1982

O nacional e popular na cultura brasileira – LITERATURA I

por João Luiz Lafetá

Resumo

A marca constante da poesia de Ferreira Gullar (reunida em Toda poesia, 1950-1980) é a inquietação e o inconformismo. Sua voz pública repercute os movimentos e impasses da literatura brasileira ao longo do século XX – vanguarda modernista, recuo formal da geração de 45, concretismo, cultura popular, tropicalismo – mas tem sempre um toque íntimo. Num primeiro momento (A luta corporal), o ponto de vista é mais subjetivo. Gullar insiste na decomposição inerente ao tempo, critica a linguagem literária e parece tender à negatividade e ao silêncio. Ele reage buscando a positividade no construtivismo da poesia concreta (e na sua dissidência neoconcreta), aproximando-se do marxismo e da literatura engajada. Isso resultou, sobretudo nos ensaios que escreveu na época, em interpretações às vezes rígidas do significado de termos como “nacional” e “popular” em arte e literatura. Mas, depois do golpe militar de 1964, sua participação afetiva nos acontecimentos se renova. Dentro da noite veloz cria uma atmosfera densa e reflexiva a partir do coloquialismo. Onde antes ele via a diferença entre os indivíduos, vê agora a semelhança que os une. No conhecido Poema sujo (1975), a busca de si mesmo se dá dentro de uma realidade cultural (os hábitos de vida em São Luiz do Maranhão). Cada coisa tem sua velocidade e seu ritmo. A diversidade, o desgaste e a morte fazem parte da transformação e do fluxo da vida. O poeta, ele dirá em “Traduzir-se”, é mundo e ninguém, multidão e solidão, razão e delírio, e deve saber traduzir uma coisa na outra.


TRADUZIR-SE (Ensaio sobre a poesia de Ferreira Gullar)

Traduzir-se

Uma parte de mim

é todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.

Uma parte de mim é multidão:

outra parte estranheza

e solidão.

Uma parte de mim pesa, pondera:

outra parte

delira.

Uma parte de mim almoça e janta:

outra parte

se espanta.

Uma parte de mim é permanente:

outra parte

se sabe de repente.

Uma parte de mim

é só vertigem:

outra parte,

linguagem.

Traduzir uma parte

na outra parte

– que é uma questão

de vida ou morte –

será arte?

UM REPÓRTER DE SEU TEMPO?

Ao publicar Toda Poesia, reunindo trabalhos de 1950 a 1980, Ferreira Gullar nos dá a oportunidade de repensar não só seu próprio trajeto de escritor, mas também toda uma época (afinal são trinta anos) da poesia brasileira. Aspectos importantes do desenvolvimento cultural do nosso país, nesse período, estão inscritos com toda clareza na obra do poeta que, estreando dentro do clima esteticista da geração de 45, passou pela ruptura do Concretismo e do Neoconcretismo, pelo discurso populista do CPC e pelo demorado, ainda inconcluso processo atual de travessia de uma situação difícil para a criação poética. Entretanto, diante dos vários livros que compõem o volume agora publicado, somos tentados a enxergar não apenas os reflexos de nossos movimentos literários, mas também os signos de diferentes momentos políticos e sociais.

De fato, as pesquisas de linguagem presentes em A luta corporal, embora questionando da maneira mais profunda o rumo estetizante da geração que sucedera ao Modernismo, mantêm ainda muito do retórico, algo amaneirado, que caracterizou a prática literária da época. Nessa há uma diluição da ponta-de-lança modernista, coisa que se explica em parte pelo esgotamento das possibilidades inovadoras do movimento, mas que se explica também por homologia à situação político-social do país nestes anos. Saída do grande impulso burguês da década de vinte, a Revolução de Trinta transformara as instituições republicanas e dera lugar ao debate ideológico que, por sua vez, fornecera a consistente substância dos poemas e romances que se construíram sobre a herança vanguardista imediatamente anterior. No entanto, a necessidade de eliminar as lutas sociais e constituir um estado estável, levou as classes dominantes à opção da ditadura e ao sufocamento do debate. Em oito anos, de 1937 a 1945, o regime atingiu seus objetivos: o impulso revolucionário (que escritores mais ligados ao Modernismo, como Mário e Oswald de Andrade, ou ainda Drummond e mesmo Graciliano, souberam guardar) não encontrou eco na nova geração, mais tendente ao sonho e ao mito que à realidade da política.

Assim, o período “democrático” e medíocre do general Dutra, bem como os primeiros anos cinquenta, já com Vargas no poder, além de terem o sentido de um ordenamento institucional do país, representaram uma espécie de acomodação geral da burguesia e uma forma de estagnação do ímpeto renovador de Trinta. À sua imagem, a literatura também se estagna, condenada a girar num círculo pacificado de versos medidos, revoltas contidas, sonetos. E sobretudo numa linguagem cuidadosamente rebuscada, propositalmente literária, longe da fala cotidiana e desabusada que inseminara de modo tão produtivo as criações modernistas. Essa contenção, que é também recalque e repressão, marca de modo característico vários poemas de A Luta Corporal, ao ponto de podermos dizer que a luta referida no título é esforço tremendo contra o repressor, procura de liberdade que se expressa, sob metáforas, de diferentes maneiras nos diversos poemas. Com tudo que o separa dos poetas de 45 (inquietude, inconformismo, tendência à ruptura e ao desequilíbrio), Gullar nos exibe em seu primeiro livro o problema mais sério que eles tiveram de enfrentar (e não enfrentaram) e que conformou de maneira profunda a poesia de todos eles: a força repressiva e castradora do Estado Novo, que impediu a vivacidade da relação com o real e os confinou ao alheamento estético. (Mais à frente retomaremos este ponto para explicá-lo melhor.) O fim do governo Vargas e o período Kubitschek veem renascer o debate político mais amplo, com as lutas em torno da criação da Petrobrás e com o progressivo crescimento da ideologia nacional-desenvolvimentista. Um projeto de industrialização do país começa a ser elaborado (e executado), e a dinâmica das formas sociais de vida se acelera. O plano de metas e o slogan “cinquenta anos em cinco” – enfim, a imagem de JK como presidente atuante, sempre pronto a embarcar num avião para percorrer o território nacional – são símbolos de um arranque rumo ao futuro, rumo à modernização capitalista. Literariamente, o fato coletivo importante é o movimento da poesia concreta, gestado na maior concentração industrial do país, desde o início da década, por Décio Pignatari e Augusto e Haroldo de Campos.

O poeta de A Luta Corporal, que já chegara por meios próprios à fragmentação do discurso e ao rompimento do passadismo da geração de 45, pesquisa também na nova área aberta pela retomada de nossa modernidade. Seus “Poemas Concretos/Neoconcretos”, escritos entre 1957 e 1958, além de estarem entre os mais belos que a nova poética produziu, testemunham o instante de atualização da cultura brasileira: a construção do poema deixa de ser o exercício de tensões subjetivas, projetadas na linguagem, para procurar a objetividade do produto acabado, mercadoria no universo do consumo. Poesia e indústria, construtivismo e desenvolvimentismo, mundo de objetos e criação de um mercado nacional, orgulho da poesia-exportação e nacionalismo. A racionalidade literária nascida em São Paulo é paralela ao esforço racionalizador do grande capital, que procura modificar as estruturas do Brasil. O plano-piloto da poesia concreta lembra o cimento armado de Brasília, o nosso crescimento urbano, a virada que esvaziará os campos e concentrará as grandes massas nas cidades. E ainda aí a inquietude de Ferreira Gullar se comprova: atravessando o Concretismo, abre logo a dissidência neoconcreta, que se apresenta ao mesmo tempo como crítica do conceito reificante de poema e aceitação suicida da morte da arte, na fabricação de não-objetos poéticos, na realidade bens perecíveis, rapidamente consumidos.

O governo Jango é, sob todos os seus aspectos, uma consequência da política desenvolvimentista, seja enquanto reação ao avanço do capital, que estende de modo amplo as práticas espoliadoras, seja enquanto necessidade de adequar – modernizando-as, reformando-as – as estruturas sociais às novas formas econômicas. Ainda hoje é difícil distinguir, no período “populista”, essas duas faces do reformismo, uma voltada para ajustiça social, outra voltada para a remoção dos entraves ao desenvolvimento capitalista. O golpe de 64 viria desfazer as ambiguidades, pondo (por exemplo) a Sudene, órgão inicialmente destinado a trabalhar no sentido de reduzir as disparidades regionais, a serviço aberto dos grandes industriais do sul, que podem – graças ao sistema de incentivos fiscais – reaplicar seus excedentes e realizar mais lucros sobre a pobreza nordestina. De todos os modos, quando nada disso era claro ou estava definido, a literatura pendeu para a esquerda, abandonando a poética industrializante do Concretismo e optando por um recuo formal que desse conta de outras faces da vida brasileira.

Lembremo-nos de que, depois do surto da indústria nos anos vinte, em São Paulo, o Modernismo afastou-se das teorias vanguardistas e adotou, na década de trinta, uma tonalidade política de combate. Assim parece ter ocorrido também no início dos anos sessenta: os programas de vanguarda foram criticados como formas alienadas da realidade brasileira, como aliados do capitalismo internacional e como adversários da revolução; as sofisticações pound-eliot-joycianas foram substituídas pela rusticidade do cordel, pelas arengas reivindicatórias e pelo verbalismo derramado da má-consciência que se acusa. É a época do nacional-popular, projeto de uma literatura anti-imperialista, voltada para dentro do país, destinada ao consumo e à educação do povo (poderíamos apontar seu análogo nas aspirações políticas, então muito ativas, de criação de um mercado interno, suficiente, não dependente, existindo em função das necessidades nacionais e populares). A luta é grande e utópica, talvez impossível. Mas Ferreira Gullar estará dentro dela, acreditando, criticando e produzindo. O caráter socializante dessa nova concepção de arte contornará o defrontamento individualista e suicida da “teoria do não-objeto”, e permitirá o prosseguimento da obra poética, no entanto consideravelmente simplificada, reduzida ao elementar da literatura de combate.
E vem a deposição de Jango, o início dos governos militares e da “longa noite escura” ditatorial, que Ferreira Gullar, menos negativista, prefere chamar de “noite veloz”. Nesta época, a poesia como fenômeno coletivo parece deslocar-se, no Brasil, para a música popular – primeiro nas canções politizadas e, logo a seguir, no movimento tropicalista. Após o AI-5, com a pesada censura dos meios de comunicação, ocorre um refluxo forte, um relativo isolamento dos artistas e dos intelectuais em geral, prensados entre as realidades extremas da repressão, da luta armada e dos tóxicos. Nesta fase, que poderíamos situar aproximadamente entre 1969 e 1974, são duas as grandes linhas da produção poética, ambas de certa forma derivadas do impacto da Tropicália: por um lado, a prática tropicalista reacende a curiosidade pelo experimento, de caráter construtivista e racional, e os concretos voltam à boca-de-cena, com o apoio do estruturalismo e através de revisões constantes do movimento modernista (lembremos que em 1972 é comemorado o cinquentenário da Semana de Arte Moderna e surgem várias reedições dos escritores mais importantes do movimento); por outro lado, também prolongando uma vertente do Tropicalismo, na pista do rock e da arte pop, descola-se uma linha contestatária irracionalista, apologista da droga e da marginalidade social.[1]
Nestes anos, a poesia explicitamente política quase desaparece, alijada pela repressão que se desencadeia sobre a luta armada e sobre toda a esquerda. Talvez por isso não seja possível situar Ferreira Gullar dentro de qualquer movimento mais amplo da época. Enquanto tudo acontecia, ele vivia no exílio, dentro ou fora do Brasil, a sua “noite veloz”. Nos primeiros tempos, antes do Ato 5, sua participação política se dá principalmente no teatro, no grupo Opinião, de forma muito ativa. E alguns poemas de resistência surgiram ainda nas páginas da Revista Civilização Brasileira, no contexto de oposição à ditadura, num espírito que mantinha sem dúvida pontos de contato com a canção de protesto. Mas como se pode ver hoje, tratava-se de afinidade apenas aparente: na verdade, o poeta começava a modificar outra vez sua técnica e sua concepção de poesia, abandonando o discurso simplificado e didático dos tempos do CPC, e adotando uma postura reflexiva, mais densa, nada propagandista, vazada numa linguagem em que o tom direto e coloquial coloria-se de emoção profunda e de participação afetiva, pessoal, nos acontecimentos políticos.

É uma reação curiosa e cheia de significados: a perda das ilusões faz com que o poeta avance num caminho novo, diferente de tudo quanto ele fizera até então. Em certo sentido ele retoma a lição do Modernismo, trabalhando várias formas de tratamento do coloquial e do cotidiano: a tarde na leiteria, o trajeto do ônibus, a caminhada na avenida Nossa Senhora de Copacabana – é em torno desses motivos do dia-a-dia que vão surgir as posições políticas, não mais como algo de fora (a favelada Aparecida e o cabra João Boa-Morte, realidades sobre as quais se fala), mas como algo interior, da vida do poeta, e do qual se fala. Essa mudança de perspectiva, que acende um lirismo forte, é visível mesmo nos textos cuja temática se distancia mais de nós. No meio de um poema sobre o Vietnã, por exemplo, interpola-se de repente uma cena sobre o Rio de Janeiro (“Por você por mim”); ou ainda, em “Dentro da noite veloz”, os procedimentos utilizados nos levam para muito perto da narrativa da morte de Che Guevara. A proximidade, portanto, não deriva apenas dos temas, mas os envolve através da criação de uma atmosfera íntima, de vida cotidiana, da qual o leitor participa.

Nenhum ponto de contato entre estes poemas e o Tropicalismo, a mais forte corrente poética da época. Apesar do retorno ao movimento modernista, perceptível em ambos, é fácil notar que, enquanto aos tropicalistas interessa sobretudo a linha oswaldiana, Gullar optou por uma aproximação a Drummond (que o marca muito), Manuel Bandeira e Mário de Andrade. Isso será mais visível no passo seguinte, o Poema Sujo (1975), em que estes poetas brasileiros (e mais alguns outros, em particular João Cabral) são estilizados, imitados, às vezes parafraseados. Apoiando-se em nossa tradição literária recente, Ferreira Gullar exercita um virtuosismo estilístico de longo fôlego. Neste instante, parecem ter sido superadas as angústia de A luta corporal, a objetividade dos poemas concretos e neoconcretos, e o desvio populista do cordel: pelo mergulho na memória e na infância, o poeta consegue fazer emergir um quadro que é ao mesmo tempo seu (individual) e brasileiro (social), buscando uma linguagem que equilibre rigorosamente a liberdade individualista da expressão e a necessidade socializante de comunicação.
Dos textos escritos durante a fase mais repressiva da ditadura, se não podemos dizer que eles reflitam as correntes literárias da época (mas essas foram tão pobres… ), podemos entretanto dizer que eles, a seu modo, refletem a atmosfera brasileira daqueles anos. Lá estão representados o golpe de 1964, com seu cortejo de ilusões perdidas, a guerra do Vietnã, a guerrilha boliviana do Che, a sucessão de exílios. E sobretudo está ali o clima da vida intelectual de então, em poemas como “Agosto 1964”, “O Prisioneiro”, “Exílio”, “Por você por mim”, “Dentro da noite veloz”, e ainda outros, que tematizam momentos de esperança ou desencanto, às vezes de raiva e amargura, mas sempre guardando a perspectiva do futuro. Essa linha ampla e complexa, que revela o poeta amadurecido buscando uma cada vez maior compreensão das coisas e dos fatos, terá prosseguimento no último livro, intitulado Na Vertigem do Dia (1980), que forma com os dois anteriores um conjunto bastante homogêneo, do ponto de vista temático-estilístico.
Este paralelismo rudimentar basta para nos mostrar a ligação que existe entre a obra poética de Gullar e a história recente do país. No entanto, serve apenas para explicar seu aspecto mais superficial e para situar-nos diante da sucessão de estilos que ela apresenta; não nos leva à compreensão interna das várias passagens nem à motivação dessas. Porque Ferreira Gullar não é apenas (como um repórter) um poeta preocupado em perseguir os acontecimentos e em retratá-los. Se ele faz isso, se ele busca esta sintonia constante, é porque obedece a alguma necessidade profunda que certamente estará inscrita em seus poemas e que – descoberta – nos dará a chave para entendê-los melhor.
Penso que uma frase de Sérgio Buarque de Hollanda, na curta “Introdução” a Toda Poesia, destaca esta necessidade interior que devemos procurar. Depois do endosso às opiniões sobre Gullar, de Vinícius (“é o último grande poeta brasileiro”) e de Pedro Dantas (“é a última voz significativa da poesia”), Sérgio Buarque de Hollanda amplia o elogio dizendo que, salvo algumas peças de Mário de Andrade e Drummond, Gullar “é o nosso único poeta maior dos tempos de hoje”. E acrescenta: “Mas em Gullar a voz pública não se separa em momento algum de seu toque íntimo, de seu timbre pessoal, de esperanças e desesperanças, das recordações da infância numa cidade azul, evocada no meio de triste exílio portenho.”[2]

Deixemos de lado o tamanho do poeta e as comparações com Mário e Drummond, tão contestáveis. Interessa a observação final, que sublinha aquilo que de fato me parece a característica mais evidente da poesia de Ferreira Gullar. Sem dúvida, dentro dela avulta o lado público, a preocupação com a história, o direcionamento para o combate ideológico. Neste sentido procede bem a comparação com os dois modernistas, principalmente com o primeiro, um dos mais engajados de nossos escritores. Mas não há como negar o caráter subjetivo que, nesta poesia, se sobrepõe às vezes à sua dimensão empenhada na luta política. Salvo o tempo curto do CPC – de resto, o mais pobre, embora não pouco importante –, o leitor destes textos experimenta a sensação muito clara de estar diante de um “eu” atormentado, que busca definir-se diante de problemas como a natureza da poesia, o fluir do tempo, a deterioração do corpo, a memória de fatos e pessoas, a morte, a fragilidade das coisas, as relações sociais, as atitudes humanas etc. O que vemos emergir dos textos, de acordo com a definição clássica de lirismo, é esta subjetividade crispada face às dores da vida, o “toque íntimo”, como diz Sérgio Buarque de Hollanda, que não se separa – e isso fique claro – da “voz pública”.

Um dos objetivos deste ensaio é discutir as ideias e a prática de Ferreira Gullar com relação ao problema do “nacional-popular”, isto é, de uma arte e uma literatura que sejam capazes de expressar a “nação brasileira” e o seu “povo”. A formulação desta ideia ocupa um instante muito preciso da trajetória do poeta, o momento dos Centros Populares de Cultura, da União Nacional dos Estudantes, e tem a seguir (no fim dos anos 60 e na década de 70) um desenvolvimento mais esbatido e flexível, como se pode deduzir dos seus últimos livros. Entretanto, creio não ser possível estudá-la diretamente, isolando-a de outras características da obra e focalizando-a de modo pontual.

