1982

O nacional e popular na cultura brasileira – SEMINÁRIOS

por Marilena Chaui

Resumo

Os seguintes seminários não resultam de uma pesquisa sobre o nacional e o popular na cultura e nas artes no Brasil, nem mesmo de uma pesquisa sobre o nacional e o popular. São apenas observações gerais sobre algumas dificuldades e alguns interesses contidos na expressão “o nacional-popular”.

O primeiro conjunto de ensaios — “Seminário I” — aborda algumas questões relativas ao surgimento das ideias e imagens do nacional e do popular nos pensamentos políticos moderno e contemporâneo e apresenta algumas sugestões sobre a noção de obra cultural como inscrição histórica. Embora tivessem antecedido às pesquisas, não houve nesses seminários a menor intenção de oferecer aos colegas definições, métodos ou metodologias de pesquisa, nem houve, muito menos, a pretensão de esgotar os assuntos discutidos. Pelo contrário, as definições e os métodos foram criados pelos pesquisadores segundo as necessidades e exigências próprias de seus trabalhos, tendo as noções de nacional, popular e obra recebido conteúdos e interpretações diferentes em cada um deles.

O segundo conjunto de ensaios — “Seminário II: Nacional e Popular em alguns Cadernos do Povo Brasileiro e no Manifesto do CPC” — reflete uma tentativa de análise de discurso voltada, sobretudo, para o estilo da construção das noções de nacional e popular por alguns intelectuais brasileiros no inicio dos anos 1960. Desejaria esclarecer que não se trata de uma “aferição” desse discurso para saber se é verdadeiro ou falso, pois isso suporia a posse de uma definição prévia das noções que, justamente, a análise está procurando. Também não se trata de um estudo da história social, política e cultural do período a partir do qual “seria possível deduzir” o sentido dos textos lidos. Procurei apenas analisar um discurso que foi constituído por esse período histórico – bem como o constituiu – esforçando-me para evitar a “ilusão retrospectiva”, que consiste em atribuir ao passado um sentido que ele, enquanto era presente, não conhecia.

O ensaio “Seminário III” é um balanço das pesquisas realizadas pelos colegas procurando assinalar os pontos comuns e os divergentes, sem entrar nos detalhes de cada trabalho. Tentei apenas observar o caráter reflexivo das pesquisas, isto é, o fato de intelectuais e artistas terem buscado as expressões do nacional e do popular nas obras de outros intelectuais e artistas, refletindo sobre seu próprio trabalho de pesquisa. Tentei também assinalar a peculiaridade das pesquisas sobre a televisão e o rádio onde o nacional e o popular se cruzam e se redefinem a partir da indústria cultural e da política cultural do Estado.


SEMINÁRIO I

(primeiro semestre de 1980)

Gostaria de iniciar nosso encontro propondo que discutíssemos algumas dificuldades manifestas ou latentes contidas na expressão “o nacional-popular”, não só porque ela costuma ser convertida em nacionalismo cultural ou em populismo nacionalista, mas também porque o vinculo entre o nacional e o Estado, de um lado, e entre o popular e as classes dominadas, de outro, parece tornar inviável aquilo que frequentemente é o alvo dos projetos de “cultura nacional-popular”, isto é, a identidade nacional. As experiências do fascismo, do nazismo, do “socialismo em um só país” (cujo arquiteto era especialista na questão das nacionalidades), dos populismos e nacionalismos autoritários latino-americanos colocam a expressão “o nacional-popular” sob suspeita e a “identidade nacional” como altamente indesejável.

Também gostaria de propor que evitássemos partir de algumas definições prévias sobre o tema que nos levassem, por via dedutiva, a analisar manifestações culturais para decidir se seriam ou não nacionais-populares. Sugiro que procuremos as maneiras pelas quais em diferentes momentos e por diferentes sujeitos essas ideias e imagens são construídas e porque o são, deixando vir à tona diferentes modos de articular ou de separar os dois termos, em vez de buscarmos “o” nacional-popular que se materializaria em todas as manifestações culturais.

A expressão “nacional-popular” costuma ser associada ao nome de Gramsci. Quando a propõe, Gramsci pretende alcançar uma interpretação do nacional e do popular contrária e para além daquela que recebe sob a hegemonia burguesa e, mais particularmente, sob a fascista. Nesta, sobretudo a partir do nacionalismo de Corradini (com as revistas Il Regno e La Voce), exaltava-se o cesarismo, a Roma imperial, Patria lontana, os condottieri medievais e os navegantes do Renascimento, imagens que iriam inspirar D’Annunzio e Mussolini, o primeiro livro de um e o mais famoso artigo de outro trazendo como epígrafe: “Navegar é preciso. Viver não é preciso”. Jornais como Populo d’Italia ou da Associação Nacionalista Italiana, como L’Idea Nazionale, iriam estimular a ideologia belicista, retomada pelos futuristas (que propunham a guerra como “higiene do mundo”), e o surgimento dos primeiros Fasci, “livres associações subversivas”, encarregados de parir a “alma italiana” e o Partido Nacional Fascista, em novembro de 1921. Para este, “a Nação não é a simples soma dos indivíduos vivos, nem o instrumento dos objetivos partidários, mas um organismo que compreende a série indefinida das gerações cujos indivíduos são elementos passageiros; é a síntese suprema de todos os valores espirituais e materias da raça. O Estado é a encarnação jurídica da Nação.” (Ideias que encontraremos reproduzidas ipsis litteris pelos militantes e teóricos da Ação Integralista Brasileira, nos anos 30.)

Nos textos gramscianos, o nacional, visado como e enquanto popular, significa a possibilidade de resgatar o passado histórico-cultural italiano como patrimônio das classes populares. Nos artigos de Ordine Nuovo e nos Cadernos do Cárcere, as análises sobre a apropriação fascista do passado, sobre o futurismo, sobre a modernidade livresca e acadêmica, sobre o cosmopolitismo provinciano da intelectualidade italiana mostram que para esta o passado não existe ou existe apenas para fins de propaganda. O descaso, de um lado, e a manipulação, de outro, acabam deixando espaço livre para uma outra cultura que pretenda resgatar a memória nacional numa perspectiva popular. Se o nacional é o passado resgatado pela consciência e pelo sentimento populares, o que é o popular para Gramsci? Evidentemente, as análises políticas gramscianas tomam o popular segundo as determinações econômicas e sociais da divisão social das classes e enfatizam a opacidade dessas Classes no capitalismo italiano onde, desde o Rissorgimento, a diferença entre norte industrializado e sul agrário parece ser mais decisiva do que outras. Porém, no que toca à cultura, o popular recebe alguns sentidos novos e mesmo surpreendentes.

Gramsci afirma que existem uma religião e uma moral do povo, muito diversas daquelas organizadas pelos intelectuais da hierarquia eclesiástica e da classe dominante, fazendo com que existam crenças e imperativos muito mais fortes, tenazes e eficientes do que os da religião e moral oficiais. Distingue aí três estratos: os fossilizados, que refletem condições de vida passada e que por isso são reacionários e conservadores; os inovadores e progressistas, determinados espontaneamente pelas condições atuais de vida e, finalmente, aqueles que estão em contradição com a religião e a moral vigentes. São estes que devem mais interessar a quem se ocupa com o nacional-popular. Existe também uma cultura popular, tal como se exprime nos cantos populares que se distinguem de outros “no quadro de uma nação e de sua cultura não como fato artístico, nem por sua origem histórica, mas por seu modo de conceber o mundo e a vida, em contraste com a sociedade oficial. Nisto — e tão-somente nisto — deve ser buscada a ‘coletividade’ do canto popular e do próprio povo”, ainda que este não forme uma coletividade homogênea e imediatamente identificável. Se há, portanto, uma cultura popular em sentido amplo, por que esta não é nacional, na Itália?

Gramsci observa que em inúmeras línguas os termos “nacional” e “popular” são sinônimos ou mesmo um só. Na Itália isto não ocorre porque os intelectuais estão afastados do povo e da nação, presos a uma tradição livresca e elitista que jamais foi quebrada por um forte movimento político popular ou nacional, como na França, por exemplo. Nesse sentido, a discussão do nacional-popular passa também pela dos intelectuais, e, em particular, pelos eclesiásticos que jamais contribuíram para criar na Itália o povo-nação. Nem mesmo o romantismo, que no restante da Europa produziu esse efeito, foi capaz de realizar o nacional-popular italiano.

Criticando o catolicismo aristocrático e não jesuítico de Manzoni, Gramsci observa que seus romances têm a pretensão de possuir um conteúdo popular e, no entanto, neles o povo não só é tratado como “os humildes”, pelos quais o autor se enche de compaixão, mas ainda como se fosse desprovido de vida interior, sem profundidade ou personalidade moral, animais que recebem a benevolência do autor, “com a benevolência própria das sociedades católicas de proteção aos animais”. Criticando o catolicismo repressivo-paternalista dos jesuítas, observa que estes, por serem fruto da Contra-Reforma, são naturalmente antipopulares e antinacionais, e como intelectuais tradicionais da classe dominante foram incapazes de aproveitar a sabedoria popular em suas obras, reduzindo a superstições fatos ricos de sentido, como o interesse popular pela astronomia. Criticando o cosmopolitismo artificial e provinciano dos intelectuais italianos, observa a ausência de uma literatura nacional-popular leiga na Itália, resultando daí o gosto popular pela leitura da literatura popularesca vinda do estrangeiro. O curioso, porém, são os autores que Gramsci considera populares: Shakespeare, Goldoni, Tolstói, Dostoievski, Victor Hugo, Alexandre Dumas. Também examina a importância dos folhetins e, no caso particular da Itália, a substituição da literatura democrática ou democratizante (existente em toda a Europa a partir dos acontecimentos de 1848) pelo melodrama ou pela ópera, além de mencionar brevemente o rádio e o cinema. Por fim, indaga por que havendo tanto interesse popular pela literatura, pela música e pelas artes, estas não correspondem aos desejos dos leitores, ouvintes e espectadores. E responde que a ausência desse tipo de produção cultural decorre da distância infinita cavada entre a intelectualidade e o povo. O que é, então, o popular para Antonio Gramsci?

O termo possui vários significados simultâneos, sendo por isso multifacetado. Significa, por exemplo, a capacidade de um intelectual ou de um artista para apresentar ideias, situações, sentimentos, paixões e anseios universais que, por serem universais, o povo reconhece, identifica e compreende espontaneamente (é o caso de Shakespeare). Significa também a capacidade para captar no saber e na consciência populares instantes de “revelação” que alteram a visão de mundo do artista ou do intelectual que, não se colocando numa atitude paternalista ou tutelar face ao povo, transforma em obra o conhecimento assim adquirido (é o caso de Victor Hugo e de Tolstói). Significa ainda a capacidade para transformar situações produzidas pela formação social em temas de crítica social identificável pelo povo (é o caso de Goldoni e o de Dostoievski). Significa, por fim, a sensibilidade capaz de “ligar-se aos sentimentos populares”, exprimi-los artisticamente, não interessando no caso qual o valor artístico da obra (é o caso do melodrama e do folhetim, ambos considerados por Gramsci estímulos à imaginação popular e ao sonhar acordado como forma de compensação para as misérias reais). Na perspectiva gramsciana, o popular na cultura significa, portanto, a transfiguração expressiva de realidades vividas, conhecidas, reconhecíveis e identificáveis, cuja interpretação pelo artista e pelo povo coincidem. Essa transfiguração pode ser realizada tanto pelos intelectuais “que se identificam com o povo” quanto por aqueles que saem do próprio povo, na qualidade de seus intelectuais orgânicos. Gramsci se situa, portanto, quase nos antípodas de um Brecht.

Nacional como resgate de uma tradição não trabalhada ou manipulada pela classe dominante, popular como expressão da consciência e dos sentimentos populares, feita seja por aqueles que se identificam com o povo, seja por aqueles saídos organicamente do próprio povo, a cultura nacional-popular grarnsciana possui um aspecto pedagógico que não pode ser negligenciado. Aliás, Gramsci vai muito longe nesta questão, pois declara que há uma diferença entre o intelectual-político e o intelectual-artista. O primeiro deve estar atento a todos os detalhes da vida social, a todas as diferenças e contradições e não deve possuir qualquer imagem fixada a priori. Em contrapartida, o segundo, justamente por sua função pedagógica, deve fixar imagens, generalizar, descrever e narrar o que é e existe, situando-se num registro temporal diferente daquele do intelectual-político que visa o que deve ser e existir, o futuro.

Como Maquiavel nos Discorsi, Gramsci critica a intelectualidade e os políticos italianos porque imaginam uma Itália já existente, já feita no passado e nas tradições, procurando apenas conservá-la sem considerar sua inviabilidade. Nesse sentido, a recuperação do passado, na perspectiva gramsciana, não é restauração de tradições nem culto à tradição, atitudes próprias do fascismo. Para ele, trata-se da possibilidade de refazer a memória num sentido contrário ao da classe dominante, de modo que o corte histórico-cultural seja um corte de classe. Enquanto o totalitarismo fascista pretende “resolver a questão proletária nos quadros da nação”, restaurando o passado imperial-imperialista de Roma, o cesarismo e o “bom tirano”, Gramsci procura uma resposta que contrarie esse nacionalismo. Sua resposta nacional-popular à hegemonia fascista é conhecida: Maquiavel ou o Moderno Príncipe, isto é, uma interpretação da obra de Maquiavel contra a tradição das leituras burguesa e fascista e, portanto, a reelaboração de uma política republicana, porém na perspectiva comunista. Substituindo o mito burguês do Salvador e o fascista do Condutor pela prática do partido proletário como ação auto-emancipadora, Gramsci reata com a tradição humanista do Renascimento em sua vertente republicana. Sob esse aspecto, o papel decisivo que tem em seu pensamento a relação sociedade política — sociedade civil tem como fonte não apenas Marx e Hegel, mas também Maquiavel.

Um último ponto que convém mencionar é a relação entre a ideia do nacional-popular na cultura e o conceito gramsciano de hegemonia, em íntima ligação com seus conceitos de sociedade civil e sociedade política, a primeira definida como organização e regulamentação das instituições que constituem a base do Estado e a segunda como passagem da necessidade (econômica) para a liberdade (política), da força para o consenso. A hegemonia opera nos dois níveis: no primeiro, como direção cultural e no segundo, como direção política. Ou, como aparece nos textos sobre Maquiavel, é a criação da “vontade coletiva” para uma nova direção política e também a “reforma intelectual e moral” para uma nova direção cultural.

A hegemonia se distingue do governo (o dominium como instituição política e, em tempo de crise, como uso da força) e da ideologia (como sistema abstrato e invertido de representações, normas, valores e crenças dominantes). Não é forma de controle sócio-político nem de manipulação ou doutrinação, mas uma direção geral (política e cultural) da sociedade, um conjunto articulado de práticas, ideias, significações e valores que se confirmam uns aos outros e constituem o sentido global da realidade para todos os membros de uma sociedade, sentido experimentado como absoluto, único e irrefutável porque interiorizado e invisível como o ar que se respira. Sob essa perspectiva, hegemonia é sinônimo de cultura em sentido amplo e sobretudo de cultura em sociedade de classes.

Isto significa, por um lado, que a hegemonia determina o modo como os sujeitos sociais se representam a si mesmos e uns aos outros, o modo como interpretam os acontecimentos, o espaço, o tempo, o trabalho e o lazer, a dominação e a liberdade, o possível e o impossível, o necessário e o contingente, as instituições sociais e políticas, a cultura em sentido restrito, numa experiência vivida ou mesmo refletida, global e englobante cujas balizas invisíveis são fincadas no solo histórico pela classe dominante de uma sociedade. É o que Gramsci designa como “visão de mundo”. Mas significa também, por outro lado, que essa totalização é um conjunto complexo ou um sistema de determinações contraditórias cuja resolução não só implica num remanejamento contínuo das experiências, ideias, crenças e dos valores, mas ainda propicia o surgimento de uma contra-hegemonia por parte daqueles que resistem à interiorização da cultura dominante, mesmo que essa resistência possa manifestar-se sem uma deliberação prévia, podendo, em seguida, ser organizada de maneira sistemática para um combate na luta de classes.

No caso específico do nacional-popular como contra-hegemonia ao fascismo italiano, trata-se não só da captação dos pontos de resistência popular ao fascismo, como ainda da prática intelectual deliberada de reinterpretação do passado nacional sob perspectiva popular. Além disso, se nos lembrarmos que Maquiavel dissera ser toda sociedade constituída por duas tendências antagônicas, a dos Grandes, que desejam comandar e oprimir, e a do Povo, que deseja não ser comandado nem oprimido, a busca gramsciana do popular se insere, ela própria, no passado cultural italiano, porém naquilo que este possui de universal. O importante também, creio, é a modificação que o conceito de hegemonia introduz nas versões mecanicistas de certo marxismo, na medida em que permite alcançar a práxis ultrapassando a dicotomia abstrata entre infra e superestrutura, ao mesmo tempo que compreende a práxis como prática que capta as brechas na hegemonia existente. Entre outras consequências, essa compreensão da articulação interna entre cultura, hegemonia e contra-hegemonia como práxis implica em tomar a proposta de uma cultura nacional-popular não como a única resposta possível à hegemonia burguesa, mas como a resposta determinada pela forma histórica particular que essa hegemonia assume num momento determinado — no caso, como resposta revolucionária à contra-revolução fascista. Em outras palavras, o nacional-popular não é uma panaceia universal, não é um modelo, não é uma substância nem uma ideia providas de determinações fixas e plenamente inteligíveis. Não é transparente nem um instrumento perpetuamente disponível.

Essas brevíssimas referências à obra de Gramsci no tocante ao nacional-popular não pretenderam, obviamente, esgotar o assunto no pensamento gramsciano nem muito menos considerar o tema proposto pela pesquisa da Funarte como resolvido a priori. Pelo contrário, as considerações anteriores pretenderam dar início à discussão do problema e não encerrá-lo. Aliás podemos tomar do próprio Gramsci um primeiro problema, qual seja, o da universalidade por ele atribuída ao popular.

Com efeito, em várias passagens de suas análises sobre a literatura, o teatro e a música Gramsci afirma que inúmeras obras estrangeiras estão muito mais próximas dos sentimentos, dos valores e das ideias do povo italiano do que a maioria das obras nacionais. Isto significa, em consonância com o internacionalismo marxista, que o popular não está determinado apenas pela cultura nacional-local, mas possui uma universalidade própria, desconhecendo fronteiras. Afirma ainda que muitas obras estrangeiras são populares enquanto conservação épica, trágica ou cômica de tradições remotas ou recentes, de modo que o popular, além de não se confinar às fronteiras do espaço, também não é limitado por fronteiras temporais — nem o espaço geográfico da nação nem o presente nacional circunscrevem inteiramente o popular. Neste caso, a proposta de uma cultura nacional-popular não é determinada pela universalidade do popular, mas pela particularidade da forma nacionalista da hegemonia fascista, isto é, pela necessidade de bloquear a reconstrução do passado nacional pelo totalitarismo como propaganda nacionalista-expansionista e de contrapor a essa propaganda uma outra interpretação do passado e do presente nacionais. Ora, um dos resultados observados em experiências que tentaram apropriar-se do nacional-popular em outros contextos históricos costuma ser, paradoxalmente, o nacionalismo populista ou o populismo nacionalista como se a face universalizante do popular fosse neutralizada pela particularidade que define o nacional. Por quê?

Tanto o adjetivo “nacional” quanto o adjetivo “popular” reenviam a maneiras de representar a sociedade sob o signo da unidade social, isto é, Nação e Povo são suportes de imagens unificadoras quer no plano do discurso político e ideológico quer no das experiências e práticas sociais. Considerando-se a nação como “existência geográfica e antropológica”, para usar a expressão de Hegel, ou como a face externa do social (território, língua, mores, instituições), e o povo como a face interior da sociedade, ou como unidade política e jurídica, tanto um termo como outro, na qualidade de “faces” de uma mesma realidade, têm como referência última a imagem de um todo uno, ainda que diversificado (a diversidade sendo apenas a pluralidade daquilo que é em si idêntico). Nessa perspectiva, o nacional-popular, para não ser convertido numa redundância ou num pleonasmo, passa a indicar uma unidade geográfica, antropológica, jurídica e política dotada de uma face externa e de uma face interna. Todavia, visto ser possível falar em “sentimento nacional” ou numa “consciência nacional” como fundadores de uma “identidade nacional”, assim como é possível falar em “espírito de um povo” impresso nos mores ou na língua, ou ainda em “soberania popular” materializada nas instituições políticas, é preciso admitir que a exterioridade — o nacional comporta uma interiorização e que a interioridade — o popular — comporta uma exteriorização. A unificação dessas duas determinações, marcadas pelo selo da determinidade, isto é, da particularidade (pois nação e povo são retro e verso de uma mesma realidade determinada e por isso particular, nenhum dos dois termos possuindo universalidade), só poderá ser efetuada por um terceiro termo que apareça como transcendente a ambos: o Estado nacional. Assim, é o Estado, em última instância, que define o nacional-popular e, neste caso, desfaz a universalidade sem fronteiras espaciais e sem limites temporais que uma perspectiva marxista atribuiria ao popular.

Porém, a imagem da unidade social pode ser também negada pelo nacional-popular e não apenas afirmada por ele. Essa negação ocorre quando o nacional reenvia à Nação como unidade, mas o popular reenvia à sociedade e, portanto, à divisão social das classes e não mais ao Povo como unidade jurídica e política. Enquanto no caso anterior, a unidade do nacional absorvia a divisão popular—não-popular na identidade nacional e no Estado nacional, agora, a divisão das classes impede essa absorção.

Essa diferença — o nacional-popular afirmativo da unidade e negador dela aparece, por exemplo, quando a discussão toma como referência a ideia de soberania. No primeiro caso, há identificação entre soberania nacional e soberania popular, identificação problemática porque o segundo termo inclui uma determinação que não é constitutiva do primeiro, isto é, a de poder democrático. No segundo caso, a identificação é impossível e a expressão nacional-popular abriga uma divisão interna, isto é, a unidade nacional não se sobrepõe à divisão social das classes. Porém, a divisão pode tomar dois rumos: ou a expressão “o nacional-popular” é conservada, mas apenas como estratégia ou tática da luta de classes, a ênfase num dos termos ficando na dependência da classe que define a própria estratégia ou tática; ou a expressão é conservada para ocultar a divisão social e, neste caso, a ênfase recai sobre o terceiro termo, implícito, ou seja, o Estado nacional.

Essas oscilações nos deixam entrever alguns problemas instigantes. Em primeiro lugar, observa-se que a realidade empírica dos dois termos parece ser irrelevante, uma vez que as construções teóricas lhes podem conferir sentidos diversos e mesmo diferentes; em segundo lugar, porém, observa-se que a ênfase nas componentes empíricas de um dos termos não deixa intacto o sentido do outro, o que supõe uma secreta articulação entre ambos; em terceiro lugar, e sobretudo, observa-se que a elaboração conceitual retroage de modo prático sobre os dados empíricos e modificam até mesmo os “dados”, o que supõe um vai-e-vem entre as componentes empíricas e as construções conceituais. À primeira vista, esses movimentos dão um caráter quase evanescente ao nacional-popular, mas provavelmente estão a indicar o óbvio, isto é, que não estamos diante de uma substância material ou espiritual. O nacional-popular parece ser, por um lado, um campo de práticas e de significações delimitadas pela formação social burguesa, mas, por outro lado, uma reestruturação continua da experiência social, política e cultural que refaz e redefine, em momentos historicamente determinados, as relações sociais, o campo prático e semântico no qual os sujeitos sociais em presença se representam uns aos outros interpretando o espaço e o tempo sociais, a liberdade e a necessidade, o possível e o impossível, o justo e o injusto, o verdadeiro e o falso, a legalidade e a legitimidade — e o fazem pela mediação desses dois termos cambiantes e instáveis que são o nacional e o popular. Antecipando nossas considerações, diremos desde já que as ideologias nacionalistas e populistas são ideologias justamente porque pretendem exorcizar as oscilações dos termos, capturá-los num campo prático e semântico definitivo, imóvel e fixo, fazendo-os passar da qualidade de experiências sociais, políticas e culturais à condição de substâncias (imaginárias).

As variações e dificuldades postas pelo nacional-popular talvez se tornem mais explícitas se acompanharmos duas vertentes que ora unificam ora separam os dois termos — a vertente nascida com as revoluções burguesas, particularmente a francesa e os nacionalismos europeus posteriores à derrota proletária de 1848, e a vertente das análises marxistas, que articulam o desenvolvimento da acumulação capitalista à necessidade da emergência dos Estados nacionais e do imperialismo.

Os historiadores consideram uma das novidades maiores da revolução francesa o fato de que ela se afirma a si mesma como revolução, isto é, como instituição de uma ordem social inteiramente nova que pretende criar a sociedade e a política a partir de um marco zero, definido por elas próprias, em qualquer referencial externo ou suporte transcendente. Dois símbolos marcam esse desejo de revolução-criação: a derrubada dos Estados Gerais por uma Assembleia Nacional Constituinte, geradora absoluta da nova lei instituinte da nova ordem, e a mudança do calendário, como inauguração radical do tempo presente. Enquanto na revolução inglesa havia referência ao tempo passado — a ordem anterior a ser restaurada — e ao poder transcendente — a ordem justa benquista e bendita por Deus —, e enquanto a revolução americana pretendia dar forma política a uma sociedade preexistente, nascida de pactos sociais anteriores (o juramento dos Pais Peregrinos do Mayflower, sob o testemunho de Deus), a revolução francesa se representa a si mesma como início absoluto determinado apenas pela vontade revolucionária, definida como vontade geral. O que torna possível essa representação é um remanejamento das representações sobre o poder. Por um lado, a polarização da sociedade entre um Alto e um Baixo irreconciliáveis e por outro lado, como salienta Lefort numa de suas análises, a perda da naturalidade que justifica e legitima o poder vigente. Essas modificações produzem uma inversão política essencial, isto é, a percepção da ilegitimidade, da injustiça e da arbitrariedade do Alto — rei, nobreza e clero são vistos como usurpadores — e o deslocamento da fonte do poder para o Baixo, isto é, para o Povo.

Em sua versão mais explícita, isto é, jacobina, a revolução francesa pretende dar existência ao Povo, tal como o Contrato Social de Rousseau o definira: “Mas quando todo o povo estatui sobre todo o povo, considera apenas a si mesmo e forma uma relação, é o objeto inteiro sob um ponto de vista em relação com o objeto inteiro sob outro ponto de vista, sem divisão alguma do todo. Então a matéria sobre a qual estatui é geral como a vontade que estatui. Esse ato, chamo de lei […]. Chamo República todo Estado regido por leis, sob qualquer forma de administração que possa haver, porque é somente então que o interesse público governa e a coisa pública é alguma coisa. Todo governo legítimo é republicano” (Du Contrat Social, II, 6).

