfatizar com grande rigor essa estranha cisão da vontade, e a fazer dela o núcleo de uma análise do poder tirânico. Análise embrionária e ao mesmo tempo muito estimulante, por revelar uma das principais motivações do poder – a adesão. Como assinalou Claude Lefort, o interesse dessa análise prende-se ao fato de que a relação mestre-escravo, “antes de ser a de dois termos separados”, é “interior ao mesmo sujeito”. O que faz de tal ideia algo de exemplar é a sutileza da escrita que se desenvolve tornando sensíveis os efeitos principais da cisão da vontade. Essa escrita sabe que jamais deve ser cúmplice de um poder qualquer, especialmente o poder do costume, que é “a primeira razão da servidão voluntária”. (Importante motivo frequentemente encontrado no pensamento do século XVI: há germes de tirania nas formas mais correntes do hábito ou no costume.) Essa escrita não teme dirigir-se de maneira virulenta a um “vós”, e nisso ela acena a uma liberdade. Ela deve, ao mesmo tempo, mostrar o outro lado das coisas – não como solução a todos os problemas dessa ordem, mas como indicação do possível.

Todo o texto do Discurso da servidão voluntária está voltado a um desejo de saber. Esse desejo sabe que deve defrontar-se com obstáculos múltiplos – o poder da opinião comum, o peso da Dóxa etc. – e que tal coisa ganha em ser escrita. Ou seja, em poder ser lida. Vejo o texto de La Boétie como uma ruminação paciente, que não busca a qualquer preço uma fórmula definitiva nem um saber a ser transmitido como tal. Seria uma obra – como O elogio da loucura ou o Ciceroniano, de Erasmo que não cessa de provocar no outro o desejo de ler. E esse efeito é propriamente político, como é política essa hesitação em nomear, essa busca de enunciados para dizer o impossível. Ter a liberdade é desejá-la; é procurar compreender, ao mesmo tempo, como certos homens ou certos povos parecem não desejá-la. (Michelet, de maneira bastante próxima de La Boétie, mostra com precisão que há certos povos que se esquecem de maneira idêntica a certos indivíduos. “E como surpreender-se que os indivíduos se esqueçam, quando os próprios povos se esquecem, quando eles são ingratos e cegos em relação a seus pais e aos maiores momentos de sua história? Isso acontece a toda nação.”)

Há um desejo de saber que acompanha sempre essa investigação, que caminha junto com uma afirmação da liberdade em direção ao outro. Nessa perspectiva, La Boétie evoca uma declaração comum dos pensamentos e uma eventual “comunhão das vontades” – sobre o fundo de um desejo de se “entreconhecer”, de se descobrir enquanto companheiros ou irmãos. Esse conhecimento mútuo passa pelos livros – La Boétie o menciona explicitamente – na medida em que eles suscitam o desejo de conhecer e têm por efeito fazer-nos “odiar a tirania”. (Todos os regimes autoritários ou totalitários não deixaram de comprovar isso, como sabemos.) Os livros e o conhecimento mútuo são como meios de exercer o entendimento, de tornar “o espírito clarividente”; mas também – e não menos importante – formas de rememorar “as coisas passadas para julgar as do tempo por vir e para avaliar as presentes”. A memória – no sentido mais forte do termo – e a amizade parecem aqui andar juntas, ser inseparáveis: o motivo seria comum a La Boétie e a Péguy.

