1988

O olhar iluminista

por Sergio Paulo Rouanet

Resumo

É preciso, de início, diferenciar Ilustração de Iluminismo. Este seria uma tendência atemporal caracterizada por atitudes racionais e críticas, que se voltam contra o mito e o poder. Já a Ilustração corresponde ao movimento de ideias que se deu no século XVIII, em torno da Enciclopédia, a mais importante realização histórica do Iluminismo.

Trata-se de isolar os aspectos do olhar ilustrado para, a partir deles, estabelecer os fundamentos do olhar iluminista. Como? A considerar a Enciclopédia a summa theologica do século XVIII, é exatamente no verbete olhar que se encontra a seguinte formulação: “Não se vê sempre o que se olha, mas se olha sempre o que se vê”.

Conteria ela os fundamentos em questão?

Por partes: “Não se vê sempre o que se olha”. Leia-se: é preciso ver tudo. “Olha-se sempre o que se vê”. Leia-se: é preciso olhar corretamente o que se vê. Ética e politicamente, como tais conceitos se cruzam?

Já no “Discurso preliminar” da Enciclopédia lê-se: “Deve-se expor tanto quanto possível a ordem e o encadeamento dos conhecimentos, de modo a revelar os princípios gerais em que eles se baseiam, além de seus pormenores fundamentais”.

Assim é também com o mundo social e político. Os mitos e os dogmas, por exemplo. Mantinham-se porque não eram vistos.

Atenção especial requer a visão da noite, pois é nela que se esconde o poder opressor, presente no dogma ou no tirano, divinizado.

Nota-o, especialmente, Rétif de la Bretonne, o espectador noturno. Tanto que escreve: “Quantas coisas podem ser vistas quando todos os olhos estão fechados. Eu quis ver tudo”.

Como o ver, o olhar engana. O que fazer, contudo? Estudar a ótica para, consciente do erro, superá-lo. Mais: no que se refere à sociedade, submeter-se a um processo pedagógico, educação contra educação.

Nesse sentido, destaca-se A carta sobre os cegos de Diderot, que – mais do que “o mito do cego que vê” – trata do olhar que não sabe ver.

E, em meio a tudo isso, o “olhar que é visto”? Foi Rousseau que tratou dele, uma vez que, segundo ele, a Ilustração nada construiu para além da aparência que denunciou. Não estabeleceu uma simetria ou a “transparência de todos”.

Não por acaso, eis que se lê em suas Confissões: “Quero mostrar um homem em toda a verdade de sua natureza… Mostrei-me como fui, desprezível ou vil, generoso ou sublime”.

Em seu Contrato social, a transparência é a mesma. Isso porque a dimensão social apresenta-se como primeira instância da reflexão sobre a falsa consciência e a falsa ideologia.

Trata-se, enfim, de substituir o lema kantiano “ousa saber” pelo “ousa ver”.


I

Partirei nesta palestra de uma distinção entre Ilustração e Iluminismo, que propus em trabalhos anteriores. O Iluminismo seria uma tendência transepocal, não limitada a nenhum período específico, que se caracteriza por uma atitude racional e crítica. Ela combate o mito e o poder, usando a razão como instrumento de dissolução do existente e de construção de uma nova realidade. Chamo de Ilustração o movimento de ideias que se aglutinou, no século XVIII, em torno dos filósofos enciclopedistas: Diderot, Voltaire, d’Alembert. A Ilustração foi a mais importante das realizações históricas do Iluminismo, mas não a primeira, nem a última. Como unidade de razão crítica e de crítica racional, o Iluminismo continua vivo, ainda que sem identidade conceitual clara. Para dar contornos mais definidos a essa identidade, sugeri tomarmos a Ilustração como a matriz mais geral do pensamento iluminista, dela derivando estruturas abstratas que ajustadas às realidades contemporâneas pudessem ajudar-nos a construir um Iluminismo moderno.[1]

Tentarei aqui usar para o tema do olhar a metodologia proposta. Ela consistiria, simplesmente, em buscar na Ilustração a fonte histórica de uma visualidade iluminista genérica, extraindo de conteúdos concretos, dados historicamente, as formas puras dessa visualidade, que depois de ajustados fossem aproveitáveis para o presente. Em outras palavras, tentaríamos isolar as características do olhar ilustrado para, num segundo momento, construir as estruturas do olhar iluminista.

Mas seria possível falar num olhar ilustrado em geral? Poucos movimentos foram mais heterogêneos que a Ilustração, e nada nos garante que o tema do olhar escapasse a essa heterogeneidade.

Para buscar essa unidade difícil, ocorreu-me que talvez fosse útil recorrer à Encyclopédie, para nela encontrar um ponto de partida mais ou menos genérico, que nos permitisse estudar aplicações particulares de um determinado paradigma, ou identificar desvios com relação a esse paradigma. Se a Encyclopédie, essa summa theologica do século XVIII, é a verdadeira e mais pura codificação do pensamento ilustrado, em todos os seus aspectos, não seria absurdo buscar nela ensinamentos sobre um desses aspectos.

Consultemos, pois, o volume 13 da Encyclopédie, nos verbetes consagrados ao regard, olhar, como substantivo e como verbo.[2]

Enquanto substantivo, regard é definido como a “ação do olho”. Assim, explica o enciclopedista, pode-se “lançar um olhar ao longe”, O olhar é tranquilo ou apaixonado, doce ou colérico, inquieto ou pacífico, atento ou distraído, indiferente ou curioso.

Como verbo, olhar significa “fazer uso dos seus olhos”. O verbete acrescenta essa indicação preciosa: “on ne voit pas toujours ce qu’on regarde, mais on regarde toujours ce que l’on voit”. Não se vê sempre o que se olha, mas se olha sempre o que se vê.

São os dois sentidos principais. Mas há significações acessórias ou figuradas. A Encyclopédie enumera vários sentidos do verbo olhar: “eu o olho como meu pai”, “é preciso em tudo olhar o fim”, “os dois astros se olhavam nesse momento”, “um cão pode muito hem olhar um bispo”. O substantivo olhar é também um termo de hidráulica, em que designa uma construção de alvenaria, em fontes e condutos de água, pela qual se desce para desobstruir um encanamento. Olhar é também um termo técnico de pintura. Diz-se que dois quadros constituem uma unidade chamada regard quando o personagem representado num deles encara outro personagem, representado no segundo quadro. A Encyclopédie exemplifica com um regard composto de duas estampas, representando respectivamente Gourdan e Santeuil, dois cônegos do mosteiro de St. Victor, com um dístico redigido por Santeuil, um dos retratados: “Proh! Quam dissimiles et vultu et moribus ambo! / Versibus hic sanctos, moribus ille, refert”. O que significa, como explica amavelmente o enciclopedista: “Como são diferentes em seu aspecto e em seu mérito ! Santeuil canta os santos, e Gourdan os imita”.

Tive a curiosidade de verificar como o mesmo tema é tratado por uma enciclopédia. contemporânea. Escolhi o Grand Larousse, certamente o equivalente moderno mais próximo, pelas dimensões, da Encyclopédie, no espaço cultural francês.[3]

As semelhanças são grandes. Como substantivo, olhar é definido como ação de olhar, de lançar a vista sobre alguma coisa. Como verbo, olhar significa dirigir a vista, ou os olhos, sobre algo. Como na Encyclopédie, assinalam-se os vários modos de olhar: suave, penetrante, severo. Aparecem vários dos sentidos figurados que encontramos na Encyclopédie, como a acepção hidráulica, e precisam-se alguns exemplos que nela apareciam de modo indeterminado. A frase “os dois astros se olhavam nesse momento” recebe o seu sentido exato, como parte do vocabulário da astrologia: distância de um astro em relação a outro.

As diferenças existem, mas não parecem ser fundamentais. São diferenças de tom, mais que de conteúdo. Há uma certa irreverência nos exemplos da Encyclopédie, que traem seu espírito contestador, e não estão presentes no Larousse, expressão lexicográfica de uma classe sisuda, respeitável, que há duzentos anos ultrapassou o estágio da revolta pubertária contra a autoridade. Não se diz mais que um cão tem o direito de olhar um bispo, frase que não foi cunhada pela Encyclopédie, mas cuja escolha como exemplo demonstra bem seu impulso dessacralizante, sua preocupação de privar de toda aura a dignidade eclesiástica, e evidentemente o Larousse nada tem que se assemelhe ao dístico latino de Santeuil, que critica a hipocrisia social, a virtude vazia, pregada no púlpito mas não praticada na vida. Aliás, desaparece de todo o próprio termo regard, no sentido de um díptico cujas partes estão entre si numa relação de correspondência. Teria o termo caído em desuso, ou nossa época não conhece mais aquela reciprocidade conivente, tolerante, típica do século XVIII, ilustrada nas estampas a que alude a Encyclopédie — os dois olhares cruzados do cônego letrado mais corrupto, e do cônego virtuoso que secretamente admira a capacidade do abbé de cour de compor epigramas elegantes? Seja como for, diferenças menores, que não parecem justificar nosso esforço de comparação.

De repente, descobrimos algo de mais importante. Não há nenhuma tentativa séria, no Larousse, de estabelecer uma correlação entre olhar e visão. Mas ela está presente, em todas as letras, na Encyclopédie: não se vê sempre o que se olha, mas se olha sempre o que se vê.

Em sua banalidade aparente, a frase resume, a meu ver, a essência da visualidade ilustrada. Temos o direito de vê-la como representativa de um ponto de vista genérico, porque o verbete que a contém não é assinado, o que nem sempre ocorre na Encyclopédie. Assim, o verbete que explica o uso hidráulico do termo regard é assinado com a letra K, e o que explica seu uso estético é assinado com as letras D. J. Essas letras misteriosas podem ser decifradas por qualquer especialista moderno em Encyclopédie K designa Dezaillier d’Argenville, autor de um livro sobre jardinagem, e J. D. refere-se ao Chevalier de Jaucourt, biógrafo de Leibniz e colaborador frequente da Encyclopédie. Não assinada, a frase que nos interessa exprime, em seu anonimato, uma concepção impessoal, que traduz um modo de ver coletivo, próprio da Ilustração como um todo.

Seja como for, a frase é duplamente reveladora: ela apresenta o olhar e a visão como solidários, e permite a análise concreta de cada elemento.

Creio que o entrelaçamento da visão e do olhar, com peso igual e distribuído a cada polo, é característico da Ilustração. Estaríamos saindo dela se acentuássemos de modo predominante um ou outro polo.

Se privilegiássemos a visão, estaríamos desvalorizando o olhar, e transformando-o em instrumento subalterno, quase indiferente diante do esplendor do que ele revela. O olhar é simplesmente um meio para um fim, uma ponte que dá acesso à visão, e é a visão que importa. O que conta não é o olhar de Moisés, mas a terra prometida que esse olhar permite antever. O que conta não é o olhar do filósofo platônico, mas a visão das essências, que fulgura diante desse olhar. O que conta não é o olhar místico, mas a visão de Deus, para a qual o olhar é mero meio de acesso. Os exemplos não foram escolhidos ao acaso: eles remetem, a um mundo arcaico, pré-enciclopedista, que está a anos-luz da Ilustração.