As ideias de igualdade, liberdade e fraternidade articulam uma unidade política — o Povo, soberano porque legislador —, uma unidade jurídica — a Nação como passagem do indivíduo indeterminado ao cidadão — e uma unidade de sentimento e de destino ou uma unificação ideológica — a Pátria como sociedade civil atomizada e, contraditoriamente, como comunidade orgânica. A referência dessas unidades não é transcendente, mas imanente: a Humanidade e, nesta, a Razão que se exprime como Vontade Geral. A elaboração dessas unidades que se recobrem umas às outras permite deslocar a divisão social das classes para a divisão entre os “amigos” e os “inimigos” do povo, ou para a separação social das facções políticas cuja resolução será operada inicialmente pelo Terror e, posteriormente, pela centralização napoleônica. Para muitos historiadores, aliás, a revolução francesa põe em cena o povo e a pátria, mas é Napoleão quem instaura a nação, a partir do momento em que substitui o exército profissional pelo “povo armado” ou pela “nação em armas”, nação que estará em toda parte, ou melhor, ali onde estiverem os exércitos. Não será casual, que o sentimento nacionalista se alastre pela Europa com as invasões napoleônicas que, contrariamente, despertam esse sentimento justamente porque exercem poder não em nome de uma casa ou de uma dinastia, mas em nome de uma nação estrangeira. O poder, agora, aparece como o de um povo sobre outro e por isso inaceitável.

É importante assinalarmos desde já o caráter político das ideias e imagens criadas pela revolução francesa, aspecto frisado pelo jovem Marx na Questão Judaica, quando distingue o Estado político francês e o Estado teológico-político alemão. O conceito de povo — político e jurídico — opera geneticamente, isto é, como origem do Estado e da Nação, na medida em que estes não possuem qualquer suporte transcendente, mas apenas a ideia de soberania popular. Em contrapartida, na Alemanha teológico-política, o povo não é e não pode ser um conceito político-jurídico e será, pelo menos a partir do romantismo, uma realidade espiritual — o Volksgeist — que se manifesta originariamente como cultura (língua, costumes, sentimentos). A nação, neste caso, não emerge como unidade posta pela soberania popular, mas aparece como “vida comum” do mesmo povo. A determinação política sobrevém ao povo e à nação por intermédio de uma outra realidade espiritual, o Estado, cuja origem é a vontade do monarca. A unificação que, na França, é operada pela política, na Alemanha aparece como unidade cultural coroada pela política. Essas observações nos parecem importantes porque quando nos voltamos para o Brasil, notamos que as principais ideologias nacionalistas serão montadas a partir dessas duas fontes, no entanto diferentes. Isto é, povo e nação serão tomados como realidades culturais prévias, porém sem forma definida, às quais vem sobrepor-se o Estado, porém encarregado não de coroá-las, mas de lhes dar forma, de sorte que a política não possui origem popular, mas transcendente.

Embora a revolução francesa se represente a si mesma como um começo absoluto, as ideias que informam sua prática possuem um longo passado. Assim, por exemplo, o pressuposto da igualdade e da liberdade vem das teorias contratualistas que, por seu turno, pressupõem a superação da ideia e da instituição da comunidade (cujo fundamento é o sentimento de amor recíproco, a naturalidade imediata dos laços familiares e da posse da terra, e a organicidade que a faz ser um fim em si mesma — ideia que será retomada pelo romantismo nacionalista ao rejeitar o iluminismo racionalista que fundamenta a revolução francesa) pela ideia e pela instituição da sociedade como sociedade civil (cujo pressuposto é a dispersão dos indivíduos sem laços orgânicos de sociabilidade e cujo fundamento são os indivíduos livres e iguais que pactuam entre si por uma decisão voluntária). As teorias contratualistas (de onde emerge o liberalismo) pressupõem um direito natural (donde a igualdade e a liberdade serem originárias) que permitem conceber o povo sob dois aspectos antagónicos, isto é, como “multidão pura” (a malta) e como multidão organizada” pelos pactos sociais de onde pode emergir o pacto político criador da soberania. Seja o soberano um monarca constitucional ou uma assembleia popular, o regime político é considerado republicano (exceção, portanto, para o despotismo) e sua origem é a soberania popular — que tanto pode ser voluntariamente alienada ao ocupante do governo, quanto ser conservada por meio da representação política em assembleias eleitas.

Além de pressupor o pensamento político dos séculos XVII e XVIII, a revolução francesa ainda pressupõe duas histórias na base de sua concepção republicana do povo e da nação como soberanos: a reconstrução do passado romano (donde Marx, na abertura do 18 Brumário, lembrar que os revolucionários aparecem vestidos nas túnicas romanas) e a reconstrução do passado nacional feita pelos historiógrafos do século XVI.

A importância simbólica da república romana não se confina à revolução francesa, evidentemente, mas aparece desde o Renascimento em toda parte onde se pretenda estabelecer um regime republicano. No caso específico da França, a presença do modelo romano nas obras de Rousseau e de Montesquieu fornecerá aos revolucionários uma referência central para uma prática que pretende dar um lugar político à plebe mantendo, porém, o poder do patriciado (o fracasso de Babeuf sendo o melhor índice do caráter “romano” ou não-plebeu da revolução). A presença do modelo romano, com ênfases diferentes por girondinos e jacobinos, permite que compreendamos que o “Povo” é menos a população francesa, menos as classes sociais populares ou a plebe e muito mais um princípio jurídico e econômico, exatamente, aliás, como em Florença — onde o populo são “os cidadãos economicamente ativos”, distintos do populo minuto — ou na república holandesa — onde, calvinistamente, define-se o povo como conjunto dos “homens honestos, trabalhadores e responsáveis” (Breve Demonstração da República Holandesa, por Vrancken, pensionário de Gulda, 1581) em contraste com a plebe, formada pela “ralé, por vagabundos, desordeiros e irresponsáveis” (idem, ibidem). Aliás, em 1963, Antônio Saturnino Braga, chefe da Divisão de Assuntos Políticos da Escola Superior de Guerra define o povo como “a parte da população global de uma nação que tem consciência política, isto é, que tem noção do que se relaciona com os problemas de direção da comunidade nacional”.

Na revolução francesa, as ideias de Vontade Geral e de Razão constituem políticamente o Povo, de modo que o regime é popular não porque seja democrático, mas porque os constituintes do Povo (na dupla acepção do termo “constituinte”) fundam uma nova lei. O governo será republicano e representativo porque pública é a Vontade Geral (que se profere a si mesma enunciando os direitos do homem e do cidadão) e porque representada está a Razão por meio dos que definem, criam e protegem o bem comum.

O modelo romano, isto é, de uma república que afirma encontrar no povo o princípio político ou o legislador, implica em conservar dois elementos essenciais da política republicana de Roma: a distinção entre populus e plebs (o primeiro como cives e como optimates , ou patriciado detentor da cidadania, da magistratura, do comando militar e do governo; a segunda como populares, populacho, com direito conquistado de ter representantes, mas com poderes limitados e jamais como governante); e um conjunto de dispositivos institucionais e legais garantindo à plebe exprimir suas reivindicações e vê-las atendidas sem que ela própria assuma a direção política e o poder judiciário (Montesquieu, por exemplo, insiste em mostrar que a fraqueza do patriciado romano, deixando periodicamente a plebe tomar as rédeas da república, foi sempre a causa de sedições, perturbações e, finalmente, da queda do regime). Em suma, uma república será popular sob a condição explícita de não ser plebeia. E, doravante, bastará que seja nacional.

No momento em que começam a se constituir os futuros Estados nacionais europeus, o grande inimigo político está cristalizado nas duas instituições magnas do feudalismo: a ideia de Cristandade e a de Europa, encarnadas nas figuras imperiais, isto é, papas e imperadores. Além das teorias políticas que estabelecem a diferença de natureza e de função entre o político e o religioso, procurando desarticular a unidade entre papado e sacro-império romano-germânico, e das teorias do direito natural subjetivo e do contrato como fonte do direito positivo e do poder, para desmontar o poder teológico-político fundado no princípio da graça divina, uma outra elaboração tem papel central para o pensamento de uma nova soberania de estilo constitucional ou republicano, na Inglaterra, na Holanda e na França: a historiografia nacional e nacionalista, desenvolvida nos séculos XV e XVI pelos juristas. Inspirando-se na história patriótica dos historiadores italianos (particularmente os florentinos), juristas se tornam antiquários e historiógrafos com a finalidade de encontrar o momento político anterior à dominação imperial romana, tida como responsável pela posterior dominação imperial da Igreja. Tanto como Roma dos Césares quanto como Roma dos Papas, o poder romano é representado nessa historiografia como invasor e usurpador, tanto mais quando os juristas retomam a tese dos paduanos (Bartolo e Marsílio) sobre a inexistência do Direito Romano, que servira de garantia a esses poderes. Através do levantamento exaustivo de fatos, documentos e fontes, os historiógrafos pretendem encontrar a sociedade primitiva, isto é, tal como era antes da invasão romana e da unificação católica. Desfazendo-se das crônicas régias e religiosas, dos relatos míticos e miraculosos sobre a origem, recorrendo à filologia e ao estudo direto das fontes, “encontram” as sociedades originárias diferenciadas pela raça, pela língua, pelos costumes e pelas instituições (especialmente o Direito), isto é, particularidades que constituem nações cujos sujeitos são, agora, o gaulês, o saxão, o batavo. Nessas “comunidades civis” o poder político não se identifica com a religião nem se realiza através dos cultos. Definidas pelo direito natural, pelo direito costumeiro e pelo direito civil, essas comunidades são nacionais, isto é, independentes e laicas, o poder emanando não de Deus, mas do legislador como “a parte hegemônica do povo” (para usar uma expressão cunhada pelo jurista populista Marsilio di Padova). Com os juristas-historiógrafos estão lançadas as bases para a elaboração subsequente da ideia de soberania — nacional e popular.

O trabalho dos historiógrafos é facilitado pelo desenvolvimento do que Weber designa “cidades plebeias”, isto é, as comunas urbanas do final da Idade Média, constituídas pelas corporações e grémios de empresários, comerciantes e artesãos, fundadas nas práticas da conjuratio e da confidatio, isto é, em relações baseadas no juramento de lealdade, fidelidade e de confiança recíprocas entre os iguais. As cidades plebeiais — fonte do futuro terceiro estado do Antigo Regime — criam o “povo” não só como ideia e realidade econômica, mas também política, visto que possuem organização própria (financeira, administrativa, militar, jurídica) e possuem regras para a garantia de sua autonomia face aos barões, aos reis, papas e imperadores, além de pactuarem entre si, formando federações ou confederações. Germes das futuras repúblicas italianas, holandesas e suíças, as cidades plebeias servem de suporte para a construção da ideia de república autônoma, isto é soberana. Assim, a formulação posterior da soberania como autonomia territorial, jurídica e política fundada no povo e na nação encontra nas comunas urbanas seu primeiro suporte histórico. Em outras palavras, a centralização administrativa, o exército profissional e a delimitação do território constituem os pilares para a formulação subsequente do Estado Nacional.

Visando inicialmente a desfazer os fundamentos do poder teológico-político, que mantém a unidade europeia sob a dispersão feudal, a ideia de nação como república opera, a seguir, como elemento central de superação da fragmentação das senhorias feudais para a criação e estabilização dos mercados internos e externos, a defesa do território pela centralização burocrático-administrativa e militar, a regulamentação das relações econômicas para a acumulação do capital (direito de mar e terra, direito de guerra e paz, tratados políticos internacionais, estratégicos e econômicos). Ora, nesse percurso, em lugar de predominar a forma da cidade republicana ou das confederações livres, o Estado Nacional assumirá a forma predominante da monarquia (no caso francês, da monarquia absoluta) e do império colonial. Essa forma, se permite a fundamentação da soberania nacional, é avessa à ideia de soberania popular. É nesse choque entre a dupla determinação da origem da soberania que a revolução francesa trabalhará no sentido de identificar as duas fontes do poder, declarando a monarquia absoluta ilegítima, despótica e usurpadora.

A característica principal do regime monárquico é a identificação entre o monarca e o poder, o rei e a lei, o poder político e o Estado. Há uma incorporação gradativa de cada um dos termos nos e pelos outros e o “corpo político” é a metáfora dessa identificação. O traço distintivo da expressão “l’état c’est moi” é a determinação da lei pela vontade do monarca, ou se se quiser, a monarquia é monocracia. Quando os revolucionários declaram a ilegitimidade da monarquia e fazem valer a ideia de vontade geral como soberania do cidadão ou do povo, operam uma primeira desincorporação do poder, isto é, a autonomia da lei face ao Estado, que se torna apenas seu guardião. O povo, como legislador, é soberano e como cidadão-súdito obedece à sua própria lei, sendo por isso livre. Por outro lado, a metáfora do “corpo político” enquanto corporificação do poder no corpo do rei implica numa apreensão do social como comunidade orgânica e, por isso, os revolucionários dirão que o Antigo Regime não é uma sociedade. Para passar da comunidade orgânica à sociedade é preciso uma nova desincorporação, isto é, a separação entre sociedade civil e Estado, e, portanto, a teoria e a prática do contrato social. Na medida em que o contrato transforma um indivíduo em “sujeito de direito” ou em cidadão, ele opera, na verdade, uma dupla desincorporação: a da comunidade orgânica imposta pela monarquia e da comunidade orgânica imposta pela natureza, de sorte que a revolução francesa pode-se pensar a si mesma como começo absoluto num duplo registro, isto é, como ruptura face à ordem antiga e como ruptura face à natureza. É nesse ponto que intervém a ideia da nação, porém, mediada por uma outra, essencial: a ideia de Pátria. Para compreendermos o fenômeno peculiar desencadeado por essa ideia, isto é, uma nova forma de incorporação, convém lembrarmos que o traço principal das formações sociais modernas sob o capitalismo é a substituição da autoridade e do domínio pessoais pelo poder político como pólo impessoal e separado da sociedade civil.

Se a fragmentação dos indivíduos é substituída pela ideia de povo e a fragmentação das classes é substituída pela ideia de nação, por seu turno a separação entre o poder e a sociedade, ou entre o Estado e sociedade será mediada por um elo que permitirá ao povo-cidadão e ao povo-nativo reconhecerem-se como membros de um Estado particular. Esse elo é a pátria. Como dirá Saint-Just, a pátria não é solo, não é território, mas uma entidade moral ou ética, uma comunidade de sentimento e de destino. Dessa maneira, os cidadãos, ligados apenas pelos vínculos do direito e os nacionais, ligados apenas pelos vínculos do território e das instituições, formam um novo corpo social e ético enquanto patriotas. Se o liberalismo iluminista pouco caso fará da nação e não falará na pátria (mesmo porque contesta a autoridade pessoal fundada no pátrio poder), o nacionalismo patriótico, que varrerá a Europa a partir de Napoleão, dos fracassos de 1848 e da “via prussiana para o capitalismo” com Bismarck, encontra na ideia revolucionária da pátria e nas elaborações de Herder, no final do século XVIII, os elementos para produzir, por meio do Estado nacional, o sentimento nacional como consciência patriótica, o que permitirá, por seu turno, um duplo tratamento do “popular”: como resíduo tradicional da nação (folclore) e como perigo continuo para a pátria (as classes populares).

Quando Hegel afirmar a racionalidade e a universalidade do Estado Nacional como culminância do processo histórico e político (tanto é culminância que a distinção hegeliana entre as sociedades sem e com história funda-se no surgimento da escrita e da prosa que coincidiriam com o advento do Estado), resume e recolhe os frutos do romantismo e do liberalismo. Superação-conservação da unidade imediata ou substancial da família como comunidade natural (ponto onde começava e findava a concepção política de um Herder, por exemplo) e superação-conservação da unidade mediata ou formal das vontades como sociedade civil (ponto onde começava e findava a concepção liberal clássica), o Estado Nacional exprime o “espírito de um povo” num momento determinado do desenvolvimento histórico e é o ponto mais alto desse desenvolvimento determinado.

É importante notar que o conceito de nacionalidade em Hegel inverte totalmente as concepções nacionalistas românticas, como as de Herder, e as da Escola do Direito Histórico, de Savigny. Essa diferença é importante porque quando observarmos os nacionalismos do século XX e os nacionalismos brasileiros, notaremos não só a oscilação entre essas duas concepções, como a tentativa de juntá-las. No caso de Herder, língua, religião, moralidade e artes constituem o “espírito do povo” e conduzem à afirmação de um Ur-Volk, povo originário que sustenta o povo presente com suas características particulares. Para Hegel, ao contrário, o “espírito do povo” não se encontra na origem e sim no término do processo histórico como resultado do trabalho racional e não como explosão de sentimentos naturais; o conceito de Volksgeist opera muito mais de modo descritivo do que genético. No caso de Savigny, o conceito serve, à moda dos juristas de outros países nos séculos XVI e XVII, para encontrar as instituições do antigo direito germânico, lei nacional e tribal, justiça primitiva que deveria substituir o formalismo e a codificação artificial do Direito Romano. Para Savigny, há uma relação orgânica entre a lei e o caráter nacional, a natureza da lei vindo a determinar a essência da nação e de sua história. A origem da lei deve, pois, ser encontrada na consciência nacional que também produz a língua e os costumes, cabendo ao legislador apenas a tarefa de vestir formalmente e externamente conteúdos inerentes ao caráter nacional, tornando explícito seu silencioso existir. O Estado nacional não é, portanto, realização de uma vontade racional consciente de si, mas produto de forças históricas nacionais inconscientes e ocultas. Para Hegel, ao contrário, não só o “espírito de um povo” é resultado e não princípio, como ainda o Estado é o ponto mais alto da vontade plenamente consciente de si e para si, ponto culminante da racionalidade do Espírito Objetivo e, portanto, primeiramente universalidade política e somente depois particularidade nacional. Afinal, Hegel parte da sociedade civil e não da nação e sobretudo considera o natural como selvageria, alienação e animalidade inconsciente que não poderia, de modo algum, sustentar o ápice da racionalidade, o Estado.

É interessante observar como se cruzarão, no Brasil, as duas vertentes. Assim, por exemplo, quando Oliveira Vianna e, depois dele, os Integralistas criticarem o liberalismo como formalismo artificial e importado pelo “Brasil litorâneo”, a crítica se aproxima da posição de Savigny na recusa do Direito Romano em nome de uma lei nacional autêntica, porque conforme ao caráter nacional. Por outro lado, no entanto, tomarão o Estado como realização deliberada de uma vontade política racional encarregada de superar as divisões sociais, regionais e locais, mas simultaneamente, exprimir o caráter nacional.

Talvez seja conveniente recordarmos o caminho histórico que levou, aqui e na Europa, a essa peculiar combinação de ideários opostos.

A partir da data simbólica da “revolução hedionda”, julho de 1848, da consolidação da ordem burguesa na Europa com a vitória do Partido da Ordem, esmagando fevereiro, defendendo a propriedade privada, a família, a religião e a disciplina, difundindo as longas frases de Guizot, Benjamin Constant e Tocqueville sobre a impossibilidade ou sobre os riscos da democracia e a ausência de frases na prática de Bismarck, tem fim uma era de movimentos proletários socialistas e comunistas e tem início o nacionalismo como ideologia propriamente dita. Esta, porém, não é unívoca, a variação dependendo da ênfase dada ao Estado ou à sociedade.

Do lado do Estado, a ideologia nacionalista se desenvolve partindo da afirmação de Bonaparte — “a política de um Estado está em sua geografia” — e das teorias de Ratzel sobre o território nacional como território vital e a nação como Lebensraun, concebendo a nacionalidade a partir da geopolítica que promove as unificações nacionais, desenvolve o pangermanismo e põe em ação o ideal da Mitteleuropa, sonhada pelos jovens wagnerianos de Bayreuth.

Do lado da sociedade, o nacionalismo se desenvolve sobretudo como ideologia patriótica de uma classe média ilustrada ou letrada e das “irmandades nacional-revolucionárias”, na expressão de Hobsbawm, isto é, associações inspiradas em Mazzini, após 1830, ou os carbonários da “Jovem Itália”. Surgem as “Jovens” Polônia, Suíça, Alemanha, França, Irlanda e, mais tarde, os “Jovens Turcos”.

É a confluência dessas duas vertentes que não só produz a oscilação entre um ponto de vista romântico e outro, hegeliano, mas também realiza a unificação dos três termos postos pela revolução francesa: povo, nação e pátria. Todavia, enquanto os revolucionários de 1789 imaginavam a incorporação recíproca dos três termos a partir do Baixo, a contra-revolução de 1848 opera a identificação pelo Alto, isto é, pelo Estado nacional expansionista e colonialista, fruto da segunda revolução industrial. Nem mesmo a Comuna de Paris, repondo na cena política o popular, poderia interromper o curso da prática nacionalista e imperialista. Como 1917 não o fez também.

A elaboração geopolítica (que é uma verdadeira geomorfização do humano e uma antropomorfização da paisagem, segundo Joseph Nadler) possui quatro pontos que tornarão possível um quinto, introduzido pelo nacional-socialismo alemão. Em primeiro lugar, uma relação interna e mecânica entre as qualidades físicas do território e as “disposições nacionais” que justificam a expansão nacional pela conquista de territórios como “capacidade espiritual para a mobilidade”, como atestariam os conquistadores espanhóis e ingleses, por exemplo. Em segundo lugar, a consubstanciação entre o povo e o território que começa pela demarcação de fronteiras em cujo interior o “espírito do povo” se desenvolve ou onde se traçam os contornos da futura “personalidade nacional”, devendo-se distinguir a fronteira artificial, imposta pelo jogo diplomático, e a fronteira natural ou real, que corresponde às necessidades concretas da “personalidade nacional” — isto é, a fronteira geográfica pode não corresponder à verdadeira fronteira posta pela raça, pela língua e pela cultura. Em terceiro lugar, a refração do povo sobre o território, isto é, a transformação dos valores objetivos do território em valores subjetivos ou civilizatórios, graças aos quais o Estado geográfico se torna um Estado orgânico e propriamente nacional. Em quarto lugar, a ideia de fronteira ideal ou de território “prometido” à nação, graças à ação militar e econômica de centralização nacional de territórios estranhos à fronteira geográfica. A esses quatro Pontos, que operam no nacionalismo de estilo bismarckiano, acrescenta-se um último, contribuição do nazi-fascismo: a geopolítica racial como consciência política do Estado (para usarmos uma expressão de Korinnan e Ronai). Este último ponto da ideologia nacionalista não é privilégio alemão: Mac-Kinder propõe uma geopolítica fundada na ideia de ilha mundial ou de centro mundial formado pela Ásia, Europa e Africa, tendo como coração a Rússia; os estrategistas de Mussolini postulam como centro mundial o Mare Nostrum; os geógrafos japoneses colocam o Japão como centro da Maior Ásia; o general Golbery do Couto Silva aponta os Estados Unidos como centro dinâmico do Ocidente cristão ao qual deve aliar-se o Brasil. E em todos esses casos, a oposição entre potências continentais e marítimas é essencial, como posteriormente será essencial a distinção entre potências nucleares e não-nucleares, além, evidentemente, no período da Guerra-Fria a oposição entre Leste e Oeste se exprimir como diferença entre países com e sem liberdade. Nesse percurso, iniciado com as derrotas de 1848, o Estado nacional surge, portanto, como potência geopolítica .

Essas ideias, acopladas ao culturalismo, aparecem em Oliveira Vianna, assíduo leitor de Ratzel, entre outros. Em Evolução do Povo Brasileiro, escreve ser prioritário, no conhecimento da sociedade, o estudo das “forças oriundas do meio cósmico” e, em particular, o do solo, “base física da sociedade”. “O estudo dessas modalidades diferenciais, oriundas das necessidades da adaptação de cada sociedade ao seu meio cósmico, ao meio étnico e ao meio histórico é o verdadeiro objetivo da investigação científica contemporânea”. Desse estudo, previa que a consolidação de uma nação sob um Estado racional e centralizado exigia um programa de colonização intensiva, cuja fórmula seria: “um maximum de base física + um maximum de circulação = um maximum de unidade política”.

Na mesma linha, embora com fontes diferentes, no Tratado Geral do Brasil João de Scatimburgo, citando Camilo Barcia Treles e Gilberto Freyre, escreve: “Sem entrar na discussão que inspirou a filosofia da geopolítica, podemos no entanto admiti-la como método de estudo do jogo de forças da política mundial e os rumos que as nações devem seguir para vencer as resistências ao desenvolvimento, à harmonia internacional, à paz e ao entendimento recíproco. Nessas condições, a tese de uma política tropical é viável, como é viável uma política das estepes, uma política do deserto, uma das ilhas e outra dos continentes temperados, uma do Oriente anti-racionalista, outra da Africa irracionalista”. Ou ainda, “o trópico torna o homem por excelência o sujeito exterior. Comunica-lhe a vibratilidade do ar, da natureza; a alacridade impulsiva ou a tristeza mal contida no azedume, que são os extremos em que oscila a vida tropical […] o povo da América Latina, o povo do continente tropical luta com seus problemas, mas é afetado pela natureza e extravasa na sua indisciplina”. Ou, enfim, “a luz do sol tropical, ofuscam-se conceitos, pelas manifestações mais absurdas de instabilidade política, de flutuação de opiniões, de reações inesperadas e de inesperados triunfos […] Tropicais no sentido de irrequieta instabilidade, de sofreguidão, de suas peculiaridades, de suas fraquezas, de sua generosidade, de sua paixão, de sua ênfase barroca”. Infelizmente, textos deste calibre, reencontrados também nos Integralistas ou em Glauber Rocha, não levam à ironia de Caetano Veloso — “Carmem Miranda, da, da” — mas a uma psicologia social e a uma sociologia política que articulam racismo e classes sociais, ao mesmo tempo que invocam a necessidade imperiosa do Estado nacional autoritário como única solução para o …tropicalismo.

Enfim, não custa lembrar que a política cultural desenvolvida no Brasil a partir de 1964 e, mais precisamente, de 1968, assenta-se sobre três pilares: integração nacional (a consolidação nacional buscada no Império, na República Velha e no Estado Novo), segurança nacional (contra a guerra externa e interna subversiva) e desenvolvimento nacional (nos moldes das nações ocidentais cristãs).

Esse brevíssimo percurso (abstrato, porquanto não nos referimos às condições históricas particulares que o determinaram e particularizaram) visou apenas a assinalar que, a partir do momento em que se combinam, de um lado, os esforços para impedir os movimentos populares de tipo democrático e socialista, e, de outro lado, a construção geopolítica do Estado nacional, é possível perceber o que acontecerá com o popular no interior desse nacional: transfigura-se em espiritualidade. O “espírito do povo”, que é o “caráter nacional”, é o popular da tradição imemorial, como identidade cultural e como civilização particular com impulso universal (entenda-se: imperial). Nessa perspectiva, já não há oposição, e muito menos contradição, entre o nacional e o popular, como observei ao iniciar o seminário.

A outra vertente que propus mencionar na consideração do nacional-popular é a das análises marxistas.