Caberia certamente falar, em La Boétie, de uma ética da escrita, isto é, de uma atitude que não é separável de uma busca da fraternidade ou da amizade. (O que Blanchot evoca sob o nome de “amizade” poderia por certo ser retomado numa leitura abrangente de La Boétie.) Nesses termos não há nenhuma banalidade. O que é explicitamente visado por La Boétie é simplesmente a dimensão do surgimento da liberdade – uma liberdade que consiste antes de tudo em desprender-se de toda ilusão de uma unidade, em saber evitar a força sorrateira do Um, capaz de aquirir formas muito diversas. O Discurso procura seus leitores – com tudo o que pode haver de aleatório nesse gesto. Mais que qualquer outro, esse texto deve constituir de fato seu público. O Discurso não propõe uma doutrina constituída. A respeito dele poderia ser dito o que Nietzsche diz acerca de seu Zaratustra, que é “um livro para todos e para ninguém”. Um livro que força cada um a refletir sobre sua relação inconsciente com o poder e a interrogar-se sobre suas veleidades de unidade. Um livro que vai claramente contra os que, segundo a expressão de Valéry, “fazem falar as coisas fictícias, o Povo, a História, os deuses e os ídolos”, contra todo escrito ou toda fala que “leva a pensar em entidades como criaturas”. (Poderíamos evocar Michelet, que em vários momentos menciona o “Contra Um”, e para quem a grandeza da Revolução Francesa foi não ter tido “um grande homem para absorver a fecundidade do movimento na fantasmagoria de um novo misticismo”, e assim ter evitado a presença de uma “autoridade mística”. Nisso, diz ele, “ela foi, bem mais do que Kant, a crítica da razão pura”. E ele acrescenta, generalizando a ideia: “A unidade mística em um homem individual (Messias sucessivos) é ainda materialidade, fatalidade”. Em Michelet encontram-se frequentemente, aliás, enunciados que ecoam o pensamento de La Boétie. Sem dúvida Michelet recolhe em seu mestre Vico elementos que vão nessa direção, o que lhe permite contornar o pensamento de Descartes e especialmente a noção de “vontade” que é central na obra deste. A esse respeito, uma questão: pode haver uma continuidade entre a abordagem de La Boétie e o pensamento crítico de Kant? Ou, para retomar o que parece estar em germe em Michelet: o Discurso da servidão voluntária não obriga a aprofundar e a tornar mais radical o movimento crítico kantiano?)

Lembrei, no início, a insistência do Discurso da servidão voluntária sobre certas questões cruciais: como diremos que isso se chama? como chegar a dizer o que “a língua se recusa a nomear”? Essa preocupação essencial que está presente em La Boétie, podemos reencontrá-la com algumas nuances em Nietzsche, em Valéry, em Péguy: isto é, em autores – escritores no sentido mais fundamental da palavra – para quem a língua é efetivamente o lugar onde desafios em última instância políticos são incessantemente negociados. Não no sentido de que a língua veicularia um conteúdo ou uma doutrina política, mas num sentido muito mais radical: a língua pode tornar-se o espaço no qual, sem o sabermos, nos colocamos sob o domínio de certas palavras, no qual ignoramos que estamos sob o encanto de certos termos que aparecem por si mesmos como suficientes. (Aqui também é uma certa relação do sujeito consigo mesmo que se instaura, tendo por efeito maligno uma espécie de desapossamento. Em uma palavra, é o sujeito que se torna dependente do sentido que ele produz. Não estamos longe do que é mostrado de maneira rigorosa no Ciceroniano de Erasmo.) Terreno no qual a palavra pode tornar-se ilusoriamente “a marca de um consentimento universal”, no qual a linguagem é o campo por excelência da “ação de presença de coisas ausentes”, para retomar algumas das expressões de Valéry. É ainda Valéry que não cessa de buscar e de inventar meios de criticar o movimento pelo qual tendemos a “nos representar seres que só existem pela crença de que existem”.

Seria possível retomar, nessa perspectiva – que apenas deixo indicada -, a crítica que Nietzsche faz da linguagem metafísica; especialmente um ponto que é central para a minha exposição, a noção de “vontade”. Questionamento incessante sobre a vontade, mais precisamente sobre a existência de uma vontade que se volta contra si mesma, que, de certo modo, vive de se destruir. Motivo abordado particularmente em A genealogia da moral.

[…] É precisamente aí que eu via o perigo maior para a humanidade, sua tentação , sua sedução mais sublime – em direção a quê? em direção ao nada?-, é precisamente aí que eu via o começo do fim, a parada, o cansaço que faz olhar para trás, a vontade que se volta contra a vida, a última doença que se anuncia na doçura e na tristeza: essa moral da piedade que se alastrava cada vez mais, contaminando até os filósofos e fazendo-os doentes, era para mim o sintoma mais inquietante de nossa civilização europeia, ela mesma tornada inquietante: um desvio que levava talvez a um novo budismo? a um budismo europeu? ao niilismo? […] Essa preferência, essa estima exagerada pela piedade é uma inovação dos filósofos modernos: até então os filósofos haviam estado de acordo quanto ao não-valor da piedade.