Isso, em primeiro lugar, porque a ideia de uma literatura nacional-popular é tão velha quanto a própria literatura brasileira. E ainda, o que é mais decisivo, porque a junção entre timbre pessoal e voz pública modula o problema de vários modos, diferente em cada escritor que decidiu-se a enfrentá-lo. Para lembrarmo-nos de como este último aspecto é importante, basta nos reportarmos ao Modernismo, que já nos primeiros anos se dividiu entre tantas formas de representação da nacionalidade e do povo, concebendo-os em tantos matizes diferentes entre si (e até mesmo opostos) quantas eram as cabeças pensantes. Só para concretizar melhor: em Mário de Andrade, por exemplo, a paixão pela cultura popular vai combinar-se com a informação erudita e mesclar-se, ainda, com obsessões muito pessoais, para produzir os sucessivos tipos “brasileiros” e “populares” de que sua obra está cheia.

Do Cabo Machado, “bandeira nacional”, em Losango Cáqui, passando pelos sofredores do subúrbio paulistano, nos Contos de Belazarte, e pelo folclore do Clã do Jabuti até Macunaíma, “herói sem nenhum caráter”, todos eles apresentam sutis ou grandes diferenças, em relação uns com os outros. Sua unidade nasce, muito menos de uma suposta realidade brasileira (à qual, não obstante, ela deve sempre alguma coisa), do que de um timbre pessoal, um colorido completa­ mente mário-andradino.

Se o compararmos agora com Drummond, veremos que as distâncias se alargam: o aproveitamento do popular no poeta mineiro, conquanto seja amplo e tenha contribuído de modo decisivo para a grandeza de sua obra, tem pouco a ver com a sistemática e espetacular incorporação realizada por Mário. Em Drummond a assimilação é discreta e seletiva, realizando-se em função de uma sensibilidade fechada e pudica, generosa também, mas contidamente reservada. E se resolvêssemos pensar em João Cabral, Guimarães Rosa…

Por enquanto, pelo menos, a melhor maneira de abordar as preocupações com a ideia de uma literatura nacional-popular é estudá-las no instante em que elas surgem, no contexto que lhes dá origem. Ou melhor: no interior da obra do escritor que resolveu enfrentá-las, e procurando sempre relacioná-las com as outras preocupações temáticas e estilísticas que se combinem com elas. Por isso este ensaio, embora não pretenda ser uma leitura de toda a poesia de Gullar, deve entretanto encará-la globalmente, descendo a particularidades que, na aparência, estarão muito distantes deste nosso objetivo. Mas logo se verá (eu espero) que as digressões confluem todas para o mesmo ponto nuclear: a ideia de se representar, na literatura, uma identidade nacional, está em estreita relação com a tentativa de fazer surgir, através da pesquisa poética, uma identidade pessoal que, por sua vez, retire força e substância de uma identidade cultural. Os percalços da viagem, afinal a própria matéria da poesia, relacionam-se com acidentes de toda ordem, desde os mais íntimos (disposição afetiva, conflitos amorosos, peculiaridades do sujeito) aos mais amplos e gerais (situação política, ideologias de grupos, tradição literária etc.). Tentemos avançar a pesquisa.

GULLAR E A GERAÇÃO DE 45

De que forma o Modernismo foi encalhar na geração de 45, isso ainda é um mistério. A explicação corrente mais aceita procura mostrar tal desenlace como consequência da reação formal contra a agressividade da vanguarda, busca de maior rigor poético em substituição à liberdade anárquica da experiência. Mas este tipo de resposta – situada no interior da “série literária” e obedecendo a uma dialética restrita –, é no mínimo insuficiente. Compreende-se que, a um período de experimentalismo acentuado, suceda uma fase de maior contenção inventiva e de maior respeito às regras do bem-fazer poético. Isso, entretanto, não basta para esclarecer as causas da rigidez, disciplina e estreitamento de horizontes que caracterizam o grupo de poetas saídos da ditadura Vargas.

Na verdade, devem existir outros motivos, de ordem social e ideológica, que nos ofereçam um esclarecimento mais convincente. Não descartamos a hipótese da evolução formal: houve de fato desgaste do experimentalismo modernista e necessidade de substituí-lo por formas expressivas mais apuradas. Mário, Bandeira, Drummond, Murilo, Jorge de Lima – estes poetas alcançaram nos anos trinta uma verdadeira superação das inovações técnicas que o Modernismo havia introduzido entre nós. No entanto, paralelamente a essa decantação da experiência, no início confundindo-se com ela, surgiu outra linha que retomava vários elementos do Simbolismo do início do século e que, dentro de uma visão mística, espiritualista da poesia, reagiu contra o coloquial e o cotidiano, afastando-se para regiões solenes. A palavra de ordem passou a ser a seriedade contra o espírito moleque dos anos vinte – como se o humor modernista não tivesse condições para habitar as altas esferas da literatura. Daí para a eloquência e para as formas enfatuadas foi um passo.

A dificuldade está em determinar a conjuntura social e ideológica que permitiu este passo. É preciso lembrar a intensa disputa política que ocorre no Brasil na época. Da Revolução ao golpe de 37, a burguesia se divide em lutas pelo poder e pela definição do papel do Estado; grupos liberais, fascistas ou de esquerda tomam posição diante dos problemas brasileiros, propõem programas e projetos. E a literatura é totalmente atravessada pelo debate, de tal modo que as preocupações de ordem estética mudam de órbita, abandonando as experiências em torno da crise da representação e voltando-se para os problemas sociais. Aliás, a reviravolta não é só brasileira, mas internacional, pois tanto na Europa e na União Soviética como nos EUA, a literatura e a arte em geral tendem· a procurar novas formas de realismo para responder às exigências do momento. No Brasil, entretanto, a marcha destes realismos, que a princípio anunciava-se forte e criativa, sofre um entrave com o Estado Novo e, a seu término, quando o país retoma o regime democrático, a floração de literatura social já havia quase cessado. Houve ainda um curto período de combate, com a inteligência progressista animada pela vitória sobre a ditadura interna e sobre o nazi-fascismo. Mas logo o enrijecimento de posições decorrente da guerra fria, junto a certo sectarismo demonstrado pelas direções da esquerda, vêm espalhar a descrença e o desânimo entre os intelectuais, que preferem então encaminhar-se para um trabalho mais reservado, mais distante dos interesses imediatamente políticos. Este quadro de retraimento geral dominará sobretudo a nova poesia (com algumas exceções, entre elas a de João Cabral de Mello Neto) e só terminará, por paradoxal que pareça, com o movimento concretista já durante o governo Kubitschek.

A geração de 45 nasce, portanto, da derrota de uma das tendências do Modernismo. Ou, se quisermos, da incapacidade mostrada por essa tendência para superar o lado de simples denúncia populista, característico da literatura social dos anos trinta, e para ultrapassar o papel de consciência modernizadora que o movimento cumpriu durante algum tempo. De fato, as últimas obras de Mário de Andrade (Café, Lira Paulistana e O Carro da Miséria) bem como A Rosa do Povo e o romance de Graciliano Ramos, mostram essa possibilidade de superação da consciência burguesa: o Modernismo esteve perto de colocar o conflito de classes no centro de sua produção. No entanto, não foi isso que aconteceu, e só razões históricas ainda mal conhecidas poderiam explicar a mudança de rumos operada para a direita. Levantamos algumas dessas razões (a repressão do Estado Novo e o sectarismo da guerra fria), mas elas nos parecem ainda insuficientes, de modo que temos de nos contentar por enquanto com a pura constatação do recuo formal e ideológico observado.

Aliás, notemos que o próprio Mário de Andrade, desde a década de trinta, já diagnosticara e combatera o recuo, num ensaio intitulado “A Volta do Condor”. Ali, a propósito da poesia de Augusto Frederico Schmidt, Mário examinava a crescente tendência retórica, passadista, que começava então a dominar a produção poética. Comparando-a com as realizações do Modernismo, que a esta altura também não o satisfaziam, achava entretanto que as reações do “estilo elevado” não acrescentavam nada de novo à poesia brasileira. Dai a observação dura dirigida a um estreante jovem, em cujo talento acreditava e por quem se interessava pessoalmente. Comentando o verso “Por campos vim cantando ao vento frio e olhando o trigo morto”, do primeiro livro de Alphonsus de Guimaraens Filho, escreve ele: “Acho que em grande parte a nova libertação poética de após o pragmatismo nacionalista da minha geração, em vez de conseguir com isso maior intensidade lírica, está voltando, não nos superando não, mas voltando a certos artificialismos tradicionais. Aceito perfeitamente que o poeta esteja livre do tempo e dos espaços. Reconheço também que certos assuntos de alta envergadura exigem certa nobreza expressional que impede a linguagem comezinha. Mas é uma facilidade e mesmo uma verdadeira falsificação voltar, por causa dessas verdades incontestáveis, a um vocabulário de estudante de Coimbra, a entonações de oratória convencional, a fraseologias parnasianas ou simbolistas. Infelizmente não consigo descobrir a verdade, mesmo intelectual, de um poeta moço, mineiro da gema, vivendo em Belo Horizonte, inaugurando a avenida do Contorno que, no momento de ser poeta me vem falando em frases que reconheço pertencentes a escolas passadas e usando como suas imagens o trigo, o pinheiro, os pastores e os peregrinos”.[3]

A crítica punha o dedo na ferida: a reação contra o “pragmatismo nacionalista” do Modernismo – isto é, contra a linguagem cotidiana, vulgarizada, “brasileira”, de seus poetas –, em vez de conduzir a um lirismo mais apurado, volta à retórica convencionalíssima de escolas anteriores. E Mário de Andrade, que conhecia bem o problema, não hesita em apontar a componente alienada, sem verdade “mesmo intelectual”.

É nesse clima de poesia retórica que Ferreira Gullar escreverá as primeiras composições de A Luta Corporal, os seus “Sete poemas portugueses”, no caso muito bem intitulados: não porque tenham “vocabulário de estudante de Coimbra”, mas porque apresentam uma linguagem de corte literário, de gosto arcaizante, mais próxima à tradição simbolista (portuguesa e brasileira) do que às inovações abrasileirantes do Modernismo. São poemas “literários”, no sentido negativo que as vanguardas históricas deram a este termo, depreciando o arranjo caprichoso das palavras, a procura rebuscada de melodia, a obscuridade proposital, a ponta de preciosismo que satura e enfeita os textos. Desconheço as influências recebidas por Gullar nessa época (por volta de 1950), mas é fácil perceber que a atmosfera dos “Sete poemas portugueses” se aproxima daquela que existe nos livros da geração de 45. Os “campos noturnos”, os “rios noturnos”, as fontes, a água e o musgo, a flor e a estrela, os desvãos das “nuvens que fogem” – o vocabulário é similar, comum a esses poetas que tentam criar um universo abrandado de desespero em surdina, de solidão e incomunicabilidade. A destreza verbal demonstrada faz apelo à magia e ao mito, buscando fórmulas de encantação sonora, diluindo os ritmos, afrouxando as cadências do verso por meio do deslocamento dos tempos fortes, de modo que a impressão final seja de algo flutuante e etéreo.

Mário de Andrade talvez estranhasse esse arredondado e penumbroso num poeta jovem que acabava de chegar ao Rio, vindo do Maranhão. E de fato há um artificialismo e um despaisamento (que o título “poemas portugueses” acusa) muito sensíveis nos textos, e que são ainda a marca da pesquisa abstratizante, incolor à força de ser antipitoresca, do grupo de 45. No entanto, no caso de Gullar não seria correto negar pelo menos a procura de uma “verdade” – sob o fluxo retórico (de passagem, assinalo que mesmo a retórica é admirável para os vinte anos do poeta) o leitor sente a força da inquietação que busca expressar-se, rompendo o bem-comportado da surdina:

(…) as imagens sob os lixos

no chão profundo de osgas vis e auroras

onde os milagres são poeira e bichos;

e sobretudo um tão feroz sossego,

em cujo manto ácido se escuta

o desprezo a oscilar, pêndulo cego;

nada regula o tempo nessa luta

de sais que ali se trava.(…)

Aqui, não é só o vocabulário que cria a contundência. Ele conta, sem dúvida: lixo, osgas, poeira, bichos, tais palavras ajudam a armar um sistema de referências que agridem o constante desvanecimento do universo poético desses textos. No entanto, é fácil perceber que o léxico é balanceado: o chão é profundo, as osgas são vis, e há auroras e milagres E apesar disso os versos marcam, deixando uma conotação forte de desassossego, creio que em parte derivada de forma explícita das oposições (“feroz sossego”, “manto ácido”), mas também da metaforização do tempo (“desprezo a oscilar”, “pêndulo cego”), que apela ao final para a imagem corrosiva da “luta de sais”. Mais tarde, as palavras fortes indicadoras de desgaste e a imagística mordente serão as preferidas pelo poeta. Por enquanto, ao fim desses “poemas portugueses”, o desespero diante da destruição e do perecimento ficará preso nas formas contidas, algo requintadas – mas muito bonitas –, desses versos em que encontro não sei o que da dicção de Fernando Pessoa, como se eles fossem uma mistura da visão moderna de Álvaro de Campos e da tentação classicizante de Ricardo Reis:

9

Fluo obscuro de mim, enquanto a rosa

se entrega ao mundo, estrela tranquila.

Nada sei do que sofro.

O mesmo tempo

que em mim é frustração, nela cintila.

E este por sobre nós espelho, lento,

bebe ódio em mim; nela, o vermelho.

Morro o que sou nos dois.

O mesmo vento

que impele a rosa é que nos move, espelho!

O tema é o tempo, sua passagem desagregadora. Mas é difícil defini-lo com exatidão, pois ele se decompõe nos três focos que o poema fixa de maneira difusa: o “eu”, a rosa e o sol. A conjunção desses três elementos forma um instante de beleza, um tempo que cintila pleno na “estrela tranquila”, no vermelho da rosa que se entrega ao mundo, mas que flui obscuro do “eu”, em sofrimento, frustração, ódio e morte. O núcleo do poema é este contraste entre o esplendor natural da rosa e o tormento do homem. O “espelho lento” do sol ilumina uma desigualdade: o tempo eternamente belo e calmo da natureza (mesmo que seja efêmero como a beleza da flor) e o tempo circunstancial da vida humana, cujo sentido é o de destruição. A diferença doída, no canto que busca criar a harmonia, é sentida como duplamente irônica: é, primeiro, a impossibilidade de o poeta ser-como-a-rosa, de cintilar tranquilo – pois nele o tempo não é criador, é frustração; e, depois, como a impossibilidade de o próprio canto cristalizar a beleza, espelhar o vermelho e não o ódio. Essa consciência do tempo humano como incapacidade de plenitude será depois o demônio de sua poesia.
Mas isso veremos adiante. Quero, agora, chamar a atenção do leitor para a linguagem do texto. Notemos que as imagens (rosa = estrela tranquila; sol = espelho lento; tempo = vento), embora facilmente encontráveis na poesia da época, estão aqui reduzidas ao mínimo; e, o que é mais importante, não são usadas para criar um ambiente flou mas, ao contrário, entram em relação de oposição tensa com a ideia de fluxo. Só isso já mostra certo afastamento da geração evanescente de 45. Mas a nitidez de construção do poema, obtida através de repetições e espelhamentos, é o feito mais notável de Gullar. Observemos a disposição espacial dos elementos no texto: no primeiro verso da segunda estrofe, o “espelho, lento” parece corresponder a “rosa” (primeiro verso, primeira estrofe), que está em posição análoga. Ainda “estrela tranquila” (segundo verso, primeira estrofe) encontra o seu similar semântico e posicional em “o vermelho” (segundo verso, segunda estrofe). Já no terceiro verso, desmembrado nas duas estrofes, o paralelismo se acentua: “Nada sei do que sofro” / “Morro o que sou nos dois” e “O mesmo tempo” / “O mesmo vento”. E os últimos versos de cada estrofe mostram também similaridades sintáticas e semânticas, terminando ambos com termos do mesmo paradigma (cintila/espelho). Retenhamos essa disposição de espelhos, em que o elemento espacial tem importância. Ela será mais tarde transformada em um dos principais processos poéticos utilizados por Gullar.

RUPTURA E RETÓRICA

Ao final dos “poemas portugueses”, Gullar parece ter rompido suas relações com a geração de 45. Pelo menos não escreverá mais como ela, na forma preciosa de quem procura a palavra poética, o ritmo encantatório e a penumbra da chamada magia verbal. Ao contrário, sua poesia agora se fará contra o poético refinado, contra o requinte literário, contra as zonas escuras de encantação. A luta não será mais para dissolver o veneno, contemplando a fluidez obscura de si mesmo e imergindo nela; no sentido inverso, a luta será para fazer emergir o obscuro e com ele preparar um coquetel de venenos variados, raivosa· e decididamente engolidos. O pior dos venenos parece ser a literatura, e o poeta investirá contra ela, ao mesmo tempo apurando-a e tentando destrui-la. O paradoxo que essa atitude contém – e que atormenta todas as artes do século XX – dará o tom moderno dos poemas de A Luta Corporal, a atualidade que ultrapassará o vazio simbolista de 45, conferindo músculos à pesquisa interiorizada.

Se é assim, por que então ligá-lo ao grupo de poetas dominante na época? De fato, Ferreira Gullar é diferente, e tem um toque pessoal, uma originalidade toda sua, e sobretudo um inconformismo que o leva a romper os processos convencionais. Da nossa distância de trinta anos, é fácil ver o quanto ele se adiantou e se afastou de poetas como Ledo Ivo, Mauro Mota, Alphonsus de Guimaraens Filho, Domingos Carvalho da Silva e outros. Resta, entretanto, que na ferocidade demonstrada sobrou sempre um pouco de retórica a mais, um excesso literatizante que encontramos nos textos mais raivosos, mais contrários à literatura. Nos poemas em prosa, por exemplo, nas partes intituladas “Um Programa de Homicídio”, “O Cavalo sem Sede” e “As Revelações Espúrias”, percebe-se que o alvo principal é a linguagem literária, atacada com o desespero de quem procura liberar-se das fórmulas prontas e encontrar a expressão nova. Pois apesar disso um preciosismo verbal está presente por baixo das grosserias e das blasfêmias, e serve para mostrar até que ponto o poeta estava preso à concepção nobilitante da linguagem literária. Observemos o início do texto “Carta ao inventor da roda”:

O teu nome está inscrito na parte mais úmida de meus testículos suados; inventor, pretensioso jogral dum tempo de riqueza e providências ocultas, cuspo diariamente em tua enorme e curiosa mão aberta no ar de sempres ontens hojeficados pela hipocrisia das máculas vinculadas aos artelhos de alguns plantigrados sem denodo. Inventor, vê, a tua vaidade vem moendo meus ossos há oitocentos bilhões de sóis iguais-desiguais, queimando as duas unhas dos mínimos obscurecidos pela antipatia da proporção inelutável. Inventor da roda, louvado a cada instante, nos laboratórios de Harvard, nas ruas de toda cidade, no soar dos telefones, eu te amaldiçoo, e principalmente porque não creio em maldições. Vem cá, puto, comedor de aranhas e búzios homossexuais, olha como todos os tristíssimos grãos de meu cérebro estão amassados pelo teu gesto esquecido na sucessão parada, que até hoje tua mão desce sobre a madeira sem forma, no cerne da qual todas as mecânicas espreitavam a liberdade que viria de tua vaidade. […]

O tom continuará o mesmo até o fim, e é ele que nos importa aqui, pois tanto a inovação como a permanência da poesia de Gullar (nessa fase) se dão através dele. Em que inova? Isso é fácil explicar: na agressividade que se obtém através de termos pesados ou chulos, no desprezo da suavidade, na compreensão de que a poesia pode não ser requinte, pode ser também grossura proposital. Inova na medida justamente em que constrói, como poema, um antipoema, antissublime, contra o estilo alto. E em que permanece? No retórico, na oratória levada ao limite extremo do jogo de palavras sonoras quase sem sentido, na “nobreza expressional que impede a linguagem comezinha” – como diria Mário de Andrade. Sinto assim, como se Ferreira Gullar, enjoado pela caprichada linguagem literária, levasse o capricho até o seu ponto máximo, esticasse a retórica até a beira do ridículo. Como o dandy, que busca ultrapassar a elegância exagerando-a, tornando-se elegantíssimo – e dessa maneira indiscreta caricaturando o elegante, deformando-o.