Em princípio, a perspectiva marxista implica numa crítica do nacional a partir do popular, este entendido como universalidade da classe proletária e portador concreto de uma ordem nova. O internacionalismo proletário, próprio do marxismo (e também de várias correntes socialistas do século XIX), tem como fundamento dois pressupostos: o de que as relações materiais de produção determinam a divisão social das classes e o de que essa divisão, gerada pelo modo de produção, é uma contradição, exprimindo-se como luta de classes. Esta, evidentemente, não se reduz aos momentos de combate visível entre os contraditórios, mas se apresenta pelo sistema de instituições e de práticas, de ideias, normas e valores impostos pela classe dominante à classe dominada, economicamente explorada e responsável pela produção da riqueza social. O modo de produção capitalista, cuja identidade é gerada pela contradição econômica, constitui um sujeito social: o capital. São suportes desse sujeito vários predicados determinados e abstratos, isto é, as diferentes classes sociais (burguesia, senhores da terra, pequena burguesia, trabalhadores), donde resultam três conclusões: a primeira é a de que o modo de produção capitalista só terminará quando o seu sujeito (o capital) tiver desenvolvido todos os seus predicados contraditórios (as classes sociais), sem ter força para repô-los; a segunda é a de que nesse modo de produção, entidades como o indivíduo, o cidadão, o homem, e ideias como igualdade, liberdade, são abstrações que possuem base material concreta, mas não são sujeitos e, portanto, não podem se desenvolver, de sorte que a representação dessas entidades e dessas ideias redunda em sua negação efetiva; a terceira é a de que o desenvolvimento do sujeito (o capital) só pode ocorrer em decorrência da contradição interna entre ele e um de seus predicados, a classe proletária, que por negá-lo internamente pode constituir-se a si mesma como novo sujeito histórico. Não cabe aqui discurtirmos as teses de Marx. Essa brevíssima referência foi feita apenas para balizar o campo no qual se desenrola a discussão marxista sobre a nação e o povo.

Na esteira de Hegel, Marx assinala que a grande novidade introduzida pelo modo de produção capitalista face aos modos que o antecederam é a separação clara entre a relação social de exploração e de opressão e a relação impessoal de dominação, ou seja, a separação entre a sociedade civil e o Estado. A forma do Estado capitalista lhe permite aparecer como dominação de ninguém e por isso ser representado como soberania nacional e popular (na perspectiva republicana, evidentemente), embora, de fato seja um instrumento da dominação de uma classe sobre outras. Esse destacamento ou descolamento entre a sociedade civil e o Estado possui uma base material (a fórmula trinitária: capital/lucro, terra/renda, trabalho/salário) que engendra a aparência de três classes igualmente proprietárias relacionadas entre si por contratos e que, por ação de sua vontade geral, dão origem ao Estado, encarregado de velar pelos interesses dos contratantes e de arbitrar seus conflitos. A representação ou imagem “povo” resulta tanto da fórmula trinitária quando da relação Estado — sociedade civil. Resta saber por que o Estado toma a forma de um Estado nacional.

Assim como o sujeito – o capital se desenvolve por meio de seus predicados – classes sociais, também se desenvolve como sujeito mundial ou como capital mundial cujo suporte são os diferentes capitais sociais particulares incrustados em mercados particulares determinados ou mercados internos e externos. A expansão do capital se realiza, portanto, pela expansão desses mercados que oferecem bases materiais (no caso, territoriais) para o desenvolvimento capitalista. A forma política desses mercados constitui o Estado nacional que nada mais é senão o suporte abstrato e político para o capital internacional. A nação é, pois, a base material-territorial de que carece o capital para se desenvolver. E, tal como o povo, é uma abstração política.

Sendo a sociedade capitalista fundada numa divisão interna que efetua sua identidade pelacontradição das classes, a representação da identidade como unidade e não-contradição pede polos nos quais a imagem unificadora possa assentar-se. Esses polos são o povo, a nação e o Estado enquanto representações ou abstrações que produzem um imaginário social de identificação e o ocultamento da divisão social como luta de classes. A divisão se torna diversidade, a contradição se torna contrariedade ou oposição, o desenvolvimento aparece como social, nacional, popular ou estatal e não como desenvolvimento do capital.

Independentemente das dificuldades existentes na compreensão marxista da política (e que não poderiam ser discutidas num simples seminário), creio que há dois aspectos dessa interpretação que podem ter algum interesse para nossa discussão sobre o nacional-popular. Em primeiro lugar, a dificuldade para a formação social capitalista reconhecer-se como geradora de suas próprias divisões, ocultando-se num imaginário de equivalências abstratas para as quais, no entanto, existe um suporte real de que a mercadoria é forma canônica. Em segundo lugar, a dificuldade do próprio marxismo com as divisões sociais, dificuldade que aparece não só na tese da sociedade sem classes como reconciliação da sociedade consigo mesma e advento do homem na história, mas também nas ideologias nacionalistas e populistas de esquerda, sobretudo a partir da social-democracia alemã e do stalinismo.

A história da sociedade capitalista é história da produção incessante da separação não sendo casual que o liberalismo faça desta última o suporte factual da sociedade civil como articulação mecânica e voluntária de indivíduos portadores do direito natural, nem que o romantismo procure vencê-la por meio do ideal da comunidade como laço originário e orgânico entre os homens, movidos menos pela vontade e mais pelo sentimento. Separação entre o trabalhador e os instrumentos de trabalho, entre as relações de produção e as forças produtivas, entre o trabalho e o produto do trabalho, entre a produção e o consumo, entre o trabalho manual e trabalho intelectual, entre ideadores e ideias, entre controle técnico-científico do processo de trabalho e execução, entre concepção e realização, entre o público e o privado, entre ciência e religião, entre poder político e poder teológico, separação entre todas as esferas da vida social e suas representações.

Reproduzindo-se na e para a separação, a sociedade capitalista não pode oferecer a si mesma um polo que the sirva de referencial idêntico, algo que lhe sirva de metron, de valor ou medida comum que lhe permita estabelecer um sistema de equivalências, senão aquela medida que não faz outra coisa além de reiterar a divisão: o mercado. A peculiaridade da formação capitalista está justamente na necessidade de encontrar o metron para as equivalências e só poder encontrá-lo abstratamente. Unificação do processo de trabalho pela gerência científica, unificação dos trabalhos intelectuais pela administração burocrática, unificação do público e do privado pelo consumo, unificação das atividades socials e das representações pela ideologia, a sociedade capitalista produz identificações abstratas que não suprem o que busca: a universalidade.

A única universalidade concreta de que dispõe a formação capitalista é o movimento do capital que, no entanto, só se efetua na e pela divisão e que se totaliza na e pela fragmentação da superfície social. Todavia, se não é possível tolerar a contradição nem a divisão, a sociedade capitalista procura reparar sua falta de identidade consigo mesma procurando em dois polos “extra-sociais” o elemento da universalidade: inicialmente, no direito natural, posteriormente, no Estado. Ora, essa dupla direção, longe de solucionar a dificuldade a recoloca noutro nível, pois, no caso do direito natural, trata-se de dar conta da divisão entre natureza e sociedade, comprometendo o conceito jusnaturalista que estava encarregado de superar essa divisão, enquanto no caso do Estado, trata-se de dar conta da separação entre economia e política, explicação que justamente o Estado deveria fornecer. Em outros termos, o problema colocado pela formação social capitalista está no fato de que, por seu movimento próprio, engendra as divisões e cada termo unificador que propõe simplesmente repõe a divisão, ainda que noutro plano. Em resumo, não podendo refletir-se, sob pena de reconhecer-se dividida, a sociedade capitalista nega abstratamente suas divisões construindo polos imaginários de identificação: o direito, a lei, o povo soberano, a nação soberana, o Estado nacional, a família, a ciência, a arte, a religião, a organização, etc.

O ponto mais interessante da compreensão marxista do processo histórico decorre justamente de ser uma compreensão materialista, isto é, as unificações abstratas possuem base material concreta porque as relações sociais põem as divisões, mas estas não aparecem como tais e sim como diversificações de facto e unificações de jure. E porque a compreensão é materialista dialética cada posição percorre um caminho de mediações que lhe conferem novas determinações e lhe permitem a, reposição. Assim, por exemplo, o modo de produção capitalista pressupõe o trabalhador separado dos instrumentos de trabalho e dos meios de produção e a separação entre o campo e a cidade, figuras que por sua própria força interna ele põe como assalariado e como mercado, voltando a repô-los como classe trabalhadora e como mercado da compra e venda da força de trabalho. Mas esse movimento é também representado: o trabalhador pressuposto é representado como indivíduo livre e a separação campo-cidade pressuposta é representada como estado de natureza; o assalariado posto é representado como proprietário de seu trabalho e o Mercado posto é representado como sociedade civil; a classe trabalhadora reposta é representada como uma parte do povo e o mercado reposto é representado como nação. A partir desse ponto, há uma reposição imaginária totalizante do povo e da nação como cidadania e soberania territorial sob o Estado. Dessa maneira, povo, nação, sociedade civil e Estado são simultaneamente reais e imaginários, cada qual aparecendo como uma diversificação (povo e sociedade civil) e como uma unificação (nação e Estado). A realidade do povo (a divisão social das classes) permite imaginar a unidade nacional (a comunidade de todos os que nascem e vivem no mesmo território); a realidade da nação (território, mercado interno, instituições, leis, costumes) permite imaginar a unidade popular (todos os nativos como trabalhadores e proprietários). Graças a esse movimento, a sociedade civil pode aparecer como conflituosa (as lutas dos interesses individuais dos vários proprietários postos pela fórmula trinitária) e como harmoniosa (sob a regulamentação objetiva das leis). Emerge a figura do Estado que é nacional por seu território, popular por sua soberania e autodeterminado pela inviolabilidade do espaço nacional e da independência política.

Resta saber, no entanto, se além da realidade empírica e da representação imaginária, nação e povo, ou o nacional e o popular não teriam ainda outras dimensões.

Descrevendo a experiência de quem fala várias línguas, Merleau-Ponty observa que sentimos a diferença entre uma frase pronunciada em nossa língua e numa outra, sentimento não apenas da diferença óbvia de sons e vocábulos, mas de uma diferença na língua e de língua. Assim, por exemplo, via de regra, o que dizemos de modo afirmativo em português, dizemos no negativo em francês; em inglês pode-se dispensar perfeitamente o emprego do “that”, mas é impossível dispensar o “que” em português, pois The man I love só pode ser dito como O Homem que amo. Essa experiência tão simples, que confirma a expressão “traduttore tradittore”, supõe que tacitamente (para nós) e explicitamente (para os estudiosos da linguagem) a língua é uma totalidade singular, um sistema de relações internas, de puras diferenciações articuladas e determinadas que não só fazem sentido, mas fazem o sentido. Todavia, não sentimos apenas a diferença entre as línguas. Nossa experiência imediata nos faz crer que nossa língua é a única a exprimir completamente uma significação enquanto as demais línguas são incompletas ou lacunares (mesmo quando são gramaticalmente muito mais complexas do que a nossa, como aquelas que possuem declinações e mais tempos de verbos, por exemplo). Esse sentimento é ilusório e verdadeiro.

É ilusório não porque cada língua, tendo a pretensão de exprimir completamente, nenhuma pode fazê-lo efetivamente, mas porque ilusório é o pressuposto da completude. Esse pressuposto pode aparecer numa formulação de tipo instrumental e também numa outra, oriunda do romantismo, de tipo essencialista. No primeiro caso, a linguagem é considerada um instrumento de tradução do pensamento silencioso e as ideias, por definição conhecimentos completamente determinados, pedem uma língua capaz de traduzi-las completamente — no caso, nossa língua. Ora, não só linguagem e pensamento não estão numa relação instrumental de exterioridade, como as ideias nunca estão completamente determinadas. Há criação do sentido na e pela linguagem e há suscitação de palavras pelo e no pensamento, a literatura sendo o caso exemplar desse movimento. A suposição de uma linguagem completa é a da existência de um “texto originário” já feito nas coisas e no pensamento, mudos, aguardando a transcrição sonora ou gráfica. No outro caso, isto é, na concepção organicista e essencialista, de estilo romântico, uma língua é encarada como arquétipo unívoco e denso de sentido, de sorte que os fenômenos das linguagens singulares são vistos como realização concreta de uma essência simbólica. Entendida como arquétipo ou como essência semelhante ao organismo guiado por finalidades internas, a língua aparece como totalidade simbólica que representa eminentemente uma essência ou uma significação cultural. Supõe-se uma relação biunívoca entre o símbolo e o conteúdo particular objetivado numa história ou numa prática, conferindo ao arquétipo linguístico a unidade ou a singularidade de um organismo. O arquétipo é uma forma saturada de sentido e simbolizar é estabelecer uma relação de correspondência precisa entre um significado particular e o conteúdo essencial. Ora, a partir do momento em que a língua é tomada como totalidade simbólica de tipo orgânico ou como arquétipo saturado de significação, cada realização particular da linguagem aparece hierarquizada conforme se aproxime mais ou menos da totalidade originária. Novamente aqui estamos diante da suposição de um “texto originário” que, escrito numa língua originária e oculta, hierarquiza as linguagens concretas segundo sua capacidade maior ou menor para transcrever a “palavra original”. Nacionalismos e colonialismos se servirão abundantemente dessa hierarquia imaginária, fazendo crer em línguas superiores e inferiores. Se a superioridade estiver na capacidade para exprimir conceitos e ideias, as línguas inferiores serão aquelas muito próximas da sensibilidade e dos sentimentos, incapazes de abstração. Ou vice-versa. Ou ainda um arranjo de “conciliação” como, por exemplo, a classificação do inglês como “conceitualmente superior” e do português como “sentimentalmente superior”, de modo geral as línguas “sentimentais” sendo as tropicais ou as das zonas sombrias do Reno e do Volga, as “conceituais” ficando por conta dos impérios inglês e francês. A imaginação ideológica não tem limites.

Todavia, a impressão de que somente nossa língua exprime completamente significações, ideias ou afetos, também é verdadeira, mas pelo motivo bastante simples, tantas vezes analisado pelos antropólogos, de que a língua não é uma entidade isolada nem uma essência fundadora, porém uma dimensão da vida cultural em sua particularidade histórica, exprimindo relações com a natureza, com os demais membros da sociedade, com o espaço, o tempo, o sagrado e o profano, o visível e o invisível, a política. Se os esquimós possuem mais de 100 vocábulos para designar a neve, não é porque sejam mais “concretos” do que nós, mas simplesmente porque a neve para nós é imagem longínqua, paisagem inexistente, relação com a natureza, com o trabalho, com a moradia inexistente para nós (quando muito é algodão na árvore de Natal), assim como para nós o vocabulário das quatro estações tende a ser abstrato, não só porque mal-e-mal conhecemos duas estações, mas também porque nos escapam os símbolos que, em outras partes, acompanham a mudança. O que não impede transposições curiosas como a do “mês de maio, mês das noivas”, início da primavera europeia e início do outono (!) para nós, os antigos ritos de fertilidade estando ausentes nos dois casos, não há motivo para deslocar nosso “mês das noivas” para setembro. Mesmo porque os comerciantes, nessa altura, já estão voltados para o “dia da criança”… e as Forças Armadas, para o “dia da Pátria”…

As articulações entre a língua (por exemplo, a diferença entre “value” e “worth”, analisada por Marx numa nota do primeiro capítulo de O Capital, ou o jogo entre “pessoa”, “persona” e “personne”, analisado por Leila Perrone num estudo sobre Fernando Pessoa) e as outras dimensões culturais e as relações sociais são tão poderosas que os jovens escritores alemães do pós-guerra foram tomados de verdadeira afasia e afonia porque não restara uma única palavra da língua que não tivesse sido marcada com o selo da apropriação nazista. Cada palavra, reenviando a constelações simbólicas e conceituais, afetivas e práticas, tornara-se parte de uma “cultura nazista” exigindo dos artistas o esforço trágico de reinstituição linguística. São, pois, as relações determinadas da língua com uma sociedade determinada que dão àqueles que a falam e nela escrevem o sentimento da expressão completa — o que também vale para os dialetos e idioletos. “Nossa” língua exprime para nós uma totalidade singular, as experiências de uma coletividade diversificada e, no entanto, ancorada em algumas identidades reais, outras empíricas, outras, enfim, imaginárias.

O curioso no sentimento da expressão completa é sua ambivalência. Por um lado, nos abre para a experiência da alteridade e da diferença (como será uma sociedade na qual “água” seja masculino ou neutro e “fogo” seja feminino ou neutro?); por outro lado, em decorrência da articulação entre a língua e as outras dimensões da existência coletiva, a experiência de plenitude conduz à ideia de identidade e, as referências não-linguísticas da linguagem atuando em seu interior e recebendo também sua ação encontram no mundo moderno o ancoradouro da nação. Esta é, paradoxalmente, o referencial identificador da língua, algo que parece preexistir a atos da fala e da escrita, mas ao mesmo tempo é o polo unificado criado pela própria atividade dos falantes e escreventes, existindo por meio deles. Empírica pelo território, imaginária pelas necessidades econômicas e políticas, a nação possui também uma dimensão simbólica onde se instalam a identidade e a alteridade. Não por acaso, na trilha aberta pelo idealismo alemão (em sua vertente ilustrada) a nação tenderá a ser pensada como ideia reguladora da razão e, portanto, como idealidade a priori e como realidade a ser construída pela prática ético-política, construção necessária e por liberdade. O Discurso à Nação Alemã, de Fichte, coloca a nação como um transcendental prático, o que faz da nacionalidade uma tarefa e tarefa ético-política. Encarada como resultado da ação, distancia-se da versão romântica que a encara como resultado da natureza.

Todavia, dois fenômenos podem ser percebidos nessa referência da língua à nação como dimensão simbólica. Por um lado, o fato de que no interior da nação, as pessoas não falam a mesma linguagem (às vezes, por resultados militares, não falam sequer a mesma língua), isto é, a língua nacional pode ser, sob certos aspectos, uma abstração política e ideológica quando considerada pelo ângulo da diversificação interna (regional) e das diferenciações internas (de classe). A “língua” são as linguagens. Por outro lado, e como decorrência do primeiro fenômeno, vemos uma verdadeira proliferação de discursos sobre a nação. Este segundo fenômeno é o que me interessa no momento.
A proliferação de discursos diversos e diferentes sobre a nação faz com que existam muitas “nações” sob a nação (basta pensarmos nas nações de Alberto Torres, Oliveira Vianna, Plínio Salgado, Getúlio Vargas, do ISEB, do CPC, dos que realizaram o golpe de 1964), cada uma delas determinando um modo de representar a sociedade e a política, cada qual enfrentando, combatendo e excluindo as outras. E cada qual pretendendo oferecer-se como discurso da “verdadeira” nação. O fato de que possa haver diferentes discursos sobre a nação, à direita e à esquerda, e uma diversificação desses discursos em cada um dos lados antagônicos, costuma levar, num primeiro momento, a duas atitudes: ou julgamos que é necessário “aferir” cada um dos discursos com a realidade para decidir quanto à sua verdade ou falsidade, ou julgamos que a nação é uma simples ideia e, sobretudo, uma ficção deliberada nascida do convencionalismo linguístico e das necessidades do capitalismo. Num segundo momento, porém, podemos mudar o foco da interpretação e considerar que a nação só atinge o estatuto de realidade social, política, cultural e histórica através do e enquanto enunciado linguístico. A nação só existe enquanto objeto de um discurso sobre ela e que a constitui como tal. Aqui, duas linhas interpretativas se enfrentam: para alguns, a nação é um “fato discursivo” (o que confere à linguagem um poder constituinte soberano e sem qualquer lastro não-linguístico); para outros, não estamos diante de um “fato linguístico”, mas sim mergulhados numa experiência social determinada que faz com que a existência da nação dependa, entre outras coisas, de uma fala (a seu favor ou contra ela) que a faça existir como experiência social, política, cultural e histórica.

Num terceiro momento, porém, se regressarmos à multiplicidade das falas sobre a nação, às oposições, diferenças, antagonismos e contradições entre elas, poderemos perceber algo mais interessante: o movimento invisível que leva cada um dos discursos sobre a nação a apresentar-se como discurso para a nação e, finalmente, como discurso da nação, pretendendo não só dizer como a nação é ou deve ser, mas sobretudo pretendendo dizer a nação. Esse movimento invisível não indica apenas uma luta política e ideológica para apossar-se de uma fala nacional que se proferiria a si mesma ocultando seus falantes reais, mas indica ainda (e, talvez, sobretudo) que a nação não é uma idealidade nem uma positividade disponíveis cujo sentido se transforma simplesmente graças à designação daqueles que a formariam realmente (é a nação formada pela burguesia ou pelo proletariado?, por exemplo). A nação não é coisa, não é ideia, não é uma representação coletiva, não é um dado factual ou ideal, não é algo que se possa circunscrever como um “ser” determinado nem como uma ideia a priori da razão — é uma prática sócio política, é um conjunto de relações postas pelas falas e pelas práticas sociais e políticas para as quais ela serve de suporte empírico (o território), imaginário (a comunidade cultural e a unidade política por meio do Estado) e simbólico (o campo de significações culturais constituídas pelas lutas sociais e políticas).

A teologia e a metafísica sempre se empenharam em fornecer provas da existência de Deus, recorrendo seja às provas a priori (da essência de Deus se deduz a necessidade de sua existência), seja às provas a posteriori (da finitude do mundo e das criaturas se deduz a necessidade de um princípio infinito criador). Não creio ser descabido considerar o nacionalismo um substituto moderno para o teológico-metafísico, na medida em que aqui o discurso opera como prova a priori ou a posteriori da existência da nação, de modo a conquistar (esquerda) ou a conservar (direita) um espaço posto pelas classes dominantes e, sobretudo, para garantir a realidade em si e por si da nação. Dessa maneira, há um empenho para eliminar aquilo que talvez seja o mais interessante no nacional: sua indeterminação, sua existência como prática contraditória em busca da unidade que anule a divisão social e que não pode cumprir-se, aparentemente, senão pela conversão da prática histórica numa substância imortal. Nesse contexto, compreende-se porque os vários nacionalismos se preocupam em produzir a identidade nacional que, na prova a priori, é deduzida das etnias, dos costumes, da língua, da cultura em sentido antropológico, e, na prova a posteriori, é deduzida do Estado. Frequentemente, as duas provas se combinam e seu fruto (pouco bendito) costuma ser batizado como nome de política cultural.

Se nos voltarmos para o popular, podemos chegar a observações semelhantes às anteriores. Não só encontramos o povo como objeto de um discurso (sobre ou para o povo) e como sujeito de um discurso (do povo), como ainda percebemos o mesmo movimento invisível de produção de uma fala que diz o povo — fala geralmente a cargo do Estado e das vanguardas político-culturais. Como a nação, o povo também serve de suporte tríplice ao discurso e às práticas que visam a constituí-lo: suporte empírico (etnias, à direita; classes, à esquerda), imaginário (polo aglutinador e unificador das diferenças sociais, políticas e culturais; à direita, polo júrídico, à esquerda, polo econômico) e simbólico (campo definido a partir de sua distância face ao poder, figurando a comunidade, à direita, e o “Baixo” contestador, à esquerda). E encontramos também as provas a priori e a posteriori de sua existência nas várias ideologias populistas. A priori: do postulado da necessidade de laços jurídicos entre os indivíduos, ou do postulado da necessidade racional do mercado, se deduz a existência do povo. A posteriori: da existência de comunidades ou da existência de divisões sociais se deduz a necessidade da existência do unificador (direita) ou do divisor (esquerda).

No entanto, há no popular algumas determinações que o distinguem do nacional, dificultando sua assimilação imediata a este último, como vimos desde o início deste seminário. A diferença entre populus e plebs pode ganhar uma importância muito grande impedindo que revoluções e regimes ditos populares, alcançem a unidade que é própria ao nacional. É que neste prevalece um modo de lidar com a alteridade que favorece a unificação. Por um lado, a alteridade pode ser interpretada como diversidade regional e, por outro lado, como exterioridade, isto é, o outro da nação encontra-se fora dela — é o estrangeiro. Tanto assim que, no Brasil, um dos traços predominantes das ideologias nacionalistas no plano político é a designação do não-nacional como exótico e como contrário à natureza ou à essência da nação. No discurso dos republicanos, por exemplo, a monarquia era atacada não só por ser anacrônica (ataque feito pelos positivistas em busca de uma ordem sócio-política científica ou positiva), mas também por ser uni transplante europeu contrário à natureza republicana dos “povos americanos”. No discurso integralista (inspirado em Alberto Torres e em Oliveira Vianna) a crítica ao liberalismo e ao federalismo baseava-se no caráter artificial dessas políticas estrangeiras que não correspondiam às necessidades do caráter nacional brasileiro. No discurso anticomunista (desde sempre) o marxismo é acusado como ideologia exótica contrária à natureza ocidental e cristã da nação brasileira, havendo aqui a combinação de elementos variados para explicar o “exotismo”, visto ser o marxismo uma concepção ocidental da história (os argumentos nacionalistas vão desde o racismo — o marxismo como conspiração judaica —, o cristianismo — o marxismo como ateu — até o ocidentalismo geopolítico — o marxismo se implantou no oriente). Enfim, no discurso nacionalista de esquerda, via de regra um discurso de aliança de classes e etapista, o imperialismo ocupa o lugar do não-nacional, sendo responsável pela colonização econômica, política e mental do povo brasileiro, empecilho para o desenvolvimento nacional autônomo que faça desabrochar a verdadeira natureza da nação. Curiosamente, a pátria aparece como elemento central desses discursos, a ponto de haver, na extrema-direita, a sobrevivência da corrente “Pátria Nova” e, na extrema esquerda, a palavra de ordem “Pátria Livre venceremos”.

Ora, no caso do popular ou da divisão populus-plebs, a alteridade não é externa: o outro do populus é a plebs, o outro é interno e, por bem ou por mal, o povo é constituído pelo não-popular e pelo popular. Neste caso, não podemos deduzir o povo das classes (como faz a esquerda) nem as classes do povo (como faz a direita) porque a divisão é constitutiva de sua realidade. Ou, se se quiser, a exploração econômica, a dominação política e a exclusão cultural põem a existência das classes porque pressupõem a divisão entre os com-poder e os sem-poder. Assim, por exemplo, para que a separação entre o trabalhador e os meios de produção fosse possível, foi necessário que alguns tivessem poder para impor e conservar essa separação, pois a lógica do capital não pode realizar-se sem o suporte da divisão social que será reposta por ele.

Em outros termos, enquanto nação-nacional formam um par sem equívocos (o problema maior estando, como vimos, na eleboração do próprio conceito de nação), povo e popular não se ajuntam sem equívocos. Talvez a interpretação maquiaveliana da divisão social nos ajude a enfrentar o enigma de um povo que é e não é povo. Maquiavel afirma que toda cidade é constituída por dois desejos opostos: o dos Grandes, de oprimir e comandar, e o do Povo, de não ser oprimido nem comandado. Enquanto o desejo dos Grandes possui conteúdo determinado, o do Povo é pura negatividade. Contrariamente aos Grandes, o Povo não é algo nem alguém, mas uma oposição negadora da ação de um outro determinado, seu outro de classe. A percepção dessa diferença percorre os movimentos populares tanto de modo explícito (quando, por exemplo, são usadas as designações pobre-rico, ou quando os membros dos movimentos se nomeiam a si mesmos para marcar a diferença, como os membros da “santa irmandade”, no Contestado, ou os niveladores e cavadores, na revolução inglesa, ou os braços-nus, na revolução francesa), quanto de modo implícito (como os estudos de Verena Allier, Thompson, Hill ou Hogarth nos mostram, desde, por exemplo, o uso dos pronomes nós-eles, indicando a percepção diferenciada de si e do seu outro). E não só os populares marcam a diferença, também os Grandes não cessam de marcá-la referindo-se ao povo de modo a estigmatizá-lo (zé-povinho, povão). A estigmatização do dominado pelo dominante por meio das designações é mostrada por Walnice Galvão, analisando os jornais que se ocupavam de Canudos: nestes, os rebeldes são designados como “jagunços”. E Walnice observa que somente após o massacre os intelectuais, num “lamento protestatório-humanitário depois do fato”, num “complexo de Caim”, passam a designar os rebeldes como “brasileiros”.