Se privilegiássemos o olhar, seria ele o tempo forte, e a visão é que se tornaria secundária. O olhar não é mais ponte, propedêutica, mas poder sobre as coisas e atividade original, constituinte. Se a primeira perspectiva alude a um passado anterior à Ilustração, a segunda a transcende. Estamos em plena modernidade. Reconhecemos esse olhar soberano. É o do pensamento operatório, para o qual a realidade é construída pelo instrumento, que não capta o objeto, mas a estrutura. O mundo é aquilo que nossos instrumentos permitem medir. O existente é o correlato das operações que podemos realizar sobre ele. O que não pode ser objeto de nenhuma operação não tem existência empírica. A visão é construída pelo olhar dominador.

Cada uma dessas perspectivas, isoladamente, nos afasta da Ilustração: ou em direção ao passado, ou em direção ao futuro. A Ilustração está na unidade desses dois momentos. Corrigida pela importância do olhar, a visão deixa de pertencer ao mundo platônico-cristão. Só é válida a visão que foi obtida, não pelo daímon socrático, pelo êxtase divino ou pela intuição, mas pelo olhar, um olhar humano, terreno, racional, adestrado por uma longa paciência. Corrigido pela importância da visão, o olhar deixa de pertencer ao mundo operatório-instrumental do positivismo moderno: só a visão justifica o uso do olhar. Sem o olhar a visão é ilusória, sem a visão o olhar é inútil. Nem a contemplação das essências, como a theoria grega, nem fetichização do instrumento, como na episte-mologia operatória, a Ilustração é as duas coisas: olhar a serviço da visão, visão funcionalizada pelo olhar.

Mas essa formulação ainda,é vazia, e, no fundo, trivial. Não basta dizer que a dialética da visão e do olhar carácteriza a Ilustração. Se quisermos sair da abstração, temos que entender a natureza da cada um dos pólos. Creio que poderíamos nos aproximar desse resultado se voltássemos à frase da Encyclopédie, desmembrando-a e analisando as duas frases simples que a compõem.

Não se vê sempre aquilo que se olha: quem não percebe nessa frase aparentemente descritiva uma exigência normativa implícita? A frase está galvanizada por uma tensão interna, quer explodir sua moldura descritiva, e para isso dirige um apelo ao leitor, para que ele acrescente um complemento: sim, mas deveria ser possível ver tudo o que se olha. O enciclopedista está subentendendo, ao dizer que nem sempre se vê tudo o que se olha, que essa visão parcial é imperfeita, anômala, deficitária, e que o ideal humano é da visibilidade irrestrita. Ele não pode ser atingido, mas deveria ser constantemente visado. A frase descritiva converte-se, assim, numa frase prescritiva: épreciso ver tudo.

Olha-se sempre aquilo que se vê: para ver é necessário olhar. É uma verdade de La Palisse, que não pode ser contestada por ninguém. Mas ela deixa de ser um lugar comum se confrontada com a frase anterior. Pois esta contém uma exigência desmedida. Não basta ver, é necessário ver tudo: não é qualquer olhar que pode atender a essa exigência. Precisamos de um olhar educado, capaz de ver todas as coisas, tanto as que se oferecem imediatamente à percepção como as que escapam à percepção imediata. Se é assim, também essa proposição descritiva pode ser convertida numa proposição normativa: épreci-so olhar corretamente o que se quer ver.

Assim reformulada, a primeira frase define um domínio de objetos — a totalidade do real — e a segunda um estilo de olhar — o que permite atingir a meta da total visibilidade. Duas normatividades: a da visão e a do olhar. Uma ética, ou uma política, da visão: é preciso ver tudo. Uma disciplina do olhar: adestrar o olho, armá-lo com as tecnologias necessárias, dirigi-lo de maneira correta para o seu objeto. Esse duplo imperativo resume, a meu ver, a visualidade ilustrada. O homem tem a obrigação de ver tudo, e para isso tem que submeter-se a uma pedagogia do olhar.

Vejamos como funcionam, na Ilustração, essas duas normatividades cruzadas.

 

II

 

É preciso ver tudo: é o reino da visibilidade universal.

Aplicada às coisas, essa máxima significa que a totalidade do real se torna disponível para a visão ilustrada. A natureza inteira é um livro a ser lido, sem censura e sem.ne-nhuma necessidade de um nihil obstat por parte da autoridade, secular ou religiosa. O mundo é uma superfície plana que se oferece inteira ao olhar, em suas articulações empíricas e em suas leis inteligíveis. A Encyclopédie é ao mesmo tempo a exposição metódica dos conhecimentos humanos, como sistema e em sua ordem interna, e explicação analítica de cada ciência, de cada ofício, de cada arte, da teologia à música, da lógica à arte de construir instrumentos musicais, das técnicas de produzir o vinho às técnicas de fabricar açúcar. Como disse d’Alembert, no Discours préliminaire, a obra que se iniciava tinha dois objetos. “Como Enciclopédia, deve expor tanto quanto possível a ordem e encadeamento dos conhecimentos humanos; como dictionnaire raisonné des sciences, arts et métiers, deve conter sobre cada ciência e cada arte, seja liberal, seja mecânica, os princípios gerais em que se baseiam, e os pormenores mais importantes que compõem seu corpo e substância.”[4] A Ilustração é utilitária, como diz um dos exemplos do nosso verbete — “il faut en tout regarder la fin” —, e por isso nada é tão sublime que não possa ser visto, nem tão humilde que não mereça ser visto. Ela desce do céu da astrologia, como em nosso exemplos — “deux astres se regardaient alors” até o subsolo das instalações hidráulicas. Todas as ciências e todas as técnicas são igualmente importantes, porque cada uma delas revela ao olhar um aspecto genérico ou específico de um grande todo visível, que deve ser anexado em bloco a um campo visual em princípio ilimitado, e que deve tendencialmente estender-se a todas as coisas criadas.

Aplicada ao homem e às instituições humanas, a máxima significa que não há mais zonas de sombra no mundo social e político. Assim como tudo deve ser visto no mundo físico, tudo deve ser visto no universo humano. Não há mais interditos, espaços extraterritoriais protegidos pelo privilégio da invisibilidade. Os mitos e os dogmas se mantinham porque não eram vistos, mas agora precisam ser vistos. A teoria política do absolutismo dizia que o governo dos homens foi instituído por Deus — implacável, a Ilustração descobre, com a doutrina do contrato, que ele foi uma criação convencional do homem. A teologia cristã fundava sua autoridade nas Escrituras — a Ilustração lê essas Escrituras, e descobre, com Bollingbroke e Voltaire, usando os métodos da filologia e da crítica histórica, que elas são um tecido de ficções. A moral deriva das normas existentes da revelação. A Ilustração, numa de suas vertentes, reconhece sua universalidade, mas a deriva de uma consciência natural presente em todas as latitudes, independentemente de qualquer religião específica, e em outra de suas vertentes nega essa universalidade, descobrindo, nas descrições de viagem, que essas normas são relativas, e que existem culturas não repressivas.[5] Não há mais investigações proibidas. A literatura libertina abre à visão o Campo da sexualidade, e com Sade a filosofia penetra na alcova. Antes de Freud, o próprio inconsciente é devassado. Diderot afirma que “existe um pouco de testículo no fundo dos nossos sentimentos mais sublimes e de nossa ternura mais reftnada”, e que “se a criança tivesse a força de um adulto, estrangularia seu pai e dormiria com sua mãe”.[6] A literatura utópica da época está cheia de hermafroditas, gigantes, homens voadores, seres híbridos semi-humanos e semibestiais — larvas monstruosas que habitam as trevas do Id e que podem agora ser mostradas à luz do dia.[7]

Com efeito, se todos os objetos podem e devem ser vistos, os que moram na noite precisam ser observados com especial atenção. Pois é nela que se esconde o poder para oprimir. O poder do clero, que invocava o mistério do dogma, e do tirano, que invocava o mistério de sua origem divina, são indevassáveis exatamente porque se abrigam no mistério, na treva protetora. Se a Ilustração quer liberar um espaço de visibilidade irrestrita, é principalmente para desmascarar os opressores. O poder medra, como uma fauna subterrânea, em lugares mal-iluminados, e a Ilustração quer expulsá-lo seu covil noturno, para que possa ser combatida de dia, ou sob os archotes da razão. Descrevendo as engrenagens incompreensíveis do ancien régime, Michelet escreve: “O que havia de mais tirânico na velha tirania era sua obscuridade. Obscuridade do rei ao povo, do governoda cidade à cidade, obscuridade não menos profunda do proprietário camponês”. 
E contrapondo as forças da Revolução às da reação feudal: “Deste lado tudo é luz. Do outro, tudo é equívoco, incerteza e trevas”[8].  O poder é essa zoologia imunda que pulula no pântano e rasteja na noite. Sua força está na invisibilidade. É a partir dela que o poder estende seus tentáculos, vendo tudo e não sendo visto por ninguém, como os mil espiões invisíveis da polícia de Sartine, que descreviam os pormenores mais ignóbeis da vida cotidiana, em relatórios que eram lidos por Luís XV e sua corte.

É possível combater a noite à distância, escrevendo livros; mas é também necessário combatê-la entrando nela. É o que fez uma das mais inquietantes figuras da Ilustração, o novelista Rétif de la Bretonne. Rétif escreveu dezenas de romances em que descreve personagens profundamente impregnados das idéias da Ilustração, como o monge diabólico de Le paysan perverti e de La paysanne pervertie, e dezenas de ensaios e panfletos, em que defende com veemência propostas revolucionárias; mas é quando parece afastar-se do mundo diurno da Ilustração, dando as costas à luz, que revela um dos aspectos mais essenciais do período.

Em Les nuits de Paris, Rétif se apresenta como um “espectador noturno”, que percorre todas as noites as ruas de Paris para observar o que se passa na cidade escura. Num certo sentido, ele é o flâneur da noite, que como o flâneur de Benjamin[9] perambula na rua para colher sensações, com a única diferença de que não as procura na massa, durante o dia, mas à luz dos reverberos, nas ruas desertas. Rétif se fascina com a vida noturna das prostitutas, dos ladrões, dos jogadores, como o flâneur diurno de Benjamin. Mas este está interessado no Erlebnis, na mera vivência, e não na visão. Ele é um espectador distraído, ao qual se aplica a primeira frase do verbete da Encyclopédie: “on ne voit pas toujours ce qu’on regarde”. Rétif não quer apenas olhar, mas também agir, e sabe que só pode fazê-lo se conseguir ver tudo o que vive na noite. Ele é o vagabundo noturno da Ilustração, o lúmpen-iluminista que quer olhar o mundo para transformá-lo, e não um dândi da modernidade emergente, cultor da arte pela arte, e que não tem mais nenhum compromisso com a história. A flânerie de Rétif é ativa, utilitária, enquanto a do seu sucessor é passiva e contemplativa. Rétif não se limita a observar as prostitutas, mas quer reformá-las, arrancá-las à ignomínia; observa as injustiças e perseguições que se dão durante a noite, mas toma o partido das vítimas; entre duas ações justiceiras e dois discursos moralizantes, ele tem tempo de intercalar reflexões sobre a saúde pública, e propõe medidas de saneamento urbano, como a proibição de jogar imundícies pela janela. As últimas Noites ocorrem depois da Revolução, e o espectador-ator não se limita a narrar o episódio da tomada da Bastilha e o dos massacres de setembro de 1792, mas intervém nos fatos narrados, toma posição, condena, elogia, age.