É nesse sentido que vejo A Luta Corporal como um livro ainda característico do período esteticista que vai do fim do Estado Novo até o Concretismo. Disse – no começo deste ensaio – que a linguagem contida, típica da poesia da época, parecia o correspondente literário da repressão que acompanha o processo de institucionalização do país.

Nesses poemas o que se vê não é a aceitação submissa do bom comportamento mas, pelo contrário, a rebeldia. No entanto, o recalque não é vencido completamente e a forma poética não se libera das regras literárias nem se expande de maneira ampla. Ainda submetidos ao jugo do recalque, os textos se deformam, conciliando o impulso blasfemo, sacrílego, à linguagem solenizante, empostada (empolada?), que termina ressacralizando aquilo que se queria profanar. Para continuar com a metáfora, em termos freudianos talvez abusivos: não há uma sublimação completa, há uma espécie de formação de compromisso, em que recalque e liberdade se compõem.

No entanto, trata-se claramente de um processo de procura da expressão, que não se contenta com a literatura disponível, que arremete contra a linguagem, e que vai acabar por destruí-la. Vejamos agora como se dá este processo.

CANTO E CONTINGÊNCIA

O primeiro grande poema de A Luta Corporal é o conhecido “Galo galo”, que tematiza também, como o número 9 dos “poemas portugueses”, a precariedade do canto. Mas aqui, em vez de focalizar a precariedade no tempo, o autor vai preferir centrar-se no nascimento do canto e na sua impotência contingente: fora do galo, o grito, “fruto obscuro”, “é mero complemento de auroras”.

A primeira coisa interessante dessa poética é a completa mudança de linguagem. Embora tratando os mesmos temas de antes, a expressão ganha a contundência que não possuía. O clima de sonho é substituído pela apresentação clara dos objetos, que se presentificam diante de nós como reais e concretos, como se fossem desenhados pelos procedimentos icônicos empregados. O novo estilo não dispensa os adjetivos, mas usa-os de forma quase substantiva (“galo galo” é o exemplo extremo), muito sóbria, apenas para ressaltar a figura, nunca para solenizar (como em “chão profundo”, do “poema português” número 9) ou para mitificar (como “longo rio solitário”, do “poema português” número 7). Simplificação de recursos, empobrecimento de meios que resulta em riqueza expressiva.

O galo

no saguão quieto.

Galo galo

de alarmante crista, guerreiro,

medieval.

De córneo bico e

esporões, armado contra a morte,

passeia.

Mede os passos. Para.

Inclina a cabeça coroada

dentro do silêncio

– que faço entre coisas?

– de que me defendo?

Anda

no saguão

O cimento esquece

o seu último passo.

Só para explicitar a mudança, que já é tão evidente na simples leitura: o tom obscuro dos “poemas portugueses” é substituído pela visão nítida, econômica, que parece desenhada a bico-de-pena, de tal modo que a subjetividade dos primeiros textos, de impregnação difusa, passa aqui para o segundo plano. Mas não some. De fato, não se trata de uma descrição, trata-se da criação de um símbolo; e a subjetividade vai penetrar no poema, transformando o galo no “correlativo objetivo” dos sentimentos do poeta – isto é, metaforizando-o. Na segunda estrofe, “alarmante” já tem um aspecto subjetivo; na terceira estrofe, o “armado contra a morte” já prepara o clima que será desenvolvido depois; na quarta estrofe, o galo que medita sobre a sua situação no mundo já esta personificado; na quinta estrofe (notemos aqui de passagem o belo movimento dos versos “Anda / no saguão”, em que o arranjo espacial reforça de novo o sentido) até as coisas ganham vida: o cimento esquece o último passo.
Temos a metáfora galo/poeta. É preciso confrontar ainda com o nono “poema português” para ressaltar outra diferença: ali comparava­ se (de modo implícito) o canto do poeta com o brilho da rosa, “estrela tranquila”. Aqui a comparação vai mais em direção aos espinhos que à flor: “alarmante crista, guerreiro / medieval”, e “córneo bico e / esporões”. A concepção da poesia mudou, não se insiste mais sobre o seu caráter de plácida cintilação. O desacordo, antes só do homem, estende­ se agora para além dele e toca os próprios elementos da natureza. E o canto, coisa viva, em que se trabalha. é inquietude, luta contra a morte. Isso surgirá em seguida:
Galo: as penas que
florescem da carne silenciosa

e o duro bico e as unhas e o olho

sem amor. Grave

solidez.

Em que se apoia

tal arquitetura?

Saberá que, no centro

de seu corpo, um grito

se elabora?

Como, porém, conter,

uma vez concluído,

o canto obrigatório?

Eis que bate as asas, vai

morrer, encurva o vertiginoso pescoço

donde o canto rubro escoa.

Mas a pedra, a tarde,

o próprio feroz galo

subsistem ao grito.

Vê-se: o canto é inútil.

Desenvolvimento seco, bonito. Primeiro, a retomada objetiva (e totalizante) da descrição do galo, em que os traços mais agressivos são ressaltados: as penas guerreiras, o bico, as unhas e o olho “sem amor”. A solidez da construção é minada entretanto por uma dúvida: em que se apoia? E da dúvida passa-se para a interrogação sobre o canto, no interior do galo. Duas estrofes em forma de pergunta introduzem este tema de maneira imediata. E o poeta parece considerar o canto como inconsciente (o galo saberá dele?), espontâneo (o grito se elabora) e inevitável (obrigatório, é impossível contê-lo). Há uma necessidade por baixo de tudo, e é como se, cantando, a figura do galo se completasse, se arrematasse, definitiva. O trecho encerra uma visão extremada e idealizada da poesia, uma visão de plenitude e totalidade. Apesar da diferença entre o símbolo suave da rosa e a ferocidade do galo, ambos têm isso em comum: o seu brilho é (ou deveria ser) a iluminação decorrente de um sistema interno de necessidades – natural, portanto –, e no seu máximo consumaria tudo, extinguindo qualquer confronto. Uma vez concluído o canto, que desapareçam o cantor e o mundo à sua volta.

Esta concepção apocalíptica esbarra na realidade, na simples impossibilidade do absoluto. Fica uma nostalgia do todo, da divindade. Desejoso de perfeição, o canto é apenas contingente, não culmina coisa alguma; logo – vê-se – ele é “inútil”, é canto mas ao mesmo tempo é nada. Nesses extremos, a poesia aparece como inessencial, pois não atinge seu próprio objetivo:

O galo permanece – apesar

de todo o seu porte marcial –

só, desamparado,

num saguão do mundo.

Pobre ave guerreira!

Outro grito cresce

agora no sigilo

de seu corpo; grito

que, sem essas penas

e esporões e crista

e sobretudo sem esse olhar

de ódio,

não seria tão rouco e sangrento.

Grito, fruto obscuro

e extremo dessa árvore: galo.

Mas que, fora dele,

é mero complemento de auroras.

Redução da linguagem, maior agressividade dos símbolos, colocação mais direta dos problemas – nesses três pontos pode-se resumir o passo adiante dado por Ferreira Gullar com o poema “Galo galo”. Abandonando a tonalidade diluída dos textos anteriores, ele se colocava no centro contraditório da literatura contemporânea: anseio de totalidade e consciência de que ela é impossível; desejo de imanência do sentido nas coisas, e compreensão de que o sentido é transcendente, alça-se para fora do sujeito e depende de algo que está além dele; procura da harmonia geral, e encontro com um universo de oposições e indiferenças, em que o desejo humano esbarra no alheamento do outro, num mundo de mônadas, de coisas fechadas em si mesmas. O canto do galo (o poema) soa desamparado e impotente.

CORPO, LINGUAGEM, TEMPO (MASTIGAR-SE)

Essa visão da totalidade que não se atinge será a substância de A Luta Corporal. O ideal da poesia que se baste a si mesma, que se consuma e consuma o mundo no seu próprio fogo, será o objetivo impossível perseguido pelos poemas. Daí resultará a ironia, compreendida aqui esta palavra em duplo sentido: como consciência corrosiva da plenitude irrealizável, e como processo literário, que consiste em acentuar de forma escarninha os contrastes que impedem a harmonia. Daí resultará, ainda, a fixação temática na desagregação, na passagem indiferente e destruidora do tempo, cuja ação simbolizará, de forma preferencial, seja o alheamento entre as coisas, seja a degradação física, o apodrecimento que conduz à morte ou que a segue – à morte, ponto máximo da perda do sentido. Por fim, dai resultará também a destruição da linguagem, que provém diretamente do enjoo com relação à insuficiência da expressão verbal – do poema, em última análise –, para captar o todo que deveria ser a poesia.

Dizer isso, entretanto, não resolve nem esgota o significado da procura que os textos de A Luta Corporal encarnam. No nível mais imediato, trata-se sem dúvida da “procura da poesia”, uma pesquisa que já ocorre no universo carregado de símbolos obscuros dos “poemas portugueses”, e que continuará também nas outras etapas, como uma espécie de constante. Só que modificada: poderíamos determinar outro nível, em que a “procura da poesia” se transforma em meditação sobre a passagem do tempo, sobre a solidão no meio de objetos irredutíveis entre si, sobre os limites da linguagem e suas falhas no instante de exprimir a experiência, sobre o caráter fugidio, quase inapreensível da beleza. Aquilo que domina esse segundo nível é o movimento irônico a que nos referimos, a consciência de que a iluminação epifânica é breve e insuficiente. Por isso a sensação do tempo corruptível, que apodrece os frutos e estraga o corpo, estará sempre presente, como base das metáforas. E por isso o livro terminará num fogo de destruição geral – do sentido, da linguagem articulada, do poema.

Tempo e linguagem são, de certo modo, os dois pilares sobre os quais os textos se assentam; trata-se da busca da beleza no tempo, na linguagem, busca atormentada que leva à destruição. Mas há ainda outro pilar, soldado a esses dois: é o “eu” que nos fala, uma persona lírica também se buscando de poema a poema, em cada um deles. Esse é outro nível, igualmente indispensável para a compreensão da pesquisa que é o livro: na medida em que tenta captar a beleza, confrontada ao tempo e à linguagem, o poeta busca de modo simultâneo definir-se, descobrir aquilo que ele é, seja diante da rosa, “estrela tranquila”, seja diante do galo, “desamparado num saguão do mundo”, seja diante do girassol, que se vê com assombro na sua precariedade. Cada uma das “revelações espúrias” é revelação do mundo e do próprio “eu”. Estas passagens do texto 1 de “Um Programa de Homicídio”, mostram de maneira explícita a conjunção dos três temas básicos:

Tempo acumulado nas dobras sórdidas do corpo, linguagem.

Meu rosto esplende, remoto, em que ar? corpo, clarão

soterrado!

Calcinação de ossos, o dia!, o escorpião de que o mover-se
é brilhos debaixo do pó.

Mar – oh mastigar-se!, fruto enraivecido! – nunca atual,
eu sou a matéria de meu duro trabalho.

[…]

Chego e os gerânios pendentes fulguram. As cousas que
estão de bruços voltam para mim o seu rosto inaceitável,
e consome as palavras o meu dia de trezentos sóis próximos.

[…]

As minhas palavras esperam no subsolo do dia; sobre elas
choverá, e sóis bebidos trabalham, sem lume, o seu cerne;
tempo mineral, eu as desenterro como quem desenterra os
meus ossos, as manhãs calcinadas – carvões!

[…]

construo, com os ossos do mundo, uma armadilha;
aprenderás, aqui, que o brilho é vil; aprenderás a mastigar o teu coração, tu mesmo

O trecho mostra como estamos longe e perto do nono “poema português”. A imagem final é a mesma – o brilho; mas está aqui com valor trocado, passou de “cintilação” a “brilho vil”. A frustração e o ódio que tanto incomodavam o poeta são agora assumidos por de, que se dispõe a trabalhar contra o luminoso e o cintilante, pela destruição. As imagens são expressivas:. a “calcinação de ossos”, o escorpião, os verbos como mastigar e queimar etc. E sobretudo a afirmativa “eu sou a matéria de meu duro trabalho”, que opõe (ao mesmo tempo com determinação e desespero) o esplendor natural das coisas – do mar, da rosa, do girassol, do gerânio, das frutas que amadurecem plenas na fruteira–, à solidão do homem, ser incompleto, que deve destruir-se e reconstruir-se incessantemente. O “duro trabalho” do poeta é a destruição: o mesmo tempo que faz as coisas fulgurantes, acumula-se para ele “nas dobras sórdidas do corpo, linguagem”. Construir-se é mastigar-se; fazer o poema é rebentar a linguagem.

PERAS MADURAS, CORPO GASTO

O poema “As peras” é uma descoberta do tempo, de si, do outro, dos limites do canto. É também um passo à frente do poema “Galo galo”, no sentido de que o poeta aprofunda e radicaliza sua experiência, descobrindo nela novos aspectos:

As peras, no prato,

apodrecem.

O relógio, sobre elas,

mede

a sua morte?

Paremos a pêndula. Deteríamos, assim, a
morte das frutas?

Oh, as peras cansaram-se
de suas formas e de

sua doçura! As peras,
concluídas, gastam-se no
fulgor de estarem prontas
para nada.

O relógio

não mede. Trabalha

no vazio: sua voz desliza

fora dos corpos.

A visão plástica predomina como sempre: essa “natureza morta” com o toque moderno do relógio é um quadro, paralisado diante de nós. Paradoxalmente, dentro dele tudo se move, tudo é fluxo de tempos – o das frutas, o do relógio e (sentimos) o do observador, nós mesmos ou o poeta. Reconciliados na linguagem, no quadro, na harmonia do poema, esses tempos e esses objetos são no entanto irreconciliáveis, cada um vivendo sua vida própria, alheio ao outro. Poderíamos dizer que a consciência desse fato restabelece as relações entre eles, e recompõe assim sua unidade; mas que pode a consciência contra o passar do tempo, que apodrece as peras fora dela?

Constatar essa impotência da subjetividade humilha duramente, porque é uma ferida no narcisismo poético. Diz Gullar: “eu estava descobrindo o seguinte: que eu sou uma coisa e o mundo é outra coisa. Então, nesse poema das peras, o dia comum, o dia de todos é a distância entre as coisas. Quer dizer, o dia comum não é a solidariedade entre as pessoas, não é a comunicação de uma pessoa com a outra, não é a soma de interesses que constitui a comunidade. Não, não. O dia de todos é a distância entre as coisas, quer dizer, as pessoas como as coisas estão todas isoladas e morrendo. Então, a pera está apodrecendo, o relógio sobre elas mede a sua morte? Não, não mede, o barulho dele escorre fora delas e elas apodrecem nelas mesmas. E na medida em que elas apodrecem elas vão ficando douradas, pra nada, vão ficando belas, refulgentes, pra nada”[4].

A visão é realmente, como ele diz também, “barra pesada”. Constatar que o mundo é um, e eu sou outro, é pôr em xeque a própria essência do lirismo, que deseja a todo custo ser “um-no-outro”, ser fusão e identidade absolutas. O dia das peras – seu canto – é um refulgir solitário, “para nada”. O instante do canto é plenitude, é tudo; mas quando ele pára, defronta-se com a morte, o vazio que é o nada. Também aqui construção e destruição convergem numa mesma coisa. Mas o poeta levanta a hipótese esperançosa de que o canto permaneça, e assim consiga burlar a morte:

O dia das peras

é o seu apodrecimento.

É tranquilo o dia
das peras? Elas
não gritam, como
o galo. Gritar

para que? se o canto

é apenas um arco

efêmero fora

do coração?

Era preciso que

o canto não cessasse

nunca. Não pelo

canto (canto que os

homens ouvem) mas

porque cantando o galo

é sem morte.

Era preciso que o canto fosse perene para driblar a morte e que a plenitude fosse eterna para reconciliar eternamente as coisas entre si, eliminar a existência de vários tempos contraditórios. Eliminar o tempo – eis tudo; porque se a qualquer instante o absoluto fosse atingido o sujeito viveria para sempre fora do tempo, numa eternidade que implicaria também uma identidade absoluta com todo o resto, o desaparecimento de todas as diferenças. Mas: “eu sou uma coisa e o mundo é outra coisa”. O ideal de Narciso, que é o de recolher todo mundo em si mesmo (como a poesia lírica), choca-se com a realidade da diferença: cada coisa é ela mesma, com seu próprio tempo finito, e está destinada à destruição. O canto do galo é efêmero como o brilho maduro da fruta, e ambos se dirigem, isolados, em direção à morte. A ilusão (de que a plenitude da poesia lírica possa contornar esse corte que impede a unidade de tudo) desaparece no passo seguinte, e o poeta passará a encarar a morte de frente. Toda a parte “Um Programa de Homicídio”, assim como “O Cavalo sem Sede” e “As Revelações Espúrias”, repisará sem cessar as mesmas imagens: o podre, o asqueroso, a vileza e a fatalidade do brilho, a inutilidade do canto, a morte.

No fundo, trata-se de uma depreciação violenta da literatura, que é também uma autodepreciação violenta. Mas há nisso uma força crítica que, ao contrário, não deve ser desprezada: o poeta recusa o mito da eternidade, firma-se na constatação do perecimento de tudo, na solidão como elemento essencial, para compor uma espécie de antimitologia antiliterária. O fato de ser anti não elimina, é claro, as dimensões da mitologia e da literatura; os textos continuam a tecer os seus símbolos no quadro de um discurso que apresenta sempre as características literárias. Mas é importante frisar o seu caráter crítico. O confronto com a realidade temporal desgastante faz desconfiar das belas palavras, da bela consciência que se levanta acima das contradições – a rigor, o confronto leva a desconfiar da beleza e da harmonia e a procurar seus avessos. Nesse sentido, a negatividade é o ponto forte desses poemas. O caminho percorrido por Gullar, da vaga nostalgia dos “poemas portugueses” até aqui, constitui uma luta constante contra a poesia, contra o brilho vil da carne, porque (como diz a “Carta do Morto Pobre”)

se não é da carne brilhar, qualquer cintilação sua seria

fátua; dela é só o apodrecimento e o cansaço.