A análise de Walnice Galvão sobre Canudos e os intelectuais nos interessa particularmente porque revela o movimento constante de posição da diferença — jagunços-brasileiros — e de sua anulação — todos brasileiros — por meio da absorção do popular no nacional. Escreve ela: “Literatos ou cientistas, monarquistas ou republicanos, liberais declarados ou indiferentes, na verdade essas distinções são superficiais: todos os intelectuais estavam atrelados ao carro do poder, empenhados na grande parada histórica do tempo que era a consolidação nacional […] E a “incorporação à nacionalidade” é o que pedem aqueles que protestam, já ou anos mais tarde, em nome dos sertanejos exterminados. Uma vez mortos, passam a ser irmãos”.

A diferença entre o modo como o popular se apresenta a si mesmo e o modo como é representado pelos Grandes torna-se mais visível em momentos nos quais a indiferenciação poderia aparecer e, no entanto, não aparece: os momentos de revolução ou de guerra civil. Assim, por exemplo, quando a Reforma está em curso na Alemanha, é de supor-se uma aliança entre Grandes e Povo na luta comum contra a tirania católica e imperial. Mas não será o caso. Lutero se alia aos Eleitores Palatinos de Saxe e de Hesse e convoca os príncipes a massacrar os camponeses de Munzer. Este, por seu turno, reconhece a diferença ao afirmar: “o povo se libertará e nessa hora o doutor Lutero será como a raposa na armadilha”. Também é significativa a separação entre niveladores e cavadores face a Cromwell, quando declaram: “Fomos dominados pelo rei, pelos Lordes, pelos Comuns e agora, por um general, uma corte marcial, uma Câmara dos Comuns: onde está a diferença, vos pergunto?”.

O contraponto é ainda mais claro em dois textos escritos no decorrer da revolução inglesa. O movimento dos “verdadeiros niveladores” declara: “todos os homens se lançaram na conquista da liberdade e aqueles dentre vós que pertencem à espécie dos ricos têm medo de reconhecê-la porque ela avança trajada em roupas grosseiras […] a liberdade é o homem decidido a virar o mundo de ponta cabeça. Como então surpreender-se de que seus inimigos lhe façam emboscadas? […] A verdadeira liberdade reside na comunidade de espírito e na comunidade dos bens deste mundo, é o Cristo verdadeiro Filho do Homem, reinando em toda criação e restaurando seu poder sobre todas as coisas” (os grifos são meus). Ao que retruca a Câmara dos Comuns: “Tempo virá em que seitas livremente toleradas acabarão aprendendo que também lhe pertence, de direito e por nascença, libertar-se do poder do Parlamento […] e dos reis, de pegar em armas contra um e outro quando estes últimos se recusarem a votar e a agir segundo o agrado delas. Se não tomarmos cuidado, o que erroneamente se chama liberdade de consciência arrisca-se a se tornar, com o tempo, a liberdade dos bens, a liberdade dos imóveis e a liberdade de ter mulheres em comum”.

Ora, é interessante observar que, enquanto no caso de Canudos os vencedores é que impõem postumamente um rótulo comum a todos, vencedores e vencidos — brasileiros —, no caso inglês, os “verdadeiros niveladores” é que pressupõem a comunidade, pela nivelação de ricos e pobres enquanto homens, ao passo que a Câmara dos Comuns reafirma a diferença e o perigo, em decorrência da liberdade de consciência, de ter bens, imóveis e mulheres em comum. Por que a disparidade de atitude nos vencedores de Canudos e nos da revolução inglesa? Porque a origem e a forma das diferenças sociais não são as mesmas. Em Canudos, são os dominantes que designam a divisão como nacional e não-nacional. Na revolução inglesa, são os dominados que designam a unidade: a liberdade é virar o mundo de ponta-cabeça, ter os direitos que a ordem estabelecida recusa aos que vêm “trajados em vestes grosseiras”. Se, no caso de Canudos, há o resgate nacional dos mortos, no caso da Inglaterra, há reposição da diferença, isto é, a liberdade é de consciência e não igualdade econômica, política e social. Percebe-se, portanto, que o nacional e o popular não operam da mesma maneira nem na prática nem na ideologia.

No Brasil, via de regra, a diferença social é mediada pelo recurso ao nacional — o imigrante, primeiro, e o migrante, depois. Durante toda a Primeira República, a repressão aos movimentos operários, no sul do país, não é justificada pelos interesses do capital, mas pelo interesse nacional, na medida em que os “agitadores” são estrangeiros que, ao fim e ao cabo, prejudicam o trabalhador brasileiro, não só roubando-lhe emprego, mas colocando-o contra seu compatriota, no caso, o patronato. A proposta contínua de conciliar “os interesses do trabalho e do capital” que concorrem para a “prosperidade das nações” passa inevitável e sistematicamente pela acusação contra os “estrangeiros”. Numa conferência comemorativa do 1° de maio de 1920, em Niterói, o patronato afirma: “No caso do operariado brasileiro, isto é, do ponto de vista nacional da questão, há ainda um aspecto muito interessante a considerar, como profilaxia de defesa de nosso meio ambiente à invasão do mal. É a nacionalização das entidades operárias […] é indispensável que na alma do operariado nacional desabroche a flor vigorosa que anima os sentimentos vivos do amor à Pátria, que mantém o culto de suas tradições cívicas, da sua história, do seu passado, dos seus heroismos, dos seus feitos, de toda sua grandeza política, social e econômica”.

Esses poucos exemplos, arrolados aqui sem respeito pela cronologia nem pela geografia, pretenderam apenas contribuir para a hipótese que levantei no início do seminário, isto é, que há uma espécie de instituição contínua da divisão e da identidade que dependem do modo como as condições históricas colocam os sujeitos sociais em presença uns dos outros, representando-se a si mesmos e uns aos outros.

Justamente porque os termos não cessam de ser definidos e articulados de maneiras diferentes em diferentes condições históricas, imaginação ideológica, como já observei, procura fixá-los como se fossem entidades positivas. Se considerarmos que no Brasil, o nacional-popular encontra suas formulações maiores e mais permanentes no romantismo e nos populismos, notaremos que, assim determinada, a expressão possui um traço principal: nação e povo funcionam como arquétipos ou como entes simbólicos saturados de sentido que se materializam em casos particulares, tidos como expressões dos símbolos gerais. Encontramos o índio, o negro, o sertanejo, o operário, o camponês, a verde mata, os verdes mares, o céu de anil, a singeleza, a rudeza, a bravura, a não-violência, a crendice, a indolência, a floresta, a cidade, a fábrica, a usina, o sindicato, a revolução, o patrão, a burguesia, o estrangeiro.

Não é casual que o verde-amarelismo modernista retome esses arquétipos, nem que Mário de Andrade os problematize como contradições trágicas ou que Oswald de Andrade os apanhe pela ironia antropofágica e ambígua. Também não é casual que os populistas dos anos 60 trabalhem com eles, seja para denunciá-los, seja para transformá-los em pedagogia política, seja, enfim, como observou Roberto Schwarz, para oferecê-los como espelho à plateia classe-média estudantil dos teatros e cinemas. No caso do populismo, os arquétipos do nacional-popular são tomados pelo avesso, isto é, para serem valorizados apenas tais como virão a ser depois de libertados do jugo imperialista.

Na perspectiva romântica, há o “bom povo” e a “boa nação”, porém adormecidos, cabendo aos artistas e intelectuais despertá-los (Plínio Salgado escreve um livro: Despertemos a Nação), enquanto na perspectiva populista de esquerda o “povo bom” e a “nação boa” estão por vir, no presente estão alienados, cabendo aos artistas e intelectuais a tarefa de conscientização nacional e popular. Na perspectiva romântica, a bondade já existe porque obra da Natureza; na populista de esquerda, está por vir porque resultado da História.

Se, no entanto, deixarmos a concepção arquetípica, veremos a expressão modificar-se ininterruptamente. Em lugar de essências metafísicas ou de idealidades a priori, — o nacional, o popular — encontramos campos, configurações, constelações de práticas e de discursos que se rearticulam ininterruptamente, rearticulando a referência ao nacional e ao popular. Não é sem motivo que a história nacional não cessa de ser narrada e de ser reinterpretada, pois a reconstrução do passado, além de articular-se às constelações das práticas e dos discursos presentes, também depende do foco que determina a reconstrução, isto é, a identidade nacional ou a contradição social. Dois exemplos poderiam auxiliar a perceber o movimento de rearticulação do passado pelo presente: o caso da revolução Praieira e o de Gramsci, com quem iniciamos o seminário.

Observei que o 48 europeu — fevereiro e julho — foi decisivo na construção de um nacionalismo patriótico que amorteceu (frequentemente exterminou) os movimentos populares de cunho socialista. É bastante esclarecedor ler dois trechos escritos na França em 48, um deles de Thiers e o outro de Benjamin Constant. Escreve Thiers: “O homem tem uma primeira propriedade em sua pessoa e suas faculdades; tem uma segunda propriedade, menos aderente ao seu ser, mas não menos sagrada, no produto de suas faculdades que envolve tudo o que chamamos de “os bens deste mundo” e que a sociedade está altamente interessada em garantir para ele, pois sem essa garantia não há trabalho, sem trabalho não há civilização nem o mínimo necessário, mas a miséria, o banditismo e a barbárie […] Assim, à medida que o homem se desenvolve torna-se mais agarrado ao que possui, mais proprietário. No estado de barbárie quase não é proprietário; no estado civilizado ele o é com paixão”. Nenhuma referência à nação e à pátria, como convém ao discurso liberal coerente, mas também a clara identificação entre os movimentos de fevereiro e a barbárie. Por seu turno, escreve Benjamin Constant: “Os cidadãos possuem direitos individuais independentes de toda autoridade social ou política e toda autoridade que viole esses direitos torna-se ilegítima. Os direitos dos cidadãos são a liberdade individual, a liberdade religiosa, a liberdade de opinião, o usufruto da propriedade, a garantia contra toda arbitrariedade […] Em nossas sociedades atuais, o nascimento no país e a maturidade da idade não são suficientes para conferir a todos os homens as qualidades próprias ao exercício dos direitos da cidadania. Aqueles que a pobreza retém numa eterna dependência e que condena a trabalhos cotidianos, não são pessoas esclarecidas, conhecem os negócios públicos tanto quanto uma criança. Não sabem pensar. E têm tanto interesse na prosperidade nacional quanto os estrangeiros, pois não conhecem o elementos fundamentais da economia nacional e só indiretamente participam de suas vantagens. Não quero ser injusto com as classes trabalhadoras. Não são menos patriotas do que as outras. São capazes de atos de heroismo e de devotamento, tanto mais extraordinários quanto se sabe que não são recompensados nem pela fortuna nem pela glória. Mas o patriotismo que dá coragem para morrer por seu país é uma coisa, e outra muito diferente é ser capaz de conhecer seus próprios interesses. Assim, a condição para ser cidadão politicamente reconhecido é o lazer, indispensável para a aquisição das luzes e a retidão do julgamento. Somente a propriedade assegura esse lazer e, portanto, somente a propriedade torna os homens capazes do exercício dos direitos políticos” (os grifos são meus). Novamente, estamos diante do discurso liberal com todos os seus ingredientes — propriedade, cidadania, luzes, conhecimento dos próprios interesses, liberdade, etc. —, porém com dois ingredientes quarente-huitards: patriotismo à parte, nada de socialismo e nada de sufrágio universal; os trabalhadores desconhecem a coisa pública e os interesses nacionais. Um pouco à moda de Canudos, são bons patriotas depois de mortos, visto que o cuidado com a pátria cabe aos verdadeiros patriotas, os que possuem propriedades e luzes. Assim, os dois elementos de unificação — nação e pátria — podem operar de maneira curiosa, pois em lugar de unificar servem, agora, de critério para diferenciar. Ora, é isto que parece ter ocorrido no 48 brasileiro, isto é, na Praieira.

Há pouco disse que há uma reconstrução contínua do passado nacional, visto que o nacional, no presente, está em continua definição. Há uma versão de esquerda, no Brasil, que considera a Praieira pelo ângulo de fevereiro — teria sido uma revolução de cunho socializante à la Saint-Simon. Uma tese recente, de Isabel Marson, revela que a Praieira, à sua moda evidentemente, está muito mais próxima de julho do que de fevereiro. Não só porque para ter sido um fevereiro local precisaria ter incluído entre seus protagonistas uma figura ausente na política europeia de 48, o escravo, como também teria sido preciso que os opositores preenchessem a divisão do popular—não-popular. Ora, nenhum dos dois requisitos foi preenchido para adequar-se ao “modelo”. Não só os escravos estão ausentes das lutas, mas também esta se configura como luta entre governistas e oposição que se alternam no governo e que pertencem às mesmas frações das classes dominantes. Porém, o que dá o tom quarante-huitard à Praieira, segundo Isabel Marson, é a imagem que os protagonistas constroem de si mesmos: proprietários probos, homens civilizados e com luzes, determinações que lhes conferem um título que ostentam sem cessar, isto é, patriotas. Não cabe discutir aqui se o 48 brasileiro está ou não “no lugar”, mas apenas observar que o momento em que a esquerda brasileira reconstrói a Praieira pelo prisma de fevereiro é, justamente, um momento em que já defende uma ideologia nacionalista e aliancista.

Num dos Cadernos do Povo Brasileiro, publicado em novembro de 1962, Que é a Revolução Brasileira, Franklin de Oliveira escreve: “Nada mais dramático para um povo do que ver frustrada sua Revolução Nacional. Toda revolução nacional malograda leva fatalmente ao obscurantismo político. Nesse sentido, o exemplo da Alemanha é expressivo. Damos por pacífico o axioma de que cada nação nasce de uma revolução; de que só as revoluções criam os caracteres nacionais. É às revoluções nacionais de 1848, na Alemanha, na Itália, na Europa Central e na Europa Oriental que devemos esse axioma histórico. As revoluções de 1848 cristalizam as aspirações nacionais em toda a Europa. Em 1848, o nacionalismo, que derivou da combinação da ideia de soberania com a doutrina da revolução, emergiu como um ideal político definido. Ao lema Viva o Rei sucedeu o lema Viva a Nação! Porque desde a Reforma Luterana até o movimento de 1918, que fundou a República burguesa, na qual se embutiram todas as forças e resíduos do antigo regime, a Revolução Nacional Alemã viu-se frustrada, a velha Germânia desembocou no nazismo. As frustrações revolucionárias resultaram em Hitler”. Percebe-se, portanto, que por revoluções de 1848, o autor tem em mira julho e não fevereiro, este aliás sequer mencionado. Como aliás, a sequência é estabelecida entre Lutero, 1848 e Weimar, sem qualquer referência a Munzer, fevereiro e 1919.

O caso de Gramsci é ainda mais interessante. Seus textos sobre a necessidade e a importância da cultura nacional-popular datam da década de 30. Ora, quando lemos seus textos das décadas de 10 e de 20 observamos dois traços que dificilmente nos levariam a imaginá-lo, mais tarde, numa defesa do nacional-popular: uma crítica feroz do nacionalismo, que chama de confusionismo diletante e de reacionário (pois serve para justificar a concepção corporativa dos sindicatos) e uma crítica impiedosa do popularesco de Victor Hugo, Dumas e D’Annunzio (os dois primeiros como versões populares embrionárias, juntamente com Balzac, Sue e Dostoiévski, do super-homem nietszcheano; o terceiro como novo “ópio do povo” e novo “suplemento d’alma”). Teria Gramsci, posteriormente, sucumbido à hegemonia burguesa-fascista que criticara teórica e praticamente (pagando altíssimo preço por isto)? Evidentemente não, uma vez que o nacional-popular é elaborado por ele justamente para fazer frente à cultura fascista.

Hitler dissera que “a principal proposta do programa do Nacional-Socialismo é abolir o conceito liberal de indivíduo e o conceito marxista de humanidade, substituindo-os pelo da Comunidade do Povo, enraizada no solo nacional e unida pelo laço de sangue comum”. E Mussolini: “A Nação não é uma simples soma dos indivíduos vivos nem o instrumento dos objetivos partidários, mas um organismo que compreende a série indefinida das gerações cujos indivíduos são elementos passageiros; é a síntese suprema de todos os valores materiais e espirituais da raça […] O Estado é a encarnação jurídica da Nação […] O partido Nacional-Fascista pretende conferir uma dignidade absoluta aos costumes políticos a fim de que a moral pública e a moral privada não mais se mostrem em contradição na vida da Nação” (encontraremos ipsis litteris essas ideias em Plínio Salgado e em Miguel Reale, na década de 30). Essa consubstanciação orgânica entre a nação e o Estado pela mediação da ideia de comunidade, própria dos totalitarismos, não se encontra em Gramsci, pois o nacional-popular opera na qualidade de elaboração de uma contra-hegemonia face ao totalitarismo.

Se Gramsci não sucumbe ao totalitarismo, então sua passagem da crítica ao nacionalismo e ao popularesco para o nacional-popular também não pode aproximá-lo de Stálin. Este, como sabemos, parte da recusa da concepção do nacional popular no socialismo tal como fora formulada por Otto Bauer, para quem “a nação é o conjunto dos homens ligados pela comunidade de destino e pela comunidade de caráter. Pela comunidade de destino: este traço distintivo a separa das coletividades internacionais de profissão, de classe, de cidadania que se baseiam na semelhança de destino e não na comunidade de destino. O conjunto dos companheiros de caráter: isto os separa das comunidades de caráter mais restritas no interior da nação, que jamais constituem uma comunidade natural e cultural autodeterminada, determinada por seu próprio destino, mas estão relacionadas ao conjunto da nação e são determinadas por seu destino […] Na sociedade socialista, a nação será constituída pelo conjunto de todos os que usufruem da educação nacional e de seus bens culturais naturais, cujo caráter seja formado pelo destino da nação, que determina o conteúdo dessa cultura […] Na nossa sociedade de classes não pode haver nação […] a nação só se manifesta no caráter nacional, na nacionalidade do indivíduo e esta nada mais é do que um aspecto de sua determinação efetuada pela história da sociedade, de sua determinação em devir pela evolução dos métodos e das condições de trabalho […] A integração de todo o povo à comunidade nacional cultural, a conquista pela nação de sua autodeterminação integral, uma diferenciação espiritual crescente entre as nações — é isto o socialismo […] Enquanto a nação repousa na comunidade de educação, traz em si mesma a tendência à unidade: ela submete todas as crianças à mesma educação, todos os conacionais — trabalham juntos nas oficinas da nação, participam da formação da vontade coletiva da nação, usufruem juntos os bens culturais da nação. Assim, o socialismo comporta em si mesmo a garantia da unidade nacional […] A nação deve inicialmente tornar-se uma comunidade de trabalho antes de poder ser plenamente uma verdadeira comunidade cultural que se autodetermina”. Stálin dirá que além de idealista (“caída do céu”), a nação de Bauer não é nação — é tribo.

Ao romantismo tribal de Bauer (que Stálin considera psicologista), o stalinismo contraporá uma outra ideia da nação. Para que haja nação, escreve Stálin, é preciso que haja comunidade e esta se caracteriza pelos seguintes traços: estabilidade da reunião, comunidade de idioma, comunidade de território, comunidade de vida econômica, comunidade psicológica ou caráter nacional. “Só a existência simultânea de todos esses traços distintivos em conjunto constitui a nação.” Feita a prova a priori da existência da nação por sua essência, Stálin frisa que a luta nacional nas sociedades capitalistas é popular apenas em aparência e burguesa na sua essência, mas que nem por isso o proletariado deve deixar de lutar pela nacionalidade. E isto, por dois motivos. Um motivo histórico — a luta das nacionalidades foi essencial para a constituição dos diferentes proletariados, — e um motivo tático-estratégico — a luta nacional é uma etapa necessária para a chegada ao socialismo.

A questão das nacionalidades (especialmente a das pequenas nacionalidades) é o eixo das análises de Stálin de modo que há um deslizamento conceitual gradativo no qual o nacional-popular se converte no conflito das nacionalidades num mesmo território nacional e no conflito entre nações sob a ação do colonialismo. Como a preocupação principal é com a autodeterminação das nacionalidades e com a autodeterminação nacional, a discussão sofre novo deslocamento e passa do popular para as minorias oprimidas (as pequenas nacionalidades dentro da nação) e das nações colonizadas (as submetidas ao imperialismo). Do ponto de vista tático-estratégico, os oprimidos — nacionalidades e colônias — ocupam o lugar que tradicionalmente o marxismo conferira ao proletariado como força transnacional e trans-histórica, de sorte que o popular se converte, agora, em força nacional-nacionalista a caminho do socialismo.

A longa polêmica de Rosa e Lênin sobre as dificuldades da luta nacional como luta da internacional proletária (em que, como e quando a autodeterminação das nacionalidades pode ou não auxiliar a construção do socialismo?) é inteiramente varrida da cena política pelos dois postulados ou dogmas de Stálin: a luta das nacionalidades e a etapa nacionalista democrático-burguesa nas nações colonizadas cristalizam a prática política numa ideologia que dispensa a formulação do nacional-popular como questão. Nessa passagem, a nação autodeterminada de Stálin é caudatária de duas ideias cujas consequências políticas são sobejamente conhecidas. Por um lado, a ideia de comunidade nacional, que, traduzida por unificação do proletariado pelo partido proletário no Estado proletário, sustenta a consubstanciação povo-nação pelos seus respectivos “representantes”, isto é, o partido e o Estado. Por outro lado, a ideia de etapa nacionalista rumo ao socialismo ou as lutas de libertação nacional por alianças de classes e frentes político-revolucionárias a partir da versão stalinista da teoria leninista do imperialismo (ou seja, a tradução dos conceitos de “mercado interno” e “mercado externo” para “nacional” e “internacional”, quando no marxismo clássico “interno” significa capitalista e “externo” significa não-capitalista, o imperialismo sendo a política do capital financeiro para colocar no mercado interno, isto é, sob o capital, tudo o que resta à margem do capitalismo).

Parece quase impossível colocar Gramsci nessa perspectiva e, no entanto, fica a pergunta: por que, entre várias possibilidades de prática popular-proletária, vai em busca do nacional-popular? Criticando as observações de Nizan contra o nacionalismo e o populismo na literatura, Gramsci dirá que nas “condições presentes é impossível uma literatura (e, por extensão, uma cultura) que não se manifeste nacionalmente, “em combinações e liames diversos, mais ou menos híbridos”. Além disso, considera que na Itália, pré-fascista e fascista, a cultura antinacional sempre foi marcadamente antidemocrática, estabelecendo, assim, uma articulação entre nacionalismo e democracia. Dessa maneira, há um argumento Focal — a cultura burguesa e fascista italianas — e um argumento geral — as nações modernas são um fato irrecusável como território e como sistema de instituições, determinando o modo como as forças políticas e culturais se enfrentam, sendo impossível não passar por aí — na justificação gramsciana do nacional-popular como nova força moral de uma nova hegemonia. O problema, porém, permanece, não só porque outras interpretações são possíveis, como a de Rosa, por exemplo, mas ainda e principalmente porque o marxismo é uma teoria e uma prática revolucionárias e se a marca distintiva da revolução é a visualização do possível como radicalmente outro face aos dados presentes, por que uma política revolucionária precisaria ancorar-se justamente naquilo que é a menina dos olhos de seus inimigos, isto é, a ideologia da unidade nacional? Se quem diz sociedade diz divisão social e quem diz comunidade diz indivisão natural; se, coerentemente, os liberais raramente apostam, no nacional e, por princípio político-lógico-metafísico, jamais no popular; se, em contrapartida, as políticas autoritárias e totalitárias apostam no jogo de espelhos do nacional e do popular sob a comunidade estatal, creio clue nos restam duas perguntas:

  1. se o nacional e o popular constituem um campo de significações práticas, teóricas, empíricas, imaginárias e simbólicas no interior das quais aprendemos a articular política, cultura e história, haverá uma outra maneira de trabalhar nesse campo que não redunde na repetição das experiências já conhecidas? É possível redefinir o nacional-popular?
  2. se a carga histórica e política que pesa sobre o nacional e o popular limita nossa reflexão e nossa prática, não seria melhor correr o risco de abandonar essas ideias e imagens e repensar a história, a cultura e a política sem esses referenciais herdados? E não vale dizer que a solução é “dialética” porque isto não seria uma rima nem uma solução.

Além dessas duas perguntas, uma outra me ocorre: não seria interessante analisarmos o pressuposto do tema da pesquisa, isto é, que o nacional-popular foi colocado como manifestação cultural?

Gostaria de mencionar aqui um texto de Raymond Williams, Marxism and Literature, no qual examina a mutação conceitual de alguns termos, a partir do século XVIII. Assim, o termo indústria, que significava habilidade, engenho e perseverança, qualidades do indivíduo, passa a significar uma instituição econômica — a manufatura e a produção, isto é, de qualidade pessoal, passa a ter existência social e a conotar um corpo de atividades coletivas. Democracia, que antes significava governo do povo e pelo povo, passa a significar, com as revoluções americana e francesa, governo representativo, deixando de ser a forma de um regime político para virar uma prática e uma luta políticas. O termo classe que, anteriormente, significava a divisão jurídica e militar romana e “divisão de grupos para o aprendizado nas faculdades, na Idade Média, passa a designar divisões na sociedade, surgindo primeiramente o termo “classes baixas”, em seguida, “classes altas” e, no século XIX, “classe trabalhadora”. Arte, significando anteriormente habilidade e engenhosidade para lidar com os materiais naturais, técnica, trabalho, passa a significar urn conjunto particular de atividades e habilidades dependentes da imaginação criadora e da inspiração, destinadas à contemplação e à beleza, isto é, se transforma na ideia burguesa das belas-artes, e seu cortejo: o gênio, do lado do criador, o esteta, do lado do espectador. Ócio e não mais trabalho, diferenciando o artista do mero artesão. E muda também o sentido da palavra cultura.