Trata-se aqui de um sintoma de civilização no que ele tem de mais “inquietante”: o termo alemão para exprimir isso é Unheimlich, isto é, uma espécie de inquietante familiaridade – essa estrutura muito específica sobre a qual sabemos que Freud escreveu um texto -, uma característica ambígua que mistura o conhecido e o ignorado e que parece poder aplicar-se à “servidão voluntária”, ou ao menos deve permitir que se esclareçam alguns de seus aspectos.

Haveria assim uma ideia comum a La Boétie, Nietzsche, Valéry e Péguy que pode se resumir deste modo: a preocupação do “como diremos que isso se chama?” não tem por principal desafio o saber. Sua principal relação é com o político, com a promoção de um “nós” que permanece indeterminado, que, portanto, está inteiramente por vir. Esse cuidado muito particular com a nomeação não é separável de um questionamento sobre a genealogia do político. Essa grande preocupação tem como pano de fundo a relação que cada um pode instaurar com o outro – relação que evidentemente se fala, se enuncia, se formula, se escreve, que passa, portanto, por todas as modalidades do discurso. É possível sugerir a seguinte hipótese: a “filologia”, em Nietzsche, a relação com o texto, em Péguy, a consideração da linguagem em seus aspectos especialmente fiduciários, em Valéry, essas três posições análogas (mas que não se sobrepõem) podem ser vistas como ecos de um movimento essencial do texto de La Boétie, como uma lição decisiva do Discurso da servidão voluntária. Haveria aí uma postura que qualificaremos de “anarquista”, sem dar a esse termo algo que suponha uma doutrina ou um conteúdo determinado. Postura “anarquista” aqui quer dizer simplesmente um pensamento que retoma as coisas no princípio, que se arrisca a interrogar a articulação entre o ser-em-comum e essa outra forma de relação que a escrita ou a linguagem constitui. Péguy, com extrema precisão, reconhece particularmente o seguinte princípio: “Em semântica as palavras malformadas têm fortunas insolentes. É um pouco como em política”.

Seria preciso prosseguir nessa direção, propor hipóteses a esse respeito. Dizendo, em particular, que o Discurso da servidão voluntária é o advento de um pensamento inédito. E esse advento foi de certo modo recoberto, esquecido, recalcado, desconhecido, não observado como tal. O que forma o núcleo desse Discurso não entrou na ordem ordinária dos pensamentos, no conjunto dos problemas que constituem o solo da teoria política dos séculos XVII e XVIII. Como se esse evento fosse ao mesmo tempo pequeno demais e grande demais. Pequeno demais como muitas coisas que se expõem no século XVI sem que cheguem a conquistar direitos de cidadania e sejam retomadas a seguir: coisas vistas como insignificantes ou menores posteriormente, no momento clássico, ideias cujo uso ou cuja utilidade não se percebe, que não encontram seu lugar num conjunto de problemas; coisas vistas como curiosidades sem consequência. Grande demais no sentido em que se perceberia o perigo de tal pensamento, o risco que ele comportaria se lhe arranjassem um lugar, o transtorno que ele é capaz de causar. Seria a ameaça de uma perturbação que acompanharia essa maneira de colocar um problema – uma perturbação quanto ao possível contágio. Apresentar desse modo essa noção de “servidão” é necessariamente vir perturbar o regime da “vontade”, que se julgava estável, com todas as consequências que podem resultar desse ato, sobretudo no caso de uma vontade que parece “coletiva”.

Diremos ainda mais. Foi preciso esperar que aparecessem o que chamarei pensamentos do “nós” – Kierkegaard, Nietzsche, Freud, Valéry, Péguy, isto é, um certo século XIX, para que o Discurso da servidão voluntária encontrasse seus leitores, para que seu objeto começasse a se tornar visível. Nesses pensadores, de modos evidentemente diferentes, a noção de “vontade” perde toda inocência, é submetida a questões novas, não podendo mais, portanto, ser mantida em sua pureza clássica. Ela é como que destroçada. Esse questionamento da noção de “vontade” requer, em todo caso, por uma razão ou outra, uma teoria do sujeito. Ora, essa teoria do sujeito que se esboça em lugares basicamente diferentes, no século XIX, parece-me ter como característica principal reservar todo o espaço necessário à “patologia”. O problema crucial, nessa ótica, passa a ser o “mal” que um sujeito é capaz de infligir a si mesmo sem poder avaliá-lo, a anulação contínua de si que um sujeito pode produzir nos domínios mais variados.