Por outro lado, gostaria de sublinhar também o fato de que essa autocrítica representa (mesmo se de modo involuntário) uma crítica ao esteticismo da geração de 45, na medida em que este não desconfia dos brilhos verbais, das imagens de beleza e harmonia acalentadas. A luta corporal de Gullar, investindo sobre as cintilações fátuas, desnuda o caráter de artifício dessa beleza, expondo assim sua mentira. A uma velha e acomodada concepção de literatura – ideológica desde a raiz – ele vai opor a realidade do corpo/linguagem desgastado, em plena decadência, sórdido. Transcrevo o poema número 3 da parte “Um Programa de Homicídio”:

3

Não conte casos, a senhora está velha. As suas mãos secam, os seus dedos, os braços. As unhas, sem brilho, cansaram de crescer. Não finja, não brinque com crianças.

Não esqueça o seu corpo! Os cabelos embranquecem e caem. Os dentes apodrecem e caem. A senhora está gastando, sozinha, como os seus móveis de jacarandá em sua alcova. O nariz perde a forma, engrossa, é uma tromba. O rosto apagado (como um sol morto que nunca foi vivo) e enxuto – os olhos rodeados de infinitas pálpebras e melancolias – me lembra o pó o pó o pó irremissível!

A senhora tem quarenta e nove anos, não é? e as suas pernas afinaram; as nádegas, amolecidas na paciente rendição ao urinol cotidiano, as vossas severas nádegas, minha senhora, murcham sob as roupas. Triste cabelo, o que resguarda o seu sexo. Contra quê?
Não espere mais, a senhora sabe que já não seria possível.

Comovem-me os seus pés ossudos, velhos de séculos, como os dum galináceo. A senhora é grave, apesar de todos os seus vícios; apesar do batom e do rouge tardios e das sobrancelhas tiradas em vão. Apesar da forma ridícula que o corpo ganha e perde no arco do sentar-se.

O silêncio do seu corpo em pé,erguido no ar dos dias, desamparado como uma janela (que em tarde qualquer não estará aberta, nem fechada, em parte alguma do mundo).

Não saia. Sente-se nesta cadeira. Ou naquela.

Olhe o assoalho poeirento, que a senhora há duzentos anos pisa sem ver: olhe a luz nas tábuas, a mesma que incendeia as árvores lá fora. A tarde nas tábuas. Deixe que lhe penetre a densa espera do chão.

O tema mais imediato deste texto é a destruição provocada pelo tempo, o feio tomado como contraste para a beleza procurada. A carne gasta, seca, enrugada, podre, aparece como o contrário do brilho. Entretanto, se as “cintilações da carne” são uma imagem da poesia, é perfeitamente possível ler este texto de outro modo: como uma variação do tema da “literatura, velha prostituta”. E, lido como alegoria, o texto nos permite ver a junção clara dos três elementos que (como dizíamos atrás) estão na base da pesquisa poética de Gullar: o tempo, a linguagem e a própria identidade.

Sobre este último ponto – da identidade – gostaria de insistir um pouco mais. O tom geral dos poemas é sempre o da subjetividade. São textos saturados pela presença forte de um “eu”, presença devorante apesar da pretensão de ser objetivo. Às vezes o poeta fala de coisas aparentemente alheias a ele, que não são e não se reduzem a ele: o galo, as peras etc. É preciso entender que esse alheamento, embora essencial, é também figura, imagem, porque falando de objetos autônomos, encerrados em si mesmos, ele fala sempre de sua própria solidão. A objetividade externa dos poemas mascara (como vimos em “Galo galo”) uma profunda pesquisa subjetiva, que ultrapassa o psicológico para atingir o estatuto de interrogação de ordem filosófica sobre o ser, o estar no mundo entre coisas.

Como interpretar isso? Penso que, por um lado, não se deve limitar o nível de leitura: as imagens se referem, ou pretendem referir-se, ao âmbito humano mais geral, são perguntas sobre a natureza do homem, feita de tempo e linguagem. Mas por outro lado elas revelam também uma crise do indivíduo, não apenas de ordem psicológica, mas de ordem existencial: o ser que procura situar-se diante do mundo. Estes dois aspectos (nos quais é fácil encontrar um eco da problemática existencialista) são reveladores de que a pesquisa poética, além de encerrar uma reflexão sobre o tempo e um combate com a linguagem, é ainda a tentativa de trabalhar um “eu”, de compor uma identidade. Tentativa que parece destinada ao fracasso, à dissolução e à desintegração do “eu”. Pois o ponto de chegada, como estamos vendo, é a destruição da linguagem – o silêncio – e a destruição do “eu”, o suicídio.

O SILÊNCIO DA NEGAÇÃO

Depois de “As Revelações Espúrias”, Gullar tentará ainda o retorno ao discurso, com os poemas de “A Fala” e “O Quartel”. São textos nos quais a tensão diminui, como se o poeta fizesse um recuo tático, buscando a saída para o impasse a que chegara. Prosseguir na linha anterior seria de fato impossível: ao apontar a insuficiência do canto – e ainda mais: a sua falsidade – só lhe restava por coerência calar-se, de nada adiantando prosseguir no esbravejamento da denúncia. Foi a decisão de Rimbaud, por exemplo. A outra solução, no primeiro instante, é renovar a confiança na linguagem e apelar para “A Fala”, na tentativa de ultrapassar o oco do silêncio. Os versos dessas composições, pelo menos nos poemas iniciais, são longos e descansados, parecendo buscar a placidez do discurso cotidiano. As imagens são de novo radiantes – fruto, sol, verão –, e tudo indica que uma certa felicidade, talvez decorrente da aceitação do mistério, substituirá a angústia dos poemas em prosa. Mas rapidamente a linguagem se embaralha, deixa de lado a simplicidade e volta a exprimir a contradição:

Fora, é o jardim, o sol – o nosso reino.

Sob a fresca linguagem, porém,

dentro de suas folhas mais fechadas,

a cabeça, os chavelhos reais de Lúcifer,

esse diurno.

Assim é a palavra. Onde a luz da palavra

torna à sua fonte,

detrás, detrás do amor,

ergue-se para a morte, o rosto.

Eterno retorno? Breve deixará de ser. Depois do estranho “O Quartel”, o poema “há o trabalho e (há) um sono inicial” empreende o passo à frente, da poesia para o silêncio. E finalmente o texto – será possível falar ainda de poema? – “Roçzeiral” completa a caminhada. Feito de grunhidos, de sons sem sentido, ele é um desmantelo raivoso da linguagem. De certo modo ele é o poema – na medida em que leva ao limite extremo a concepção da literatura como expressão: puro grito primitivo, que recusa enfeites, falsidades, ideologias. Principalmente ideologias. A linguagem rasgada incorpora (meio patética) o sem saída da condição humana, que é alçar-se sem esperança para a beleza. Trata-se de um ponto de culminância que encerra essa verdade, dita da maneira mais clara possível. E neste sentido o poema significa. Significa globalmente, embora suas palavras – e nem são palavras… – nada signifiquem, embora não se depreenda das suas partes o sentido racional. Tomado no conjunto, entretanto, ele está repleto de significação: é o nojo mais forte contra a falsificação retórica da linguagem, contra os simulacros da beleza, contra qualquer “brilho vil” que de­ grade. Sendo anticomunicação, ele assume em sua própria forma tanto a sua solidão social, como a solidão da morte que está no fim de todos os indivíduos.

Poucos artistas (e não só no Brasil) tiveram a coragem de caminhar em linha reta até um “Roçzeiral”. Isso conta imensamente a favor da arte de Ferreira Gullar, coerente em seus propósitos até o fim. No entanto, é preciso pensar no outro lado, e admitir que a caminhada em linha reta costuma desconhecer as complicações mais sutis dos arredores. Em outras palavras: é preciso observar que essa concepção de literatura erra por falta de flexibilidade. De fato, os problemas que ela coloca não são errados, mas são colocados de forma incompleta. O defeito estará no ponto de partida, lá no início dos “poemas portugueses”: o que desespera é a impossibilidade de aceitar que o momento de absoluta plenitude é impossível para o homem; e mais, é a impossibilidade de reconhecer que a própria ideia de coincidir com o absoluto encerra uma distorção.

A exigência de totalidade, aspiração à beleza suprema, corresponde ao desejo sem fundo (e real) de superar o intervalo entre os homens, ou entre os homens e as coisas. Trata-se do “sentimento oceânico”, encontrável na base das religiões, e que Freud tentou explicar desvelando a nostalgia inconsciente de um universo unificado e sem desníveis. É também o sentimento dionisíaco que Nietszche deu como presente no espírito da música, na origem da tragédia e no mais interno da grande cultura grega. E é, ainda, o impulso religioso que Lukács enxerga por baixo das direções alegóricas da arte contemporânea, sua busca idealista da totalidade e seu fracasso diante de uma transcendência vazia. Aquilo que parece faltar ao radicalismo dessa passagem para o grunhido, na poesia de Gullar, é o contrapeso necessário que lhe dê um balanceio mais dialético. Digamos, em termos freudianos, que falta opor ao instinto de morte, regressivo, igual força contrária de preservação da vida, o impulso erótico que permita sublimar a ferida narcisista da separação. Ou, em termos nietszcheanos, que o espírito dionisíaco precisaria ter sido reconciliado com a forma apolínea, sob pena de o artista perder-se (como aconteceu) na exaltação de suas próprias descobertas. E, por fim; mas agora como critica à falsidade completa das concepções de A Luta Corporal, na linha lukacsiana se arguiria ao poeta sua extrema arbitrariedade, sua subjetivação do tempo ( que é para ele puramente interior, não histórico), sua tendência abstratizante, sua incompreensão do concreto.

Esta última direção é a mais radical de todas, como crítica, e veremos adiante que foi por ela· que Gullar optou, quando se tratou de rever o rumo de sua poesia. No entanto, não estou convencido de que ela seja a objeção mais correta. De fato, a noção de tempo que acabamos de examinar nestes poemas refere-se a uma realidade subjetiva, e falta-lhe a dimensão histórica que permitiria suplantar a sensação de vazio, ao oferecer um sentido concreto àquilo que o “eu” percebe como ausência de sentido e arbitrariedade. Nesse caso, o fazer­ se, o construir-se, deixaria de ser mera destruição de si mesmo, na medida em que um fim, para o qual tendem todos os acontecimentos de maneira objetiva, permitiria articular a visão de totalidade capaz de conferir sentido ao vazio. Nem o canto do galo, nem o brilho da pera, seriam inúteis, destinados apenas à morte, mas teriam uma função de beleza (e outras), sempre numa direção positiva. E isso porque o “eu” também não se sentiria apenas destinado à morte: pertencendo a uma totalidade social (vista e compreendida), o seu dia seria o dia de todos, o dia comum da solidariedade, não do isolamento. O aspecto comunicativo da linguagem ganharia preponderância sobre o seu aspecto meramente expressivo e individualista, e assim se contornaria a obrigatoriedade de escrever sempre destruindo.

Este parece ter sido o caminho escolhido nos últimos tempos por Ferreira Gullar: o Poema Sujo é uma celebração do dia comum, e “Bananas podres” contrasta com “As peras” exatamente por tentar descobrir as relações que existem entre o azul do mar – “nosso horizonte” – e as frutas que apodrecem na quitanda. Essa visão, no entanto, não supera sempre de modo satisfatório as posições de A luta corporal: ao substituir o impulso religioso e a transcendência vazia por um outro tipo de finalismo (materialista que seja), ela tende a divinizar a história humana – transformada em História, “nosso horizonte” –, e assim não só recupera a religiosidade como, o que é pior, repõe uma positividade que muitas vezes falsifica a literatura, ideologizando-a e fazendo com que ela perca seu caráter crítico. Esta perda de negatividade examinaremos adiante.

A negação é – como vimos – a grande virtude desses poemas: negando a retórica, a eloquência, a facilidade das imagens, eles se destacam da massa anódina de textos da sua época. A desconfiança está instalada na raiz da linguagem, e toda palavra é suspeita de conduzir uma falsificação. O poeta afasta este perigo desgastando os seus significados, examinando-os, refazendo-os, e assim opera uma verdadeira crítica ideológica deles, já que contesta o seu uso habitual. No entanto, ao adotar uma atitude “perspectivista”, enche-se de otimismo e afasta a desconfiança da base de sua prática, substituindo-a pela fé nas novas convicções. A positividade toma conta do poema, permitindo o retorno da retórica.

Mas toda esta discussão já avança sobre o período “nacionalista” de Gullar, e ainda não estamos prontos para ir até lá. Gostaria aqui só de sugerir que a crítica lukacsiana ao solipsismo de poemas como “Roçzeiral” é perigosa porque desconhece o caráter de “negação da negação” que experiências individualistas deste tipo encerram. Seria preferível pensar, como o faz Adorno, que estes extremos da arte contemporânea escapam da falsidade ideológica justamente porque recusam o mito perspectivista e encaram as relações sociais como elas são no mundo atual, em que os indivíduos vivem de fato como mônadas isoladas no interior da sociedade. Mas, sem deixar de reconhecer essa virtude nos poemas finais de A Luta Corporal, seria também preferível criticá-los pelo que eles não souberam conter de sua força destrutiva, e pelo que eles não conseguiram realizar enquanto esforço de reconstrução formal. Quero dizer, apenas, que uma melhor dialética entre dionisíaco e apolíneo teria evitado o beco-sem-saída de “Roçzeiral” e de “Negror n’origens”, permitindo ao poeta exercitar a corrosividade de sua visão dentro de um quadro ainda intelectualmente delimitado.

VIL, MAS METAL

É isso, aliás, que provam os poemas escritos entre 1954 e 1960, e reunidos em O Vil Metal. Ao lado de certas peças de circunstância, encontramos textos extraordinários em que os velhos temas são retomados com maior amadurecimento, com maior controle d4 linguagem, e com a mesma visão amarga, temperada agora com a espécie de calma que têm os grandes artesãos. Veja-se, por exemplo, este poema “Escrito”, cuja força plástica só pode ser obtida através de uma depuração que seleciona os signos com “a precisão do maduro”:

Escrito

A prata é um vegetal como a alface.

Primaveril, frutifica em setembro.

É branca, dúctil, dócil (como diz a Lucy)
e, em março, venenosa.

O cobre é um metal que se extrai da flor do fumo.
Tem o azul do açúcar.

É turvo, doce e disfarçado.

O ouro é híbrido – flor e alfabeto.

Osso de mito, quando oiro é teia-de-abelha.

A precisão do maduro. Dele se fabricam a urina e a velhice.

Trata-se de novo de um quadro, e de novo o tema que desliza entre os objetos retratados é o tempo. É fácil, entretanto, notar a diferença de enfoque: da prata primaveril ao cobre (outonal? o poema sugere isso pela justaposição dos metais) e ao ouro maduro, vai apenas a gradação, valorizada, do envelhecimento, não o consumir-se das peras e do canto. Não há também o desejo de calcinação ou de apagar o brilho, cuja força notávamos no texto 1 de “Um Programa de Homicídio”. Em “Escrito”, o olhar para meditativo sobre as coisas, procurando apreendê-las de uma maneira muito interior, como se houvesse uma substância comum que as unisse ao “eu”: a prata como a alface, o cobre como o fumo, o ouro como flor e alfabeto – e todos como o homem. Essas comparações já não privilegiam o intervalo entre as coisas; ao contrário, buscam (como comparações… ) as relações que possam uni-las.

Não se pense por isso que a corrosão desaparece do poema completamente, pois o último verso de cada estrofe insinua o sentido negativo, sob a forma de veneno, de turbidez e disfarce, ou de urina e velhice. Na verdade o tom calmo do poema harmoniza tensões, e sua beleza nasce da descoberta dessa harmonia. É o caso, parece-me, de equilíbrio apolíneo conseguido sobre o tumulto dionisíaco – o mundo vegetal e mutável é paralisado no mundo mineral, e este por sua vez ganha o movimento e a capacidade de transformação dos vegetais. Como ambos estão referidos ao “eu”, a subjetividade impregna as forças opostas e parece (como a linguagem) tensa e controlada.

Seria exagerado considerar este texto como uma poética? A última estrofe nos permite esta interpretação. O ouro híbrido, “flor e alfabeto”, natureza e cultura, é também símbolo da poesia, “osso de mito”, que se vê agora de modo mais tangível do que antes, menos volátil, menos inalcançável. Por outro lado, é preciso notar que a imagem tradicional está modificada: embora o ouro mantenha suas qualidades nobres (é “osso de mito” e “teia-de-abelha”), e seja exaltado (“a precisão do maduro”), ele se degrada como· “urina” e “velhice”, ou ainda como hibridez – e esta última imagem é dupla, irônica, pois tem um sentido positivo (de riqueza, “flor e alfabeto”) e outro negativo (perda de pureza). Não é nada exagerado entender este ouro como o “vil metal” do título do livro, o qual sem dúvida faz referência à poesia. Entretanto, o que se nota aí não é a recusa do “brilho vil”, como nos poemas de A Luta Corporal, mas uma aceitação madura, algo irônica, do metal ao mesmo tempo vil e precioso – o poema.
Não apenas este, mas vários outros textos da mesma época pro­ curam vencer o desespero da destruição completa, presente em “Roçzeiral” e em “Negror n’origens”, através do recurso à linguagem seca, precisa, curta, essencial, que caracteriza uma aproximação à tendência construtiva. Vejo esta mudança de poéticas também como mudança de éticas: é pelo esforço da vontade (e pelo desejo igualmente, poderíamos dizer) que o poeta nega o sentido destrutivo e redescobre, detrás da destruição, detrás da morte, o impulso de continuar vivo. Isto se percebe em poemas como “Recado”, em que o “eu” reage ao ciclo mortal para afirmar que tem “um sexo / e um nome que é mais que um púcaro de fogo”, e para concluir em seguida:

Às mortes que me preparam e me servem
na bandeja

sobrevivo,

que a minha eu mesmo a faço, sobre a carne da perna,
certo,

como abro as páginas de um livro

– e obrigo o tempo a ser verdade.

Verdade, ainda, é que nem sempre este impulso de vida é dominante. Em textos como “Fogos da flora” (o primeiro do livro), “Vida e “Réquiem para Gullar” (os dois últimos), aproximamo-nos de novo das experiências extremas de A luta corporal, embora com menos nojo e menos infelicidade de vida. Mas penso que no fundo a característica mais marcante ainda é a procura de equilíbrio e construção, a tentativa de vencer a tendência mortal do dionisismo. Para que o leitor compare com os poemas citados anteriormente, transcrevo apenas mais um, cujo tema é de novo o brilho das frutas, mas cuja conclusão é bem diferente.