Vinda do verbo latino colere, cultura é o cultivo e o cuidado com as plantas e os animais para que possam bem desenvolver-se, donde, agricultura. Por extensão, é empregada no cuidado com as crianças e sua educação, desenvolvendo suas qualidades e faculdades naturais. Hanna Arendt, em Entre o Passado e o Futuro, observa ainda que cultura, significando cuidado, cultivo, amanho, se estende ao cuidado com os deuses, isto é, o culto. Fundamentalmente, escreve ela, cultura era relação com a natureza que, além de agricultura, implicava também em torná-la habitável para os homens e cuidar dos monumentos do passado, em latim cultura animi sendo o espírito cultivado para a verdade e a beleza, inseparáveis da natureza. Williams observa que, a partir do século XVIII, cultura passa a opor-se a civilização. Esta, entendida como um estágio acabado do desenvolvimento social, econômico, político e científico opõe-se à barbárie. É progresso e história, no sentido de Vico, isto é, Natureza é o que fazem os deuses, enquanto História é o que podem fazer os homens em sua finitude. Ora, na oposição à civilização (nítida em Rousseau, mas ainda mais poderosa nos românticos alemães), cultura toma duas direções. Por um lado, passa a significar o que é “natural” nos homens por oposição ao artificialismo da civilização, ou se se quiser, designa a interioridade humana contra a exterioridade das convenções e das instituições civis-civilizadas. Mas, por outro lado, passa a ser a medida de uma civilização. Agora, cultura não é o “natural” qualquer, mas o específico da natureza humana, isto é, o desenvolvimento autônomo da razão na compreensão dos homens, da natureza e da sociedade para criar uma ordem superior (civilizada) contra a ignorância e a superstição. Nesse sentido, torna-se sinônimo de progresso racional e de história. Entendida como exercício racional e, portanto, livre da vontade, a cultura surge como reino humano da finalidade oposto ao reino necessário da natureza. A oposição deixa de ser entre o “natural” e o “artificial”, como no início da Ilustração, para tornar-se oposição entre liberdade e necessidade, no final da Ilustração e já no idealismo transcendental. Gradativamente, a natureza se torna imóvel e passiva, materialidade mecânica e pura exterioridade, enquanto a cultura se faz mobilidade, atividade, temporalidade, atividade consciente de si — Espírito Objetivo, na terminologia hegeliana.

Novamente, o termo se bifurca em duas direções. Numa delas, refere-se ao processo interior dos indivíduos educados intelectual e artisticamente, constituindo as “humanidades”, apanágio do “homem culto” em contraposição ao “inculto”, desembocando, como lembra Hanna Arendt, no filistinismo burguês. Na outra, marcada pela relação com a história, torna-se o conjunto internamente articulado dos modos de vida de uma sociedade determinada, concebida ora como trabalho do Espírito mundial (como em Hegel), ora como relação determinada dos sujeitos sociais com as condições materiais dadas ou produzidas e reproduzidas por eles (como em Marx). Na linha da Kulturgeschichte, aparece como o campo das formas simbólicas — trabalho, linguagem, religião, ciências e artes; na linha marxista, como resultado das determinações materiais econômicas sobre as relações sociais e a ideologia. Em ambos os casos, porém, é concebida como fazer humano na relação com a materialidade e como história. Em sentido amplo, é antropologia. Em sentido restrito, isto é, articulada à divisão social do trabalho, é posse de conhecimentos, habilidades e gostos específicos, privilégios de classe, diferenciação entre “cultos” e “incultos” que determina, a seguir, a divisão entre cultura popular e não-popular. A primeira, porque próxima da natureza e da sensibilidade, aprisionada na repetição, nos mitos e nas tradições encontrar-se-ia mais próxima da “barbárie”, enquanto a segunda seria a “civilização”.

É interessante considerar o vínculo entre cultura e história. Em As Palavras e as Coisas, Foucault, examinando o momento em que o saber europeu ultrapassa a ordem clássica e pretende ultrapassar os limites da representação, assinala o advento da ideia moderna de história e sua ambiguidade constitutiva. “A história não deve ser compreendida como a coleção das sucessões de fatos, tais como puderam ser constituídas; é o modo de ser fundamental das empiricidades, aquilo a partir do que são afirmadas, postas, dispostas e repartidas no espaço do saber para eventuais conhecimentos e para ciências possíveis […] A história, a partir do século XIX, define o lugar de nascimento daquilo que é empírico onde, abaixo de toda cronologia, toma o ser que lhe é próprio. É por isso, sem dúvida, que a história logo é dilacerada, segundo um equívoco impossível de dominar, entre uma ciência empírica dos acontecimentos e esse modo de ser radical que prescreve seu destino a todos os seres empíricos, a esses seres singulares que somos nós. A história, sabe-se, é a praia mais erudita, mais avisada, mais vigilante, mais sobrecarregada de nossa memória, mas é também o fundo onde todos os seres vêm à existência e à cintilação precária.”

O advento da história como forma canônica dos seres e do conhecimento exprime a descoberta da finitude como separação irremediável entre homem e natureza, homem e divindade, homem e transcendência, ou, para usar a expressão de Merleau-Ponty, a perda do Infinito Positivo. Se o idealismo crítico faz do tempo, sentido interno, e da prática, tarefa infinita da liberdade, o idealismo absoluto fará do tempo o estofo mesmo do real e da história o movimento imanente, necessário e livre do infinito conquistando-se a si mesmo pela mediação da finitude. A tarefa infinita é substituída pelo processo como temporalidade cumulativa e chegada ao “dia espiritual do presente”, ou, como escreve Paulo Arante, o “apagamento do tempo”, sua desaparição ou neutralização — “o tempo, para o Espírito, permanece sendo uma pressuposição cuja eliminação coincide com a posição da identidade do em si e do para si; o preenchimento (Erfullung) o dissipa”.

Esse privilégio do Presente, aparece ainda num outro registro. Depois de haver descrito o advento da história, Foucault descreve as tentativas para capturar o tempo e fisgar, de algum modo, a finitude. A primeira dessas tentativas, em vista da multiplicidade de começos para os acontecimentos, considera impossível encontrar a origem e a finalidade temporais, desembocando no relativismo historicista. A segunda, pelo contrário, identifica a cronologia humana e a das coisas, colocando o homem na série sucessiva dos seres e dotado de sucessão própria, desembocando, assim, no evolucionismo. A terceira, porém, vai na direção oposta, isto é, busca identificar a cronologia das coisas à humana, ou melhor, à experiência que os homens têm das coisas e de si mesmos. O mundo existe para os homens e pelo fazer humano, tornando-se o homem contemporâneo daquilo que produz — linguagem, trabalho, bens, ciências, artes —, isto é, o mundo é mundo cultural. A cultura se torna, portanto, a captura mais perfeita do tempo e da história, na medida em que submete o fluxo temporal das coisas ã ação temporal dos homens, que fazem sua própria história, ainda que não o saibam e em condições que não escolheram.

Nessa perspectiva, a história tanto pode ser concebida como memória — à maneira grega de narrar o que é memorável para imortalizar os mortais — quanto como trabalho — à maneira dramática cristã na qual o curso do tempo é o resgate da eternidade. E pode, enfim, ser concebida como trabalho memorioso que põe todos os acontecimentos na ordem do “dia espiritual do presente”.

No entanto, poderíamos discutir a questão da história tomando uma outra direção. Concebida e escrita de maneiras variadas desde a antiguidade, a história é pensada sob o signo da separação, o tempo sendo potência de destruição e de desagregação incontornável. Feitos, fatos e escritos históricos se reúnem contra essa força desagregadora, mas o tema da separação, implícito ou explícito, comanda todos eles — separação entre homens e divindades, entre homens e natureza, entre os próprios homens constituem a teia histórica, ao mesmo tempo em que os relatos e as interpretações procuram conferir sentido à separação e, se possível, diminuí-la ou eliminá-la. Seja como memória ou co-memoração, seja como progresso ou desenvolvimento, a história está encarregada da reconciliação ideal ou real. Exceção feita para a história como relato da decadência, a busca da reconciliação como retorno à origem ou como consecução de fins superiores marca a tarefa do historiador. Como força externa de dispersão e de fragmentação ou como força interna de reunificação e de totalização, o tempo se distingue entre a sucessão empírica, feita de contingência, e a duração interna, constituinte de uma trama e de um tecido de relações necessárias, a necessidade, porém, podendo ser ela própria uma potência externa ou interna, produzindo uma oscilação incessante entre uma concepção da história como descontinuidade e contingência ou como continuidade e necessidade. Sucessão empírica ou gênese real, dispersão ou efetividade, o tempo introduz a indeterminação na experiência e a história aparece como trabalho da determinação (conhecimento das causas e consequências, das influências, da geração do novo pelo velho, ou, enfim, do modo de constituição interna do objeto). Acoplado ao tempo natural ou dele diferenciado como duração humana, o tempo histórico busca a determinação como tempo lógico e, sob esse ângulo, todo tempo é o tempo presente, não só porque a interpretação do passado é marcada pelas coordenadas do presente, nem só porque, como dizia Hegel, ninguém escapa de seu próprio tempo, mas ainda porque a compreensão do passado o presentifica como totalidade para o presente, ainda que não o fosse para si. Aquilo que no tempo histórico era experiência indeterminada e campo de possíveis surge, no presente, de modo determinado e como efetuação de uma necessidade.

Se a história surge sempre sob o signo da separação e rodeada pelos fantasmas da contingência e da necessidade, é porque opera com a diferença temporal e não apenas com a diferença empírica dos tempos. Essa separação fundamental, contornada pela referência originária aos deuses (ou a Deus), à natureza, à razão, a causas primeiras ou finais, é justamente aquela que a sociedade nascida com o capitalismo já não poderá fazer, senão sob a forma da ideologia (como o fará, de fato). Estamos numa sociedade na qual a separação não é apenas pressuposta — separação entre homem e natureza, separação entre trabalhador e instrumentos e meios de produção, separação entre sociedade e poder político, separação entre exploração e dominação —, mas é incessantemente reposta por ela como forma de sua existência. Nela, não só o tempo será cada vez mais o tempo abstrato do trabalho abstrato, como ainda será a medida de todas as suas instituições. Mas, sobretudo, é a primeira formação social que não poderá explicar a origem dessas separações e dessa abstração recorrendo a determinações transcendentes, pois terá que encontrar no próprio movimento de sua instituição o da separação.

Em outras palavras, é ao mesmo tempo a formação social que porá, senão como fato, pelo menos como ideia e como direito, a individualidade racional autônoma e a alienação ou heteronomia, e não poderá explicá-las senão por si mesma. Ainda que recorra aqui e ali a Deus ou à Natureza já não encontra neles a compreensão real do que efetua por si mesma, de sorte que os pilares transcendentes tornam-se cada vez mais puras justificativas e dissimulação da sociedade perante si mesma. Se é nessa sociedade que se destacam pela primeira vez subjetividade e objetividade, se é nela que um acontecimento imaginado como auto-instituição do social pode acontecer (como é o caso da revolução francesa e da revolução russa, ou melhor, da ideia mesma de revolução), se é nela que o fenômeno da ideologia (e não mais da mitologia e da teologia) pode acontecer com clareza, se é nela, enfim, que a instituição e a ideia de comunidade desaparecem sob a ação das divisões internas, é porque para ela ter uma história é um problema e uma questão. Nela, ser e ter história se confundem e a história é seu modo de reflexão, não apenas como atividade de um sujeito, mas como operação de suas objetividades.

A sociedade histórica, como vem sendo compreendida por Lefort, por exemplo, é aquela que precisa encontrar em si mesma sua própria origem, não podendo recorrer a princípios naturais, divinos e conscientemente racionais para determiná-la. Terá que encontrar dentro de si seu próprio nascimento e o de suas instituições, o princípio de suas transformações e, no entanto, se defronta com um obstáculo quase insuperável para realizar essa tarefa: a ausência de identidade consigo mesma, pois sua existência é comandada por divisões internas cuja origem também precisa ser explicada. Como diz Lefort, estamos numa sociedade que se vê obrigada a reconhecer a origem da divisão como divisão de origem, como separações originárias. No instante mesmo em que essa sociedade se produz como sociedade, produz as divisões que a fazem ser e nas quais não pode reconhecer-se porque nelas não encontra a identidade que a definiria. Pressupondo divisões e repondo a divisão das classes, tenta oferecer-se como idêntica identificando-se a uma das classes — a dominante —, mas só pode fazê-lo imaginariamente (pela ideologia) e recorrendo à força ou à persuasão. O único recurso de que dispõe para alcançar a identidade sem desfazer, a divisão é o recurso que ela mesma, sob a ação da classe dominante, irá perder: o poder como instância simbólica de identificação social, mas desfeito como tal porque identificado com o aparelho de Estado e, portanto, com uma particularidade que se erige a si mesma à dimensão da universalidade (imaginária). Estamos numa sociedade que recusa refletir sobre a divisão interna que a constitui e que dissimula. essa divisão produzindo identidades e um sistema de identificações imaginárias: a lei, o Estado, o direito, a organização, a família, o trabalho, a ciência, a arte, e, evidentemente, o povo e a nação. Repondo a divisão interna e pondo um sistema de equivalências abstratas (cuja forma canônica é a mercadoria), a sociedade tenta exorcizar as contradições que a constituem e o trabalho dessas contradições. Padodoxalmente, essa sociedade fará da história o grande agente de instauração da identidade, em lugar de instituinte das divisões.

Entendida como continuidade e progresso, a história, além de excluir a ruptura, exclui ainda a diferença temporal entre passado e presente e entre presente e futuro. O primeiro se insere na linha continua da tradição memorizada; o terceiro é posto como previsível e provável, perdendo a dimensão do possível. Assim como anula a alteridade interna que a constitui como formação social, a sociedade capitalista anula a alteridade temporal numa história una e única que ordena o espaço social, a memória e o porvir. Como diz Walter Benjamin, é sociedade que conhece apenas a história do vencedor, impedindo que outras histórias sejam conservadas como outros possíveis e outros passados. Ao se oferecer como história nacional, exclui todos os feitos e fatos que ponham em risco ou em dúvida sua unidade e unicidade contínuas. História afirmativa, mesmo quando recorre ao trabalho do negativo.

Operação semelhante é realizada pela ideia de cultura, como foi possível notar quando nos referimos brevemente ao conceito gramsciano de hegemonia, ao romântico de Volksgeist, ao iluminista de civilização. Mais do que eles, porém, a moderna indústria cultural e a cultura de massa nos fazem perceber o fenômeno extraordinário de instauração de identidades e identificações sociais e políticas, “nós, ouvintes”, “nós, telespectadores”, “nós, leitores” graças ao seu oposto, isto é, pela reposição das divisões sociais e políticas e sobretudo das exclusões culturais, pois a identificação é operada enquanto os sujeitos são conservados na qualidade de receptáculos coisificados das “mensagens”. Nós, consumidores. Mas não só isto. Se pensarmos que a operação da história continua, progressiva e una apaga a diferença temporal pela diferença empírica dos tempos, se lembrarmos que a cultura popular é posta como repositório e guardiã da tradição, enquanto a cultura não-popular (erudita, letrada, científica, tecnológica) é posta como inventora e guardiã do futuro, a linha temporal se torna continua, esfuma-se a divisão da e na sociedade, e em seu lugar aparecem “as forças vivas da nação”, sua memória e seu porvir. A comunidade restaurada.

Foram essas preocupações que me lavaram a perguntar se os pesquisadores pretendem levar em conta que lhes foi sugerido como tema o nacional-popular na cultura. Mormente quando lemos os projetos de política cultural do Estado, nos quais a cultura popular é posta como integrável na qualidade de resíduo (folclore, artesanato), de diversidade empírica (regionalismo, localismo) e de continuidade temporal ou tradição (documentos, monumentos).

SEMINÁRIO II

(segundo semestre de 1980)

Considerações sobre alguns Cadernos do Povo Brasileiro e o Manifesto do CPC

Balançando-se no frágil trapézio, Jango declamava: “As constituições devem ser tocadas e tocadas sempre pela vontade popular, pois elas valem na medida em que refletem o sentimento do povo”. Ao que a Banda de Música udenista, tocando mais alto do que sua ala Bossa Nova, retrucava: “O grande objetivo do comício mobilizado pelos comunistas e patrocinado pelo Presidente da República é a desmoralização das instituições, o desrespeito aos legítimos representantes do povo e o fechamento do Congresso Nacional”. Do alto do trapézio, Jango lançara: “Brasileiros! Valoroso povo da Guanabara! A democracia, trabalhadores, que eles pretendem impingir-nos é a democracia do antipovo, da anti-reforma, do anti-sindicato… Ainda ontem, trabalhadores, eu afirmava no Arsenal da Marinha, envolvido pelo calor dos trabalhadores, que a democracia jamais poderá ser arrebatada dos trabalhadores quando eles vêm à praça, quando é do povo… Ainda ontem, dentro das associações de cúpulas das classes conservadoras, ibadianos protestavam contra o presidente porque ele defende o povo contra aqueles que o exploram… O povo tem que sentir a democracia que ponha fim aos privilégios de uma minoria proprietária de terras… Ele, o imortal, o grande patriota Vargas, morreu, mas o povo continua sua caminhada”. Porém, uma voz mais alta se alevanta. O General Mourão, comandante da 4ª. Região Militar, ergue-se na defesa da Nação, argumenta apresentando motivos que levaram “o povo, os governos estaduais e as Forças Armadas a repelirem o processo de aviltamento das forças vivas da Nação, tão bem concebido e executado pelo Presidente da República”. Das alterosas, convoca “todos os brasileiros e militares esclarecidos para que, unidos conosco, venham ajudar-nos a restaurar no Brasil, o domínio da Constituição e o predomínio da boa-fé no seu cumprimento”. Convocação aceita, pois, na tarde de 2 de abril, descrita por Alberto Dines, as ruas estão apinhadas: “A Marcha da Família com Deus pela Liberdade estava marcada há mais de 15 dias. Converte-se hoje numa Marcha da Vitória. Quase um milhão de pessoas comprimia-se na Avenida Rio Branco. Passa diante do Jornal do Brasil e aplaude. Há muito tempo isso não acontece. Um milhão quase canta calmamente sua vitória. Povo”.

Quem relê os anais do Congresso, jornais, livros, discursos e panfletos dos anos de 1961 a 1964, encontra em abundância duas expressões: “a vontade do povo” e “os magnos interesses da Nação”, ou suas variantes, “a consciência popular” e “os verdadeiros interesses nacionais”. Não fosse tropeçar em outras palavras ou datas e o leitor se sentiria empurrado até Paris, levado aos clubes jacobinos e girondinos, à Assembleia Nacional, à Bastilha, o slogan “na lei ou na marra” evocando o “Ça ira”, fazendo eco aos brados de “Pátria” e “patriota”, usados também a mancheias. Acompanharia, depois, marchas rumo à guilhotina, embora aqui, diferentemente de lá, a história oficial registre que “não houve derramamento de sangue”, para gáudio do embaixador americano, Lincoln Gordon, que não precisara ativar a “operação Brother Sam”.

A comparação com a agitação parisiense não é descabida, embora anacrônica e historicamente improcedente — é que a retórica dos acontecimentos é muito semelhante. Além disso, para boa parte dos intelectuais de esquerda estava em curso a revolução democrático-burguesa que iria erradicar os restos do feudalismo aqui imperante, derrubando a nobreza, isto é, a oligarquia da terra e a aristocracia da finança. De Lacerda a Brizola, de Moura Andrade a Hércules Correa, de Magalhães Pinto a Arraes, de Carvalho Pinto a Dante Pelacani, da Tribuna da Imprensa a Panfleto, do IPES ao CPC, do IBAD à FMP, da ADN à FNP, da “esquerda negativa” à “esquerda positiva”, dos artigos de Tristão de Athayde aos de Antônio Callado, das “patrulhas da democracia” aos “grupos de onze”, de Cid Sampaio a Julião todos os envolvidos — direta ou indiretamente — na política empregam aquelas expressões e suas variantes e todos os contendores, do CGT e PUA às Federações de Indústria e Centros de Comércio, passando pelos partidos, pelas organizações de esquerda e grupos conspiratórios de direita, pelas Forças Armadas e pela Igreja, todos reivindicam o direito de serem os “legítimos representantes do povo” e dos “legítimos interesses da nação”. Em nome dele e dela, presidentes renunciam ou são empossados, reformas constitucionais, plebiscitos e reformas de base são propostos, conspirações e golpes são realizados, imperialistas são atacados, de um lado, enquanto de outro são convocados os “defensores do mundo livre e cristão”. Em nome do povo e da nação, desencadeia-se a renovação cultural.

Parte dos anos 50 a 60 são considerados pelos estudiosos anos do nacionalismo desenvolvimentista e populista. A tônica é dada por projetos econômicos e sociais de desenvolvimento capitalista, o combate ao subdesenvolvimento sendo deflagrado por bandeiras de mobilização nacionalista, sob os auspícios do Estado, ou de sua tomada por representantes dos “verdadeiros interesses populares e nacionais”.

A política de JK, como observa Miriam Limoeiro, pretendia “mudar dentro da ordem para garantir a ordem”, pautando-se pela ideia de ordem como sinônimo de civilização ocidental-cristã, o que permitia forte ligação com o capital internacional e com o imperialismo, vistos como aliados porque pertencentes à mesma ordem. O desenvolvimentismo, exposto no Plano de Metas, se apresentava como ideologia técnica (fundado em análises econômicas, números e cifras) e moralista, contrária à demagogia. Punha-se a si mesmo como projeto social e cultural porque beneficiaria toda a coletividade, uma vez que as causas da miséria e das desigualdades eram atribuídas não a determinações internas, mas ao subdesenvolvimento, isto é, à desigualdade entre as nações. Oferecia-se, pois, não apenas como um plano do governo, porém como “expressão da vontade irreprimível de todo o povo brasileiro”. Nacionalismo patriótico, porque visava ao engrandecimento da Pátria, nacionalismo internacionalista, porque o desenvolvimento capitalista integraria a nação no sistema das nações, a política de JK formula um nacionalismo anticomunista, pois, como analisa Miriam Limoeiro, sendo democrático e contrário à subversão cuja causa se encontraria no subdesenvolvimento, o desenvolvimento capitalista em si e por si mesmo anularia a ameaça comunista. Civilização é progresso. Progresso é ordem.

A política JQ, seguindo a trilha anterior, no entanto opera uma alteração de curso. A ênfase recai menos na integração internacional e mais na soberania nacional. Uma política voltada para reformas institucionais, para a mobilização dos costumes públicos e privados, para a justiça social e para a erradicação da miséria é montada sobre uma ideologia terceiromundista de independência nacional face aos Estados Unidos, tanto na política externa quanto na interna. Aqui o povo aparece menos como ansiando por democracia e mais por reformas que beneficiem a coletividade, entendida como comunidade. Porém, na linha de uma antiga tradição do pensamento autoritário brasileiro, JQ considera que nação e povo ainda não existem e responsabiliza grupos, facções, partidos, classes e os planos e metas de JK pela incapacidade de criarem a comunidade nacional. Honestidade (contra as negociatas econômico-financeiras), austeridade (contra os gastos públicos abusivos), moralidade administrativa e cultural, capitalização interna e união dos subdesenvolvidos sob condução do Brasil contra o colonialismo, essas foram algumas das ideias que balizaram o curto período do governo JQ. “O Brasil para os brasileiros.”

É na sequência desses dois governos que tenta acontecer o conturbado “governo no trapézio” de JG. Favorável a um “capitalismo humanitário e patriótico”, quando ainda Ministro do Trabalho, JG se apresenta como herdeiro da Carta Testamento, do trabalhismo e do nacionalismo, tentando uma política de conciliação e um “pacto populista”: Plano Trienal e Reformas de Base. Seu lema — “desenvolvimento sem inflação” — redundou, como assinala Caio Toledo, em inflação sem desenvolvimento, embora, como escreve Helga Hoffmann, tenha sido a primeira vez que, no Brasil, um plano econômico não atribuía a causa da inflação aos salários, Mas à drenagem dos recursos para o exterior e à transferência da renda para o setor exportador, por meio de subsídios governamentais, além dos dispêndios abusivos com o setor público, mais parasitário do que promotor de bem-estar social.

A democracia populista do período JG, tentando conciliar os interesses do capital nacional -internacional e os direitos dos trabalhadores, ampliados pelos discursos da autodenominada “vanguarda aguerrida do povo”, não satisfazia nem a gregos nem a troianos. À direita, clamava-se contra a guinada comunista do regime; à esquerda, contra o “reformismo continuísta” do janguismo e do PCB, que o apoiava. Hoje, quando o “tempo que tudo devora” já transformou em passado o futuro que não houve, o radicalismo das críticas de direita e de esquerda parece improcedente: o governo JG não tinha nem poderia ter pretensões revolucionárias, não só porque a lógica do nacionalismo populista não as comporta, como também porque não se faz revolução a partir do Estado — isto, pelo menos, 1789 e 1848 ensinaram.

Todavia, num país como este (“jamais verás outro igual”), o fato de que por um breve momento os dominados tivessem feito uma aparição na cena da “grande política”, criou à direita e à esquerda a expectativa da revolução — a primeira, para reprimi-la, a segunda, para dirigi-la. Além disso, de ambos os lados, sempre prevaleceu, desde os anos 20, um modelo explicativo sobre a sociedade brasileira e sua história que favorecia a imagem de uma revolução por vir. São traços fundamentais desse modelo: ausência de uma burguesia forte, capaz de ser classe dirigente; ausência de um proletariado organizado e maduro, capaz de realizar uma revolução; presença de uma classe média capaz de se radicalizar em defesa dos interesses nacionais, sejam estes apresentados pela direita ou pela esquerda; ausência de uma ideologia nacional, as ideias sendo sempre importadas sem respeito pelo caráter nacional; em decorrência das ausências ou privações anteriores e do lugar específico da classe média como funcionária do universal, isto é, do Estado e de suas instituições (particularmente o Exército), o único sujeito histórico é o aparelho estatal, a partir do qual, no qual e pelo qual são operadas as transformações. Criação e consolidação da unidade nacional pelo Estado nacional como agente histórico, eis uma imagem igualmente compartilhada pela direita e pela esquerda. Ora, esta, no momento em que se vê diante de um governo populista-nacionalista e ainda por cima se depara com mobilização popular, quase como um presente providencial, não poderá deixar de imaginar que bastará conduzir as massas e apanhar as rédeas do Estado para que a revolução se consume. Aquilo que para a esquerda do início dos anos 60 aparecia como “necessidade das leis objetivas e científicas da história”, se afigurava para a direita como uma crise política iminente. Ora, como a direita brasileira sempre concebe a crise como perigo, irracionalidade e desordem, concebe a solução como salvação nacional, racionalidade de medidas técnico-políticas e imposição violenta da ordem. Assim, com o nome de “revolução brasileira”, para uns, e com o de “crise das instituições”, para outros, os protagonistas da história tentavam capturar o significado de uma experiência, fixando-a. É nesse contexto que são escritos os Cadernos do Povo Brasileiro e o anteprojeto do Manifesto do CPC.

* * *

Não pretendo, neste seminário, analisar os Cadernos, mas apenas destacar o modo como, em alguns deles, nação-nacional e povo-popular aparecem. Também não pretendo aqui deduzir os textos da conjuntura histórica, mas apenas considerá-los parte integrante dessa conjuntura, uma das representações que essa conjuntura construiu a respeito de si mesma. Não se trata, evidentemente, de fetichizar as representações em detrimento dos fatos, que estarão ausentes em minhas considerações, mas apenas de levar em conta que as representações constituem, elas também, fatos históricos. Sem dúvida, seria de grande interesse comparar os Cadernos e os acontecimentos, pois poderíamos chegar a alguns resultados curiosos. A título de exemplo, cito um caso.