Nunca Rétif é mais homem das Luzes que quando ingressa na noite. Seu animal emblemático é a coruja, que aparece majestosamente instalada na cabeça do “espectador noturno”, na extraordinária gravura que ilustra a primeira edição das Nuits. Pois a coruja, animal noturno, tem o dom de enxergar na noite. Não é por acaso que
é o símbolo de Minerva, deusa da sabedoria. Ela habita a noite, mas somente para devassá-la. Sua verdadeira lealdade é com a luz. Animal solar em sua vocação mais íntima, ela adere à noite, funde-se com ela, num mimetismo fundo com aquilo que combate.

Ouçamos o espectador noturno, no início do livro. “Coruja! Quantas vezes teus gritos fúnebres me fizeram estremecer, na sombra da noite! Triste e solitário, como tu, eu errava só, entre as trevas, nessa capital imensa! […] Eu errava só, para conhecer o homem […].  Quantas coisas podem ser vistas, quando todos os olhos estão fechados! […] Cidadãos pacíficos, eu velei por vós; percorri sozinho as noites, por vós. Por vós, entrei nas antros do vício e do crime […]. Pais, mães de família! Preparai minha coroa. Foi por vós, por vossos filhos, que me fiz coruja. O frio, a neve, nada me detinha: eu quis ver tudo […]. Vi o que ninguém viu senão eu. Meu império começa ao nascer do sol, quando a aurora abre as barreiras do dia.”[10] No final, já no período revolucionário, Rétif reencontra sua vocação de visionário e de justiceiro: “Retoma, coruja, teu vôo tenebroso!

Lança ainda alguns gritos fúnebres percorrendo as ruas solitárias desta vasta cidade, para amedrontar os criminosos e os perversos”.[11]

As injustiças que Rétif combate moram na noite, como as combatidas pelos filósofos. Somente, Rétif é notívago, não-matinal. Sem o olhar noturno, a visão seria incompleta, e o poder não seria verdadeiramente devassado. Para ver tudo, a Ilustração precisa de dois olhares — o da águia, que olha do alto e dorme de noite, e o da coruja, que dorme de dia e vê de perto a sua presa, fazendo-se tão tenebrosa quanto ela. São o lado diurno e o noturno do mesmo sonho da visibilidade universal. “Quantas coisas podem ser vistas, quando todos os olhos estão fechados! Eu quis ver tudo.”

III

“É preciso olhar corretamente o que se quer ver”. Para ver tudo, o olhar da Ilustração tem que ter dois atributos principais: a lucidez e reflexidade. Para ser lúcido, o olhar tem que se libertar dos obstáculos que cerceiam a vista; para ser reflexo, ele tem que admitir a reversibilidade, de modo que o olhar que vê possa por sua vez ser visto. Se essas duas características não estivessem presentes, não seria possível ver tudo, e com isso não ficaria atendido o objetivo máximo da visualidade esclarecida. Um olhar incompetente não daria acesso a todos os objetos; um olhar sem reversibilidade criaria uma distinção entre os que vêem e os demais, fazendo com que alguns indivíduos não fossem vistos, o que mais uma vez contrariaria a meta da universalidade.

A Ilustração quer ver tudo, mas sabe que de modo geral o olhar não está preparado para ver. O olhar do homem primitivo tinha um alcance limitado, porque sendo poucas suas necessidades seu raio visual era restrito. O olhar do homem civil, pelo contrário, poderia em princípio ver muito, devido à complexidade da vida civilizada e ao progresso da ciência, mas esse potencial foi truncado pela imposição artificial de obstáculos, no interesse dos governantes. O olhar foi reprimido autoritariamente, e desviado do seu verdadeiro objeto. Ele foi educado para não ver. Na essência, é o tema do préjugé, do preconceito, talvez o mais característico da Ilustração.

O preconceito é uma cegueira induzida socialmente. Ele é inculcado desde a infância pelo clero e pelos tiranos, para que sua supremacia se perpetue. Ele mergulha o mundo nas trevas, para impedir a ação do olhar. A Ilustração martela, incansavelmente, as grandes metáforas da luz e da noite, para mostrar como os dominadores procuram tornar o mundo opaco ao olhar.

“A superstição e a tirania”, diz Holbach, “invadiram o mundo; fizeram dele un cárcere tenebroso, cujo silêncio só é perturbado pelos clamores da mentira, ou pelos soluços que a opressão arranca dos cativos que aprisiona. Sempre vigilantes, essas duas fúrias impedem a luz de abrir passagem em sua morada escura.”[12] O preconceito é sempre concebido como um obstáculo, uma venda que inibe o olhar. Correlativamente, libertar-se do preconceito significa recuperar o direito ao olhar. “Afasta pois, ó ser inteligente, a venda que cobre tuas pálpebras; abre teus olhos à luz; serve-te do archote que a natureza te apresenta, para contemplar os vãos objetos que te perturbam o espírito. Chama a experiência a teu socorro; consulta tua razão; […] e breve verás que só o delírio criou os fantasmas que te inquietam.”[13] No final do Système de la Nature, Holbach dirige uma prece à Natureza, e às suas “filhas adoráveis”, a razão, a virtude e a verdade. “Uni, ó divindades propícias, vosso poder para submeter os corações. Bani de nosso espírito o erro, a perfídia, a inquietação; colocai em seu lugar a ciência, a bondade, a serenidade […]. Fixai enfim nossos olhos, durante tanto tempo ofuscados ou cegos, sobre os objetos que devemos procurar. Afastai para sempre esses fantasmas hediondos e essas quimeras sedutoras que só servem para perder-nos.”[14] 0 olhar cego, o olhar cativo, o olhar supersticioso, o olhar intimidado pela tirania e pelo dogma, não podem ver. Ou vêem miragens, “fantasmas hediondos e quimeras sedutoras”. A falsa visão é correlativa de um olhar deficiente. Só o olhar sábio, instruído pela razão e pela experiência, livre de todas as vendas e de todos os obstáculos, pode julgar da realidade e da objetividade do que é visto. É preciso ver tudo, mas é preciso olhar tudo devidamente.

A importância atribuída pela Ilustração ao olhar competente se manifesta no fato de que todas as descrições do erro cognitivo se baseiam no modelo da ilusão de ótica.

Esse topos já havia aparecido desde os primórdios do pensamento moderno. Bacon, por exemplo, usou esse modelo quando quis assinalar os limites do entendimento humano, em consequência da estupidez e embustes dos sentidos, stupore et fallaciis sensuum: graças aos erros dos sentidos, o entendimento é como um espelho falso, que recebe irregularmente os raios luminosos, distorcendo e “infeccionando” a natureza das coisas — e am que naturam distorcit et inficit.”[15] Da mesma forma, Spinosa havia usado a figura da ilusão de ótica para ilustrar-sua concepção da imaginatio, da ilusão necessária. A ilusão pela qual percebemos o Sol como próximo do observador ou os raios luminosos refratados pela água como situados no próprio líquido, não desaparece quando conhecemos a verdadeira distância do Sol, ou sua localização no espaço celeste, pois essa imagi-natio não é arbitrária, e no fundo corresponde a uma descrição exata, porque “explica a natureza do Sol na medida em que afeta o nosso corpo”.[16]

Mas é na Ilustração que a assimilação do preconceito à ilusão de ótica se tranforma em moeda corrente. Numa época dominada pelo empirismo de Locke e pelo sensualismo de Hume e Condillac, segundo os quais não há idéias inatas e todo conhecimento vem dos sentidos, a falibilidade dos sentidos, em geral, é especialmente grave, pois a falsa percepção produzida por uma aparelho sensorial sujeito a enganar-se produzirá inevitavelmente idéias falsas. Mas é característico do privilégio concedido ao olhar que as distorções dos sentidos tenham sempre como paradigmas as ilusões visuais.

“Não é algo de curioso”, pergunta Voltaire no verbete “Preconceito” do seu Dictionnaire philosophique, que nossos olhos nos enganem sempre, e que pelo contrário os nossos ouvidos não nos enganem? Quando vosso ouvido escuta: sois bela, eu vos amo, podeis estar certa de que não vos disseram: eu vos odeio, sois feia. Mas vedes um espelho liso: está demonstrado que vos enganais, é uma superfície muito desigual. Vedes o Sol com cerca de dois pés de diâmetro: está demonstrado que é um milhão de vezes maior que a Terra. Pareceria que Deus pôs a verdade em vossos ouvidos, e o erro em vossos olhos. Mas estudai a ótica, e vereis que Deus não vos enganou, e que é impossível que os objetos vos pareçam de outro modo que o que vedes no estado atual das coisas”.[17]

Dezessete anos depois de Voltaire, Kant retoma o topos para ilustrar as características da ilusão transcendental. “A ilusão transcendental […] não cessa quando a crítica transcendental a diagnostica, revelando claramente sua invalidade (por exemplo, a ilusão de que o mundo teve origem no tempo) […]. É uma ilusão tão pouco evitável quanto a que faz o mar aparecer mais alto no horizonte que no litoral, porque o vemos através de raios luminosos mais altos, ou, para citar um exemplo melhor ainda, como a que leva o astrônomo a perceber a lua maior no momento que surge, embora ele não se deixe enganar por essa ilusão… Existe assim uma dialética natural e inevitável da razão pura não uma dialética em que uma pessoa incompetente se enreda por ignorância, ou que seja inventada por um sofista para confundir seu pensamento, mas inseparável da razão humana, e que mesmo depois que seu caráter enganador foi revelado continuará a pregar peças à razão, envolvendo-a em aberrações momentâneas que precisam incessantemente ser corrigidas.[18]

O modelo da ilusão de ótica permite acentuar, pelo exemplo extremo de uma limitação física aparentemente insuperável, a educabilidade do olhar. Não podemos deixar de perceber o mundo físico de modo distorcido, mas a ciência mostra que a distorção existe, e através dela podemos aceder a uma espécie de visão intelectual, segunda, que corrige a falsa percepção. Voltaire é claro: se estudarmos a ótica, continuaremos percebendo as coisas físicas de um modo ilusório, mas saberemos que essa percepção é fictícia, e nesse sentido teremos vencido o erro. A dialética transcendental, em Kant, não abole a ilusão, mas a mostra como ilusória: a razão produz quimeras, mas elas podem e devem ser incessantemente corrigidas. Educado pela ciência, o olho acede ao mundo inteligível, e liberta-se da visibilidade empírica.

Mas se até a deformação visual produzida pelas leis do mundo físico pode ser vencida, com mais forte razão podemos vencer a que não é imposta pela natureza, mas pela sociedade. Aqui podemos falar, verdadeiramente, numa pedagogia do olhar. Não se trata mais de compensar, pela ciência, um erro inevitável, mas de corrigir, pela educação, um erro contingente. É preciso combater pela educação a cegueira produzida pela educação. A educação repressiva cria os preconceitos, que funcionam como anteparos, bloqueando a visão, e como refratores, que dão do mundo social uma visão tão distorcida como a produzida, no mundo físico, pela ilusão de ótica. Ela ensina a não ver, e graças a essa não-visão o poder se torna intangível, pois seus verdadeiros mecanismos não podem ser desvendados. E ensina a ver o que não existe, gerando os “espectros e quimeras” de que fala a retórica da época, e cuja principal função é manter o homem no medo e na ignorância, perpetuando com isso a hegemonia dos poderosos. Mas a verdadeira educação, exercida pelos legisladores, filósofos e pedagogos, poderá remover as vendas que bloqueiam o olhar.