Frutas

Sobre a mesa no domingo
(o mar atrás)

duas maçãs e oito bananas num prato de louça

São duas manchas vermelhas e uma faixa amarela

com pintas de verde selvagem:

uma fogueira sólida

acesa no centro do dia.

O fogo é escuro e não cabe hoje nas frutas:

chamas,

as chamas do que está pronto e alimenta.

DA MÚSICA À PINTURA

Iniciando uma pequena nota sobre pintura, Gullar escreve o seguinte: “O poeta Apollinaire, que teve olhos para apreender o novo que os pintores faziam surgir de suas experiências no começo do século, percebeu, diante dos Discos de Robert Delaunay, que a pintura ali aspirava à condição de música”.[5] Ocorre-me estender este tipo de comparação à sua própria poesia, para dizer que, se às vezes ela se encaminha em direção ao melos – e neste caso se aproxima vertiginosamente do puro som desarticulado –, ela possui também uma vocação plástica que se manifesta sobretudo no desejo de salvar o poema de sua simples consumação pelo fogo do lirismo. Nada a estranhar: Dioniso é o deus da música, Apolo é o deus das artes plásticas – e entre os dois não é só Gullar que oscila, mas toda a arte contemporânea, em suas grandes tendências. Nada a estranhar – mas mesmo assim o fato é notável: da completa desarticulação dos últimos textos de A Luta Corporal, o poeta saltou (é verdade que com a mediação de O Vil Metal) para a atitude sob certos aspectos oposta.

De fato, o construtivismo da poesia concreta destrói a linearidade da linguagem, implodindo não só a sintaxe como o próprio vocábulo, mas faz isso visando a reconstrução posterior, que é de fundo intelectual e racionalista. O princípio de desmontagem se subordina ao princípio maior de montagem, e o que importa não é tanto o processo de fragmentação, é antes o processo inverso de recomposição. O contrário, justamente, do que ocorre nos poemas de Gullar, na fase do primeiro livro, quando o desejo é o de consumir em chamas a linguagem, até que dela reste apenas o princípio da destruição. E é deste extremo destrutivo que o poeta parte, em meados da década de cinquenta, para o extremo oposto do construtivismo.

A necessidade desta passagem torna-se evidente quando pensamos no silêncio que se seguiria obrigatoriamente a “Roçzeiral” (ponto último da experiência de fragmentação), e na característica radical da prática poética de Gullar, que o impele sempre para as soluções finais. O equilíbrio de O Vil Metal, que a meu ver permitiu­lhe composições de excelente nível, deixava-o entretanto insatisfeito: experimentador por princípio, era certo que ele não se contentasse com um estilo já estabilizado e procurasse novas formas de expressão. Uma anedota, narrada pelo próprio poeta, mas a propósito de João Cabral·, talvez nos ajude a entender melhor o porquê de o caminho escolhido ter sido o Concretismo. Segundo Gullar, Cabral mostrou-lhe certa vez (em 1968) um álbum de pintores da escola de Ulm; e como Gullar lhe dissesse que os quadros geométricos pareciam envelhecidos, o pernambucano respondeu-lhe: “Eu preciso de ordem, basta o caos que eu já tenho em mim mesmo”.[6]

A historinha é significativa e serve para explicar ao menos parte do impulso que leva de “Roçzeiral” à poesia concreta. Não é preciso muita perspicácia para perceber que, no seguinte poema, a mesma temática de sempre encontra uma cristalização que exorciza o perigo do caos:

mel laranja

lâmina mel

sol lâmina

laranja mel

sol laranja

lâmina sol

Ao analisar atrás o nono “poema português”, chamei a atenção para o sistema de espelhos que constituía a sua estrutura: os elementos, colocados em posições equivalentes nas duas estrofes, compunham uma rede de relações espaciais, refletindo-se aos pares, uns nos outros – espelho/rosa, estrela/vermelho, sofro/morro, tempo/vento, cintila/ espelho. Dizia, então, que o elemento espacial. Ali apenas latente (e afogado pela música do poema), seria mais tarde transformado no principal processo poético utilizado por Gullar. Aí está, e é como se todo o resto fosse atirado fora para ficar apenas a “calcinação de ossos”.

Mas não se trata de simples depuração. Trata-se ainda de substituir um princípio musical – que organiza o verso –, por um princípio plástico – que organiza os signos de forma nítida na página branca. Como em certas composições de Apollinaire, a poesia aí aspira

à condição de pintura, e Apolo toma o lugar de Dioniso. À dissolução sonora (tendencial) do neosimbolismo dos “poemas portugueses”, substitui-se a clareza concretizadora do desenho. O processo tem pelo menos três grandes vantagens: em primeiro lugar, permite que o poeta continue a escrever, mesmo depois de ter chegado à situação-limite anterior; em segundo lugar, sendo uma atitude tão radical quanto a outra, baseia-se entretanto num princípio construtivo, o que contribui para exorcizar o caos; e em terceiro lugar, finalmente, permite-lhe prosseguir com suas próprias experiências, com. sua própria temática obsessiva – o que é muito importante. Ao adotar os princípios da poesia .concreta, Gullar não abandonou por um só momento as suas antigas imagens e obsessões. Apenas deu-lhes uma configuração nova, potenciando e explicitando seu caráter plástico, como fica visível na comparação que acabamos de fazer. Uma coisa, entretanto, muda radicalmente: a experiência concretista reintroduz em sua poesia a dimensão social, que ela estava para perder. Esta afirmativa pode parecer um paradoxo, para os que estão acostumados a ver o movimento da poesia concreta como desligado da práxis social – como algo encerrado nas experiências de linguagem, nas reflexões metalinguísticas e na obliteração sistemática da denotação. Isso realmente ocorre; e, no entanto, o Concretismo não pode ser reduzido a isso. Toda a teoria modernizadora que ele contém possui relações estreitas com o mundo racional da indústria, da produção em massa de objetos para o consumo; e a equivalência que ele estabelece entre o poema e a produção material de signos revela o desejo de enraizar-se numa realidade atual, presente à nossa volta. O rumo abstratizante de vanguardas como a poesia e a pintura concretas, no Brasil dos anos cinquenta, precisa ser compreendido e estudado no interior dessa relação com a sociedade, que surge na superfície, e apenas nela, com ares paradoxais, mas que se impõe na medida em que aprofundamos o problema.

No caso de Gullar, é fácil constatar como a poesia concreta permitiu-lhe manter, por certo tempo a mais, uma escrita comunicável: o recuo e a busca de equilíbrio, em O Vil Metal, parecendo insuficientes à sua ânsia de experimentação – talvez fossem virtudes velhas demais para os tempos que ele se propunha exprimir – o resultado provável seria a volta ao subjetivismo solipsista que provocara a grande destruição da linguagem. O Concretismo funciona como contrapeso razoável, dose de social que impede o puro afundamento na subjetividade. Os temas de antes – o brilho das frutas, o alheamento entre os seres, a dissipação da poesia – encontram mais uma possibilidade de se colocarem como forma. A concepção concretista do poema enquanto objeto (somada a seus postulados anti-subjetivistas) tem um valor oposto ao dionisismo que levou Gullar ao impasse do silêncio.

POLARIDADE: OU EU OU O MUNDO

Mas a fase concretista é muito curta, e foi justamente a questão da subjetividade que afastou o grupo carioca do paulista e abriu a dissidência do Neoconcretismo: por não concordarem com as proposições contidas no texto “Da Fenomenologia da Composição à Matemática da Composição”, de Haroldo de Campos, os cariocas romperam com os poetas de São Paulo, acusando-os de pregarem novas poéticas de sonetos, e defendendo a expressão subjetiva das emoções como base da poesia. A objetividade do poema concreto ficava assim atacada, e o “quase romântico” (a expressão é de Mário Pedrosa, para caracterizar o grupo do Rio) Ferreira Gullar retoma, de forma ainda mais radical, a linha destrutiva. Data daí a “teoria do não-objeto”, uma experiência situada entre o ritual e o happening, em que os poemas são “coisas” feitas para serem experimentadas, consumidas rapidamente. Assim Gullar os descreve: “Saio dos livros para os poemas espaciais. O gesto é o acionador desta linguagem materializada no espaço: uma caixa branca, a palavra dentro; uma placa, a palavra sob um cubo azul. Era o que chamei de ‘não objeto’. Eles se multiplicavam. Onde guardá-los? Como mostrá-los? Como passá-los adiante? Imaginei espalhá-los pelos jardins da cidade. Imaginei uma exposição que terminaria, meia hora depois de inaugurada, com a explosão dos poemas expostos. O último ‘não-objeto’ concebido já não tinha nenhuma palavra dentro… “.[7]

Assim terminava, de novo no silêncio, a caminhada vanguardista. Depois dos anos cinquenta, a questão seria o marxismo, a poesia de fundo social. engajada numa via revolucionária. Antes de discuti-la, porém, devemos nos perguntar sobre o significado dessa primeira parte da aventura. Afinal, são cerca de dez anos de produção intensa, em que o poeta persegue corajosamente algo que lhe escapa sempre – mas sempre deixando no caminho o resultado de sua perseguição, os poemas. Bons ou maus (e na sua maioria eles são bons), o que mais importa neles é o fato de serem tais marcas da procura, da busca que o próprio Gullar chamou de “busca da realidade”. De qual realidade? Insisti, ao longo deste texto, em que se trata sobretudo de uma pesquisa do “eu”: de um “eu” situado diante do tempo, da beleza, do canto, da impossibilidade de dizer, do caráter impenetrável das coisas, do alheamento, da destruição, da morte etc. Todos estes temas, enfeixados, constituem a “realidade” que o poeta procura; o feixe todo, entretanto, está referido a uma mesma pergunta, modulada na linguagem de muitas maneiras: quem sou “eu”? Mesmo a procura da poesia, que sob tantos aspectos é a viga-mestra da indagação, pode-se no fundo considerar como subordinada à procura da identidade; o enfoque sobre o canto do galo ou sobre o brilho das peras, sendo um enfoque sobre a natureza do poema, é também um enfoque sobre a existência do poeta. O cantor e o canto estão de tal modo identificados, que destruir a linguagem é ao mesmo tempo destruir-se, assim como construir o texto é ao mesmo tempo construir-se.

Colocando as coisas de maneira bem direta: há aí uma apaixonada busca da identidade, que se objetiva enquanto investigação da beleza, do sentido do tempo, da poesia. A “realidade” é a existência humana mas é também em primeiro lugar a minha própria existência, para a qual é preciso achar um sentido. A forte subjetividade dos poemas não deixa dúvidas sobre essa direção. Inclusive, é preciso entender a recusa do Concretismo menos como derivada de razões externas, de programa estético, do que como consequência da expulsão do “eu” do centro do poema, realizada pelos concretos. Um romântico, para falar com Mário Pedrosa, busca antes de mais nada a si mesmo.

Esta procura, no entanto, acaba mal, porque chega à destruição da linguagem, à ruptura com o social e à autodestruição. Por que ocorre isto? Segundo Ferreira Gullar, porque o conceito inicial de realidade, do qual partiu a investigação, estava distorcido; e porque os instrumentos empregados na investigação também não eram adequados. “Um dado é evidente e constante ao longo de toda esta experiência”, diz ele, “a rejeição de qualquer explicação lógica da realidade. Dir-se-á que essa rejeição é, com diferenças de grau neste e naquele poeta, – condição mesmo da poesia. Mas. essa resposta não resolve o problema, uma vez que resta ainda responder por que razão determinado homem escolhe a poesia – e não a linguagem conceitual – como seu instrumento de compreensão do mundo. Ele a escolhe, precisamente, porque necessita escapar às contingências concretas de sua vida, e a poesia se lhe oferece como caminho – oferecendo-se, ao mesmo tempo, como uma ‘nova realidade’, mais perfeita e mais real”.[8] Um parêntese, antes de comentar essas afirmativas. Elas foram feitas no corpo do ensaio intitulado “Em busca da realidade”, que é ao mesmo tempo um depoimento e uma autocrítica: Gullar examina passo a passo os poemas de A luta corporal, explicando como eles foram escritos, quais as preocupações do autor na época de sua gênese, como ele se modificou, a cada etapa, na maneira de encarar os temas e as técnicas etc. Trata-se de um texto importante, não apenas com relação à poesia de Gullar, mas como texto crítico simplesmente. Numa literatura pobre como a nossa, é fundamental que se escrevam depoimentos assim, mostrando um conhecimento interno dos problemas da criação poética. Creio, inclusive, que as interpretações de poemas ali contidas são impecáveis e nos oferecem a melhor visão possível de A Luta Corporal.

Isto não impede, entretanto, que se discorde completamente das conclusões a que ali se chega. O texto, escrito em 1963, é uma auto­crítica em dois sentidos, e, no sentido político, apresenta uma grande fragilidade. Visível, alias, no trecho acima citado. Primeiro, não é possível aceitar que “a rejeição de qualquer explicação lógica da realidade” seja um dado “evidente e constante” nos poemas de A Luta Corporal. Mesmo a “explicação lógica” que está postulada por trás desta afirmativa – o marxismo – não pode recusar, senão de forma dogmática, a verdade e a coerência da exploração estilístico-temática realizada nos poemas. O argumento aqui é insuficiente, e percebe-se que à oposição racionalismo/irracionalismo Gullar superpõe confusamente a oposição conceitual/poético. Daí a absurda frase seguinte (absurda, bem entendido, no contexto em que está colocada), onde se afirma que um determinado homem escolhe a poesia porque necessita “escapar às contingências concretas de sua vida”. Como se a poesia se resumisse a uma fuga e não tivesse nem valor de conhecimento, nem valor de crítica, nem a capacidade de opor utopias (novas realidades, mais perfeitas e mais reais) à degradação da vida.

Há um fundo irracionalista nos poemas de A Luta Corporal? Se dermos a essa palavra um sentido ao mesmo tempo muito amplo e muito rígido – pelo qual, tudo que seja obscuro e misterioso se toma, ipso facto, irracional – então, sim. Há muita obscuridade e muito mistério naqueles textos. Por outro lado, não há também um enorme esforço de compreensão, e uma recusa total de mistificação? Essas duas características parecem-me essenciais inclusive para se entender o processo todo. Dizer de uma determinada linguagem que ela é irracional só porque ela penetra em zonas não explicadas, é diminuir demais o conceito de razão – ou dogmatizar a partir de uma posição que se supõe dona da verdade absoluta. A crítica lukacsiana ao “irracionalismo” tem destes exageros, cujo resultado final é a condenação em bloco da arte contemporânea, tida como antiprogressista por se encerrar num pessimismo sombrio e suicida, ignorante das virtualidades históricas.

Já me referi atrás a este problema, que voltará ainda a aparecer.

Não me parece (repito) que o desvio principal seja para o lado do irracionalismo; mais simplesmente, penso que o enrijecimento em torno de certas polaridades é que provocou o impasse do silêncio, levando o poeta a posições extremas, carentes de dialética. E isto tanto na fase individualista quanto na fase seguinte (no início dos anos sessenta) de poesia social. Vejamos um exemplo esclarecedor. No mesmo “Em busca da realidade”, ao comentar os poemas de “Um Programa de Homicídio”, Gullar recapitula suas descobertas anteriores e esclarece: “Constatado, pelo autor, que o mundo objetivo é enganadora aparência encobrindo a realidade única: o tempo, a deterioração, a morte; constatado que, por isso, cada coisa como cada homem guarda em si mesmo sua ‘verdade’, isto é, sua morte; constatado isto, o poeta conclui que o único comportamento honesto seria manter-se fiel a esta ‘verdade’, e o poema não seria mais que, como o fruto, um fenômeno necessário do homem; mas necessário como o canto é necessário ao galo, como a praia é necessária ao mar, como o amadurecimento é necessário à pera”.

E prossegue, para tirar a conclusão: “Ora, em termos de poética, resulta que a realização do poema deveria ser manifestação natural, sem artifícios, de experiências reais. Não se trata de escrever poemas, mas de exprimir-se enquanto existência. Tal ponto de vista exige uma total identificação entre a experiência e sua expressão que, de saída, repele as fórmulas. Trata-se de recomeçar a linguagem a cada poema, porque a forma deste deve ser resultante da forma de vivência que ali se exprime”.[9]

Mas desde que cada forma nascida tende a cristalizar-se como técnica, ela tende também a sufocar a expressão natural da vivência. É a contradição entre poesia (absoluta) e arte poética (os meios de se alcançar a poesia) – a mesma tensão entre “lirismo” e “técnica” que perturbou Mário de Andrade no início do Modernismo. Gullar redescobriu, na época de A Luta Corporal, o ponto de choque entre o fluxo criativo individual e a necessidade de socializar a expressão. Da busca do lirismo mais puro, da subjetividade mais poderosa, até o silêncio, a morte, vai um passo, que deve necessariamente abandonar o papel socializador da linguagem. Neste ponto, Ferreira Gullar enrijece suas posições, destruindo a dialética entre os lados expressivo e comunicativo da língua. Ao aprofundar-se na subjetividade, perde de vista o aspecto de comunicação social; logo depois, caminhará com igual fero­ cidade para o lado oposto: morte ao individualismo, viva a Revolução. Assim, todo o delicado movimento de equilíbrio da poesia lírica fica reduzido a um jogo de radicalismos que, nos dois casos, compromete a literatura: empobrecida, a língua é ou o instrumento de expressão imediata da existência (o que levará a “Roçzeiral”), ou o meio de comunicação dos conceitos (o que levará a “Quem matou Aparecida” e aos poemas do CPC). Será preciso esperar até 1964 para que a exclusão mútua seja superada.

AS BASES TEÓRICAS DO NACIONALISMO

É no interior deste impasse de ordem pessoal que Gullar chega à literatura política e de combate. Já vimos que a experiência concretista representou uma espécie de reintrodução, através da objetividade, do mundo real numa poesia que ameaçava calar-se para sempre ao coincidir com o grito. Foi a primeira tentativa de contornar o silêncio, e ela deve muito ao mundo da indústria, que começava a impor-se no Brasil. A segunda tentativa, que renega toda a obra anterior, brota do conhecimento do marxismo e da participação nas lutas político-sociais que ocorrem então no país.