Em novembro de 1962, realiza-se em Belo Horizonte o I Congresso de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas Brasileiros. Além da data e do local, conhecemos ainda o número de participantes, sua proveniência e o texto das resoluções finais. Estamos perante um fato inconteste. Ora, no primeiro dos Cadernos, dedicado à apresentação das Ligas Camponesas, Julião interpreta o I Congresso como primeira manifestação da implantação nacional das Ligas, enquanto Nestor Vera, no nº 39 da Revista Brasiliense (janeiro-fevereiro de 1962), o considera um grande feito da ULTAB, acrescentando que “a realização desse congresso não surgiu por acaso, nem por obra divina. Mas por lima necessidade objetiva, resultando do grau de amadurecimento do movimento camponês já atingido em nossa pátria, fruto de um longo e duro trabalho, nestes últimos 15 anos, a cuja frente sempre estiveram os comunistas, esclarecendo e organizando o homem rural”. Ao falar em “15 anos”, Vera declara implicitamente que a data de 1955 não é a mais significativa para o movimento camponês, data considerada por Julião de fundamental importância, porquanto da fundação da primeira Liga, a do Engenho Galiléia. Mais ainda. Julião, em seu texto, não menciona Gregório Bezerra, no entanto considerado por Antônio Callado, em A volta às cooperativas da morte, a figura mais importante do Nordeste, ao lado de Julião, este, por seu turno, agradecendo a Callado o apoio jornalístico dado às Ligas. Por outro lado, contrariando a afirmação de Vera de que o I Congresso é fruto do trabalho que sempre teve os comunistas à frente, Julião, além de não mencionar os comunistas, declara serem as Ligas, em geral, e a do Engenho Galiléia, em particular, resultado da iniciativa e da prática exclusiva dos camponeses. Porque o I Congresso pode ser representado de modo tão diferenciado? O que significam os “15 anos” de que fala Nestor Vera? O I Congresso se realiza em 1962, 15 anos após a entrada do PCB na ilegalidade, ocasião em que também desapareceram as Ligas Camponesas de Pernambuco que haviam atuado na região desde o final da guerra, sob orientação do PCB. Por que, por outro lado, a afirmação de que o I Congresso é obra da ULTAB? Porque durante o ano de 61 e de 62, escreve Aspásia Alcântara Camargo, “o movimento camponês ganhará novo impulso, a partir de 1961, com a proliferação de Sindicatos Rurais, promovida por padres e comunistas, secundados por estudantes, para sustar a expansão das Ligas e organizar clientelas próprias entre os trabalhadores do campo. A partir de 1962, as duas vertentes do movimento camponês — Ligas e Sindicatos — interpenetram-se, associando a luta pela terra às reivindicações trabalhistas”. Compreende-se, então, que a palavra de ordem de Julião se tornasse, mais tarde, “entrar no Sindicato sem sair da Liga, entrar na Liga sem sair do Sindicato”, mas reivindicasse também a direção do movimento como encargo das Ligas que não sofriam os ônus do sindicalismo brasileiro. Além, portanto, de uma luta por clientelas e pela direção do movimento, os textos de Julião e de Vera indicam ainda duas concepções divergentes do processo. Enfatizar as Ligas, como o faz Julião, é enfatizar a posse da terra e, portanto, no seu texto, “camponês” quer dizer foreiro e pequeno proprietário. Enfatizar a ULTAB, como o faz Vera, é enfatizar a questão trabalhista e, no seu texto, “camponês” significa assalariado rural. Ora, isto não só determinará divergências na interpretação da direção do movimento, mas ainda em suas finalidades (Reforma Agrária) e em suas relações com o Estado. Assim, que tenha havido o I Congresso é fato irrecusável, mas que representações suscita ele e por quê?

Exemplos desse tipo poderiam ser multiplicados indefinidamente pois constituem a história das lutas políticas e ideológicas do período. Qual o resultado, por exemplo, de se considerar o fato do cambão e do mandonismo como provas da existência de feudalismo no Brasil, ou, ao contrário, considerá-los formas específicas da dominação capitalista no campo brasileiro? Como tais, os fatos do cambão e do mandonismo possuem objetividade, mas sua interpretação diferenciada implicará na modificação global da representação do processo econômico e politico. Se são feudais, cabe fazer a revolução democrático-burguesa; se são capitalistas, cumpre desencadear a revolução socialista. No primeiro caso, a aliança com a burguesia nacional progressista é indispensável; no segundo, impossível. Qual o resultado, por exemplo, da defesa de uma “frente nacional” e a de uma “frente politico popular”? Ou de uma “frente única”, como propõe o PCB e uma “frente politico”, como propõem AP e POLOP? Na primeira, feita a aliança das classes, o Estado governa em nome do povo e da nação; na segunda, o povo (entenda-se: sua vanguarda) escolhe seus próprios dirigentes que governam em seu nome e em seu interesse próprio.

Ao focalizar alguns aspectos dos Cadernos sem articulá-los aos fatos, não estarei supondo que os primeiros não possuam bases empíricas, mas apenas tentando captor como estas se encontram investidas de sentido pelo discurso. Assim, por exemplo, em todos os Cadernos a Reforma Agrária é defendida como condição do desenvolvimento nacional autônomo e como justiça social. Em todos os Cadernos (com exceção de uns poucos que não se referem ao assunto), é vinculada ao processo revolucionário em curso no país. Assim, o caderno dedicado ao assunto — O que é a Reforma Agrária? — afirma: “Estranha-se que a Reforma Agrária, há tanto debatida, merecendo o beneplácito da maioria do povo, não se concretize. É que, até agora, a luta pela Reforma Agrária tem sido travada essencialmente no asfalto, em forma de discussões acadêmicas de intelectuais e políticos progressistas. Os verdadeiros interessados, os camponeses sem terra, os parceiros, os arrendatários os assalariados rurais estavam, praticamente ausentes do debate […]. Nos últimos anos, com o surgimento da ULTAB, das Ligas Camponesas no Nordeste e das Associações dos Sem Terra no Rio Grande do Sul, a luta de classes no campo evoluiu para um estágio superior. Essas organizações, despertando no camponês o espírito associativo, politizando-o, dando-lhe consciência de sua força e de seus direitos, constituem-se na base política sem a qual nunca chegaremos Reforma Agrária […]. É evidente que, alcançando o objetivo de associar a maioria dos camponeses sem terra existentes no Brasil, constituir-se-ão os mesmos em força política tão poderosa que ninguém mais tentará obstar a Reforma Agrária radical. É por isso que colocamos, entre os meios de alcançar a Reforma Agrária, em primeiro lugar e como fundamental, a organização e politização dos camponeses”.

Ora, o que propõe o Plano Trienal? Uma reforma agrária que racionalize a distribuição muito desigual das terras porque essa desigualdade não é satisfatória para atender as necessidades do novo estágio do desenvolvimento econômico, além do regime existente ser anacrônico para o aumento da renda da terra e da produtividade agrícola. Em suma, no Plano Trienal, a reforma agrária é um recurso técnico para racionalizar a produção conforme os moldes e as exigências contemporâneas do capitalismo. Por que, então, a esquerda faz dessa bandeira um tema privilegiado da revolução? E por que a direita se volta furiosamente contra a “comunistização” do regime que a propõe? Numa palavra, por que uma reforma aparece como revolução? Uma primeira resposta pode ser sociológica e histórica, isto é, tomar como referência a estrutura agrária brasileira e os jogos das classes. Uma outra resposta, porém, pode ser encontrada pela análise dos discursos dos Cadernos, isto é, pelo modo como a revolução é neles definida, pela constelação de ideias que informam a de reforma agrária de tal modo que, independentemente dos fatos, ela apareça como condição revolucionária ou como revolução em curso. Em outras palavras, a montagem do ideário e das representações determina o modo de representação da reforma agrária.

Em todos os Cadernos, sem nenhuma exceção, a tônica é a luta antiimperialista. Quem, na época, se refere ao imperialismo fala de uma realidade muito palpável: a presença maciça do capital estrangeiro, o FMI, a USAID, o Ponto IV, a Aliança para o Progresso, o IBAD, o IPES, a violência americana contra Cuba e a América Central, a política Lincoln Gordon—Roberto Bob Campos Fields, para não falar na atuação da CIA. Embora a ingerência americana seja interpretada, anos mais tarde, como intervenção concertada do capital internacional sob direção do capital financeiro, isto é, como imperialismo propriamente dito, na época este é interpretado como intervenção de nações estrangeiras sobre a nação brasileira, isto é, os Cadernos são guiados por uma representação nacionalista do imperialismo que os fatos confirmam e afirmam. Enganada ou não quanto ao conceito exato de imperialismo, a representação se refere a acontecimentos que não poderiam ser negligenciados. Sem eles não é possível compreender, por exemplo, as dificuldades do governo Arraes e a situação de Pernambuco. Aqui, a reforma agrária começou a acontecer por iniciativa das Ligas e Sindicatos, isto é, com a invasão das terras; as reivindicações de voto ao analfabeto, garantias de representação sindical, reforma da constituição, corriam pelas praças; o método Paulo Freire, alfabetizando adultos em 40 horas e de modo politizado, encontrava o maior sucesso. Em Minas, operações militares, como a “Poppeye”, eram preparadas para “cuidar” de Arraes e de seu estado. Porém, muito mais eficiente foi a política de Lincoln Gordon com suas “ilhas de sanidade administrativa”, tática dos Estados Unidos distribuindo vultosos recursos para os governadores “fieis ao ideal do mundo livre” e que lhes permitia realizar (ou prometer) obras públicas, sensibilizar com suas realizações “pacíficas” uma classe média aterrorizada com o “perigo vermelho”, além de fornecerem recursos bélicos às suas forças militares e paramilitares para que reprimissem movimentos sociais no campo e na cidade. Arraes ficou encurralado. Todavia, a ênfase nesses fatos, que deixam por conta do imperialismo todo o evento, pode deixar na sombra um problema essencial, isto é, os limites da política populista que usa o Estado para mobilizar e satisfazer bases populares de apoio ao governo, de sorte que no momento em que os recursos legais e financeiros se esgotam, o governante populista entra em derrocada. Dessa maneira, no começo dos anos 60, a imagem do imperialismo era e não era real, como era e não era real a imagem do perigo comunista — não só o exemplo de Cuba estava à mostra, como também “o crescimento da participação popular ameaçava atingir, nos anos de 1962 e 1963, as próprias bases do poder, com as grandes greves operárias, as invasões de propriedades agrárias e os primeiros sinais de insubordinação nas Forças Armadas”, como escreve Weffort.

Porém, essas imagens não eram verdadeiras ou falsas dependendo de quem as empregasse ou da posição ocupada pelos protagonistas históricos, mas sim, de maneira mais profunda, porque enquanto imagens obscureciam o imperialismo e o comunismo. Seu modo de aparecer social recobria sua forma de efetuação real e possível. Esse fenômeno, aliás, não é inusitado e possui até mesmo um nome: ideologia.

Os Cadernos do Povo Brasileiro são heterogêneos, tendo em comum apenas a intenção didática. E mesmo esta não é entendida de igual maneira por todos os autores, alguns trabalhando com definições e postulados, outros procurando explicitar a natureza específica de seu objeto.

Há Cadernos de estilo informativo (Quem faz as leis no Brasil?, Como agem os grupos de pressão?, O que foi o tenentismo?, O que é reforma agrária?, Como planejar nosso desenvolvimento?, Salário é causa de inflação?, Como são feitas as greves no Brasil?). Outros são doutrinários e programáticos (Quem é o Povo no Brasil?, Por que os ricos não fazem greve?, De que morre o nosso povo?, Por que há analfabetos no Brasil? Vamos nacionalizar a indústria farmacêutica?, Qual a política externa adequada ao Brasil?). Alguns são de combate direto (Quem dará o golpe no Brasil?, Quem pode fazer a Revolução no Brasil?, Quem são os inimigos do povo? Como atua o imperialismo ianque?). Enfim, outros são histórico-panfletários (Como seria o Brasil Socialista?, Desde quando somos nacionalistas?, Que é a revolução brasileira?, Revolução e Contra-Revolução no Brasil?, A Igreja está com o povo?).

Variando na concepção pedagógica e no estilo, todos os Cadernos operam com quatro ideias que, na maioria deles, funcionam como axiomas (às vezes, quase como dogmas): a definição do povo e de sua vanguarda, a definição da nação e da luta antiimperialista, um dos tópicos principais desta última sendo a reforma agrária, a definição do lugar do Estado como promotor da transformação histórica iniciada pelas massas, e a ideia de revolução.

Há Cadernos que não se referem aos quatro pontos, como é o caso de Desde quando somos nacionalistas?, de Barbosa Lima Sobrinho, ou o de A Igreja está com o povo?, além de Cadernos que a eles se referem, porém de modo diverso, como é o caso da relação com os Estados Unidos em O que são as Ligas Camponesas?, Julião narrando com entusiasmo a aprovação das Ligas pelos irmãos Kennedy. Também não há plena concordância sobre os quatro pontos entre todos os autores. Assim, por exemplo, Quem é o Povo no Brasil?, de Nelson Werneck Sodré, será contraditado por Quern são os inimigos do Povo?, de Theotônio dos Santos, e por Quem pode fazer a revolução no Brasil?, de Bolívar Costa — este diria que o primeiro participa de uma concepção equivocada sobre o processo político brasileiro, prejudicial às massas, enquanto Theotônio talvez o colocasse entre os “inimigos do povo no seio do povo”, isto é, como intelectual que “trai” o povo porque aceita determinadas alianças de classes prejudiciais à revolução.

Também não concordam os autores na questão do Estado e, particularmente no que se refere aos governos JK e JG, embora todos atribuam ao Estado a mesma função transformadora. Assim, por exemplo, Franklin de Oliveira, em O que é a Revolução Brasileira?, além de criticar o Plano de Metas, critica violentamente Hélio Jaguaribe, ideólogo do desenvolvimentismo. Helga Hoffmann, Theotônio dos Santos e Bolivar Costa criticam o governo JG. A primeira, porque o Plano Trienal não procura beneficiar realmente o povo; o segundo, porque critica o governo populista; o terceiro porque critica o nacionalismo trabalhista e o de esquerda. Em contrapartida, Maria Augusta Tibiriçá, escrevendo sobre a nacionalização e estatização da indústria farmacêutica, tece loas aos ministros nacionalistas de todo o período, de JK a JG.

Subjacente às divergências tópicas entre os autores, encontra-se uma que não só atravessa todos os Cadernos, mas que é ainda a tônica das diferenças políticas do período: revolução socialista ou democrático-burguesa? Portanto: movimento proletário com aliados de classe média, ou aliança de trabalhadores, classe média intelectual, pequena burguesia e burguesia nacional progressista? Donde: frente política popular ou frente única nacional? Enquanto Werneck Sodré defenderá a revolução democrático-burguesa, Franklin de Oliveira defenderá a democrático-popular, de estilo chinês. Theotônio dos Santos terminará seu Caderno com o brado: “O Povo no poder, na lei ou na marra!”, e Bolívar Costa dirá que somente operários, camponeses, intelectuais e estudantes progressistas podem fazer a revolução. Paulo Schilling considerará a revolução inevitável, porém a questão a ser discutida, afirma, não será entre revolução ou reforma, e sim entre revolução violenta ou pacífica, optando ele próprio pela segunda. É interessante, no tema da revolução, observar que a maioria dos Cadernos, com raras exceções, não o discute sem referir-se a inúmeros autores que justifiquem e legitimem as posições adotadas pelos “cadernistas”. Seria curioso, noutra ocasião, fazer um levantamento dessas fontes bibliográficas e acompanhar as diferenças de inspiração dos Cadernos.

Finalmente, todos os Cadernos são construídos sobre dicotomias, antinomias e antíteses que, retoricamente, são apresentadas como “contradições”, sendo porém tão imóveis e positivas que não chegam a ultrapassar o contraponto. Frequentemente, nos quatro temas apontados, e particularmente no tema do povo e no da nação, assumem uma feição maniqueísta, os valores e qualidades positivos sendo atribuídos ao povo e à nação, enquanto os negativos são imputados ao antipovo e à antinação. É possível que a hostilidade crescente da direita levasse os Cadernos a esse maniqueísmo, deslizando dos dados empíricos para os arquétipos e destes para os estereótipos. O povo é apresentado como essencialmente bom, ordeiro, pacífico, sedento de justiça, disposto a organizar-se porque portador do sentimento de comunidade e de coletividade, e a nação é apresentada sob a forma do sentimento nacional e do direito à autodeterminação contra forças poderosas e maléficas que a empobrecem e enfraquecem. O jogo de imagens se estabelece, assim, entre os amigos do povo e da nação e seus inimigos, jogo decisivo na economia dos Cadernos onde o povo está representado por seus amigos, os intelectuais e os estudantes, isto é, por sua vanguarda.

Mesmo quando alguns Cadernos analisam a história, a sociedade e a política brasileiras, não conseguem fugir do tom normativo, axiomático e maniqueísta. A impressão deixada por eles é a de uma pedagogia autoritária que se define como progressista para o progresso. Bem, no primeiro seminário fiz algumas observações sobre o lugar ideológico do tema do progesso…

I — O Povo

“Para se definir o conteúdo do conceito de povo é preciso encará-lo segundo uma situação histórica determinada e segundo as condições concretas de cada caso, tomando como base a divisão da sociedade em classes. […] Compondo-se de classes, camadas e grupos diferentes, o povo apresenta contradições internas. Admiti-lo como formando uma unidade é pura ilusão. […] O critério justo sobre o conceito de povo ajuda a compreender o papel das massas na história, particularmente na fase atual e situa devidamente o complexo processo de desenvolvimento por que passam países como o Brasil, em que profundas mudanças estão ocorrendo e em que o mais importante aspecto do que é novo está, precisamente, na presença do povo na vida política […]. O avultamento do problema democrático deriva de que a manutenção das liberdades democráticas permite o esclarecimento politico, e o esclarecimento politico permite a tomada de consciência pelo povo, e a tomada de consciência pelo povo permite a execução das tarefas progressistas que a fase histórica exige […]. Quais as tarefas progressistas e revolucionárias desta fase histórica, então? Libertar o Brasil do latifúndio e do imperialismo […] Quais as classes sociais interessadas na gigantesca tarefa progressista e revolucionária com que nos defrontamos? Parte da alta, média e pequena burguesia, a parte de cada uma delas desligada de associação, compromisso ou subordinação ao imperialismo; o proletariado, o semiproletafiado, o campesinato, com a participação ativa na medida da consciência política que apresentem seus componentes. Povo, no Brasil, hoje, assim, é o conjunto que compreende o campesinato, o semiproletariado, o proletariado; a pequena burguesia que tem seus interesses confundidos com o interesse nacional e lutam por estes. É uma força majoritária inequívoca. Organizada é invencível […] Estão excluídos do povo, agora e sempre, enquanto classes, os latifundiários, a alta burguesia e a média comprometidas com o imperialismo, como os elementos da pequena burguesia que o servem. É o conjunto das classes, camadas e grupos sociais que compõem o povo que representa, assim, o que existe de nacional em nós” (Nelson Werneck Sodré — Quem é o povo no Brasil?, pp. 21, 33, 35, 37, 38).

“O povo tem muitos inimigos, mas não pode combatê-los porque os desconhece. Esses inimigos lhe dão uma ideia falsa dos problemas do país e procuram se esconder da opinião pública. O povo fica, assim, desorientado e não sabe se conduzir adequadamente na vida de cada dia, no trabalho, na casa e na participação política, de maneira a lutar para vencer seus inimigos […] Aos homens do povo está reservada a maior tarefa do país: levar avante nosso desenvolvimento, eliminar a miséria, o analfabetismo, as doenças de origem social, o desemprego, a incultura, a corrupção, os crimes bárbaros. Essa tarefa é sua, portanto, meu caro leitor […] Nosso estudo e nossa dedicação intelectual não terão sentido se você não disser não ao mundo que aí está, resolvendo-se a conhecer os seus inimigos, lutar contra eles e derrotá-los definitivamente […] De um lado, as forças do progresso, a maioria esmagadora do povo. Do outro, as retrógradas e antipopulares […] Como se decidirá essa luta? Os homens do povo desejam a paz, são coletivistas e solidários; os homens do poder são individualistas e arraigados ás suas posses. Os trabalhadores e seus aliados não têm posses a perder. Quern escolherá, pois, o caminho a ser seguido pelo processo inevitável de libertação nacional serão os homens da classe dominante. Se usarem a violência para reagir contra os avanços populares, obrigarão o povo a recorrer à violência. O que não se pode é deixar inocentemente o povo brasileiro nas mãos dos algozes. O povo deve estar preparado para todas as eventualidades, ter confiança que lhe é dada pelo exemplo de que todas as grandes revoluções deste século foram vitoriosas e pela certeza que a lógica da História está de seu lado” (Theotônio dos Santos — Quais são os inimigos do povo?, pp. 11, 13, 121)

II — A Vanguarda

“O povo, entretanto, agora como em fases anteriores, divide-se em vanguarda e massa. Massa é a parte do povo que tem pouca ou nenhuma consciência de seus próprios interesses, que não se organizou ainda para defendê-los, que não foi mobilizada ainda para tal fim. Faz parte das tarefas da vanguarda do povo, consequentemente, educar e dirigir as massas do povo” (Nelson Werneck Sodré — op. cit. , p. 38).

“Só o povo, guiado por seus setores mais avançados — os trabalhadores, os camponeses e os estudantes — é capaz de combater até as últimas consequências a ameaça de golpe, porque o golpe, como se indicou, acaba sendo sempre contra as forças populares e jamais inteiramente contra a minoria dominante […]. A vanguarda aguerrida do povo […]. É necessário que a vanguarda saiba mostrar ao povo sua insuperável vantagem moral sobre seus inimigos. Os inimigos do povo trabalham contra o curso da história, a qual nos diz que, quando o povo luta, é fatal que termine vencedor, pois luta pela justiça, pelo progresso e tem a maioria da humanidade ao seu lado […] Todo o povo há de compreender que é ele quem vencerá a luta, porque necessariamente será levado a lutar. E aqui tocamos noutro ponto que a vanguarda não deve nunca deixar de explicar ao povo: que a sua vitória é certa não apenas porque a causa da justiça é a sua causa, mas fundamentalmente porque se decidiu a lutar pela justiça e que o fracasso final dos inimigos do povo é inevitável não apenas porque se batem pela injustiça, mas porque encontram pela frente um adversário lutando pela justiça […]” (Wanderley Guilherme dos Santos — Quem dará o golpe no Brasil?, pp. 24, 79, 80).

“A futura divisão internacional do trabalho, sem imperialismos, conseguirá a superação do nacionalismo-etapa no universalismo-meta […] Estas são algumas linhas fundamentais que convêm à política externa brasileira. Não tem importância que os derrotistas digam tratar-se de um sonho. A vanguarda da intelectualidade brasileira já possui meios para dialogar com o povo, a que pertence e ao qual deverá servir. Sua mensagem germinará, cedo ou tarde” (Wamireh Chacon –Qual a política externa conveniente ao Brasil?, P. 92).

“Integrados por organizações voluntárias das cidades e dos campos, elementos progressistas da classe média, pequenos proprietários, que produzem para o consumo interno e representantes da burguesia industrial brasileira não associada ao imperialismo, tais grupos deverão, reunidos, pressionar a cúpula dirigente a fim de que se concretizem as reformas estruturais que a Nação carece e se tornem realidade as ficções jurídico-formais no campo do ensino” (Sérgio Guerra Duarte — Por que existem analfabetos no Brasil?, P. 70).

“De tudo o que vimos, podemos concluir pela absoluta necessidade de que o povo liderado por uma vanguarda consciente, composta de operários, camponeses, estudantes e intelectuais, desmoralize definitavamente todas as falsas soluções […] Para que isto se efetive, é preciso arrancar a máscara dos inimigos do povo, os falsos cordeiros, cuja pele esconde o lobo faminto de carne humana […]” (Theotônio dos Santos, op. cit. , p. 28).

III — O Nacionalismo e o Imperialismo

“…há nacionalismos rudimentares que se manifestam mesmo antes da criação das nações, de que são intérpretes e sentinelas vigilantes […] batedeiros e vanguardeiros, anunciando a força que há de vir […]. Formam-se com a própria substância do nacionalismo, mas ainda sem uma perfeita consciência de seus contornos e sem uma confiança definida nos seus fundamentos […] Entendido dessa forma, o nacionalismo se caracteriza não pela presença de uma nação ou de uma consciência nacional, pois que ele anuncia e prepara a formação dessa nação e dessa consciência […] o nacionalismo pressupõe ou inclui a presença de uma nação, já constituída ou em andamento, existente ou futura […] A substância, pois, do nacionalismo é um antagonismo de interesses ou de ideais […] Mas o que precisamos deixar claro é que, se o nosso nacionalismo nos levou a tomar atitudes anti-holandesas, antilusitanas, antibritânicas, antigermânicas, antinipônicas, a verdade é que sempre entendemos que essa reação combatia uma influência, não um povo. Um imperialismo, não a nação de que ele possa promanar […] O que vem evidenciar que o nacionalismo não é um sentimento ou um movimento, improvisado, repentino, singular ou extravagante. É antes uma constante em nossa história, o acompanhamento apaixonado de todas as fases da tormentosa vida nacional e da intrépida afirmação da Pátria brasileira. Seria de estranhar que o nacionalismo não estivesse presente nesta hora tão difícil, em que o Brasil luta ainda pela sua emancipação econômica. Como soube lutar ontem por sua independência política. Como lutou pela independência religiosa […] Falar, pois, de nacionalismo, dentro do Brasil, exigindo a presença de aspas, ou as cerimônias do exorcismo, é ignorar o próprio Brasil, toda a nossa história. O Brasil que sempre soube ser fiel à afirmação de sua personalidade nacional, aos imperativos de sua dignidade como nação e como povo” (Barbosa Lima Sobrinho — Desde quando somos nacionalistas?, pp. 10, 11, 124, 125).

“Do que expusemos acima e do muito que já tem sido dito por inúmeros autores, nacionais no que se refere ao Brasil, e estrangeiros quanto à América Latina, podemos concluir, pesarosos, de que nosso Pals, assim como as nações coirmãs da América Latina, são os financiadores que, em sua miséria, enviam anualmente parcelas maciças de suas riquezas para financiar o “colosso revolto do Norte”. Ainda cabe aqui mencionar os esforços dos economistas a soldo dos monopólios internacionais que, a despeito dos fatos irrefutáveis, procuram engodar e iludir a boa fé de senadores e deputados perante a Comissão Mista que estuda o Projeto de Remessa de Lucros. Esses cavalheiros, afastados de toda realidade brasileira, completamente despidos de qualquer respeito pelos seus concidadãos, teimam em repisar a “importância” na penetração imperialista no Brasil. Exortamos todos os trabalhadores, os estudantes e o povo em geral a unir todos os seus esforços em defesa do Brasil e exigir o banimento da nossa terra de todas as grandes empresas dos monopólios do imperialismo ianque” (Sylvio Monteiro — Como atua o imperialismo ianque?, p. 195).