O tema da educação dos sentidos sempre fascinou os filósofos da Ilustração. Os sentidos não educados são incapazes de perceber o mundo. “Suponhamos”, diz Rousseau no Emile, “que uma criança tivesse ao nascer a força de um homem feito, que por assim dizer saísse armado do seio de sua mãe, como Palas saiu do cérebro de Júpiter. Esse homem-criança seria um perfeito imbecil, um autômato, uma estátua imóvel e quase insensível. Ele não veria nada, não escutaria nada, não conheceria ninguém, não saberia dirigir os olhos sobre aquilo que tem necessidade de ver.[19]

A importância do olhar educado é acentuada por Diderot num texto fundamental: A carta sobre os cegos, de 1749. Nessa época, um famoso cirurgião prussiano anunciara que ia fazer uma operação de catarata numa cega de nascença. Diderot pede autorização para presenciar o momento em que a atadura fosse retirada do olhos da paciente, para poder observá-la quando começasse a ver, mas a autorização é negada. Diderot se vinga escrevendo um livro em que relata suas observações sobre um cego que ele conhecera pessoalmente, e sobre o famoso Saunderson, também cego de nascença, que lecionara ótica em Cambridge. Numa série de páginas deslumbrantes, Diderot mostra como determinados cegos conseguem perceber o mundo muito mais exatamente que os homens com vista normal. Desenvolvendo uma hiperacuidade graças ao tato e à audição, esses cegos conseguem chegar a percepções e noções abstratas de matemática e física que em geral não são alcançadas pelos que enxergam.

À primeira vista, é o tema do “cego que vê”, que nos foi legado pela Antiguidade: o de Homero, de Dídimo de Alexandria, de Eusébio, o Asiático, de Nicásio de Mechlin, “que pareciam tão acima do resto dos homens, com um sentido a menos, que os poetas teriam podido fingir, sem exagero, que os deuses ciumentos os privaram da vista por medo de terem concorrentes entre os mortais. O que era esse Tirésias, que lera os segredos dos deuses, e tinha o dom de prever o futuro, senão um filósofo cego de que a fábula nos conservou a memória?”.[20]

Mas uma leitura mais atenta mostra que Diderot não está idealizando a cegueira, e sim chamando atenção para a importância do olhar educado. Seu verdadeiro modelo é Édipo, mais que Tirésias. Pois em Édipo a cegueira não é uma via de acesso à verdade, mas uma autopunição que o herói se inflige depois de ter descoberto a verdade, uma forma de castigar um órgão incompetente, um olhar que podia ver, mas não soubera ver. Diderot não está fazendo a apologia da cegueira, mas criticando o olhar que não sabe ver. Ele parte do anormal para chegar ao ideal da verdadeira normalidade, num procedimento seguido pelo próprio Diderot, em suas especulações sobre as condições de sobrevivência dos animais monstruosos e deformados, que o levaram a prefigurar o darwinismo, por Marx, que descobriu em parte a normalidade do modo de produção capitalista pela análise do seu funcionamento patológico — a crise econômica —, e por Freud, que chegou à normalidade da vida psíquica através do estudo da neurose.

O exame da cegueira física é um método para compreender a cegueira social. Pois o que faz o olho são mas que não sabe ver? Ele absolutiza uma visão imperfeita — os “espectros e quimeras” de Holbach — sem se dar conta de que eles são os correlatos de uma visão errônea, deformada pelo preconceito. Não é capaz, assim, de perceber a relatividade da metafísica, da teologia, da moral. Assim como Voltaire mostra essa relatividade através das opiniões de um habitante de Sirius visitando a Terra — Micromegas — e Montesquieu através das opiniões de um persa visitando a França, Diderot a mostra através das opiniões de um cego que aprendeu a perceber o mundo através do tato. Também ele é um estrangeiro, porque se relaciona com as coisas através de outra grade sensorial.

O cego de nascença não tem pelo assassinato, por exemplo, o mesmo horror que nós, porque esse horror resulta em grande parte do espetáculo visual de um crime que se pratica diante dos seus olhos, o que evidentemente deixa o cego indiferente. Em compensação, tem uma aversão especial pelo roubo, devido à facilidade com que ele pode ser roubado, e à facilidade com que outros o descobririam, se ele próprio quisesse roubar. Não compreende nossas noções de pudor, pois para ele um corpo nu é tão invisível como um corpo vestido. A fidelidade conjugal tem para ele outro sentido, pois como sua mulher pode facilmente enganá-lo sem que ele perceba os sinais trocados pelos amantes em sua presença, tudo leva a crer que num povo de cegos ou as mulheres seriam comuns a todos ou as leis contra o adultério seriam mais rigorosas. Os símbolos exteriores do poder não o afetam. Segundo nosso autor, um cego compareceu, impassível, diante de um magistrado, e não se deixou intimidar pela ameaça de que se não se comportasse com menos arrogância, seria jogado num poço escuro. A resposta do cego foi imperturbável: “Há 25 anos vivo nele”. As abstrações que ele constrói são mais seguras que as nossas. Como a abstração consiste em separar pelo pensamento as qualidades sensíveis umas das outras ou do corpo que lhes serve de substrato, o cego é menos sujeito a enganar-se, porque no homem sadio essa separação se faz quando combina e dissocia, na imaginação, pontos visíveis e coloridos, e no cego, quando combina e dissocia pontos palpáveis, muito mais materiais. Quando Saunderson, o cego genial, estava à morte, recebeu a visita de um pastor, que lhe falou em Deus. A resposta de Saunderson foi: “Eu teria que tocar em Deus para que pudesse acreditar nele”.

Em nenhum desses exemplos, Diderot está fazendo o elogio da cegueira, do mesmo modo que Erasmo nunca fez realmente um elogio da loucura. Erasmo elogiou a razão sábia, que conhece o substrato de loucura que está na base da razão humana, assim como Diderot elogia o olhar competente, que passou pela experiência da cegueira social, e elevou-se acima dela, pela ciência e pela educação. O que fez a superioridade de Saunderson foi seu saber filosófico e científico, e não sua cegueira. Sem esses conhecimentos, um cego de nascença a quem fosse restaurado o uso da vista não poderia ver corretamente as coisas. “Quanto a mim, teria menos confiança nas respostas de uma pessoa que vê pela primeira vez que nas descobertas de um filósofo que tivesse meditado seu tema na escuridão, ou, para falar a linguagem dos poetas, que tivesse furado seus olhos para conhecer mais facilmente como se dá a visão.”[21] Esse filósofo tem o que o homem sem luzes não tem, seja ele sadio ou cego: a capacidade de olhar. Ele pode ver, porque seu olhar foi submetido a um processo educativo. “É preciso talvez que o olho aprenda a ver, como a língua a falar… O olho experimentado de um homem faz ver melhor os objetos que o órgão débil e novo de uma criança ou de um cego de nascença a quem tivessem retirado a catarata.”[22]

O verdadeiro filósofo, o homem que aprendeu a olhar, desconfia da percepção imediata, quase sempre ilusória, e a relativiza comparando-a a outras formas de percepção, que dão dos mesmos objetos uma visão diferente — a percepção de Micromegas, e a do cego. Ele não diz que a percepção do cego é superior à sua, diz que sua própria percepção talvez não seja a melhor, nem a única possível, e a prova é que a percepção tátil é distinta da percepção visual. Ele opõe à percepção etnocêntrica de um olhar ingênuo, que transforma em absolutos os valores e instituições de sua própria cultura, a percepção por assim dizer etnográfica de um olhar que passou pela pedagogia da diferença e do pluralismo. Ele é tão concreto quanto a percepção tátil, tão sensível às nuanças quanto a percepção auditiva. É um olhar educado, plenamente apto para atender à grande exigência da Ilustração: ver tudo.

Os outros, os que não sabem ver, é que são os verdadeiramente cegos. “Se um homem que só viu durante um ou dois dias se encontrasse confundido num povo de cegos, teria ou que se calar ou que se resignar a passar por louco. Ele lhes anunciaria cada dia um novo mistério, que só seria um mistério para eles. […] Esse exemplo ilustra a história e as perseguições sofridas por aqueles que tiveram o infortúnio de encontrar a verdade num século de trevas, e a imprudência de revelá-la aos cegos, seus contemporâneos.”[23]

De modo geral, os filósofos da Ilustração acentuaram sobretudo o olhar que vê, relegando a um segundo plano o olhar que é visto. Caberia a Rousseau desenvolver plenamente a dialética da reciprocidade. Mas seria um erro ver nessa ênfase rousseauísta uma ruptura com a Ilustração. Em vários temas essa oposição existe, mas não no tema do olhar. Rousseau está plenamente no espírito da Ilustração quando denuncia os males da aparência, quando tenta desmascarar os preconceitos, quando percebe na separação entre o ser e o parecer a principal fonte de todos os desastres. Em sua desmistificação do mundo ilusório, em sua tentativa de romper o véu das aparências, atrás do qual se oculta a autoridade ilegítima, Rousseau é tão enciclopedista quanto a “coterie holbachique” que ele combate. A frase do Emile segundo a qual “a religião serve unicamente de máscara ao interesse, e o culto sagrado, de salvaguarda à hipocrisia” poderia ser endossada pelo chefe dessa coterie, Holbach em pessoa.

Apenas os outros filósofos não levaram às últimas consequências a dialética do desvendamento. Segundo Rousseau, eles retiraram o véu da aparência somente para instalar-se mais comodamente num mundo privado de valores. Sua démarche é crítica, mas não construtiva. Denunciam o falso aparecer, mas não querem construir um mundo além da aparência. Seu olhar fecha-se ao olhar do outro, impedindo o advento de uma verdadeira transparência, que supõe uma visibilidde simétrica, em que todos sejam transparentes a todos. Mas Rousseau nunca foi mais um homem da Ilustração que quando parece opor-se a seus principais representantes. É em nome da lógica imanente da visualidade ilustrada que ele conduz seu combate. Sem a transparência de todos a todos, o ideal da visibilidade universal não poderia realizar-se. Ele não censura as outras correntes da Ilustração por terem querido tornar límpido um mundo opaco, mas por terem parado a meio caminho na busca de uma totalidade translúcida.

Rousseau tinha boas razões para opor-se ao olhar assimétrico. Era o olhar do Consistório de Genebra, que vigiava minuciosamente a vida privada de todos os cidadãos, e o do censor régio, que não perdia de vista escritos subversivos, como Emile. Para Rousseau, é preciso opor a esse olhar unilateral um olhar reversível, capaz de destruir, nas duas direções, o reino das aparências ilusórias.