No front cultural, Ferreira Gullar tem um papel importante. Tendo sido nos anos cinquenta, junto com Reynaldo Jardim, dirigente do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil – que teve uma função modernizadora, de feição cosmopolita, à altura da grande mudança internacionalizante que nossa sociedade sofreu naquela época–, ele já era o que se chama um intelectual de prestígio, respeitado como poeta, crítico de arte e jornalista. Sua conversão ao marxismo, a abjuração da vanguarda e a passagem à poesia política tiveram certa influência sobre os meios intelectuais brasileiros. Entretanto, o que me interessa sobre­ tudo é o seu caráter exemplar: ao explodir com a retórica da geração de 45, no início da década de cinquenta, ele já dera um sinal dos novos tempos, redirigindo a nossa literatura para os rumos da modernidade; com o SDJB, a adesão ao Concretismo, a dissidência do Neoconcretismo e a teoria do não-objeto, ele se colocara como uma figura de vanguarda, na capital do país que erguia Brasília, criava a indústria automobilística e explodia em cidades enormes; agora, ao voltar-se para o cordel e para a miséria rural e urbana, ele apontava de modo pioneiro o novo tipo de sensibilidade que dominaria boa parte dos nossos intelectuais, na primeira metade dos anos sessenta.

Essa nova sensibilidade volta-se para problemas do tipo morte da cultura, funções atuais da arte, nacionalismo e internacionalismo artísticos, questão do popular, subdesenvolvimento e outros. Sobre estes temas Gullar produz dois livros: Cultura Posta em Questão, publicado em 1965, contendo oito artigos escritos pouco tempo antes; e Vanguarda e Subdesenvolvimento, publicado em 1969. Vejamos em que consistem as ideias aí expostas.

Em Cultura Posta em Questão, distingo três núcleos que, a meu ver, são os pontos em torno dos quais se organizam os argumentos dos oito ensaios: uma crítica às direções contemporâneas da arte; uma crítica à situação cultural do Brasil; e uma proposta de cultura nacional e popular. Embora os textos não se coloquem no livro nessa ordem (e até pelo contrário: a proposta do nacional-popular já aparece nos dois primeiros ensaios), sente-se que o raciocínio de Gullar passa pelas três etapas, repetindo a análise marxista tradicional da cultura burguesa, aplicando-a ao caso brasileiro e tirando as conclusões costumeiras sobre a necessidade de engajamento do artista.

Lidos hoje, quase vinte anos depois de terem sido escritos, os textos não apresentam grande novidade. É preciso pensar, no entanto, no começo dos anos sessenta no Brasil, quando estas ideias agitavam a juventude universitária, introduzindo-a no grande debate teórico sobre a relação entre arte e sociedade, ao mesmo tempo em que a encaminhava ao conhecimento dos problemas nacionais. Nesta perspectiva já histórica a importância do livro fica ressaltada, embora nem por isso se atenue a fragilidade de algumas interpretações e certo esquematismo que se pode atribuir, sem injustiça, ao uso algo ortodoxo e simplificado do marxismo.

Neste último caso enquadra-se, evidentemente, a questão da “morte cultural da arte”; apesar de as colocações feitas por Gullar serem na sua maioria pertinentes, elas se ressentem às vezes do parti pris ideológico adotado pelo autor. Assim, por exemplo, o julgamento de artistas contemporâneos, como Beckett, parece prejudicado pela exigência política de uma literatura esperançosa e positiva. Para Gullar, a literatura de Beckett “é a mais imediata expressão de uma visão simplista e negativa do mundo”. E acrescenta: “Se há um escritor que reduz o instrumento literário a mero veiculo de uma tese é Beckett. No entanto, críticos que se dizem politicamente avançados aceitam a obra de Beckett ‘por sua força expressiva’, como se tal força pudesse estar desvinculada da mensagem que a obra transmite – e essa mensagem é a negação de toda esperança”.[10]

É difícil concordar com as afirmativas de que a visão de Beckett seja “simplista” e de que ele reduza o instrumento literário a “mero veiculo” de uma tese. O que está na base delas é, ainda, a interpretação lukacsiana do “irracionalismo” e da “a-historicidade” das vanguardas. E os vícios dessa posição podem levar, como sabemos, à condenação de toda a arte do século XX, envolvendo no mesmo anátema o Cubismo, o Dadaísmo, o Surrealismo e as demais correntes estéticas vanguardistas. E a partir daí Ferreira Gullar não vacila em atingir formulações mais grosseiras: depois de admitir que, no Impressionismo, ainda havia elementos críticos à sociedade burguesa, ele adianta que, depois da valorização dos pintores impressionistas pelo mercado, o artista, sem se dar conta disso, “tomou-se na realidade o mero instrumento da classe dominante, da qual depende para sobreviver, já que a grande maioria do povo não toma conhecimento dele”.[11]

Espanta, sobretudo, o radicalismo dessas proposições. Uma coisa é constatar a importância do mercado na produção artística e a mistificação imperante em função do próprio mercado; transformar esta importância na determinação básica de tudo que se faz, e negar valor às obras contemporâneas por causa disso, é outra coisa muito diferente. No entanto, tal é na época a posição de Gullar, mesmo que ele (contraditoriamente) afirme também que esta arte não é “mera resultante da irresponsabilidade do artista”, nem “o fruto de uma chantagem conscientemente armada para tomar o dinheiro do burguês”, mas sim “a própria arte, a verdadeira arte de nossa época” – isto é, uma consequência do mundo no qual se vive, dos seus valores culturais e sociais. Neste caso, o anátema é lançado por causa do desligamento entre as obras e os verdadeiros problemas da sociedade – o que ainda continua espantoso. Então, Picasso, Braque e Léger não tocam nos “verdadeiros” problemas sociais do século XX? E não o fazem de forma critica? Os últimos a fazê-lo foram os impressionistas? A carga é muito forte.

Os ensaios que compõem o livro armam-se sempre da mesma maneira: entre quantidade apreciável de observações pertinentes, de descrições exatas e sensíveis, desliza vez por outra um julgamento de valor, extremado e injusto, ou uma interpretação menos maleável, que não dá conta da complexidade do assunto. Quando o caso brasileiro é examinado, repete-se o esquema. Gullar observa com agudeza que as influências europeias no pós-guerra (quando o isolamento brasileiro é rompido) atrapalham a evolução interna de nossa pintura, pois esta já possuía, com Portinari, Segall, Guignard, Di e Pancetti, uma tradição imediatamente anterior, seguida pelos jovens artistas, e que tendia a aprofundar-se, não fossem os influxos sucessivos do Concretismo, Neoconcretismo, Tachismo, Neofigurativismo e outros. Gullar lamenta que estas injunções do mercado de arte impeçam o aprofundamento e a continuidade da experiência, e afirma conscientemente que o caminho “é voltar-se para o que já foi feito entre nós, ou para o que, lá fora, melhor afina com a necessidade cultural interna, e apoiar-se na temática que o país oferece”.[12]Posições que soam como sensatas e perfeitas exceto quando se pergunta se as influências externas seriam mesmo pura macaqueação ou se, pelo contrário, não corresponderiam também a necessidades internas, ditadas pelo nosso crescente processo de internacionalização. A última hipótese me parece mais provável (basta ver a importância que, na Tropicália, ganhará o Concretismo literário), e penso que o esquema de Gullar, embora compreensivo, tende a enrijecer-se quando examina as relações entre o nacional e o internacional.

Isto está cheio de consequências. Um escritor engajado como Mário de Andrade, por exemplo, mesmo nos instantes mais radicais soube balancear com cuidado cosmopolitismo e localismo, entendendo a necessidade de cada um deles. Sem fugir à ideia de criar uma expressão literária “nacional” – isto é, adequada à realidade concreta brasileira–, jamais recusou as experimentações vanguardistas, originárias da Europa, reconhecendo nelas o timbre de modernidade que também, ao menos em parte, já era nosso. Daí a riqueza de suas colocações críticas, cuja amplitude de interesse abarca do folclórico e do regional até a mais refinada moda parisiense – sem esquecer-se de referi-los todos a uma concretude social ou vivencial.

Este ar tolerante falta aos ensaios de Cultura posta em questão (embora não lhes falte generosidade): escritos para o combate imediato, sua argumentação afunila-se até desembocar na tese pretendida, e com isso perde-se substância crítica. “Situação da poesia brasileira”, penúltimo texto do livro, sofre um pouco disso. Sendo uma descrição em linhas gerais exata da evolução da poesia brasileira, de 22 até o engajamento cepecista, consegue com precisão apontar as conformações estilísticas decisivas e explicar seus fundamentos sociais. Muita coisa, entretanto, fica na sombra. Manuel Bandeira, cuja poesia escapa do esquema geral, é a omissão mais importante. No entanto, mesmo valorizando Drummond – cujo coloquialismo tenso é tido como o modelo da poesia social – , por razões óbvias não deixa de repetir o lugar-comum da esquerda, a propósito de Claro Enigma: “O poeta brasileiro que, na época moderna mais avançara no rumo de uma poesia de massa voltada para a realidade social, recua e fecha-se e em sua torre”.[13] Desta torre, fechada e recuada, Drummond escreverá alguns dos maiores poemas da literatura brasileira. Mas isto o objetivo político do panorama deixará passar sem ser dito.

Por que tal afunilamento? Uma palavra de ordem política basta para produzi-lo? Por certo que não – a não ser que a política, no caso, exclua a dialética e despreze toda a riqueza da criação artística. Neste caso, trata-se de uma política irrealista, que acabará por se chocar com os fatos. E foi mais ou menos o que aconteceu, na medida em que todo o programa de cultura nacional-popular colidiu no golpe militar de 64, indo a pique imediatamente, na sua parte mais ambiciosa, o contato educativo com o povo, e afundando mais devagar, até 1968, na sua parte mais eficaz, a radicalização intelectual e afetiva da classe média. Pode-se argumentar que isto decorreu da pressão exercida pela dita­ dura. É verdade, em parte. Mas sem dúvida, também, a fragilidade interna do programa cultural da esquerda contribuiu para este fracasso. A simples leitura do anteprojeto para o Manifesto do CPC, da “Nota Introdutória” ao volume III de Violão de Rua, do livro de Carlos Estevam, A Questão da Cultura Popular, e desse mesmo Cultura posta em questão – para ficar nestas fontes[14]– evidencia o esquematismo com que são tratadas, não apenas as relações entre cultura e sociedade, mas as próprias condições concretas da sociedade brasileira.

E, justamente, os termos “condições concretas” e “sociedade brasileira” são os cavalos-de-batalha da época. A critica está sempre centrada neles – e Ferreira Gullar cobra dos artistas, a cada instante, a consciência do subdesenvolvimento, do imperialismo e da luta de classes como condição concreta para a representação estética válida da sociedade brasileira. Apenas seria preciso lembrar que a consciência artística da sociedade se manifesta sob as mais variadas formas – e isto de certo modo ajuda a constituir a riqueza da arte, contribuindo para aproximá-la das “astúcias do real”–, não sendo portanto correto impor-lhe uma só direção, como se essa fosse a única via possível. Agindo de forma dogmática, o risco que se corre é o de escorregar para a abstração. Ao mesmo tempo que se acusa os outros deste pecado, esquece-se de verificar que, no entanto, as obras supostamente abstratas repousam sobre um fundo de experiência concreta, o qual simultaneamente as torna possíveis e é refletido por elas.

Este paradoxo da critica abstrata, apoiada sobre uma teoria que exige como condição básica a concretude, é o grande defeito do outro livro nacional-popular de Ferreira Gullar, Vanguarda e subdesenvolvimento.[15] Apesar de mais sutil, flexível e bem informado que o anterior – e apesar de continuar até hoje um livro de todo interesse –, seu núcleo de argumentação apresenta os mesmos desvios. Vejamos três exemplos, interligados.

A dialética do particular e do universal, e os conceitos de símbolo e alegoria (desenvolvidos por Lukács), constituem um dos primeiros apoios teóricos de Vanguarda e subdesenvolvimento. Através deles Gullar (re)faz a critica da vanguarda (que seria alegórica, passando do particular diretamente para o universal) e defende o ponto de vista da arte marxista (que seria simbólica, a concretização do particular). Seguindo Lukács, Gullar cita o seguinte trecho de Goethe, que vale a pena transcrever: “Existe uma grande diferença no fato de o poeta buscar o particular para o universal ou ver no particular o universal. No primeiro caso nasce a alegoria, onde o particular só tem valor enquanto exemplo do universal; no segundo, está propriamente a natureza da poesia, isto é, no expressar um particular sem pensar no universal ou sem se referir a ele. Quem concebe este particular de um modo vivo expressa, ao mesmo tempo, ou logo em seguida, mesmo sem o perceber, também o universal”.[16]

É o caso de virar o feitiço contra o feiticeiro: boa parte da vanguarda exprime, sem pensar nisto, um universal: particularizando concretamente a solidão do homem, a alienação, a incomunicabilidade, ela está expressando a universalidade das relações sociais reificadas, sob o capitalismo. Já a poesia politica, do tipo praticado na época do CPC, que é didática, que deseja “buscar o particular para o universal”, costuma não apenas cair na alegoria, mas ainda realizá-la de forma ultra-simplificada, a rigor mais abstrata, porque só deseja explicar um universal: o caráter de classes da sociedade.

Continuando a virar o feitiço, agora com palavras do próprio Gullar: “O poeta ‘vê no particular o universal’ e não quer explicar essa conexão, mas exprimi-la. O cientista busca no singular a essência que, por sobre a particularidade, o liga ao universal. Para o reflexo estético, o fundamental é a experiência concreta do presente que se nega a aparecer como exemplificação do universal, mas quer ser sua expressão concreta: é, no dizer de Lukács, “a generalização da própria vida, dos fenômenos concretos da vida”. Daí porque o poeta fala com palavras­coisa, uma linguagem densa e ambigua, nascida da contraditoriedade inerente à experiência vivida”.[17]

Pois, se é assim, então poderíamos dizer perfeitamente que a maioria dos textos de A Luta Corporal “exprime”, “sem explicar”, as conexões entre vivências concretas e universal; mas já “João Boa­ Morte, cabra marcado pra morrer” e os demais poemas de cordel querem “explicar” o universal (conscientizar), e por isso a linguagem nem é densa e ambígua, nem nasce da contraditoriedade da experiência vivida, nem é feita de palavras-coisa, mas de palavras didáticas e transparentes. Aliás, falseadas e postiças, distantes do cordel autêntico que, às vezes, por cima da dominação alienadora, através da ingenuidade ao mesmo tempo espontânea e cheia de malícia, consegue ser expressão concreta da experiência concreta do presente.

Logo adiante, é claro, Gullar especificará melhor a crítica da vanguarda, afirmando que ela não capta o universal, perde-se na singularidade, no individualismo, no subjetivismo, porque não compreende o verdadeiro movimento da História, não distingue o essencial do acidental etc. A esta leitura lukacsiana, que vê nas vanguardas apenas abstrações e arbitrariedades, prefiro simplesmente opor a leitura de Auerbach, em Mímesis, muito mais abrangente e compreensiva. Ao contrário de Lukács, Auerbach vê na alegoria, na riqueza de pormenores, na arbitrariedade, na subjetividade e na ambiguidade a tentativa enorme de abarcar o real em todas as suas formas variadas e secretas. Concretamente, portanto, já que multiplica as determinações.

Mas passemos ao segundo exemplo a ser discutido.

Trata-se agora do problema do nacional, que Vanguarda e subdesenvolvimento formula de maneira teoricamente mais rica do que Cultura Posta em Questão. Neste primeiro livro apenas constatava-se que o caráter nacionalista da cultura popular decorria da luta contra o imperialismo: como o imperialismo é o responsável pela maior parte do atraso e da miséria do povo, conclui-se que o artista engajado na “cultura popular” deve, de saída, lutar contra ele. No segundo livro o problema ganha um enfoque mais sofisticado, à luz ainda das categorias do particular e do universal. No seio da realidade internacional (que é o universal), diz Gullar, existem realidades específicas, as diferentes nações, com suas diferentes culturas (que constituem as diferentes particularidades). Nacional (particular) e internacional (universal) são pois “realidades de uma mesma realidade, dialeticamente idênticas e distintas”. Sendo assim, “quanto maior consciência tenha um país subdesenvolvido de sua realidade particular, maior consciência terá da realidade internacional e melhor poderá atuar nela e contribuir para modificá-la, conformá-la às necessidades das particularidades que as constituem”.[18] Dessa maneira supera-se tanto o nacionalismo como o internacionalismo absolutizantes, postulando-se uma verdadeira dialética entre o termo local e o cosmopolita.

No entanto, a dificuldade é menos a de formular teoricamente o problema do que a de equacioná-lo na análise concreta. O que é essa particularidade da “nação”? Como separar, no interior de uma cultura nacional, o que é específico dela e o que só lhe pertence como participação no concerto das nações? Aqui e ali é possível pinçar algumas coisas – carnaval, futebol, Pelé; ou Casa grande & senzala, mais a cordialidade do brasileiro – mas por aí sabemos que a arte vira exotismo e as ciências sociais viram ideologia. De modo mais agudo, Roberto Schwarz desvendou a dialética da ideologia de “segundo grau” (que seria a descrição de uma especificidade), mas ainda assim a polêmica em torno da expressão (metafórica) “ideias fora do lugar” mostra os embaraços em que nos mete a vertiginosa distinção/identidade entre particular e universal.

Acontece que Gullar, ao lançar-se à análise concreta, repete o vezo de sempre: particular é apenas aquilo que se refira diretamente à realidade do subdesenvolvimento; qualquer reflexão sobre a natureza da arte e da linguagem pertence à esfera do universal. Eis aqui o que ele escreve sobre João Cabral: “A Fábula de Anfion poderia ter sido escrita por qualquer poeta, de qualquer país, às voltas com a problemática da ‘pureza’. Mas O Cão sem Plumas não. Ele é fruto de determinações precisas: fala de um rio determinado, que atravessa uma cidade determinada, e se refere a uma época determinada. Não se trata de o rio, mas de este rio, o Capibaribe. E basta isso para que todas as demais determinações se concretizem: o rio é o Capibaribe, a cidade é o Recife, com todas as suas particularidades de centro urbano do Nordeste brasileiro, atulhada de camponeses famintos vindos do sertão e que terminam se alojando em barrancos à margem do rio. (…) Jamais João Cabral teria feito um poema de tamanha riqueza comunicativa não houvesse partido da realidade, como partiu, mas de um problema, de um dado abstrato. A Fábula de Anfion, por exemplo, embora escrito por João Cabral no perfeito domínio de sua arte, é pobre quando comparado a O Cão sem Plumas. Em Anfion João Cabral exprime um conceito que preexiste ao poema e que permanece inalterado no curso de sua elaboração”.[19]

São afirmativas ao mesmo tempo corretas e incorretas – a bem dizer, incompletas, quase tendenciosas no sentido de favorecer o argumento geral do ensaio. Por brincadeira, para mostrar como elas são absurdas quando levadas a este extremo, diríamos: “Romeu e Julieta poderia ter sido escrita por qualquer poeta, de qualquer país, às voltas com a problemática do ‘amor impedido’. Já Ricardo II não. Ela é fruto de determinações precisas: fala de um rei determinado, que domina um país determinado e se refere a uma época determinada. Não se trata de o rei, mas de este rei, Ricardo II etc.”