Tentemos formular isso de outro modo. Foi preciso que a noção de “vontade” fosse desmantelada em sua suposta unidade, que se começassem a indicar as estruturas nas quais aparece um sujeito dividido, voltando-se contra si mesmo, causando sua própria infelicidade, promovendo sua própria destruição; foi preciso que se revelassem – especialmente no quadro da chamada “psicologia” – patologias diversas relacionadas basicamente à crença; foram necessários acontecimentos teóricos dessa ordem para que uma exposição como a do Discurso da servidão voluntária começasse a se tornar audível, para que se tornasse efetivamente um motivo de reflexão. Em outros termos: foi preciso que a análise clássica da “vontade” fosse criticada e desse lugar (entre outras coisas) ao que poderíamos chamar uma lógica do desejo, que, nesse momento histórico, Freud evidentemente não é o único a constituir, embora ele seja de fato quem lhe dá uma forma inteiramente consequente e um aspecto explícito, mostrando que essa lógica é solidária daquilo que ele define como “inconsciente”, embora indique (de maneira às vezes programática) os diferentes desdobramentos possíveis dessa teoria.

O Discurso da servidão voluntária faz do “vós”, e eventualmente do “nós”, verdadeiros personagens do pensamento, parceiros necessários da reflexão e de toda escrita. Ao tratar a “servidão” por esse viés, esse texto representa uma espécie de excesso: o excesso daquilo que daí por diante deve ser compreendido e pensado, o excesso formado pelo entrecruzamento do ser-em-comum e da escrita que La Boétie, de uma forma particularmente aguda, não cessa de nos mostrar. O contrário da adesão à tirania deveria certamente ser buscado junto a essa articulação: a meu ver, esse é o possível mais acessível e certamente também o mais crível. Refiro-me ao possível que depende apenas de um “nós”, de um “nós” que se constituiria na recusa enérgica de tal adesão, de um “nós” que estaria profundamente preocupado com os modos de dizer e com o que pode ter se passado anteriormente tanto na ordem do fazer como na ordem do dizer, de um “nós” convencido dos poderes da memória. Seria também, no meu entender, um “nós” alertado pelos aspectos propriamente fiduciários da linguagem – especialmente da linguagem dita política -, atento portanto às capacidades tortuosas das diversas formas de fazer acreditar que se verificam na linguagem. (Péguy refere-se a certas formas de linguagem política como fiduciárias e como instituições de “servidão mútua”.) Em suma, um “nós” em contínua recomposição a partir desse lugar vazio, um “nós” percebido e como que interpelado pelos poderes indefinidos de uma língua, um “nós” para o qual a palavra, a escrita e a leitura são antes de tudo lugares de exercício.

A título de conclusão, cito um texto de Valéry que parece ser a continuação direta do Discurso da servidão voluntária, pelo menos em parte.

O poder tem apenas a força que se quer de fato lhe atribuir; mesmo o mais brutal está fundado na crença. Atribui-se-lhe, como devendo agir a todo momento e sobre qualquer ponto, a força que na realidade ele só pode aplicar sobre um ponto e um certo momento. Em suma, todo poder está exatamente na mesma situação de um estabelecimento de crédito cuja existência repousa sobre a simples probabilidade (aliás, muito grande) de que seus clientes não virão todos no mesmo dia reclamar seus depósitos. Se a todo instante, num momento qualquer, um poder fosse intimado a apresentar suas forças reais em todos os pontos de seu domínio, esse poder seria em todos esses pontos mais ou menos igual a zero […]

Uma última palavra: o Discurso da servidão voluntária reinventa-se de certo modo em autores que têm preocupações situadas à margem do que as teorias do momento propõem ou impõem. É o que certamente também faz a força desse texto, o que lhe dá continuamente uma espécie de atualidade.

Tradução de Paulo Neves

NOTA

  1. Presses Universitaires de France, 1998.

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