Esse desejo de reciprocidade é em parte a expressão sublimada da doença de Rousseau. Ele é voyeur, mas também exibicionista. Nas Confissões, o jovem Rousseau entra clandestinamente na alcova de Mme. Basile, para observá-la enquanto dorme. Em Lyon, observa uma jovem que se banha. Na Nouvelle Heloise, Saint-Preux passa os dias no telescópio, observando todos os movimentos de Julie. Mas essa visão exclusivamente ativa é insuportável para Rousseau, que sempre encontra meios de denunciar sua presença. Mme. Basile é alertada por um espelho, a jovem de Lyon por uma canção entoada pelo próprio Rousseau, Julie por uma carta de Saint-Preux. Em outras ocasiões não se trata de um voyeurismo fracassado, em que quem vê passa a ser visto, mas de um verdadeiro exibicionismo, em que prodomina a pulsão de mostrar. Em Turim, Rousseau mostra às criadas suas partes genitais (l’objet ridicule, diz ele), e toda sua obra autobiográfica, em que Rousseau não esconde nada — nem seu onanismo, nem seu masoquismo, nem seu gesto infame de roubar uma fita e atribuir seu roubo a uma criada inocente, nem o abandono de seus filhos      pode ser considerada como um grande projeto de autodesnudamento exibicionista. “Quero mostrar a meus semelhantes um homem em toda a verdade de sua natureza… Mostrei-me tal como fui, desprezível e vil quando foi o caso, bom, generoso e sublime quando o fui: desvelei meu interior tal como tu mesmo o viste, Ser Eterno.”[24]

Mas em sua obra filosófica e política, o voyeurismo e o exibicionismo de Rousseau se desmedicalizam e vão alimentar um grande ideal de transparência social. Rousseau faz de sua patologia a base da uma ordem social plenamente sã, um mundo puro como o cristal, e transparente como ele.

É o mundo das “belas almas” que se move dentro de Julie, coavívio inocente em que reina a confiança mútua, e em que todos vivem sob os olhos de todos.

É o mundo da festa. A campestre, como a festa das vindimas, na Nouvelle Heloise, em que cada um se entrega ao olhar do outro numa alegria idílica, incompatível com todos os segredos. A cívica, descrita na Lettre à d’Alembert, que em oposição ao espetáculo o teatral, reino ilusório que exclui o olhar recíproco, inaugura uma verdadeira transparência, em que os espectadores vêem e são vistos ao mesmo tempo. “Não adotemos esses espetáculos exclusivos que encerram tristemente um pequeno número de pessoas num antro obscuro… Não, povos felizes, não são estes os vossos espetáculos… É no ar livre, sob o céu, que deveis reunir-vos… Dai os espectadores em espetáculo; transformai-os eles próprios em atores, fazei com que cada um se veja e se ame nos outros.[25]

E é o mundo viril, republicano, do Contrato social. As fórmulas com que Rousseau exprime a reciprocidade das vontades é a mesma com que descreve a reciprocidade dos olhares. Assim como cada vontade se aliena na vontade geral e se recupera, mais rica em substância, cada olhar se aliena no olhar do outro e nessa alienação se reencontra, no momento em que é reconhecido. A unidade na cisão é a mesma. O cidadão é dois e um ao mesmo tempo — manda como parte do poder soberano, e obedece como súdito do Estado. Também os dois olhares — o que vê e o que é visto — são duais e unos ao mesmo tempo, a expressão ativa e passiva da mesma estrutura visual.[26]

Estamos ainda perto da visualidade perversa — o Rousseau que mostra l’objet ridicule às criadas de Turim quer ser visto, mas também quer ver a fisionomia horrorizada das moças, do mesmo modo que o Rousseau de Lyon quer ver, mas também quer ser visto, e por isso denuncia a sua presença —  e ao mesmo tempo muito longe dela. Pois a perversão exclui uma verdadeira reciprocidade. O desejo perverso é sempre unilateral. Ele supõe a divisão entre sujeito e objeto, e não cria nunca uma comunidade de sujeitos iguais. O olhar perverso pode ser ativo e passivo ao mesmo tempo, mas está sempre referido a um só sujeito — o que tem o prazer de olhar, e o que tem o prazer em ser visto — sem que em nenhum momento entre em jogo o prazer do parceiro. Sade exprimiu perfeitamente essa assimetria essencial do desejo perverso. “Que queremos nós quando gozamos? Que tudo o que nos cerca só se ocupe de nós, só pense em nós, só cuide de nós. Se os objetos que nos servem gozarem, estarão mais preocupados consigo que conosco, o que diminui nosso gozo. Não há homem que não queira ser déspota quando está excitado: parece ter menos prazer quando os outros tiveram tanto quanto ele… Não há prazer em dar prazer aos outros… Fazendo mal, ao contrário, experimenta todos os encantos de um indivíduo nervoso ao fazer uso de suas forças: ele domina, então, torna-se um tirano.”[27]

No Contrato social, o olhar é passivo e ativo ao mesmo tempo, o que ainda não basta para absolvê-lo de intenções perversas, mas é um olhar de sujeitos iguais, em que nenhum é meramente objeto do outro, e isso o distancia radicalmente de toda perversão. A visualidade de Rousseau não é a simples transposição de sua estrutura perversa, mas uma verdadeira sublimação, em que a patologia recua, e cede lugar a um pensamento esplendidamente sadio. Quando o olhar de quem vê e é visto é respondido pelo olhar de quem também quer ver e ser visto, a tirania é impossível, no sentido de Sade. Rousseau pode ter sido um tirano no episódio de Lyon, mas não quando escreveu o Contrato social. Seu admirável mundo novo de cidadãos-espectadores é uma fantasia, mas não é uma fantasia totalitária: quando todos são sujeitos do olhar, não há simples objetos, e portanto não há nem déspotas nem vítimas.

Com sua utopia do mundo diáfano, Rousseau completa e coroa a visualidade da Ilustração. É preciso ver tudo, e para isso o olhar deve ser competente, porque a ingenuidade o condenaria à cegueira, e igualitário, porque só a reciprocidade pode fundar um mundo transparente

IV

O passo seguinte seria construir, a partir das características do olhar ilustrado, as estruturas de uma visualidade iluminista moderna. Mas precisamos de uma verdadeira construção, e não de uma transposição pura e simples. A Ilustração é a matriz do Ilumi-nismo, mas não se confunde com ele. Ela precisa ser resgatada pelo Iluminismo para que este possa constituir-se, mas esse resgate é necessariamente crítico. Sem a crítica, nem o Iluminismo poderia ser estruturado, nem a Ilustração poderia ser salva em seus momentos positivos.

Ora, a crítica nos confronta com perplexidades tais que quase duvidamos da viabilidade do nosso projeto.

Assim, o ideal ilustrado da visibilidade cotapleta não é isento de uma certa ambiguidade. Ele é emancipatório quando significa que não há interdições apriori nem santuários de invisibilidade que criem privilégios contra o olhar, mas tem algo de inquietante quando pressupõe o desaparecimento de todos os nichos de intimidade pessoal e a extinção das fronteiras entre a esfera privada e a pública. Ë emancipatório quando significa observar o poder, para desmascará-lo, não quando significa observar os homens, para submetê-los ao poder. É emancipatório quando significa olhar a natureza para estabelecer com ela uma relação fraterna, não quando significa olhá-la corno objeto de exploração e domínio. É emancipatório quando significa que o mundo das coisas está sob a jurisdição da ciência e da técnica, não quando estende a ciência e a técnica ao mundo das relações humanas, expondo-o a um olhar objetivante que o equipara ao mundo das coisas.

A Ilustração continha essas duas vertentes, pelo menos potencialmente. Se é assim, nossa tarefa parece simples. O Iluminismo assumiria como próprio o ideal da visibilidade, mas depurando-o de sua vertente repressiva.

Somente, nada garante que essas duas vertentes sejam dissociáveis, nem sequer que o ideal da visibilidade ainda contenha, hoje em dia, um vetor emancipatório. Afinal, o homem moderno aprendeu, depois dos holofotes de Auschwitz e da luz neon da indústria cultural, que nem sempre a claridade liberta. A luminosidade excessiva é ofuscação, que induz à cegueira. É a hiperiluminação a que nos expõe a tecnociência informalizada, em que tudo é visível, em que desaparece a dimensão da interioridade, em que não há mais cena, mas obscenidade, nas palavras de Baudrillard.[28] É a claridade inquisitorial, a claridade dos fichários da polícia secreta, a claridade dos bancos de dados.

Se é assim, algumas perguntas são inevitáveis. Quando é a luz que oprime e a penumbra que salva, é possível continuar lutando pela luz? Quando quem quer ver tudo é o poder, podemos continuar empunhando a bandeira da visibilidade plena?

A noção do olhar competente também suscita dúvidas. Em geral, ela continua válida, pois sabemos que o olhar ingênuo não consegue ver verdadeiramente, e está condenado a mover-se num mundo ilusório.

Mas não podemos aceitar, depois de Marx e Freud, que a cegueira induzida pelo olhar deficiente seja o produto direto, sem mediações, da impostura do clero e dos tiranos. A incompetência do olhar é estrutural, radicada numa situação de classe ou numa constelação pulsional, e não pode, via de regra, ser removida por atos individuais de conscientização. O homem é programado para não ver, mas não basta a educação para que seu olhar se liberte. A teoria ilustrada do préjugé, exterioridade evitável que pode ser corrigida pelo saber, tem que ser substituída por uma perspectiva que leve em conta a dimensão social e psíquica da percepção deficitária.

Levar em conta a dimensão social significa em primeira instância refletir sobre a teoria da falsa consciência e da ideologia. A falsa consciência é o olhar que não pode ver: uma incompetência cognitiva socialmente condicionada. A ideologia é a visão errônea correlativa desse olhar incompetente, um conjunto de representações necessariamente distorcidas.

A cegueira psíquica, mediação interna pela qual o poder inibe o olhar, reforça e viabiliza a cegueira social. Ela opera bloqueando a percepção externa — a denegação, Verneinung, impede de ver o mundo exterior, ou só permite captá-lo de um modo deformado, como ocorre com o olhar fetichista, entrelaçamento da vontade de ver e da vontade de não ver — e inibindo a percepção interna, pelo recalque, Verdriingung, que torna invisível para o indivíduo grande parte do seu mundo interior. Pela denegação (e outros mecanismos de defesa) o indivíduo não consegue olhar para fora, e pelo recalque não consegue olhar para dentro, e nos dois casos a visão é obstruída ou deformada.

As duas invisibilidades — a social e a psíquica — são solidárias. Os riscos externos levam o indivíduo a fugir da percepção, e o jogo das pulsões impede que sejam devassadas as estruturas de onde provêm esses riscos.[29]

O homem moderno tem que registrar, assim, com alguma melancolia, que a Ilustração havia subestimado a dificuldade de devolver a vista aos que não sabem olhar. Nossas vendas são muito mais pesadas do que imaginava Holbach, e a catarata que nos aflige não pode ser removida por uma simples cirurgia, como supunha Diderot. Mas essa convicção tem efeitos paralisantes. Como não estamos às vésperas de uma insurreição geral dos oprimidos, que permita aos combatentes forjar, na luta, urna consciência verídica, e como não seria razoável advogar uma psicanálise coletiva, capaz de desativar os mecanismos de defesa que cerceiam a visão, estamos condenados à imobilidade. As raízes da cegueira, na Ilustração, eram excessivamente superficiais, enquanto para o pensamento moderno são tão profundas que não sabemos como arrancá-las. Chegamos a um impasse. Não pudemos excluir da visualidade iluminista a noção da incompetência do olhar, mas como incluí-la, se não podemos aceitar teoricamente a doutrina do préjugé e não sabemos como manejar praticamente a teoria freudo-marxista da falsa consciência?