O absurdo das afirmativas de Gullar está em que elas desprezam de forma absoluta a dialética do particular e do universal quando tratam do primeiro poema. Se qualquer poeta de qualquer país poderia escrever A Fábula de Anfion, então qualquer poeta de qualquer pais poderia escrever O Cão sem Plumas. Nunca escreveriam, entretanto, os mesmos poemas de João Cabral. Foi por se esquecer disso (ou por se lembrar, nunca se sabe) que Pierre Menard concebeu a ideia insensata de se tornar o autor do Quixote. Não. É como se o problema da expressão poética não fosse uma realidade concreta (com múltiplas determinações, vá lá) para João Cabral de Mello Neto. Ou para o Ferreira Gullar que compôs A Luta Corporal. Também, é como se os únicos problemas concretos que interessem à literatura sejam os problemas sociais, ou de relações de classe, melhor dizendo, pois não estou nem um pouco inclinado a conceder que a questão da expressão poética não tenha um aspecto social (e o próprio Gullar concordaria com isso). E, por fim, é como se este mesmo problema não pertencesse ao âmbito da particularidade “nação”; tematizado por um escritor de pais sub­ desenvolvido viraria abstração injustificada.

Vejamos agora o terceiro exemplo a ser discutido.

Na terceira parte de Vanguarda e Subdesenvolvimento, o autor procura mostrar as várias influências recebidas da cultura europeia pela cultura brasileira. Faz uma espécie de resumo de nossa história literária, do Romantismo ao Modernismo, procurando mostrar como as influências podem ser recebidas de modo positivo ou negativo. Como em todo esboço, o traço é largo e a malha deixa passar de tudo. No Romantismo, o influxo estrangeiro é bom porque ajuda a libertar-se das tradições coloniais e a criar uma “literatura brasileira autônoma”; já o Naturalismo “está totalmente deslocado da realidade brasileira”, e o que sobra dele são “romances de costumes” (cita O Mulato e O Coruja, mas se esquece de citar o deslocado e importantíssimo O Cortiço), que vão desaguar de um lado em Machado e Lima Barreto, do outro em Euclides e no regionalismo. Não explica os motivos do deslocamento do Naturalismo (maior que o deslocamento do Romantismo?), mas é fácil adivinhar as posições de Lukács por trás da recusa que recalca uma obra como O Cortiço. Já o Simbolismo é outra “inserção inesperada”, que não decorre naturalmente da “evolução interna da poesia ou da prosa”, mas aparece como “instrumento de afirmação de certos setores da intelectualidade”, reação “à objetividade e ao materialismo da burguesia que começa a impor seu caráter à sociedade brasileira”.

Quanto ao caso do Simbolismo, creio que seria preciso fazer alguns comentários. Em primeiro lugar, ele surge como reação ao Parnaso, e se isso não evidencia a “evolução interna” que existe na Europa (pois de fato – como ele afirma – nossa literatura não apresenta o mesmo grau de organicidade que a europeia), ao menos mostra uma consecutividade formal notável. Em segundo lugar, ele coexiste com o Parnasianismo, e se é verdade que ele significa uma reação “à objetividade e ao materialismo da burguesia”, é verdade também que ele aparece como o seu complemento de finura e espiritualidade – não sendo apenas um “instrumento de afirmação de certos setores da intelectualidade”. Em terceiro lugar, notemos ainda que o autor, para melhor salientar a característica superficial do Simbolismo entre nós, afirma que ele, mesmo em suas maiores expressões (Cruz e Souza, Alphonsus, Raul Pompéia), não tem “o caráter existencial que há em Rimbaud e Verlaine, nem a essencialidade que há em Mallarmé”. O que é verdade e… Que Cruz e Souza e Raul Pompéia tenham feito uma literatura fortemente existencial, parece-me certo. No fundo, a afirmativa só é defensável em função de uma inferioridade global da literatura brasileira face à europeia. Assim, Alencar não tem o alcance social de Balzac, Aluísio não tem a amplitude de Zola, Bilac não se compara com Baudelaire, Alphonsus não mostra a essencialidade de Mallarmé etc. Escapa Machado de Assis.

Dir-se-á que estamos criticando minúcias. Talvez, mas isso é importante: é o traço da simplificação que permite a Gullar o lançamento de suas teses. Aquilo que ele procura ressaltar é que, historicamente, os movimentos literários têm no Brasil um sentido diferente do que têm na Europa. Tese geral correta que no entanto – na análise concreta de cada caso – mostra pequenas distorções, mais adiante transformadas em grandes. A descrição do Modernismo é de novo exemplar: toda a evolução da poesia europeia no século XIX culmina nas vanguardas do início do século XX; já no Brasil, o Modernismo “não é o desaguadouro de todas essas correntes, mas a explosão que as pulveriza”. Se pensarmos nos dois séculos de acumulação e tradição literárias e artísticas que antecedem o movimento modernista; se pensarmos nas raízes simbolistas e na lenta evolução de Manuel Bandeira; nas ligações de Oswald com a boêmia parnasiana e nas marcas que isso deixou sobre o seu humor; na formação artesanal de Mário de Andrade, em contato com os “mestres do passado”; nos românticos como exemplo de prática de uma língua literária afastada do uso português; no barroco, como roteiro de uma descoberta; se pensarmos em tudo isso, veremos que a afirmativa tende a simplificar, embora seja correta em si. De fato, o Modernismo é uma “ruptura” muito maior entre nós do que entre os europeus: prova de que a evolução interna das artes apresenta-se na Europa de uma forma mais consolidada e orgânica do que no Brasil. Porém, é preciso insistir: no centro como na periferia, os “modernismos” surgem como consequência tanto de modificações econômico-sociais como da evolução interna da superestrutura.

Por que insistir sobre isso, quando o importante parece ser a diferença de graus? Porque na análise da ruptura seguinte Gullar fará justamente o contrário: ao examinar o Concretismo procurará mostrá­lo como consequência extrema do formalismo em que degenerou o movimento modernista na geração de 45, ressaltando aí a evolução interna, mas deixando em segundo plano (apesar de apontá-las) as determinações sociais. Isto é, as importações das ideias estéticas, nos nossos Romantismo e Modernismo, se não corresponde à evolução interna das artes, justifica-se pela necessidade histórica e social. Já o Concretismo, não. Seu surgimento indica “a maior densidade da estrutura social, maior autonomia – em termos de dinâmica própria – da superestrutura, isto é, do processo político e cultural”. Mas trata-se de uma “resposta inadequada” – porque trata-se também de uma “problemática alheia à nossa realidade, decorrente de uma visão histórica insubsistente num país como o nosso e que, mesmo nos países capitalistas desenvolvidos, pertence ao passado”.[20]

O Tropicalismo – que explodia quando estas frases foram escritas – viria mostrar como elas estavam erradas. Não é o caso de defender a poesia concreta, cuja substância social parece mesmo rala. Mas não é o caso, também, de considerar a sua problemática como “alheia à nossa realidade”. Dentro de suas limitações, ela foi capaz inclusive de antecipar o momento internacionalista que (queiramos ou não) vivemos hoje no Brasil.

Mas todo o livro Vanguarda e Subdesenvolvimento é uma recusa a compreender a internacionalização capitalista, com todas as mudanças que ela traz para a vida social e para as artes. Pode-se contestar esta realidade, criticando seus efeitos trágicos sobre o país. Mas negar sua existência equivale a adotar a política de fechar os olhos para viver dentro de projeções do desejo. É um pouco, embora não seja todo, o sentido do nacionalismo artístico nesta época.

A POESIA POPULISTA DO CPC

E o populismo, a outra face do medalhão nacional-popular? Deixemos um pouco de lado, agora, a poesia de Ferreira Gullar, e tentemos enfocar o assunto de uma maneira mais geral. Ultimamente ele vem sendo muito discutido, e até já é notável o fato de serem tantas as críticas, que muitas pessoas passaram a defender o que ocorreu no governo Jango, recusando o nome de “populismo” para a mobilização então tentada pela esquerda brasileira. Darcy Ribeiro, por exemplo, num debate realizado em São Paulo durante a Bienal do Livro, em 1978, repelia a denominação como limitadora do entendimento correto daqui)o que havia acontecido. A linha de defesa, aliás, vai sempre por aí: chamar de populista o período e a ação política da esquerda é desconhecer a realidade do trabalho de mobilização e organização populares que então se desenvolveu. Carlos Estevam Martins, teórico e primeiro presidente do CPC da UNE, em depoimento concedido também em 1978, defende-se e ataca assim:

As pessoas que hoje acusam o CPC de paternalismo fariam melhor se pensassem um pouco sobre o seu próprio maternalismo. Elas acham que o trabalhador ou o homem do povo já tem todas as ideias corretas no fundo da sua cabeça, sendo preciso apenas ajudar a botar para fora ou tomar consciência daquilo que ele já sabe, daquilo que lhe foi ensinado por suas próprias experiências de vida. Essa é a concepção de Sócrates, que Platão desenvolveu sob a forma da teoria da reminiscência. […] O CPC tinha em vista dar uma contribuição para que o homem do povo pudesse superar as inúmeras dificuldades, as enormes desvantagens que ele enfrenta para adquirir uma consciência adequada da sua real situação no mundo em que vive e trabalha. Basicamente, nós éramos pessoas da classe média, a maioria de classe média baixa. As camadas e classes sociais que existiam acima de nós (a classe média alta, a burguesia, os latifundiários e assim por diante) não nos interessavam. O nosso público eletivo era o que estava abaixo de nós. Objetivamente, portanto, tudo que fizéssemos teria que ser necessariamente de cima para baixo. […] Queríamos fazer e fizemos um trabalho educativo que abrisse possibilidades de transformar a realidade. Não tínhamos nenhuma dúvida de que estávamos trabalhando pelos interesses mais profundos e históricos das classes populares. […] Sabíamos, também, muitíssimo bem que a nossa atuação de cima para baixo, por causa do seu conteúdo e finalidade, destinava-se a produzir alterações de baixo para cima. Mas, o principal para nós não eram as alterações de baixo para cima que as nossas atividades pudessem suscitar no plano cultural. O principal para nós eram as intervenções de baixo para cima nos planos econômico, político e social.[21]

Como se vê, a repulsa à denominação de populista é clara. Para Carlos Estevam Martins, não se trata de paternalismo ou manipulação, mas de uma prática política consequente e – o que é mais importante – a única possível para a época.

Daí certo cuidado que devemos ter, ao defrontar o assunto. Como falar de uma literatura “populista”, se a definição de “populismo” parece tão problemática para nós, hoje? Na introdução ao seu livro Ideologia e Populismo, Guita Grin Debert mostra-nos como a ambiguidade dos conceitos é um traço marcante das teorias correntes na literatura sociológica, que visam explicar o assunto.[22] Na crítica literária a ambiguidade não é menor. Antonio Candido, por exemplo, fala sempre em “literatura empenhada”, “voltada para o social” ou “para o político”. No texto “Literatura e Cultura de 1900 a 1945”, falando dos anos trinta, chega a referir-se a um movimento de “ida ao povo”, um V Narod, culminância da pesquisa localista do Modernismo e seu ponto ideológico máximo. A palavra “populista” aparece aí com um sentido positivo, que não é de modo algum aquele que ela tem hoje. E, de fato, Antonio Candido (como todos os da sua geração, de intelectuais ligados à universidade, que dificilmente poderiam ser chamados de populistas por quem quer que fosse) sempre manifestou simpatia por este decênio que agora consideramos como uma espécie de “matriz” do populismo brasileiro. Outro texto dele, “Érico Veríssimo de Trinta a Setenta”, é bastante significativo a este respeito.

Também Alfredo Bosi, na sua História Concisa da Literatura Brasileira, escreve pouco sobre o assunto. Fala de populismo a respeito de Jorge Amado – mas não se estende sobre o tema. E quando vai localizar Ferreira Gullar e o período que nos interessa particularmente (a década de sessenta), nem sequer utiliza o termo, preferindo expressões como “poesia social”, “opção participante” e “poesia voltada para as tensões sociais”.

É, portanto, sem apoio em fortunas criticas que devemos aproximar-nos do problema. Houve uma literatura populista no Brasil? Como se caracteriza ela? Que temas explorou, que recursos de linguagem preferiu, como obtinha sua comunicação com o público? Explorou – digamos – os temas da miséria das classes populares e da espoliação do povo, da prepotência dos latifundiários, da dominação do imperialismo, das “tensões sociais”. Simplificou a linguagem, usou o coloquial mais direto, carregou o texto de passagens dominadas pela função emotiva, arengou politicamente. Buscou a comunicação com o amplo público através deste seccionamento de temas e desta amputação de recursos linguísticos.

Talvez isso bastasse para enquadrar parte da obra de Jorge Amado como populista. Mas é fácil ver que, no caso de Graciliano, apesar da presença de algumas destas características, a classificação seria falsa. Por causa da profundidade atingida por ele, de sua complexidade, da ausência de caráter doutrinário? É possível. Porém, se for assim, isso demonstrará que a diferença prende-se a algo mais decisivo que a simples escolha do tema e, mesmo, à manipulação mais ou menos hábil dos recursos literários. Ligada ao tema e ao seu tratamento estão uma visão de mundo, uma atitude que importa conhecer para perceber a diferença entre os resultados finais. Seria preferível que tivéssemos antes um modelo claro da atitude populista – uma descrição e uma explicação de sua estrutura e de seu funcionamento – para falarmos com segurança de uma literatura que transponha esteticamente estes dados externos para a sua estrutura interna. Só assim o debate deixaria de girar no vazio.

Mas às vezes (bem verdade que muito raramente) as análises podem começar num fenômeno posterior e lançar alguma luz sobre o que ocorreu antes. Quem sabe discutindo algumas características literárias não poderíamos chegar a conhecer melhor aquilo que gerou uma determinada literatura conhecida como populista? Proponho aqui apenas mencionar um traço que a princípio, como hipótese, me parece distintivo.

Começo voltando ao texto atrás citado de Carlos Estevam Martins. Sublinhei as expressões “queríamos fazer e fizemos”, “não tínhamos nenhuma dúvida” e “sabíamos, também, muitíssimo bem”. Elas denotam uma certeza forte, uma ausência de qualquer hesitação. O depoente, que foi um ator da história, mesmo depois de passar por reveses que afinal significaram a liquidação de seu projeto, mantém certo tom de fala que não admite a possibilidade do fracasso.

Em literatura, esta atitude é um desastre. A confiança absoluta na verdade daquilo que se diz não costuma conduzir os bons escritores. Ao contrário, quanto mais confiança nas ideias circulantes e nas construções verbais que as fazem circular, tanto mais fácil para o escritor diminuir-se e desaparecer numa arte literária pobre e ideológica, no sentido de que reproduz confiantemente o conjunto de falas que giram dentro do sistema dominado. E quanto mais ele desconfia destas ideias e as ataca – escavando o significado das palavras, desconstruindo as fórmulas prontas, pondo em xeque as concepções gerais que regem a sociedade, tanto melhor ele se aproximará de uma literatura mais vital e carregada de interesse.

Num certo sentido, creio que a oposição confiança e desconfiança caracteriza bem seja a prática política desenvolvida no inicio da década de sessenta, seja a poesia que correu paralelamente a ela, procurando reforçá-la e representá-la. Houve confiança demasiada, e isso em vários sentidos. Meia dúzia de conceitos bastavam para reduzir e explicar a realidade brasileira: restos feudais, burguesia nacional em processo de ascensão, fortalecimento de uma classe média progressista, incorporação de grande parte das populações do campo à cidade, graças à industrialização, imperialismo etc. Sobre um quadro sumário e primário do Brasil, montou-se um esquema de alianças políticas, de ações que visavam a congregar o povo (palavra controvertida) num esforço de construção nacional (outra palavra controvertida).

Os poemas publicados nos três volumes de Violão de Rua[23], quase sem exceção, adotam sem questionamento e dúvida esta imagem simplificadora da realidade. Hoje em dia, reler vários destes textos é uma experiência estranha. Tomemos um exemplo ao acaso, o “Poema para ser cantado”, de Paulo Mendes Campos, publicado no primeiro volume da série. Relendo-o, surpreendo-me com a mistura de fé mística e fervor confiante que caracteriza seu tom. Nas piores condições de vida – que o autor descreve – levanta-se a figura do povo como um vitorioso potencial, um mártir que possui extraordinária força de resistência e é capaz de vencer tudo. A dominação que ele sofre aparece-nos como um fenômeno passageiro, superficial mesmo: a potência que ele demonstra e o futuro glorioso que se abre a um passo são infinitamente superiores a ela. O texto é um hino de certezas, e aliás seu refrão é este: “Sei que o povo viverá”.

Quem lê o final deste poema de 1962 e pensa no que aconteceu de lá para cá, tem uma sensação penosa: “No Brasil, na Argentina / USA, Cuba, França, China, / Flor agreste da campina, / Só o povo reinará. / Um refrão novo e antigo,/ Em redor da flor do trigo,/ Minha amiga, meu amigo, / Só o povo reinará. / Só o povo reinará. / Só o povo reinará. / Só o povo reinará. / Só o povo reinará. / Só o povo reinará. / Só o povo reinará. / Só o povo reinará. / Só o povo reinará”.

À força de repetir (nove vezes) o verso, o poeta parece querer esconjurar alguma coisa que impeça o reinado do povo. No fundo, talvez a confiança não fosse tão grande. Mas o que resta compacto, ao final do poema, é uma certeza já atualizada nos versos e, apesar do tempo futuro, presentificada como realidade de aqui e agora.

Há um ensaio de Walter Benjamin, no qual ele critica o otimismo da literatura “engajada” francesa e faz o elogio da visão sombria do surrealismo. Onde estão – pergunta ele – a primavera, os anjos, a vida feliz que os poemas engajados anunciam? Só se vê a realidade dura do nacional-socialismo, da Luftwaffe, da I. G. Farben e da guerra.

Um deslize semelhante ocorreu na poesia engajada brasileira da época. Não que seus poetas não falassem de miséria e sofrimento – pois falam, e muito. Mas a perspectiva histórica e política em que estavam montados é que parecia tão falsificada quanto a primavera, os anjos e a vida feliz denunciados pelo pessimismo desconfiado de Benjamin. Por exemplo, em “Canto Abrangente”, de Heitor Saldanha (publicado no volume II), que termina assim: “Cantaremos!// Os novos poemas não serão fronteiras, / mas serão ventres para novos filhos / e esses filhos não serão bastardos / sem heroísmo a simular combates, / e nem serão os químicos do pranto / a dissecar a lágrima em seu curso. / O horizonte concentrou-se rubro/ e dos escombros vai nascer a aurora. / Cantaremos!”

Nem todos os poemas têm este tom triunfalista e ingênuo, e seria injustiça nivelá-los por aí. Mas o que aparece, como característica geral desta literatura, é a absoluta ausência de desconfiança diante das imagens “redentoristas” do povo, e uma crença quase mágica no verbal. É como se a linguagem política da literatura fosse um constante performativo: enunciados, os fatos se realizam. Ingenuidade política (no sentido de uma avaliação simplista da realidade) e concomitante ingenuidade literária.