“Este aspecto é fundamental, pois representa um dos truques do imperialismo e, no caso do Brasil, dos seus porta-vozes entreguistas (entreguismo definido como derrotismo nacional diante dos interesses estrangeiros), alegar a superação das soberanias. Sem dúvida, não existem Nações autárquicas, porém uma coisa é interdependência mutuamente compensadora e outra a negação do self-government sob pretexto de que na metrópole se sabe zelar melhor pelos interesses das “colônias”. O critério para saber se a interpendência com tal ou qual país, convém, depende mais das filiais do que da matriz […] O máximo que poderíamos obter de Washington, nas suas regras de jogo, seria a posição de sócio menor, com uma limitada área de influência na América Latina. Não é isso que almejamos. Devemos pretender algo maior e mais nobre: em primeiro lugar, liberdade para nossa própria Revolução Brasileira, cujos rumos serão ditados pelo nosso povo, e, em segundo lugar, nossa participação na construção do mundo novo, onde se implantará uma produtiva e equitativa divisão internacional do trabalho e onde se expandirá ao máximo o domínio humano sobre a Natureza, com seus frutos igualitariamente distribuídos” (Wamireh Chacon, op. cit., pp. 12, 87).
“De nossa parte, compreendemos como Laboratório Nacional aquele que é constituído de capital e direção nacionais e que não envia lucros, dividendos, etc., para o estrangeiro […] Nossa indústria vive sufocada pela sua dependência aos laboratórios estrangeiros no fornecimento da matéria-prima. O próprio governo deve tomar a si o encargo de instituir, no Brasil, fábricas de matérias-primas para os laboratórios nacionais ou importá-las inclusive de países fora da área do truste […] Com ajuda financeira, com a criação de um Centro de Pesquisa, já de muito beneficiaria nossa indústria. Pleiteamos mais, porém, aplaudimos tudo que vier em seu auxílio na hora em que ela se asfixia. Louvamos os esforços do presidente do Grupo de Trabalho, Juvenille Pereira, conhecedor do assunto e de firmes convicções nacionalistas […] Remédio é bem público cuja indústria deve ser estatal C..) Deveriam os laboratórios ser estatizados como de utilidade pública […] Urge também, numa hora de profundo nacionalismo, não somente defender a autonomia administrativa de nossa indústria especializada, mas também incentivar a pesquisa científica no setor de química a fim de permitir à indústria nacional a criação de novos agentes terapêuticos …) Urge a mobilização dos patriotas para salvar o que resta e desenvolver, de fato, a indústria nacional. Para essa situação, um só remédio: NACIONALIZAÇÃO” (Maria Augusta Tibiriçá Miranda — Vamos Nacionalizar a Indústria Farmacêutica?, pp. 57, 60, 61, 65, 68, 69, 70, 72).

IV — A Revolução

“O que diferencia a tarefa progressista de hoje das tarefas progressistas do passado é a amplitude de que se reveste sob as condições atuais […] O novo processo politico está justamente em que a classe dominante minoritária ou as classes dominantes minoritárias — no caso, principalmente latifundiários e uma parte da alta burguesia — não será substituída por uma nova classe dominante minoritária, mas por todo o conjunto que compreende o povo. Isto é, não será possível à parte da burguesia que se integra ao povo realizar a revolução com o apoio de todo o povo e, conquistado o poder, alijar o restante do povo da participação nele. Em termos políticos: trata-se de uma revolução democrático-burguesa, mas de tipo novo, em que a componente burguesa não terá condições para monopolizar os proventos da revolução. As possibilidades de operar o desenvolvimento material e cultural do Brasil para o proveito apenas da burguesia estão encerradas” (Nelson Werneck Sodré — op. cit., pp. 38, 39).

“A formação do sistema mundial socialista dividiu em dois o mercado mundial […] Esse fato histórico, irrecusável e irreversível, veio trazer à revolução democrático-nacional novo sentido, diverso daquele com que se apresentava até o final da II Guerra Mundial. As revoluções democrático-nacionais já não podem mais ser revoluções burguesas. Só podem ser, agora, revoluções socialistas. Que devem ser, então? E por que não podem ser mais revoluções burguesas? Não podem ser revoluções burguesas, no fundamental, porque o pressuposto do capitalismo deixou de existir (desintegração dos sistemas coloniais) — isto em primeiro lugar. Em segundo lugar, porque as revoluções nos países empobrecidos são verdadeiras corridas contra o tempo (a luta de classes se dá agora como luta entre nações, de nação rica sobre nação pobre) […] Que novo tipo de revolução democrático-nacional é este, que surgiu como uma diátese do mundo de pós-guerra? Esse novo tipo de revolução democrático-nacional, que Mao Tse-Tung chama de a nova democracia: é a revolução democrático-socialista. As revoluções socialistas são a fatalidade incoercível de nosso tempo. Sendo as revoluções democrático-nacionais, antes de tudo, pela sua própria natureza, revoluções sociais, não podem — como agudamente observa Paul Baran — deixar de assumir, de imediato, ao lado do caráter antifeudal, anticolonialista e antiimperialista, caráter socialista. […] O Brasil, no último período presidencial, ao tentar sua revolução nacional, optou pela Revolução Capitalista […] O Capitalismo é hoje a Contra-Revolução […] o nacionalismo é a ideologia do desenvolvimento, mas do desenvolvimento da burguesia. O socialismo é a ideologia do desenvolvimento, mas ideologia dos que trabalham e constroem a riqueza do país” (Franklin de Oliveira — Que é a Revolução Brasileira?, pp. 80, 81, 84, 86, 87, 94, 95, os grifos são do autor).

“Existe uma opção real, objetiva, no momento atual e é em função dela que os homens e os movimentos devem ser caracterizados. Essa opção é a que coloca, de um lado, aqueles que consideram desejável alterar a estrutura fundamental do país para que as exigências sociais sejam satisfeitas, e de outro, os que consideram que não se deve alterar aquela estrutura, quer dizer mantê-lo como nação capitalista, dominada pelo imperialismo. É claro que optar pela segunda alternativa implica em resolver os problemas do povo em prejuízo do povo” (Wanderley Guilherme dos Santos — op. cit. , p. 93).

“Admitir que o regime tenda realmente para a democratização, em favor do povo, é escolher um caminho que dificilmente conduzirá à revolução popular. Será sustentar indefinidamente uma luta reivindicatória que, cedo ou tarde, perderá o sentido por não levar a nada de concreto, pois a burguesia, para prolongar o domínio, muitas vezes estimula os movimentos reivindicatórios desde que deles possa tirar proveito de natureza política. Por isso os setores das vanguardas populares que incorporassem semelhante tese à sua estratégia política, estarão, em última análise, erguendo obstáculos à Revolução Brasileira, […] Certos setores de nossas vanguardas populares consideram possível, dentro dos quadros do atual regime, a instauração de um governo nacionalista […] De onde, pois, poderá vir esse governo nacionalista, se a burguesia ligada aos interesses nacionais não tem condições para manter um governo seu, independente? […] A verdade é que o Brasil encontra-se atualmente tão minado pelo capital colonizador que a adoção por este último de posições “nacionalistas” já não merece espanto […] Tudo isso leva a uma conclusão: não é possível, dentro dos quadros do atual regime, um governo nacionalista burguês, representativo de nova etapa no desenvolvimento do país. As vanguardas populares que aceitarem semelhante tese fazem inconscientemente o jogo da contra-revolução. Podem fazer a revolução no Brasil as vanguardas do povo que, conscientes dessa nova fase do processo de espoliação do país pelo capital colonizador, souberem dirigir as frentes revolucionárias de massas populares no sentido da instituição de um governo democrático-popular, isto é, um governo em que os operários, os camponeses, a classe média e outros setores do povo trabalhador, detenham de fato o poder para implantarem as transformações exigidas pela sociedade brasileira” (Bolívar Costa

— Quem pode fazer a revolução no Brasil?, pp. 78, 79, 81, 82, 83, 85, 87).

Uma análise detalhada dos Cadernos poderia mostrar que o contraste das posições defendidas chega a um resultado curioso: o debate, enquanto tal, é democrático, mas cada um dos autores não parece sê-lo o bastante. De modo geral, os textos nunca operam demonstrativamente, mas oferecem conclusões cujas premissas o leitor desconhece. Via de regra, essas conclusões vêm apoiadas pela apresentação de fatos em favor da tese que será defendida, mas de tal modo que os fatos operam como ilustração da teoria apresentada e não como sua fundamentação empírica ou prática. Aliás, uma leitura minuciosa revelaria que, em muitos textos, os exemplos, os históricos, os relatos e os documentos embora venham antes das teses, na realidade vêm depois delas, a ordem de exposição dando ao leitor a ilusão da fundamentação. A escolha do exemplo, dos autores, do relato histórico é determinada pela conclusão a que se deseja chegar. Isto dá à quase totalidade dos Cadernos um estilo impositivo e, por vezes, autoritário. Ora, considerando-se que sua intenção é pedagógica, percebe-se que sua pedagogia é antes persuasão do que discussão e esclarecimento. Esse aspecto talvez seja inevitável porque os autores não dizem explicitamente de onde e a partir do que estão falando, apresentando-se como se fossem portadores de uma fala universal cujas premissas são evidentes. A particularidade dos discursos, uma vez dissimulada, cada um deles se enuncia como conclusão da verdade. Nessa perspectiva, o aspecto persuasivo domina até mesmo os instantes informativos dos textos.

Em certo sentido, esse resultado é também inevitável em decorrência da concepção que os autores possuem do destinatário. Sendo Cadernos do Povo Brasileiro, o povo é, ao mesmo tempo, objeto e destinatário dos discursos. Ora, enquanto objeto, é apresentado pelos textos como inconsciente, alienado, passivo, desorganizado, em suma, figura acabada da falsa consciência carecendo por isso de uma vanguarda que o oriente e conduza. Essa imagem faz com que os autores se dirijam ao povo como dirigentes dele, uma vez que na definição de vanguarda todos são unânimes em incluir os intelectuais e, portanto, a si mesmos. A definição da vanguarda, como os textos citados revelam, a coloca na qualidade de sujeito (do conhecimento, da ação, da decisão prática), enquanto o povo permanece passivo, conduzido. Assim, a concepção de povo e de vanguarda acabam determinando o estranho estilo pedagógico-persuasivo dos Cadernos. A concepção progressista que os informa também não é alheia a esse estilo. O jogo entre alienação (popular) e racionalidade (vanguarda) ou entre a falsa consciência (do povo) e o conhecimento científico (da vanguarda) se realiza num campo de Aufklarung, no qual o avanço das luzes no mundo, isto é, o progresso, depende da ação pedagógica de quem já as possui. Postulada a alienação popular, está postulada também a conscientização vanguardista, sem que, no entanto, os autores se dêem ao trabalho de explicitar a necessidade dessa relação que lhes parece óbvia e que, na realidade, foi responsável pela representação do “povo”. Em boa medida, os Cadernos permanecem fiéis à concepção feuerbachiana do jovem Marx (“a teoria penetra na matéria passiva”) e da consciência vinda de fora do Lênin de Que fazer?

A tônica antiimperialista e nacionalista, que parece não estar presente em alguns textos que, aliás, criticam o nacionalismo, como é o caso de Franklin de Oliveira e de Bolivar Costa, sustenta-se numa concepção etapista da revolução. Porém, mesmo os que não defendem tal ideia, preferindo a democracia popular socialista, não fogem ao quadro de uma definição nacional da revolução, mesmo que não nacionalista. Bolivar Costa, o único a demonstrar suas teses e conclusões, é também o único a usar frases e fórmulas no condicional. Os demais escrevem no indicativo e no imperativo porque afirmam a adequação do que escrevem às leis objetivas e científicas do real. Essa suposição, cuja origem conhecemos desde que se cristalizou o “marxismo científico”, também explica o estilo impositivo dos Cadernos, uma vez que neles não falam os autores, mas as leis da história.

Assim, a concepção do objeto-destinatário, das vanguardas e das leis objetivas do real faz com que os Cadernos apresentem entre si uma estranha semelhança: nenhum deles traz um único documento, um único depoimento (salvo o de Julião sobre as Ligas) onde o próprio povo fale, nem mesmo um único texto que pudesse ser considerado uma fala nacional. Desejos, ideias, modos de ser, práticas, ações, aspirações, tudo é imputado ao povo e à nação, sem que nenhum deles apareça de viva voz. Os Cadernos constroem o popular e o nacional, embora tenham a pretensão de estarem a expô-los. Acontece aqui o que observei no primeiro seminário: um deslizamento do discurso que se apresenta como sobre o povo e a nação, torna-se do povo e da nação, porque discurso de suas vanguardas, e termina como discurso que diz o povo e diz a nação. Destinatários ausentes do texto que os representa, povo e nação são ideias, teses, axiomas e dogmas.

Os Cadernos se instalam em dois registros simultâneos: o da informação e o do programa de ação (não emprego os termos teoria e prática porque não é o caso). Embora todos eles se esforcem para usar uma linguagem marxista (exceção para Desde quando somos nacionalistas? e A Igreja está com o povo?), fazendo aparecer palavras como dialética, mediação, contradição, há exterioridade entre o vocabulário e o conteúdo dos textos, para não falar da forma. O discurso nos diz que há dialética, mediação, contradição, porém não as vemos operando na constituição dos objetos, das situações históricas e de seus agentes. Povo-popular e nação-nacional são entidades positivas e abstratas cuja existência, necessidade e movimento são postulados pelos textos, mas não expostos por eles. Uma linguagem essencialista tenta passar por dialética da realidade, chegando, no melhor dos casos, à esfera do entendimento abstrato, embora nem sempre sequer o consiga, pois não chega a formular sínteses ou a determinação completa dos objetos e menos ainda juízos reflexionantes. De modo geral, permanece entre uma imagem e um conceito vindo da teoria marxista, a relação acabando por ficar externa e mecânica, uma vez que povo, nação, estado, revolução se colocam em movimento pela ação de um postulado: a vanguarda.

Quando entram no campo da história, os Cadernos operam com sequências temporais empíricas às quais são imputadas fins determinados pelas leis científicas e objetivas da história, sem que os autores nos digam quais são e como atuam essas leis. Quando entram no campo sociológico, operam com distinções ou dicotomias imóveis que redundam na formação de grupos de oposições entre as qualidades positivas do povo-nação, estado-revolução e as negativas do antipovo-antinação, antiestado-contra-revolução, qualidades que são atribuídas por acréscimo ou por privação de um dos lados da oposição. Quando entram no campo da política, apresentam a ação de modo normativo, como dever-ser que se realiza graças à consciência da vanguarda e à conscientização do povo-nação por ela. Enquanto a atividade dos adversários beira sempre a conspiração ou obedece a uma lógica de interesses capitalistas que só pode ser estancada pela tomada do Estado pelo povo-nação, estes têm sua ação determinada por um conjunto de postulados e regras teóricas, oferecidas pela vanguarda. Isso dá à maioria dos Cadernos um tom peculiar, que reencontramos no Manifesto do CPC, isto é a colagem de dois postulados que, por serem postulados, são incompatíveis: a necessidade incontornável das leis da história e a prática consciente da vanguarda revolucionária que força o povo-nação a cumprir tais leis. Porque lhes falta a reflexão da teoria e da prática, os Cadernos interpretam a afirmação de que a “liberdade é a consciência da necessidade” de modo mecanicamente curioso, ou seja, a liberdade é a consciência da vanguarda, a necessidade ficando por conta da classe dominante e do povo alienado. Em suma, os textos oscilam entre o determinismo da “lei objetiva” e o subjetivismo da vontade vanguardista. O procedimento que torna possível ajuntar “lei” e “consciência” é bastante simples, pois como o conteúdo e a forma das “leis objetivas” nunca são expostos, assim como não é exposto seu modo de constituição, há entre elas e a “vanguarda aguerrida do povo” total coincidência porque é esta última quem formula as primeiras e seu curso. Em última instância, a “conscientização” do povo-nação é apenas adesão aos imperativos da consciência da vanguarda. O que é compreensível, pois sendo a vanguarda representante dos “legítimos interesses do povo e da nação” e sendo ela uma parte do povo (sua parte consciente e ativa), a comunicação entre ela e ele é imediata, uma vez que constituem um conjunto único. Nenhum dos Cadernos explica qual é a origem da vanguarda, porque sua consciência e ação adiantam-se face às condições dadas nas quais o povo-nação se aliena, nem como e por que ela obtém o reconhecimento. Existe, simplesmente. Como a água, o ar e as pedras.

Creio ser por isso, afinal, que o debate travado entre os Cadernos é uma disputa entre eles na definição da linha justa de pensamento, de ação e de direção do povo e da nação, não carecendo de que estes se façam presentes, pois só se tornam ativos quando ativados pela consciência que lhes vem de fora, “quando a teoria penetra na massa, torna-se uma força material”.

* * *

O Manifesto do CPC, redigido em 1962 por Carlos Estevam Martins, se apresenta como declaração de princípios da vanguarda popular revolucionária no campo da cultura, pois o “CPC é o órgão cultural das massas” e “fruto da própria iniciativa, da própria combatividade criadora do povo”. Curiosamente, porém, o Manifesto não se dirige ao “povo”, mas elege um outro destinatário: o intelectual e o artista “alienados” que ainda não compreenderam que “os membros do CPC optaram por ser povo, por ser parte integrante do povo, destacamentos de seu exército no front cultural”. Visto que “ser povo” é uma opção, o Manifesto, deixando de lado o “povo”, entabula um diálogo inter pares com outros intelectuais e artistas, tendo como pano de fundo a cisão entre o bom e o mau artista, a verdadeira e a falsa arte, a alienação servil e a vontade consciente e livre. O critério dessas distinções é um só: a identificação do artista e do intelectual com o povo ou com as minorias dominantes. Ao povo, o Manifesto reserva uma definição, uma diferenciação interna e uma missão. É definido como “o novo na história”; diferencia-se em povo “fenomênico” (alienado, passivo, rude, tosco, imediatista, distraído vitalmente) e povo “essencial” (consciente, ativo, cultivado, comunitário); sua missão é a “passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade” quando puder ser “o autor politizado da pólis” criado pela vanguarda politico-cultural.

Montado sobre um conjunto de antíteses que se põem em movimento quando o artista alienado decide tornar-se um artista popular revolucionário, o Manifesto possui três traços principais: polêmica autojustificadora, caráter missionário do artista popular revolucionário, polêmica estética. Opõem-se: artista alienado das minorias e artista popular revolucionário das massas; arte alienada das e para as minorias e arte consciente da e para a maioria; elite e massa; forma e conteúdo; expressão e comunicação; qualidade estética e popularidade revolucionária; servidão e liberdade; arte do povo e arte popular revolucionária.

O primeiro modo de tratamento dessas oposições é o da polêmica autojustificadora do CPC e de seus artistas. Curiosamente, o Manifesto se vê a braços com um problema que tenta desqualificar considerando-o ilusório e servil, mas do qual não consegue desembaraçar-se: o da superioridade da arte “alienada”. A polêmica é travada com um interlocutor imaginário que põe em dúvida a qualidade e a liberdade da arte popular revolucionária do CPC. Percebe-se, porém, que o debate é interno, do intelectual e do artista do CPC consigo mesmo. Todo o empenho do Manifesto irá no sentido de inverter a situação supostamente defendida pelo artista “alienado”, mostrando a superioridade da arte popular revolucionária. Demonstra em primeiro lugar, que o artista alienado não goza de liberdade alguma, justamente porque está alienado, não percebendo a “falência histórica atual das estruturas sociais e econômicas”. Seu gosto “pequeno-burguês” pela forma, em detrimento do conteúdo, pela individualidade, em detrimento da coletividade, fazem com que vacile perante o público e perante si mesmo, oscilando entre o conformismo e o inconformismo que o coloca à margem da história e à espera do futuro incerto. Em segundo lugar, demonstra que a arte alienada é sórdida porque anestesia o público; é ilusória porque pretende a universalidade quando só pode ser particular, pois a minoria é a particularidade; é servil Porque o, artista se dobra às exigências da classe dominante. Finalmente, demonstra que o artista alienado é um idealista pequeno-burguês que, encerrado em sua subjetividade insignificante, acredita-se centro do mundo, como também acredita na autonomia da arte face à sociedade e numa história da arte como sucessão imanente de estilos. “Suas posições são assumidas em função das circunstâncias ocasionais de disposições subjetivas momentâneas e são expressões de um ponto de vista pessoal sobre a realidade, em lugar de emanarem de um ponto de vista de classe, da visão de mundo da classe explorada em luta por sua emancipação.”

Em contrapartida, o artista popular revolucionário será realmente livre — porque consciente das leis científicas e objetivas da história, contra as quais nunca se insurge —, eficaz — porque sua arte conscientiza o povo e transforma a sociedade — e verdadeiro — porque sua arte é feita sob o controle dos imperativos ideológicos do povo. “O supremo requisito de validez para a arte está na profundidade, na veracidade e no alcance histórico da visão de mundo que inspira e orienta a atividade criadora porque a justificativa e a própria condição de existência da arte está em seu poder de interpretar a vida, descobrindo-lhe o sentido […] Nossa arte se populariza porque repudia a métrica e a ótica do ego da arte alienada e ambiciona, ao contrário, intensificar em cada indivíduo a sua consciência de pertencimento ao todo social; busca investi-lo na posse dos valores comuns e das aspirações coletivas, consolidando assim sua inserção espiritual no conjunto dos interesses comunitários.”

À polêmica autojustificadora, vem acrescentar-se a definição das tarefas do artista popular revolucionário que o transformam num verdadeiro missionário, quase num mártir da cultura. Uma vez postulada a dependência da arte às condições materiais e como superestrutura, e visto que o artista vive em sociedade, fugirá de seu dever se não tomar consciência desses condicionamentos. O artista, portanto, encontra-se diante de uma opção radical: ou interfere decididamente no processo histórico como sujeito, ou aceita, alienadamente, ser objeto, matéria passiva ou amorfa. Fugindo da alienação da “arte pela arte” e do “alheiamento romântico” da subjetividade “idealistamente” encapsulada, o artista popular revolucionário opta pelo povo. Isto significa que o artista tem o dever de abandonar seu próprio mundo, valores e padrões para adotar os que não são os seus. Para tanto, precisa educar-se a fim de se transformar em “porta-voz dos interesses reais de uma comunidade”. Sua condição de arauto popular exige, em primeiro lugar, que se adapte às qualidades e aos defeitos da fala do povo para tornar-se representante dele; em segundo lugar, que se submeta aos imperativos ideológicos populares; em terceiro lugar, que sua arte privilegie a comunicação em lugar da expressão, o conteúdo em lugar da forma, pois o povo não entende nem aprecia a sofisticação formal e não se interessa pelo lado expressivo da arte; em quarto lugar, que pesquise a linguagem para conquistar o máximo de clareza possível, mas sem se deixar seduzir pela dinâmica imanente à própria linguagem, devendo buscar uma arte eficaz, pois a tarefa da arte popular revolucionária é “científica e objetiva” e não deleite subjetivo; em quinto lugar, que jamais se transvie ideologicamente esquecendo que a arte é apenas uma parte da superestrutura; e finalmente, que reconheça que a consciência é capaz de adiantar-se ao ser social e determinar o que é necessário para o povo, tendo como único juiz o “tribunal da história”.

Há uma tarefa revolucionária a ser cumprida e o artista popular revolucionário é aquele capaz de cumpri-la sem vacilação e sem fadiga, aceitando todos os sacrifícios que a causa lhe imponha.

Espécie de Irmão Sol-Irmã Lua do povo, o artista popular revolucionário preconizado pelo Manifesto deve despojar-se de sua origem de classe, de sua educação artística “pequeno-burguesa”, de sua liberdade “alienada”, de suas preocupações estéticas “burguesas” das veleidades formais e estilísticas, enfim de tudo quanto não esteja a serviço da causa justa. E deve fazê-lo com alegria, com a certeza de que está do lado do bem e da verdade, que o preço de seu despojamento é a liberdade consciente. Ao terminar a leitura do Manifesto, uma pergunta sobe à garganta, quase irreprimível: “O que é isso, companheiro?”, tal a carga de deveres, obrigações, vigilância e ascetismo que impregna a missão do “artista popular revolucionário”. “Havendo conflito entre o que dele é exigido pela luta objetiva e o que dele brota espontaneamente como expressão de sua individualidade comprometida com outra ideologia, é que então surge o dever de se impor limites à atividade criadora, cerceando-a em seu livre desenvolvimento. É preciso, no entanto, indagar de quem parte a imposição de limites. Não é do CPC, mas do próprio artista. O criador engajado é quem se proíbe a si mesmo de trair a classe revolucionária, é ele que por coerência com seus próprios princípios vê em suas imperfeições e desfalecimentos um mal que não pode ser tolerado e assim é sempre ele quem se proíbe a si mesmo, quem se investiga e se policia.”

Depois de se vigiar e de se punir, depois de tamanho moralismo e disciplina, como haveria de ser o “reino da liberdade” para onde esse arauto conduziria o povo?

Após haver desqualificado a arte da falsa consciência, isto é, a arte alienada (servil, idealista, formalista, expressivista, conformista-inconformista, particular, minoritária, fora da história etc.), o Manifesto distinguirá a arte popular revolucionária de duas outras manifestações inferiores: a arte do povo e a arte popular. Curiosamente, a polêmica agora tomará as características da arte “superior” (alienada) para distinguir arte popular revolucionária e arte do povo-arte popular. O despojamento parece não ter sido completo…

“A arte do povo é predominantemente um produto das comunidades economicamente atrasadas e floresce de preferência no meio rural ou em áreas urbanas que ainda não atingiram formas de vida que acompanham a industrialização. O traço que melhor a define é que nela o artista não se distingue da massa consumidora. Artistas e público vivem integrados no mesmo anonimato e o nível de elaboração artística é tão primário que o ato de criar não vai além de um simples ordenar os dados mais patentes da consciência popular atrasada. A arte popular, por sua vez, se distingue desta não só pelo seu público que é constituído pela população dos centros urbanos desenvolvidos como também devido ao aparecimento de uma divisão do trabalho que faz da massa a receptora improdutiva de obras que foram criadas por um grupo profissionalizado de especialistas. Os artistas se constituem assim num estrato social diferenciado de seu público o qual se apresenta no mercado como mero consumidor de bens cuja elaboração e divulgação escapam de seu controle. A arte do povo e a arte popular quando consideradas de um ponto de vista cultural rigoroso dificilmente poderiam merecer a denominação de arte; por outro lado, quando consideradas do ponto de vista do CPC de modo algum podem merecer a denominação de popular ou do povo”.

A arte do povo não é arte porque é “tentativa tosca e desajeitada de exprimir fatos triviais dados à sua sensibilidade embotada”, ingênua, lúdica e ornamental. A arte popular não tem “dignidade artística” porque é passatempo, distração vital, arte dos senhores para o povo e, portanto, conformista. A arte do CPC, em troca, é popular e revolucionária porque seu ponto de partida é a consciência da essência do povo como o sem-poder na sociedade. Por isso é arte política. É popular porque se identifica com as aspirações fundamentais do povo e é revolucionária porque se une ao esforço coletivo para dar existência ao povo numa sociedade onde ele se dirija a si mesmo. “Fora da arte política não há arte popular”. Finalmente, o CPC não pretende levar a arte erudita ao povo, educá-lo para esse tipo de arte. Pretende, ao contrário, levar ao povo consciência das condições materiais da realidade brasileira e da vida do povo, porque “vemos nos homens do povo acima de tudo sua qualidade heroica de futuros combatentes do exército revolucionário de libertação nacional e popular”. Além de explicar ao povo suas condições atuais e futuras de existência, a arte do CPC pretende produzir a “inversão dialética da práxis”, de modo que o povo negue sua negação, torne-se autor de sua própria história compreendendo que o mundo não é um fato natural, mas um feito humano.