Chegamos, enfim, à tese da reciprocidade do olhar. Ele é o elemento mais valioso da visualidade ilustrada, e não pode deixar de ser assimilado pelo Iluminismo. Mas assimilado como, se vivemos num mundo cada vez mais assimétrico, cujos mecanismos de poder dividem cada vez mais a sociedade entre os que vêem e os que não vêem? Supor como possível hoje um mundo angelical de seres absolutamente transparentes uns aos outros seria ingênuo, agir de acordo com essa suposição seria irresponsável, porque quem ignora as instituições concretas que operam na sociedade para frustrar essa transparência está fazendo objetivamente o jogo dos inimigos da reciprocidade.

De certo modo foi o que se passou com Rousseau, que como vimos foi o filósofo da Ilustração que estudou mais a fundo a dialética da reversibilidade do olhar. Ele construiu no Contrato social um mundo igualitário baseado na reciprocidade das vontades e dos olhares, e portanto, como vimos, essencialmente antiautoritário em sua lógica iparente. Mas como essa construção abstraía dos dispositivos concretos de poder que tendiam a anular essa reciprocidade, ele acabou deixando o seu mundo de cristal vulnerável à mais extrema das assimetrias.

Foi na essência a crítica de Benjamin Constant à teoria da vontade geral, mostrando as implicações totalitárias de cada um dos seus pressupostos: o de que o soberano, o corpo social, não pode prejudicar nenhum de seus membros, porque seria prejudicar a si mesmo; o de que cada um se dando por inteiro, as condições são iguais para todos, e que portanto ninguém tem interesse em torná-las onerosas para os outros; o de que cada um se dando a todos, não se dá a ninguém; e o de que cada um adquire sobre seus associados os mesmos direitos que lhes cede, e ganha o equivalente de tudo o que perdeu.

Esses pressupostos só se sustentam se se aceita o axioma de que os indivíduos que mandam, como soberanos, são efetivamente os mesmos que obedecem, como membros do Estado. Ora, como o exercício direto do poder soberano é, em todos os seus pormenores, na prática impossível, o povo precisa delegar o poder executivo a seus representantes, e nesse momento cria-se uma dissociação de fato entre quem manda e quem obedece.

Em consequência, caem por terra todos os pressupostos. Não é verdade que se dando a todos o indivíduo não se dá a ninguém, porque ele se entrega aos que agem em nome de todos. Não é verdade que ao se entregar por inteiro ele estabeleça condições iguais para todos, porque alguns aproveitam essa entrega em detrimento dos outros. Não é verdade que ninguém tenha interesse em tornar mais onerosas as condições dos outros, porque as condições de alguns são superiores às condições dos outros. E não é verdade que todos os associados adquirem os mesmos direitos que perdem, porque o resultado dessa cessão é o estabelecimento de uma força que monopoliza todos os direitos, sem reconhecer nenhum.[30]

Partindo da homologia entre a alienação da vontade e a alienação do olhar, podemos facilmente transpor para nosso tema a crítica de Benjamin Constant. Nas condições descritas pelo Contrato social, é inevitável a conclusão de que o olhar não se aliena no olhar de todos, e sim no olhar de alguns, e, no limite, de um só. A utopia do mundo transparente, em que todos são sujeitos do olhar, se converte no pesadelo de um mundo opaco para todos, menos para aquele que tem o monopólio da visão. A reciprocidade do olhar cede lugar à assimetria, e a transparência se degrada em panotismo. “O panopti-kon é uma máquina de dissociar a polaridade ver-ser visto: no anel periférico, todos são plenamente vistos, sem jamais verem; na torre central, vê-se tudo sem jamais se ser visto.[31] Não me interessa aqui saber se essa descrição do panoptzhon de Bentham, feita por Foucault, é válida para a Ilustração como um todo, ou sequer para o próprio Bentham. Ela exprime em todo caso um modelo que é a antítese perfeita da utopia do mundo reversível, em que todos são vistos por todos. Foi esse exatamente o drama de Rousseau. Sua cidade ideal é o antipanoptikon, mas é tão etérea que não tem os meios para resistir às investidas do panotismo, e acaba se transformando em seu contrário.

Não estaríamos nos expondo ao mesmo risco se quiséssemos incluir na visualidade iluminista o ideal da reflexividade do olhar?

V

Em outro trabalho,[32] tentei estabelecer uma ponte entre Ilustração e Iluminismo, recorrendo ao modelo da ação comunicativa, de Habermas. Acredito ter contribuído com isso para aplainar algumas dificuldades que impediam a incorporação de certos conteúdos da Ilustração às estruturas de um Iluminismo moderno. Pergunto-me se não poderíamos tentar algo semelhante com relação ao tema que nos interessa aiora na esperança de solucionar alguns dos impasses que acabamos de identificar.

A compreensão completa desse esforço exigiria um conhecimento muito mais profundo da teoria de Habermas que a que posso transmitir num simples resumo, mas como não tenho o direito de pressupor nesta palestra a leitura das 1.167 páginas da Teoria da ação comunicativa, um resumo é inevitável, por mais grosseiro que seja.

Para Habermas, chegou o momento de abandonar o paradigma da relação sujeito-objeto, que tem dominado grande parte do pensamento ocidental, substituindo-o por outro paradigma, o da relação comunicativa que parte das interações entre sujeitos, que se dão na comunicação cotidiana. Dentro desse novo paradigma, a racionalidade adere aos procedimentos pelos quais os protagonistas de um processo comunicativo conduzem sua argumentação com vistas a um entendimento mútuo, referindo-se, em cada caso, a um contexto distinto: o mundo objetivo das coisas, o mundo social das normas e o mundo subjetivo das vivências e emoções. Serão verdadeiras as proposições que forem validadas num processo argumentativo em que o consenso foi alcançado através de provas e contraprovas, de argumentos e contra-argumentos, sem deformações externas, resultantes da violência, ou internas, resultantes da falsa consciência.

Habermas historiciza este modelo formal, inserindo-o numa teoria da modernização. O paradigma da racionalidade comunicativa se tornou socialmente possível com o advento da modernidade, que emancipou o homem do jugo da tradição e da autoridade, e permitiu que ele próprio decidisse, sujeito unicamente à força do melhor argumento, que proposições são ou não aceitáveis, na tríplice dimensão da verdade (mundo objetivo), da justiça (mundo social) e da veracidade (mundo subjetivo). Ocorre que simultaneamente com a racionalização do mundo vivido, em que se dá o processo comunicativo, a modernidade gerou outro tipo de racionalização, abrangendo a esfera do Estado e da economia, que acabou se autonomizando do mundo vivido e se incorporou numa esfera sistêmica, regida pela razão instrumental. A racionalidade sistêmica, prescindindo de uma coordenação comunicativa das ações, e impondo aos indivíduos uma coordenação automática, independente de sua vontade, produziu uma constante perda de liberdade. O conflito entre as duas esferas prossegue, e o sistema se esforça por anexar o mundo vivido. Mas esse processo é meramente tendencial, e tem suscitado reações por parte do mundo vivido: por mais ampla que seja a área abarcada pelo sistema nas sociedades mais complexas, a intersubjetividade comunicativa sobrevive, oferecendo reservas intactas de racionalidade espontânea, baseada nos processos de argumentação e contra-argumentação que se dão no mundo vivido.[33]

Esse resumo é totalmente insuficiente, mas já nos permite colher um primeiro fruto. Relendo a seção anterior, podemos agora verificar que todos os nossos impasses têm algo de comum: estão todos referidos a um sujeito. O primeiro é o dilema de um sujeito que quer ver tudo, como o homem da Ilustração, e ao mesmo tempo teme as consequências repressivas desse projeto. O segundo é o dilema de um sujeito que quer ver corretamente, mas não sabe como corrigir o olhar deficitário. O terceiro é o dilema de um sujeito que aspira à reciprocidade do olhar, mas não sabe como impedir que seu olhar seja confiscado pelo pan-otismo social. O que aconteceria se mudássemos de perspectiva, tomando como referência não o sujeito, mas a intersubjetividade, não o olhar do sujeito, mas um olhar interativo, plural, obtido pelo entrelaçamento de olhares interdependentes?

Reexaminemos, armados com esse novo fio condutor, as características da visualidade ilustrada.

A primeira delas, como sabemos, é o ideal da visibilidade universal. O Iluminismo acolhe esse programa, mas se defronta com a dificuldade de compatibilizá-lo com o objetivo igualmente inalienável de garantir a liberdade pessoal. O modelo da ação comunicativa permite compreender mais claramente esse dilema e sugerir saídas possíveis.

Reconhecemos de imediato as raízes comunicativas do ideal da visibilidade: é o que se tornou possível quando a modernidade emancipou o homem da esfera do sagrado, abrindo um espaço de indagação livre, sem qualquer censura, terrena ou transcendente. Com a modernidade, o mundo inteiro se tornou legível, e todas as coisas se tornaram em princípio visíveis. Não havia limites de direito ao desdobramento pleno desse programa de visibilidade integral. Somente o paradigma comunicativo não permite mais compreender essa visão como visão do sujeito. Ela é a que se dá, pelo contrário, quando, todos os membros de uma coletividade põem em comum suas experiências, exprimem suas opiniões, fazem afirmações falsificáveis, que podem ser aceitas ou refutadas, propõem normas, cuja validade pode ser posta à prova pela argumentação, descrevem o real a partir de pontos de vista parciais, cuja correção mútua e agregação progressiva podem levar a uma descrição tendencialmente completa. Tudo pode ser visto, porque nem o mundo objetivo das coisas, nem o mundo social das normas, nem o mundo subjetivo das vivências estão imunes ao destino da tematização contínua: todos eles podem ser objeto de um questionamento argumentativo cujo horizonte virtual é ilimitado.

Mas vimos que o potencial de visibilidade comunicativa foi em parte bloqueado pelo surgimento de uma lógica oposta, radicada no Estado burocrático e na economia capitalista. Surgiu a visibilidade do sistema, que tenta administrar e controlar o mundo vivido por um lado, e por outro desativar e atrofiar o olhar comunicativo. Usurpando o ideal da visibilidade, também o olhar sistêmico quer ver tudo, mas é outro olhar.

Deixa assim de haver contradição entre a meta da visibilidade e a visibilidade excessiva, porque o objetivo de cada olhar é diferente. Não é o ideal de visibilidade que é repressivo, e sim o uso que o mundo sistêmico faz dele. Ele significa, para o sistema, observar tudo o que se passa no mundo vivido, para tutelá-lo e impedir o funcionamento do olhar comunicativo. Ele significa, para o mundo vivido, prosseguir na tarefa de desvendar comunicativamente a realidade.

É essa a visibilidade reivindicada pelo Iluminismo moderno. Ela se distingue da visibilidade da Ilustração, porque não está referida a um sujeito. A Ilustração dizia: em sua relação com o objeto, o sujeito deve ver tudo. O Iluminismo corrige: em suas relações recíprocas, os protagonistas de um processo comunicativo devem ver tudo. E se distingue da visibilidade do sistema, porque este não tem objetivos emancipatórios. A claridade que o sistema deseja é a do contra-Iluminismo, a luz que se opõe às Luzes. É o olhar absolutista dos delatores do ancien régime e o olhar totalitário dos seus herdeiros contemporâneos. A claridade do Iluminismo é a que reina na comunicação cotidiana. Ela não pode ser repressiva, porque seu olhar é intersubjetivo;resultante do livre intercâmbio de visões parciais, e sujeito aos controles automáticos de um processo cujo telosé o entendimento mútuo, e se destrói quando admite objetivos de dominação. Ver tudo, para o Iluminismo contemporâneo, significa entre outras coisas ver tudo o que esteja a serviço da tirania, e entre os agentes da tirania estão os que violam a esfera da intimidade pessoal, vendo o que não deve ser visto. A Ilustração proclamou o direito de ver. O Iluminismo o perfilha, mas acrescenta outro direito: o de não ser visto, e para isso devassa, para desarmá-lo, o olhar dos que abusam do privilégio de ver. Assim reformulado, o ideal da visibilidade pode ser plenamente acolhido nas estruturas do olhar iluminista.

O segundo tema é o da incompetência do olhar, e creio que também aqui o modelo comunicativo pode ajudar-nos a resolver nossas dificuldades.

Habermas introduz o tema em dois contextos: o da teoria da ação comunicativa e o da teoria da sociedade e da modernização.

No primeiro, ele surge como um obstáculo, que deforma o processo comunicativo. A comunicação é deformada por razões objetivas, quando se dá sob ameaça de coação, e quando é excludente, admitindo alguns interessados, mas não todos. E por razões subjetivas, quando entram em jogo a ideologia e a falsa consciência.

A ideologia sabota o grande projeto iluminista de ver tudo, através do intercâmbio de experiências e opiniões refutáveis, introduzindo num discurso que se pretende veraz motivações de poder subjacentes. O discurso parece comunicativo, mas é ideológico, porque não visa a busca desinteressada da verdade, e está condicionado por um interesse de poder.

A falsa consciência impede que o participante da comunicação desvende no discurso do outro essa dimensão de poder. Ela cria uma pseudocomunicação, em que não há garantia nem de veracidade — as vítimas da falsa consciência mentem para si mesmas e para os outros — nem de objetividade — porque o mundo dos fatos poderá ser visto de um modo distorcido — nem de justiça — porque as normas que correspondem a um interesse próprio poderão ser apresentadas como se correspondessem ao interesse de todos.

No segundo contexto, a incompetência do olhar aparece como o resultado do processo de modernização. A capacidade de ver se tornou possível com o advento da modernidade, mas esse potencial foi truncado pela mesma modernidade, que desencadeou forças opostas, que resultaram no encolhimento do espaço comunicativo que ela própria havia liberado. Hoje em dia, esse, trabalho de exclusão prossegue, através das tentativas do mondo sistêmico de bloquear o olhar comunicativo.

Essa descrição contém uma teoria implícita da falsa consciência como efeito de práticas de privatização. O olhar é expulso do espaço público da comunicação, e acuado num gueto privatista, que o condena à visão parcial. Nesse gueto, ele não pode comunicar-se, e enquanto átomo entre átomos perdeu a capacidade de chegar a uma verdade dialógica, em que os erros pudessem ser percebidos e anulados pela argumentação. O olhar privatizado é monótico, solipsístico. Ele não vê tudo, porque só a visão comunicativa permite fundir as perspectivas parciais numa totalidade visível. É uma visão unilateral, metonímica: pars pro toto, visão da parte, que obscurece o todo. Por um instante efêmero, o homem moderno teve a oportunidade de voltar à ágora, ao foro, reino meridiano da interação, do aparecer, da visibilidade recíproca, e foi de novo expulso para o ozkos, para o mundo escuro da economia e do trabalho, da esfera privada, em que ele se tornou invisível para si mesmo e para os outros.

Assim, se em sua teoria da comunicação deformada o olhar incompetente surge como óbice à interação, na teoria da modernidade ele surge como uma consequência da atrofia do espaço interativo. No primeiro caso, a comunicação era imperfeita porque o olhar não sabia ver, e no segundo, o olhar desaprendeu de ver porque a comunicação se tornou imperfeita. Não há contradição, nem circularidade. Num caso, descreve-se o funcionamento do olhar incompetente em processos comunicativos concretos, os que ainda subsistem apesar dos esforços anexionistas e excludentes do mundo sistêmico, e no outro, sua gênese, em decorrência de determinadas forças históricas e sociais. O primeiro exprime a tentativa do sistema de deformar a comunicação, o segundo, a de suprimi-la.

Em nenhum dos dois contextos há qualquer incompatibilidade real com a concepção de Marx ou de Freud.

No primeiro contexto essa concepção é acolhida em bloco na moldura comunicativa, já pronta e acabada, praticamente sem sofrer alterações. Habermas pode concordar com Marx em que a ideologia é um conjunto de falsas representações a serviço de un) projeto de dominação, e que a falsa consciência é uma desqualificação cognitiva produzida por forças estruturais. E pode concordar com Freud em que a ideologia é uma ilusão destinada a compensar renúncias pulsionais, e que a falsa consciência é uma incapacidade de perceber, induzida pelos mecanismos de, defesa.

No segundo contexto, houve alterações, mas elas não são fundamentais.

Também Marx fala em duas modernidades, a positiva, que levou ao desenvolvimento sem precedentes das forças produtivas, e a negativa, que dissolveu todos os vínculos naturais do mundo pré-capitalista e colocou o indivíduo no mundo do trabalho assalariado, como um átomo em que ele se relacionava exclusivamente com o mercado. O mercado é a esfera privada por excelência, o lugar em que não há mais relações laterais dos homens entre si, mas apenas um agregado descontínuo de relações de trabalho, mediatizadas pelo contrato. O olhar comunicativo, plural, foi substituído pelo olhar fetichista, solitário. O olhar fetichista é o do indivíduo isolado, que não podendo mais corrigir e complementar suas percepções através do confronto dialógico com seus semelhantes, só consegue ver o que as estruturas de visibilidade impostas pelo mercado o autorizam a ver; a mercadoria como relação entre coisas, e não como relação entre pessoas. O que ele vê corresponde ao que não pode deixar de ver, num mundo privado desprovido de mecanismos públicos para o controle intersubjetivo do olhar. Também para Marx, portanto, podemos falar numa privatização do olhar.

Quanto a Freud, ele sempre viu a cegueira cognitiva como o resultado de um processo de privatização. A neurose é uma fuga do espaço público, comparável à reclusão monástica. “Ela corresponde, hoje em dia, ao convento a que se retiravam as pessoas desiludidas da vida ou que se sentiam demasiado fracas para viver.”[34] É por isso que “uma histeria é uma obra de arte deformada, uma neurose obsessiva, uma religião deformada, e uma mania paranóica um sistema filosófico deformado. Tais deformações se explicam, em última análise, pelo fato de que as neuroses são formações associais, e tentam realizar com meios particulares o que a sociedade inteira realiza graças ao trabalho coletivo”.[35] As deformações da visão, em Freud, resultam desse processo de privatização, mesmo quando não têm caracaterísticas patológicas. É fugindo do princípio da realidade, que no mundo humano é sempre a realidade plural da palavra e da ação coletiva, que o indivíduo se proíbe se enxergar, tornando invisível seja seu universo exterior, seja o interior.

Mas ao contrário de Marx e Freud, Habermas aponta um caminho que permite integrar num programa iluminista viável a teoria da incompetência do olhar, formulando-o de um modo menos ingênuo que os Enciclopedistas, e menos rigoroso que o modelo freudo-marxista clássico.

No primeiro contexto, a falsa consciência e a ideologia são vistas como obstáculos ao processo comunicativo. Podemos agora acrescentar: elas bloqueiam a comunicação, mas a comunicação poderá afastar esses bloqueios, ou pelo menos identificá-los. Mesmo que a falsa consciência se revele irremovível, o exercício comunicativo não será inútil, pois permitirá aos demais protagonistas diagnosticá-la, e em casos extremos excluir da argumentação dialógica o participante que se revelou cognitivamente incapaz. Quanto à ideologia, sabemos que ela se infiltra no processo comunicativo, para distorcê-lo, mas pode ser exposta nesse mesmo processo. No jogo da argumentação, Ego deve pressupor que Alter é veraz, pois de outra forma não se iniciaria a relação comunicativa, e ao mesmo tempo ser sensível à possibilidade de que atrás da “pretensão de validade” invocada, por Alter esteja uma “pretensão de poder” dissimulada. É por isso que toda comunicação envolve um exame objetivo da validade argumentativa do que está sendo dito, sem atribuir segundas intenções ao interlocutor, e ao mesmo tempo a suspeita de que o argu mento tenha sua gênese em constelações de poder externas à moldura dialógica. Ela é argumentação, mas também Ideologiekritik. Ela pode refutar, pela argumentação, um erro inocente, mas também pode desmascarar, pela crítica, uma distorção ideológica. A ideologia, que procurava sabotar a comunicação, acaba sendo desnudada por essa mesma comunicação.

No segundo contexto, Habermas também oferece um caminho. A partir da descrição da sociedade como um mundo cindido em dois, com uma esfera sistêmica que procura alargar seu raio de ação em detrimento da esfera comunicativa, as frentes de combate estão claras. Nossa tarefa é tentar ampliar os espaços comunicativos ainda disponíveis, fazendo recuar o sistema. Estaremos, ao mesmo tempo, tirando a consciência do gueto, dilatando seus horizontes, e desprivatizando o olhar. Produzida pela privatização, a incompetência do olhar pode ser corrigida pela reativação e ampliação do espaço público.

Encontramos uma saída, que permite resolver, conceitualmente, o nosso impasse. Não precisamos esperar, para agir, que as consciências se tornem translúcidas, ou pelo amadurecimento das condições objetivas (Marx), ou pela remoção dos bloqueios internos (Freud). Podemos, desde já, enfrentar o problema da incompetência do olhar, seja evitando suas ciladas, por uma Ideologiekritik interna ao processo de comunicação, seja tornando-a sem objeto, removendo, por uma luta política externa a esse processo, as raízes sociais da distorção. Sob essas condições, o Iluminismo pode endossar o ideal ilustrado do olhar competente, sem subestimar as dificuldades desse projeto, como fizeram os enciclopedistas, e sem sujeitá-lo a condições tão exigentes que sua realização se tornasse impossível.

Finalmente, creio que a teoria da ação comunicativa nos permite retomar, com melhores perspectivas de sucesso, a questão da reciprocidade do olhar.

A transposição desse tema para o registro comunicativo pode fazer-se sem nenhuma arbitrariedade, porque o mundo transparente de Rousseau corresponde, no fundo, a uma utopia comunicativa. O sonho rousseauísta da perfeita reciprocidade de olhares e vontades está muito próximo do telos da comunicação perfeita. Em seu mundo cristalino, todos são sujeitos do olhar, do mesmo modo que no universo interativo de Habermas, todos são sujeitos da fala. O mundo de Rousseau é “interocular”, como o de Habermas é interlocutório: nos dois casos, há um entrelaçamento igualitário de sujeitos, incompatível com qualquer assimetria.