O Manifesto é exemplar como construção de um imaginário político. Entidades saídas da fantasia dos “artistas populares revolucionários do CPC” desfilam pelo palco da imaginação histórica à moda de fantasmas: o artista alienado, o artista popular revolucionário, o povo, a arte do povo, a arte alienada, a arte popular, a ascenção das massas na história, a falência das estruturas sociais e econômicas, as leis objetivas, a alienação, a consciência. Porém, talvez o mais interessante seja o esforço do intelectual e do artista para converter-se em revolucionário, sem consegui-lo: para poder respeitar o povo, o artista do CPC não pode tomá-lo nem como parceiro político e cultural, nem como um interlocutor igual; oscila, assim, entre o desprezo pelo povo “fenomênico” (que, no entanto, é descrito como o povo realmente existente) e a invenção do povo “essencial”, os heróis do exército de libertação nacional e popular (que existem apenas em sua imaginação). Sem o fantasma do “bom povo” por vir, o artista do CPC não teria sequer tido a lembrança de “ir ao povo” e sobretudo de “optar por ser povo”.

Essa expressão talvez seja a mais significativa do Manifesto — “optar por ser povo”, Os artistas do CPC não optaram por aquilo que outros, cristãos, costumam chamar de “comunidade de destino”, isto é, a partilha da existência em comum numa prática construída em comum, tanto assim que a arte do povo é caracterizada pelo anonimato do artista. Optaram por ser a vanguarda do povo, condutores, dirigentes, educadores. Por isso, é significativo que no texto, quando intervém o artista de elite, sua intervenção se dê sob a forma da crítica e da discussão, enquanto a única aparição de uma “voz popular” se dá para que o homem do povo pergunte ao artista revolucionário: “o que sou eu?”. Por outro lado, a discussão com a “arte superior” ocupa quase dois terços do Manifesto, enquanto alguns parágrafos dão conta (ou pretendem dar conta) da arte do povo e da popular, esta sendo, na verdade, a cultura de massa cujo significado é reduzido pelo Manifesto à distração e ao escapismo, com brevíssima alusão às determinações do mercado. No fundo, o missionário do CPC quer ser individualizado sem o anonimato do artista do povo e sem a pasteurização do artista de massa. Como vanguarda, parece conseguir os próprios intentos.

O Manifesto se vale de uma ambiguidade que não examina para poder manipulá-la: o termo povo aparece tanto como sinônimo de classe dominada, os sem-poder, a plebe, quanto como sinônimo de vanguarda, populus e optimates . Isto se torna patente, por exemplo, na discussão a respeito dos públicos. O artista “alienado” possui uma indiscutível vantagem com relação ao artista “popular revolucionário”: pertence ao mesmo campo cultural que seu público, a comunicação entre eles sendo imediata, muito fácil e sobretudo estabelece a obrigação do segundo de adaptar-se às criações do primeiro, pois, concebido hegelianamente, esse artista pode inovar e criar seu próprio público. Ao contrário, o artista “popular revolucionário” se dirige a um público que não pertence à sua classe e, como se não bastasse, é inculto (pois arte mesmo, pra valer, é a “superior alienada”). Nestas circunstâncias, o artista é forçado a adaptar-se ao público popular para cumprir sua missão histórica. Não passa pelo Manifesto a suposição de que o trabalho de uma obra cultural (“superior” ou “inferior”) se realiza da mesma maneira enquanto obra, isto é, como esforço para capturar a experiência, determinando-a como visível, pensável ou dizível. Nem passa pelo Manifesto a suposição de que uma obra de arte (“superior” ou “inferior”) não se encontra apenas nela mesma, como objetividade empírica ou ideal, mas no campo constituído por ela e seus destinatários, campo criado a partir dela com eles, aos quais se dirige. Há no Manifesto, além do maniqueísmo das distinções, um objetivismo artístico que redunda em subjetivismo do “criador”.

O artista do CPC é e não é “povo” — não é “povo”, como indica a visão que possui de seu público; e é “povo” porque vanguarda do herói do exército de libertação popular e nacional. Essa curiosa fantasmagoria, falada em linguagem hegeliana do em si e do para si, traduzida para a fenomenologia husserliana do fenomênico e do essencial e para o existencialismo do ser-no-mundo-com-os-outros, acoplada ao conceito lukacsiano da falsa consciência e à concepção leninista da consciência vinda de fora, pretende estar a serviço de uma revolução popular heroica. Entre duas alienações — a da arte superior e a da arte do povo — e entre dois alienados — o artista superior e o artista do povo — insere-se a figura extraordinária do novo mediador, o novo artista que possui os recursos da arte superior e o encargo de fazer arte inferior sem correr o risco da alienação presente em ambas. Assim, através da representação triplamente fantástica — do artista alienado, do artista do povo e do artista popular revolucionário em missão — é construída a única imagein que interessa, pois é ela que se manifesta no Manifesto: o jovem herói do CPC.

SEMINÁRIO III

(segundo semestre de 1981)

Relendo o conjunto dos relatórios finais de pesquisa, as entrevistas e os depoimentos colhidos e a transcrição de nossos debates no correr de 1980 é possível perceber alguns traços desenhando o perfil do trabalho realizado, embora as áreas e os períodos pesquisados, as entrevistas e os depoimentos sejam muito diversificados. No final do primeiro seminário de 80, a questão mais discutida entre nós concernia ao próprio tema e ao modo de abordá-lo. Perguntávamos: iremos, como antropólogos, realizar trabalhos de campo para descobrir manifestações culturais que se consideram (ou são consideradas) nacionais e populares, ou iremos procurar em algumas áreas da produção cultural maneiras como o nacional e o popular têm sido representados? A leitura dos textos, no final de 81, mostra que escolhemos o segundo caminho.

Essa escolha deu um tom reflexivo às pesquisas, pois as preocupações estiveram menos voltadas para descobrir o nacional-popular “em si”, manifestando-se nas ruas e nos movimentos sociais-culturais e mais para as diversas representações do nacional e do popular que, em épocas diferentes e por motivos diferentes, intelectuais e artistas construíram porque pretendiam ser nacionais e populares. Dessa maneira, a figura do intelectual e a do artista serviu de filtro e de mediação para as análises. Evidentemente, desde o ponto de partida houve uma concordância entre os pesquisadores, isto é, que após os anos 60 o nacionalismo e o populismo, tais como existiram entre as décadas de 30 e de 60, deixaram de ser balizas definidoras do nacional e do popular para a grande maioria dos intelectuais e dos artistas. A questão que ficou pairando no ar, e para a qual as pesquisas trouxeram algumas possibilidades de resposta, era: estão em gestação um novo nacionalismo e um novo populismo culturais, ou a sociedade brasileira integrou-se de tal maneira ao sistema capitalista global que essas ideologias não são mais possíveis? Essa questão foi suscitada pela análise dos planos de política cultural do Estado e pelas análises sobre a televisão. Ou seja, embora o nacionalismo e o populismo tenham sido políticas gestadas e propostas pelo Estado ou à sua sombra, a forma atual dos projetos estatais, baseados na geopolítica e na doutrina da segurança nacional, já não requer a figura “antiga” do intelectual engajado em produzir representações nacionais e populares, pois essa tarefa foi deslocada para a televisão e para os meios de comunicação de massa. Não que os “antigos” intelectuais e artistas não possam ser cooptados pela modernidade eletrônica, mas sim que a alteração quanto à ideia do que sejam ou devam ser o povo e a nação (nos projetos do Estado) e a alteração quanto à forma de invocá-los, construí-los e com eles se relacionar (nos meios de comunicação de massa) modificaram (sem que saibamos até que ponto) o nacional e o popular como representações.

Tendo a pesquisa privilegiado o modo como o nacional e o popular são postos pela produção artística e teórica, ocupou-se com o duplo lugar nela designado ao povo e à nação. Estes são, por um lado, a matéria-prima das produções nacional-populares e, por outro lado, os destinatários dessa produção. Há representações sobre o povo e a nação destinadas ao povo e à nação, independentemente do fato de esse destinatário ser ou não alcançado, constituir-se ou não como público efetivo que se reconheça espelhado nas obras do nacional-popular.

Porque houve interesse pela construção das representações, a pesquisa acabou desenhando o perfil dos intelectuais e dos artistas a partir da relação matéria-prima/destinatário, chegando a uma espécie de “tipologia” da intelectualidade nacional-popular, constituída por várias dimensões:

  • uma dimensão religiosa: isto é, o espírito de catequese e de missão, pois artistas e intelectuais, em diferentes contextos da história brasileira, se colocam na qualidade de missionários que devem “converter” o povo e a nação à sua verdade oculta. O trabalho desses missionários culturais se constitui como uma espécie de epifania do povo e da nação;
  • uma dimensão educadora: isto é, um espírito pedagógico (Gilberto Vasconcelos e Pedro Tota falam em pedagogismo) e iluminista. Sendo fundamental, no iluminismo, a ideia de educação cívica através da opinião pública e sendo esta uma tarefa dos “homens adultos com direito ao uso público da razão”, a intelectualidade nacional-popular se acredita (e se credita) encarregada de uma tarefa civilizatória;
  • uma dimensão ideadora: isto é, nação e povo são mitos, ideias, símbolos, lembranças construídos em vários níveis e em vários contextos com a finalidade de fornecer ao povo e à nação uma auto-imagem na qual possam reconhecer-se e identificar-se e, graças ao auto-reconhecimento e à identificação, agir nacional e popularmente. Há uma busca permanente de um centro ordenador imaginário, portador da identidade para uma sociedade sem identidade;
  • uma dimensão econômica: isto é, nação e povo, sobretudo na fase da ideologia desenvolvimentista-nacionalista, aparecem como mercado interno cujas necessidades só podem ser atendidas pelo desenvolvimento de um capitalismo autônomo, ou seja, nacional, desvinculado das imposições colonizadoras do imperialismo, identificado como mercado externo, e, portanto, como estrangeiro e antipopular;
  • uma dimensão política: isto é, a realização plena da nacionalidade e da popularidade passa necessariamente pela mediação do Estado Nacional, entendido como realizador de uma política sócio-cultural voltada para o bem social interno, diminuindo injustiças e disparidades sócio-econômicas, e para a preservação dos valores culturais nacionais e populares, promovendo a própria cultura. Ora, como o Estado realmente existente é elitista e vinculado aos interesses internacionais do imperialismo, a tarefa da cultura nacional-popular como tarefa política é construir o Estado Nacional por meio de uma aliança ou cooperação de classes. Dessa maneira, a batalha ideológica da intelectualidade pelo nacional-popular deve resultar numa batalha política de alianças para a tomada do poder ou de sustentação do poder quando este for encarnado pelo Estado nacional-popular.

Essas dimensões não são homogêneas, evidentemente, e tendem a combinar-se em “sistemas” diversos, frequentemente antagônicos, dependendo de qual das dimensões comanda as demais. Nessa perspectiva, o nacional e o popular tendem a ser “problematizados” pelos intelectuais e pelos artistas, não tanto porque cada um deles ou vários grupos deles discutam a natureza e o sentido das duas ideias, mas porque cada um ou cada grupo possui uma definição-guia dos conceitos, os problemas surgindo das divergências e dos antagonismos entre as definições. Essa “problematização” foi acompanhada pela pesquisa em vários níveis:

  • oposição entre localismo e cosmopolitismo, fazendo com que as soluções caminhem desde a separação radical dos dois polos até à afirmação de sua síntese pela “dialética do interno/externo”. A primeira tendência se encontra do lado dos nacionalismos de direita enquanto a segunda é tentada pelos nacionalismos populistas de esquerda. Nesse quadro, uma exceção: a recusa de Machado de Assis em solucionar a dicotomia, ou, se se quiser, a solução machadiana pela ironia (como apareceu no seminário feito por Roberto Schwarz);
  • oposição entre nacional e internacional, isto é, a retomada do processo anterior, mas com a diferença de que, neste segundo caso, a “síntese dialética” proposta passa pela discussão da economia e da política, enquanto no primeiro caso permanecia adstrita à produção cultural strictu sensu. Essa tentativa aparece com clareza na entrevista de Ferreira Gullar, servindo de contraponto para análise do Violão de Rua, feita por João Luiz Lafetá;
  • dificuldades para definir o que sejam o local e o cosmopolita, o nacional e o internacional, havendo tendência para solucionar (“dialeticamente” ou não) o problema por meio de uma nova oposição: a oposição forma-conteúdo. Via de regra, o nacional-popular será local ou nacional pelo conteúdo (dimensão que preserva o particular) e cosmopolita e internacional pela forma (dimensão que garante nossa participação na cultura universal). Carlos Zílio comenta, em vários momentos da pesquisa, o ufanismo nacionalista que sustenta a expressão “já temos nível internacional”, este identificado com o uso de procedimentos artísticos (no caso, pictóricos) nascidos no estrangeiro. A tentativa para conciliar os termos por intermédio da relação peculiar entre a forma e o conteúdo aparecerá praticamente em todas as pesquisas — Maria Rita Galvão e Jean-Claude Bernardet acompanham essa tentativa no cinema, Lygia Chiappini Moraes Leite e João Luiz Lafetá, na literatura, Enio Squeff e José Miguel Wisnik, na música, Mariângela Alves Lima e José Arrabal, no teatro. O depoimento colhido pelo grupo de trabalho junto a Edmundo Muniz também se encaminha nessa direção. De modo constante, o particular se identifica com o conteúdo (nacional) enquanto o universal se identifica com a forma e com as técnicas (estrangeiras), como se houvesse uma espécie de indiferença na relação forma-conteúdo. Sendo frequente a preocupação nacionalista, o trabalho dos intelectuais e dos artistas consiste num duplo esforço para dobrar a forma às exigências de um conteúdo que lhe é exterior ou para dobrar o conteúdo às necessidades de uma forma que lhe é extrínseca (e que opera como uma espécie de fórmula). Além disso, na maioria dos casos, o conteúdo nacional-popular é apreendido como uma particularidade dada enquanto a forma é considerada como universalidade dada. Nessa medida, a junção conteúdo particular-forma universal tende a surgir como uma colagem, malgrado a pretensão de síntese dos artistas e intelectuais. Como observa Carlos Zílio, nação e povo operam como se fossem ideias reguladoras da Razão, transcendentais a priori que devem sintetizar um conjunto de determinações que se excluem umas às outras, de modo que há uma racionalidade postulada que, finalmente, não opera como ideia reguladora, mas como antinomia da Razão;
  • dificuldade para definir o que seja o popular no interior do nacional, resultando em soluções extraordinárias, como transparece nos depoimentos colhidos junto aos que trabalham no rádio e para os quais popular é sinônimo de espontaneidade, improvisação, cor, ritmo, sonoridade e cadência, definidores, por seu turno, do “espírito nacional”. As entrevistas com Maria Eulália Lobo e Maurício Albuquerque foram esclarecedoras porque procuraram desmontar, através da fala dos índios, o vínculo que intelectuais e artistas estabelecem entre popular e “autenticidade”, esta entendida como imobilidade, mumificação, petrificação temporal, isto é, o popular é imóvel-imutável-eterno e, por conseguinte, fornece o “caráter nacional” cuja mobilidade, mudança e temporalidade só podem ser aceitas sob a condição de não “interferirem” na cristalização do popular, visto ser este o portador da essência da nacionalidade. Os museus tornam-se, dessa maneira, a morada necessária do nacional-popular, porém, como assinala Eulália Lobo, com uma diferenciação muito peculiar: as produções dos “povos primitivos” são postas nos Museus de História Natural, as dos “populares civilizados” nos Museus do Folclore e a dos “nacionais com nível internacional” nos Museus de Belas-Artes. A dificuldade para determinar o popular no interior do nacional e a tendência a identificar o popular com o imóvel e o nacional com o progresso (capitalista) lançam alguma luz sobre dois fenômenos analisados em algumas das pesquisas. Por um lado, os problemas colocados pelo nacional-popular no período da ideologia desenvolvimentista quando se torna- necessário preservar a “autenticidade” popular e promover o “desenvolvimento nacional”. Essa antinomia entre a permanência e o progresso será contornada pela junção da forma “desenvolvida” com o conteúdo “autêntico”, vindo a encontrar sua expressão mais acabada no nacionalismo dos anos 70/80, isto é, na solução trazida pela eletrônica, que transmite os “programas sertanejos” põe no vídeo o “Brasil Rural”, o “Povo na TV” e os festivais de MPB. Por outro lado, os problemas colocados pelo nacional-popular no período da ideologia populista quando se torna necessário “desenvolver” o popular para que possa “conduzir” o nacional, surgindo daí a célebre dicotomia posta pelo CPC entre o “povo empírico ou fenomênico” e o povo “essencial ou real”. Em suma, na dificuldade para situar o popular no interior do nacional percebe-se que o primeiro termo é definido por uma temporalidade diferente daquela que define o segundo, todo o problema consistindo em saber como reconciliá-las;
  • dificuldade inversa à anterior, isto é, dificuldade para determinar o que é nacional no popular. Aqui, a solução é mais interessante do que as anteriores porque substitui as antigas dicotomias entre o “país real” e o “país formal” pela ideia do país absurdo, da qual uma das expressões mais acabadas, segundo alguns, foi a Tropicália ou a imagem da “geleia geral”. Trata-se de uma espécie de nacional-popular crítico que usa a paródia (como Machado usara a ironia) como recurso estilístico onde o nacional é o absurdo e o popular, a mostração disto;
  • dificuldade para distinguir o elemento crítico do elemento ufanista, seja no nacionalismo dos anos 30 e 40, seja no desenvolvimentismo dos anos 50 e no populismo dos anos 60, havendo continua superposição do “país absurdo” (a definição do absurdo dependendo dos “objetivos nacionais” de cada período) e do “país crítico” (a definição da crítica também dependendo dos “objetivos populares” de cada período). De modo geral, a dificuldade enfrentada pelos intelectuais e artistas desses períodos encontra-se na necessidade de mostrar, por um lado, que a nação ainda está por ser construída e quais as condições sociais, econômicas, políticas e culturais que impedem sua construção (donde o país ser absurdo) e, por outro lado, mostrar que há “forças vivas” na nação, capazes de construí-la, desde que sejam despertadas para essa tarefa (donde a importância do popular transfigurado pela intelectualidade em epifania do nacional, civilização ou crítica). O “povo” aparece, simultaneamente, como massa inculta explorada e dominada e como força incorruptível portadora da nacionalidade, de modo que o elemento crítico (da massa) se sustenta na imagem ufanista (do intelectual). “O brasileiro é antes de tudo um forte” subjaz à crítica;
  • dificuldade para determinar o “ponto de ruptura”, isto é, o momento no qual o popular invade, determina e domina o nacional. Esse ponto de ruptura é uma questão fundamental para os artistas e intelectuais de esquerda, visto que para os de direita (como os do Estado Novo, por exemplo, na análise de José Miguel Wisnik) é essencial justamente o contrário, ou seja, que tal ruptura não tenha lugar. A solução dessa dificuldade ou a determinação do ponto de ruptura é dada por uma expressão que, pouco a pouco, torna-se uma espécie de encantação mágica: a “tomada de consciência” ou “conscientização”. Com isto, o círculo se fecha, pois a tomada de consciência ou a conscientização fica na dependência da ação missionária, civilizatória e iluminista dos intelectuais e artistas. O que, por outro lado, reabre o circulo, visto que as dificuldades sobre a figura do próprio intelectual e do próprio artista não foram resolvidas;
  • dificuldade para conciliar duas visões antagônicas do popular, isto é, a romântica e a científica. Para a primeira, o “bom” povo é uma espécie de “bem de raiz” (tradição e autenticidade); para a segunda o povo “por vir” é o “motor da história” (propulsor do desenvolvimento nacional capitalista). A dificuldade não existiria se houvesse uma clara separação entre essas duas imagens, o que não é o caso, pois o “povo motor” depende das qualidades do “povo raiz” (não sendo casual as imagens do motor e a da raiz, isto é, a da máquina e a do organismo vegetal, imagens que, no primeiro seminário, havíamos discutido a propósito da visão liberal mecânica — contrato das vontades — e da visão romântica orgânica — vínculos de afeto — na determinação da origem da sóciedade ou da comunidade). Essa dependência recíproca das duas imagens é fonte dos problemas para a intelectualidade nacional-popular, na medida em que o desenvolvimento nacional (capitalista) tem como pré-condição destruir o arcaísmo da “autenticidade” popular. Colocados entre o museu e o progresso, os intelectuais e os artistas não conseguem encontrar uma terceira via, senão aquela da construção do povo desenvolvido. Novamente aqui, a palma de ouro da solução ficará com os meios de comunicação de massa.

Esse conjunto de dificuldades incide poderosamente na construção da própria figura do intelectual e do artista. Num dos seminários, José Miguel Wisnik analisou a dualidade constitutiva dessa figura, dividida entre duas visões que a burguesia lhe forneceu como legado: a visão romântica e a visão ilustrada. O nacional-popular tende, assim, a aparecer duplicado como consciência a ser resgatada (na visão romântica) e a ser construída (na visão ilustrada). No primeiro caso, tratar-se-ia de devolver ao povo a consciência que este já possui — Jean-Claude Bernardet interpreta por esse ângulo o Amuleto de Ogum — enquanto no outro trata-se de produzir a consciência popular pela mediação da consciência nacional — é o que, segundo Jean-Claude, faz o Cinema Novo, e o que, em minha tentativa de análise, fazem os Cadernos do Povo. A figura do intelectual-condutor é dublada, então, pela do intelectual-desvelador (para usar as expressões de José Miguel). Em qualquer dos casos, há uma vitória do pedagógico nos projetos estéticos e politicos (o pedagogismo de que falam Vasconcelos e Tota, e cuja inversão trágica é tentada por Antônio Callado, na interpretação de Lygia Chiappini). João Luiz Lafetá, partindo da distinção de Fry entre ironia e romanesco, procura deslindar a divisão-união das faces do intelectual e do artista pedagogos da nação e do povo. A ironia é saber-se mais fraco do que o acontecimento, enquanto o romanesco é julgar-se mais forte do que ele. Os intelectuais e artistas do pré-64 teriam sido romanescos; os do pós-64/68 teriam iniciado a trajetória da ironia. Trajetória também problemática quando lemos o depoimento de Maurice Cappovila para Maria Rita Galvão: “o povo não pensa; sonha e imagina com as mãos, cabendo ao artista registrar esse “trabalho das mãos”. Registrar sem pretender conduzir ou interferir. Mas não há algo estranho nesse “registro” cujo pressuposto é o reconhecimento de uma distância intransponível entre as mãos de uns e a cabeça de outros?

As dificuldades examinadas no correr da pesquisa ressurgem com uma claridade quase ofuscante nos trabalhos sobre o rádio e a televisão, isto é, na passagem da cultura nacional-popular para a cultura nacional-de-massa promovida pela conjunção da indústria cultural e dos projetos de política cultural do Estado, como projeto de “integração nacional pela cultura”. A conjunção dos interesses de mercado e dos programas estatais aparecerá, de modo diverso, no Estado Novo, por meio da Rádio Nacional, e no pós-68, por meio da Rede Globo. O depoimento de Hermes Sanches revela que a possibilidade de realizar o programa integrador depende fundamentalmente da capacidade para manipular o público antecipando-se a ele, criando expectativas que somente a televisão poderá preencher. O interesse desse depoimento é duplo: por um lado, porque o programa integrador ou “global” aparece inteiramente fundamentado por uma linguagem científica (nada é feito sem a parafernália do que os meios chamam de “pesquisa”), por outro lado, porque esse mesmo programa pode emperrar em decorrência de conflitos entre o mercado e o Estado, pois (Sanches não se exprime dessa maneira, mas é o que o trabalho de Carlos Alberto Messeder Pereira e Ricardo Miranda mostra, o mercado visa à dispersão — isto é, a “sociedade” — enquanto o Estado visa à unificação — isto é, a “comunidade”) as exigências do consumo nem sempre seguem os padrões da unidade nacional. A pesquisa dos meios de comunicação de massa mostra como o problema do local-internacional se resolve pela combinação dos ingredientes de localismo (seja no conteúdo, seja nos programas regionais, seja na distribuição dos horários, seja no tempero de “valores” brasileiros com as “super-stars” estrangeiras) com a “qualidade” da forma. Nesse aspecto, as diferenças entre a “limpeza’ da imagem “global” e a “sujeira” da imagem das outras emissoras serve de parâmetro para uma das análises sobre o problema do local-cosmopolita. Também a imbricação nacional-popular é resolvida em três níveis: num deles (o das novelas e das minisséries brasileiras) o nacional-popular aparece através do retrato do cotidiano, do “gente como a gente”; noutro nível (o das minisséries e cômicos críticos), pela aparência de reavaliação crítica do cotidiano, embora atue como reposição de valores; num terceiro nível (o dos programas ao vivo e dos programas culturais), pela pretensão a uma democratização do vídeo — o povo na TV — e a uma democratização da cultura — como no “Fantástico” e nos “Concertos Matinais” — quando, na verdade, há uma centralização poderosa da produção cultural que perde toda e qualquer autonomia. Mercado, centralização e heteronomia marcam o novo nacional-popular dos meios. Um novo populismo, sofisticado e nada artesanal, está consolidado.

Assim, nesse breve balanço (que antecedeu a redação final dos textos) tentei observar como predominaram em nossas análises o exame das tentativas feitas por intelectuais e artistas para atingir algo que fosse “o nacional-popular”, uma ideia reguladora ou um a priori, o percurso tendo enfatizado mais a emergência e o funcionamento de ideologias nacionalistas e populistas do que uma produção dita nacional-popular espontânea, autêntica, feita nas ruas e praças públicas, nas oficinas de artesanato e nas feiras, nas festas religiosas e cívicas.

Não creio ter sido casual esse rumo. Em primeiro lugar, porque fomos cooptados pelo Estado para falarmos sobre o nacional-popular (provavelmente para que ele pudesse, depois, falar para o nacional-popular dizendo o nacional e o popular) e talvez tenha valido a pena discutirmos o sentido dessa pretensão tomando como referência outros que, antes de nós, tentaram esse falar sobre. Em segundo lugar, porque as ideias do nacional e do popular mostraram-se suficientemente móveis, ambíguas, equívocas e com riscos teológico-metafísicos permanentes, talvez tenha valido a pena termos evitado (aprendendo com os que nos antecederam) partir de definições e construções sobre o tema, querendo determinar, a priori e a posteriori, o que é nacional e o que é popular na produção cultural. Talvez nossa contribuição para o debate esteja na cautelosa distância que tomamos diante de uma aceitação imediata do nacional-popular na cultura num momento em que o Estado brasileiro pensa essa ideia sobre os alicerces da segurança nacional, da integração nacional e do desenvolvimento nacional: Querer um povo “seguro”, “integrado” e “desenvolvido” costuma ser, via de regra e conforme o que nossas pesquisas nos foram ensinando, não querer que o popular participe da história. Teremos sido muito plebeus em nossas interpretações? Ao leitor cabe avaliar.

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