Mas há uma diferença essencial: esse mundo é expressamente definido por Habermas como uma utopia. É a utopia da comunicação pura, forma de vida caracterizada pela ausência de toda coação, seja externa (violência), seja interna (falsa consciência). Essa utopia é necessária como pressuposição, Unterstellung, porque sem admiti-la como possível os interlocutores não ingressariam numa relação comunicativa. Mas ela é sempre contrafatual, em todas as sociedades históricas, porque em todas elas as relações comunicativas se cruzam com relações de poder. Para Rousseau, a vontade geral é o lugar de uma soberania, que uma vez instituída cria uma ordem política perfeitamente harmônica. Para Habermas, ela é lugar de um debate, que pressupõe uma sociedade não unitária: ela serve para refutar e criticar opiniões, e não para inaugurar o reino da opinião verdadeira. O processo comunicativo visa um consenso, mas esse consenso não é comparável ao contrato social. Para Rousseau, uma vez firmado o contrato, silenciam os interesses parciais e as vontades particulares se alienam na vontade geral. Para Habermas, os interesses parciais e as configurações de poder são constantemente pressupostos, e o consenso é sempre provisório, sempre sujeito a ser reaberto por novos processos comunicativos. Ele visa a reciprocidade, uma reciprocidade em que Ego e Alter tenham direitos iguais de falar e argumentar, sem que nenhum seja meramente objeto do outro, mas não supõe essa reciprocidade já alcançada de uma vez por todas. Ao contrário, os protagonistas da comunicação devem estar permanentemente atentos para o risco de uma falsa simetria, de um discurso só aparentemente comunicativo, mas que na verdade visa objetivos de dominação, que destroem toda simetria. Os sujeitos da interação não são céticos, mas são críticos. Não são céticos porque têm que partir do horizonte tendencial de uma comunicação livre de violência, pois de outro modo não entrariam entre si numa relação comunicativa, baseada na perspectiva do entendimento mútuo, e sim numa relação estratégica, baseada na competição pelo poder. Mas são críticos, porque só a esse preço é possível devassar as pseudolegitimações do mundo sistêmico, e impedir que o processo comunicativo seja viciado por relações de poder infiltradas.

O mesmo realismo que o leva a descobrir a divisão onde Rousseau só vê a perfeita reciprocidade dos olhares e das consciências leva o sujeito interativo a discordar da tese de que os indivíduos que mandam como soberanos são os mesmos que obedecem como cidadãos, e por isso ele endossa a crítica de Benjamin Constant às implicações totalitárias dessa tese. Ele conhece o peso do Estado, a materialidade e a autonomia dos seus aparelhos repressivos e ideológicos, e por isso não pode vê-lo como a manifestação diáfana, sem substância corpórea, de uma vontade geral soberana. Não está exposto ao risco, portanto, de alienar sua vontade na vontade do Estado, e seu olhar no olhar do poder. Seu ideal de transparência não corre o perigo de degenerar no seu contrário, o panotismo.

Corrigido pela perspectiva comunicativa, o grande tema do olhar simétrico e recíproco, o mais generoso que nos legou a Ilustração, pode ser incorporado ao Iluminismo contemporâneo.

VI

A divisão do mundo numa esfera da liberdade, regida pelo imperativo da visibilidade plena, e numa esfera de dominação, de onde partem os obstáculos que procuram cercear a visão, não foi inventada pela teoria comunicativa. Ela já estava presente na Ilustração. Mas não soube descrevê-las corretamente, e por isso expôs-se a uma série de mal-entendidos.

A primeira esfera era pensada pelos enciclopedistas segundo o paradigma da filosofia do sujeito: o olhar livre, capaz de ver tudo, era o do sujeito individual, elevado pela educação acima da cegueira imposta pelo préjugé, e que se relacionava soberanamente com um mundo de coisas a serem conhecidas e manipuladas. A outra esfera, a do poder, era descrita pela Ilustração em termos excessivamente simplistas, e basicamente reduzia-se ao poder exercido por pessoas — os tiranos e os sacerdotes. Com isso, a Ilustração por um lado abria a porta a deformações autoritárias ocorridas na própria esfera da liberdade — a transformação do olhar inicialmente emancipatório de um sujeito benevolente no olhar do sujeito que observa, esquadrinha, classifica, normaliza e reifica — e por outro lado subestimava a capacidade de ação de um poder que opera através de estruturas, e não de pessoas.

O modelo comunicativo retifica essas ingenuidades. Ele reinterpreta a esfera da liberdade segundo o paradigma de um olhar intersubjetivo, obtido por um processo de comunicação que exclui ab initio, como contraditório com o telos da interação normal, qualquer iniciativa que não vise ao objetivo do entendimento e do consenso. E reinterpreta a esfera da dominação de modo a fazer justiça aos mecanismos concretos que atuam na sociedade contemporânea para frustrar o processo comunicativo. É uma sociedade cindida, contraditória, atravessada por interesses econômicos antagonísticos, em que a dominação não se exerce pela ação intencional de pessoas, mas pelo funcionamento automático de estruturas — as estruturas do sistema. Daí a importância de uma teoria em dois estratos, uma teoria da interação, que desenhe as condições formais de uma comunicação pura, e de uma teoria da sociedade, sensível a todo peso da história real, a todos os condicionamentos que bloqueiam o advento de uma visibilidade livre.

O Iluminismo contemporâneo acolhe essas duas perspectivas. Ele finca seu pavilhão no mundo interativo e combate, com pleno conhecimento de causa, as forças contrárias que vêm do sistema.

Feitos esses ajustamentos, ele está pronto para assumir a visualidade da Ilustração. O Iluminismo quer ver tudo, porque o que se esquiva à visão está sob a suspeita a priori de servir propósitos anti-humanos, e quer olhar corretamente, porque de outro modo a noite não seria verdadeiramente devassada.

Ver tudo significa investigar o que precisa ser investigado, iluminar a treva atrás da qual se esconde a autoridade ilegítima. É o objetivo do homem chegado à condição adulta. O lema da maioridade humana, para Kant — sapere aude — pode ser substituído por uma fórmula equivalente: videre aude. Ousar ver e ousar saber são as duas leis da cidade iluminista.

Olhar corretamente significa usar a vista com astúcia e com inocência. Com astúcia porque sem ela seríamos iludidos, e com inocência para não sermos corrompidos pela miragem de uma visibilidade estéril, sem fins transformadores, e posta unicamente a serviço do prazer do olhar. Foi a miragem que Satã, o grande corruptor, colocou na montanha diante dos olhos do Filho do Homem, que a recusou, em seu nome, e em nome do verdadeiro Iluminismo. O Iluminismo é crítico, e não perverso: ele não quer construir um mundo de voyeurs, e sim um mundo transparente.

Sob essas reservas, o Iluminismo de hoje não hesita em prosseguir a batalha de Sarastro contra a Rainha da Noite, na Flauta mágica. Hoje, como ontem, “die Strahlen der Sonne vertreiben die Nacht”, os raios de sol expulsam a escuridão.

Copenhague, setembro de 1987.

[1] Sergio Paulo Rouanet, As razões do Iluminismo, São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

[2] L’Encyclopédie, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, tomo XIII, Neufchatel, Samuel Faulche et Cie., libraires et imprimeurs, 1765, pp. 911-2.

[3] Grand Larousse Encyclopédique, tomo IX, Paris, Librairie Larousse, 1964.

[4] D’Alembert, Discours préliminaire, transcrito na Encyclopédie, articles choisis, Paris, Flammarion, 1986, p. 76.

[5] Vide, entre outros, Diderot, Supplément au voyage de Bougainville, em Oeuvres, Pléiade, Paris, Gallimard, 1951, pp. 963 ss.

[6] Diderot, apud Peter Gay, The Enlightenment, ii, Nova York, W. W. Norton and Co., 1977, pp. 189-90.

[7] Alberto Beretta Anguissola, “Désir et utopie chez Foigny, Rétif et Casanova”, in Studies on Voltaire and the Eighteenth Century, 191, 1980, pp. 646 ss.

[8] Jules Michelet, Histoire de la Révolution Française, 1, Paris, Robert Laffont, 1979, pp. 317-18.

[9] Walter Benjamin, “Ueber einige Motive bei Baudelaire”, “Das Passagenwerk”, e outros textos, em Gesammelte Schriften, Frankfurt, Suhrkamp.

[10] Rétif de la Bretonne, Les nuits de Paris, Paris, Editions d’aujourd’hui, 1978, pp.12-3.

[11] Rétif de la Bretonne, op. cit., p. 255.

[12] Holbach, Système de la Nature, Gênova, Slatkine Reprints, 1973, p. 1.

[13] Holbach, op. cit., p. 3.

[14] Holbach, op. cit., p. 408.

[15] Francis Bacon, “Novum Organon”, The Works of Francis Bacon, vol. 1, Stuttgart, 1963, pp. 163-79.

[16] Spinosa, Ethica Ordine Geometrica Demonstrata, pars iv, Scholium prop. 1, Paris, Librairie Vrin, 1977, p. 14.

[17] Voltaire, Dictionnaire philosophique, Paris, Gamier Flammarion, 1964, pp. 321-2.

[18] Kant, Kritik der reinen Vernunft, vol. 1, Frankfurt, Suhrkamp, 1977, pp. 310-1.

[19] Rousseau, Emile, Paris, Gamier Flammarion, 1966, p. 69.

[20] Diderot, “Lettre surles aveugles à l’usage de ceux qui voient”, em Oeuvres, op. cit., p. 838.

[21] Diderot, op. cit., p. 844.

[22] Diderot, op. cit., pp. 849-50.

[23] Diderot, op. cit., pp. 821.

[24] Rousseau, “Les Confessions”, Oeuvres, 1, La Pléiade, Paris, Gallimard, 1959, p. 5.

[25] Rousseau, Lettre à M. d’Alembert, Paris, Gamier, 1960, pp. 224-5.

[26] Sobre o tema da reciprocidade do olhar em Rousseau vide, especialmente, Jean Starobinski, Jean-Jacques Rousseau: la transparence et l’obstacle, Paris, Gallimard, 1971, em particular pp. 102 ss.

[27] Sade, La philosophie dans le boudoir, Paris, 10/18, 1972, p. 276.

[28] Baudrillard, “The Ecstasy of Communication” em The Anti-Aesthetic, Hal Foster (org.), Port Townsend, Bay Press, 1983, pp. 126 ss.

[29] Sergio Paulo Rouanet, A razão cativa, São Paulo, Brasiliense, 1987, 2 ed.

[30] Benjamin Constant, “Principes de politique, em De la liberté chez les modernes, Paris, Librai-re Genérale Française, 1980 pp. 272 ss.

[31] Michel Foulcault, Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975, pp. 20-3.

[32] Sergio Paulo Rouanet, op. cit.

[33] Juergen Habermas, Theorie der kommunicativen Handelns, Frankfurt, Suhrkamp, 1981.

[34] S. Freud, “Ueber Psychoanalyse”, Gesammelte Werke, vol. VIII, Frankfurt, S. Fischer Verlag, 1973, p. 54.

[35] Freud, “Totem und Tabu”, GW, vol. IX, p. 91.

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