Alguém nos explica que depois da guerra não só a Alemanha, mas também a própria língua alemã estava em farrapos: “Palavras como povo, espaço vital, pátria, terra, sangue, honra, educação, dever, providência, vitima, haviam sido profanadas pelos nacional-socialistas. A propaganda política é capaz de destruir uma língua até as raízes. Como poderia nascer uma nova literatura alemã deste monte de sucata em que estava transformada a língua? (…) Uma poesia escrita em 1945, por Günter Eich, marca a desesperada simplicidade com que os poetas daquela época usavam as palavras: “Este é o meu boné / esta, a minha capa / aqui, o meu aparelho de barba / no saco de lona. / / Latas de conserva: / Meu prato, meu copo. / Na lata branca / risquei o meu nome’”.[24]

Não cabe, naturalmente, qualquer aproximação entre o nosso nacional-populismo e a situação da Alemanha no pós-guerra. Mas o que desejo frisar é que o escritor contemporâneo tem sempre de lidar com uma língua “em farrapos”, com palavras que foram ao longo do tempo sendo degradadas por um uso impróprio, ou mentiroso, ou servil, ou desgastante até que o sentido desapareça. Nossos poetas de Violão de Rua jamais problematizaram a linguagem que usavam. Que significa mesmo “burguesia”, “latifúndio”, “patrão”, “operário”, “camponês”, “revolução” etc.? Eles nunca se detinham diante de termos assim. Pelo contrário, apossavam-se deles como de uma novidade (aliás, em termos de literatura brasileira isto é relativamente verdadeiro) e os usavam com a volúpia de quem estava fazendo a revolução, ao lado dos operários e dos camponeses, contra os patrões, os latifúndios e o imperialismo.

A realidade veio demonstrar que eles, ou melhor, que nós nada

sabíamos a respeito do significado verdadeiro destes termos. Não sabíamos o que era o latifúndio no Brasil, que coisa era a burguesia nacional, quem era a classe operária, como agia o imperialismo. A língua já estava em farrapos, e a ilusão consistia em usá-la como se fosse algo de íntegro. A retórica populista de Violão de Rua procedia pela reprodução de um movimento ideológico de seu inimigo: reificava, fetichizava a linguagem, sem indagar de seu verdadeiro significado.

Só um exemplo, que dispensa quase comentário, dessa retórica empolgada e fácil. Moacir Félix, na “Nota Introdutória” do volume III, afirma a certa altura que o “trabalho de poetas”, “homens da negação”, tem “íntima afinidade com aquele impulso ou projeto de desalienação existente na história dos homens, sempre marcada pelas revoluções que a distanciam do ensombreado chão da Necessidade para aproximá-la mais e mais do azulado reino da Liberdade”. E continua, afirmando a necessária aliança dos poetas com o proletariado, “classe por excelência da negação, única classe que luta para negar-se a si própria, para deixar de existir como tal e com isso fundar o novo mundo em que não existam mais classes. Ou seja: a única classe que busca essencialmente realizar o goetheano anelo: ‘morre e transmuda­ te'”. (os grifos são meus).

O que encontramos nesta retórica? Boas intenções, declarações de princípio, imagens idealizadas da poesia, da classe operária e da revolução. Apesar de declarar-se um “homem da negação” (pois poeta), não há em suas frases nenhuma verdadeira negatividade, mas apenas a má positividade de um idealismo que faz (imaginariamente, é claro) o percurso entre o “ensombreado chão da Necessidade” e o “azulado reino da Liberdade”.

Trata-se, por fim, de uma literatura bastante afastada daquilo que caracteriza justamente a mais forte parte da produção artística atual, seu lado mais crítico e mais negativo. A literatura populista de Violão de Rua não contém um pingo de ironia. Reconhecimento dramático da condição humana sob o reino da Necessidade (para falar um pouco como Moacir Félix), é a ironia que faz a força crítica da literatura contemporânea. As personagens de Graciliano Ramos, por exemplo, são irônicas (no sentido de Northrop Frye, em que o modo irônico consiste em apresentar os heróis como mais fracos que o mundo que eles devem enfrentar), e é por isso que se abre uma enorme dimensão trágica nas figuras de Fabiano, Sinhá Vitória, os dois meninos, a cachorra Baleia. Já as personagens de Jorge Amado, não: essas são quase romanescas (também no sentido de Frye, em que o modo romanesco consiste em apresentar os heróis como superiores ao mundo que eles devem enfrentar), e é por isso que suas criações parecem-nos tão afastadas da realidade.

Por aí há talvez um caminho que nos permite compreender e conjugar duas coisas distintas: a ingenuidade política e literária da arte “populista” e seu atraso estético como decorrências de uma visão de mundo que se distancia da realidade na medida em que se limita a reproduzir, através de estereótipos, uma ideologia da força, da ação e do heroísmo individual – traços que já sabemos serem constitutivos da ideologia burguesa, desde o século passado.

FONSECA & AZEVEDO

“Quem sou?” – com esta pergunta inicia-se o conto “H. M. S. Cormorant em Paranaguá”, de Rubem Fonseca.[25] E como em toda boa narrativa curta, as primeiras palavras já destacam o tema e modulam o tipo de tensão que percorrerá o texto. Quem é a personagem que se interroga diante do espelho, vestida de mulher, enquanto sua irmã Luísa arruma o quarto? O leitor não precisa ser muito versado em literatura brasileira para descobrir logo que se trata do poeta Álvares de Azevedo, voltando da festa a que, segundo a lenda, comparecera travestido, e na qual enganara, seduzira e zombara do Conde de Fé d’Ostiani, representante no Brasil do reino das Duas Sicílias, e pretendente à mão de sua irmã.

Uma das linhas de interesse do conto segue por aí, na direção do belo pastiche que Rubem Fonseca faz do poeta romântico, incorporando à sua prosa tão contemporânea a eloquência exaltada de Manuel. Trechos inteiros de poemas são assim recuperados para nós, e ganham em seu novo contexto prosaico uma força poética que não suspeitaríamos que ainda persistisse na retórica juvenil de Álvares de Azevedo.

Mas absolutamente não é o pastiche (ou a estilização) que aprofunda o tema (embora sirva para ilustrá-lo). A pergunta inicial se desdobra ainda em mais dois planos. Num primeiro nível, ela é interrogação sobre a identidade do poeta-personagem, refletido no espelho, homem vestido de mulher. Oscilante entre a prostituta Teresa e a irmã Luísa, Calibã e Ariel na versão mais modesta de Macário e Penseroso, ele é também uma espécie de Hamlet degradado em garoto estudante de direito, na roça paulistana de 1852. E sob o tema tão romântico da divisão da personalidade, do duplo, o contista vai insinuando, em outro nível, outro motivo mais poderoso. Surge junto a Álvares de Azevedo o espectro de Byron, “bretão de alma de fogo”, e os dois conversam entre si, em diálogos nos quais o “poeta altivo das brumas de Albion” faz papel de alter ego distante e irônico.

E neste nível que a pergunta inicial ganha mais intensidade.

Quem é o rapazola brasileiro diante do lorde inglês que, do alto da força de seu Império, de suas Aventuras, de sua Poesia, olha com indiferença complacente aquele filho indeciso de um pais de escravos, que tenta imitá-lo o tempo todo? Colocados face a face, o autor da Lira dos Vinte Anos e o autor de Childe Harold conversam sobre a vida e a morte, o amor e a literatura – e sobre política. O centro do conto, que no começo parecia fixado sobre a personalidade íntima de Álvares de Azevedo (amor e medo), desloca-se com firmeza para outro ponto e põe em relevo uma dimensão mais geral: a relação do poeta com seu país. O incidente do navio inglês Cormorant, que em 1850 invadira o porto de Paranaguá e apresara dois navios negreiros de bandeira brasileira, é o episódio que permite a Rubem Fonseca o deslocamento da questão básica.

“Quem sou?” – a pergunta tem agora um sentido diferente. Ela indaga do significado daquele episódio, da importância que ele tem para a soberania do país e das implicações do tráfico de escravos. Os diálogos entre Álvares de Azevedo e Byron são tensos, e as falas de cada um vão recortando semelhanças e diferenças. Na taberna, estudantes e bêbados manifestam-se contra os ingleses, defendendo a soberania brasileira. “Soberania de traficantes de escravos, mofa Byron.” Álvares de Azevedo retruca que a Inglaterra descobrira um modo aparentemente limpo de explorar o negro, colonizando-o na sua própria terra, e agora quer acabar com a agricultura do Brasil. “Byron diz que despreza um país onde a economia nacional e o bem-estar de um pequeno grupo de privilegiados se baseia na exploração de escravos ferozmente subjugados.” Álvares de Azevedo discursa contra a exploração dos trabalhadores e diz que um povo faminto “tem o direito de fazer tudo, seja o que for, para matar sua fome”.

A discussão alcança aí o seu ponto alto. Vale a pena transcrever o trecho:

Tu falas dos brancos, diz Byron, e os negros? Enfim, quem sou eu para falar sobre isto, se aqui estou, oblitus meorum obliviscendus et illis, esquecendo o meu povo e sendo esquecido por ele.

O povo nos esquecerá, a nós poetas? Depois de rolarem as cabeças, depois de passar o odor do sangue derramado e da carne carbonizada, de serem esquecidos o tropel e os gritos, voltaremos a ser necessários?

Byron dá de ombros, olhando o papel à sua frente. Uma cortesã chamou minha letra de garranchos de uma lavadeira… Byron é apenas um scribbler, e eu um poeta alienado, e aqui estamos nós, vis-à-vis, esquecidas nossas diferenças, diluídas as condescendências de um e os rancores de outro. Byron não precisa de mim, nem a Inglaterra do Brasil, ele é o meu paragon e o Brasil uma colônia da pérfida Albion. Ser fraco custa um preço alto, chego às vezes a pensar que o inglês é uma língua mais bonita que a nossa. Cormorant só invadiu Paranaguá porque Byron, Keats, Shelley invadiram antes a minha mente. A Colonização se faz em nome de Deus, da Lógica, da Razão, da Estética e da Civilização. Os imperialistas levam o nosso ouro e corrompem a nossa alma. Byron e Schomberg eram iguais – a Poesia e o Canhão a serviço da Dominação. Nonsense, diz Byron, e desaparece.

A maneira de colocar o problema, encontrada por Rubem Fonseca, é fascinante porque consegue conciliar o exame da personalidade íntima e da face pública, dos amores e da política. Ao pôr em jogo a função da poesia, toca tanto na identidade pessoal do poeta como no seu papel social. Sendo abrangente assim, afasta a dicotomia entre indivíduo e sociedade, pois mostra-nos os dois lados como devem ser vistos, isto é, solidariamente unidos, interdependentes.

É curioso que ele tenha escolhido justamente Álvares de Azevedo – o “intimista”, que foi acusado em seu tempo de imitar os autores estrangeiros, pouco contribuindo na formação da literatura nacional –, como protagonista deste conto exemplar. Mas entende-se: era preciso um verdadeiro poeta, no espírito de quem as contradições se cruzassem com força, para delinear este pequeno quadro poderoso, de dúvidas e hesitações, que mostram a condição de nosso escritor. O final do texto, focalizando a morte do poeta, muda a cronologia, deslocando as contradições para o presente. Quem se debate diante da miséria, no meio do imperialismo e da escravidão, não é o moço romântico, mas o pobre narrador: “Levanto-me trôpego e escrevo à frente do meu nome na parede vinte e cinco de abril de mil oitocentos e cinquenta e dois. Bustamante diz que Byron era incestuoso, fanfarrão, pederasta, sedutor de mulheres, que o Cormorant foi embora, que eu não sou Álvares de Azevedo, que o schottisch virou chorinho, que tudo mudou, outros navios de guerra, novos escravos, outros poetas, minha vida se esvai, chamai meu pai”.

O final do conto, como o começo, propõe o problema da identidade do “eu” e do país. O “quem sou” do início reaparece na boca do autor contemporâneo. E esse tema tão forte, que atravessa a nossa literatura como uma constante, é que me interessa para retomar a obra de Ferreira Gullar.

IDENTIDADE PESSOAL E SOCIAL

Recapitulemos um pouco o que foi visto. Afirmei no começo, citando Sérgio Buarque de Hollanda, que a conjunção entre “voz pública” e “toque íntimo” parecia a característica mais evidente do poeta. Em A Luta Corporal e em O vil Metal vimos como a exploração da subjetividade é intensa e como os poemas parecem dirigir-se todos, através dos muitos prismas temáticos, para uma constante pergunta sobre o “eu”, até chegar a desintegrar a linguagem, levando-a ao limite extremo do solipsismo. Nos Poemas Concretos/Neoconcretos, vimos a reintrodução da objetividade, que no entanto é logo afastada na “teoria do não-objeto”, e substituída por outra espécie de pesquisa subjetivista. De novo o silêncio e o desaparecimento do mundo – até o corte divisório que foi o conhecimento do marxismo.

Poderíamos dizer que da poesia do primeiro livro para o Concretismo há um salto: o enjoo da linguagem discursiva e da exploração do corpo, e a passagem algo esbatida para o outro, para o não-corpo, para a sociedade – mas na forma peculiar que a poesia concreta assume, de adesão ao objeto (o outro como objeto). Daí para a poesia participante há mais um salto: a ampliação das determinações, a descoberta das forças históricas, a passagem agora resoluta para o tema do outro, mas dessa vez como sujeito.

Esta última fase da poesia de Gullar evolui por etapas. A primeira foi a do CPC e dos poemas de cordel, na qual o peso da propaganda política mata a arte. A segunda tem inicio logo após o golpe militar de 64, e constitui um verdadeiro retorno à poesia. As composições dessa época, reunidas no volume Dentro da noite veloz, têm como principal característica a procura de equilíbrio entre a expressão dos sentimentos subjetivos e a comunicação da visão de mundo. A linguagem poética fica mais complexa e – embora tenha abandonado o agressivo sentido experimental do primeiro livro – impressiona pela facilidade com que desentranha do coloquialismo uma atmosfera poética densa, esplêndida como as peras maduras, mas tranquila, sem a sombra do desespero. Voltam algumas das imagens prediletas, de iluminação; o significado, porém, mudou muito. Veja-se, por exemplo, o começo do poema “Homem Comum”:

Sou um homem comum

de carne e de memória

de osso e esquecimento,

Ando a pé, de ônibus, de táxi, de avião

e a vida sopra dentro de mim

pânica

feito a chama de um maçarico

e pode

subitamente

cessar.

Sou como você

feito de coisas lembradas

e esquecidas

rostos e

mãos, o guarda-sol vermelho ao meio-dia

em Pastos-Bons,

defuntas alegrias flores passarinhos

facho de tarde luminosa

nomes que já nem sei

bocas bafos bacias

bandejas bandeiras bananeiras

tudo

misturado

essa lenha perfumada

que se acende

e me faz caminhar

O leitor ainda se lembra do nono “poema português”, que começava assim: “Fluo obscuro de mim…”. Havia lá uma procura de identidade, que esbarrava na consciência do tempo como destruição e morte. Aqui, o sinal é o inverso: a identidade é transparente (“Sou um homem comum” e “Sou como você”), e o tempo – “essa lenha perfumada” – é feito da memória e do esquecimento de coisas que, acesas, fazem o poeta caminhar. Some a desarmonia: construir não é mais destruir-se ferozmente (como em “Um Programa de Homicídio”), e a identidade de “homem comum” parece capaz de solidificar um centro forte que domine e vença as contradições. Qual é esta identidade segura? Não mais a do poeta atormentado com a fugacidade da beleza e com o caráter irredutível das coisas:

Sou um homem comum

brasileiro, maior, casado, reservista,

e não vejo na vida, amigo,

nenhum sentido, senão

lutarmos juntos por um mundo melhor.

Poeta fui de rápido destino.

Mas a poesia é rara e não comove

nem move o pau-de-arara.

(…)

Homem comum, igual

a você,

cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.

A sombra do latifúndio

mancha a paisagem,

turva as águas do mar

e a infância nos volta

à boca, amarga,

suja de lama e de fome.

Mas somos muitos milhões de homens

comuns

e podemos formar uma muralha

com nossos corpos de sonho e margaridas.

A ficha civil do cidadão, “homem comum”, se opõe ao currículo do poeta “de rápido destino”. Esse último ambicionava para a vida um sentido absoluto, eterno, totalizante. Não o encontrando, desesperava­se da poesia, da precariedade do canto, e queimava as palavras em seu próprio fogo. O primeiro descobre um sentido, ainda que relativo: mudar o mundo para melhor. Para isso é preciso abandonar a busca individualista e lutar junto, formar com os corpos de muitos milhões de homens uma muralha “de sonho e margaridas”, contra a opressão. Vale dizer: deve-se abandonar aquilo que é a diferença entre os indivíduos (e que constituiu a temática de A Luta Corporal) e reencontrar a semelhança que os una. O dia de todos deve ser a proximidade entre os homens, ultrapassando “a distância entre as coisas”. A “voz pública” e a “voz íntima” devem ser a mesma.

Duas questões se põem agora. Primeira: isso quer dizer que os poemas de A Luta Corporal nasciam apenas do registro íntimo, não possuindo a dimensão da sociedade? A resposta é não. Eles exprimiam um tormento do “eu”, mas exprimiam também (como aliás já deixamos assinalado atrás) o isolamento terrível no qual vivemos dentro da sociedade. Neste sentido, eles davam concretude lírica a uma condição geral que é ao mesmo tempo a condição particular de cada um de nós. Apenas no instante em que a postura subjetivista é exacerbada é que o seu caráter geral fica ameaçado pela destruição (caso de “Roçzeiral”). Mesmo aí, no entanto, é preciso ver que existe um instante mimético forte, que do ponto de vista literário não pode ser desprezado: a destruição da linguagem e do indivíduo, no poema, simboliza a possibilidade concreta da destruição da linguagem e dos indivíduos, na realidade da sociedade atual. O dilaceramento do texto funciona como um sinal de alarme, uma advertência.

Segunda questão: o abandono da atitude destrutiva, que nos poemas anteriores tinha o aspecto de combate à falsidade ideológica, significa que os novos poemas irão manchar-se de falsa consciência? Não necessariamente. Às vezes isso acontece e a linguagem perde sua tensão poética para transformar-se em discurso patético (como no “Poema Brasileiro”), ou disfarçadamente sentimental (como em “Notícia da morte de Alberto Silva”), ou apenas prosaico (como em certos trechos desse “Homem Comum”). Mas isso ocorre sobretudo nos poemas de cordel do tempo do CPC, e mais raramente nos três últimos livros, porque neles a visão que se tem não é triunfalista nem dogmática. A má positividade é afastada por um movimento de autorreflexão, que está constantemente colocando o poeta frente a si mesmo. Como no seguinte poema:

Maio 1964

Na leiteria a tarde se reparte

em iogurtes, coalhadas, copos

de leite

e no espelho meu rosto. São

quatro horas da tarde, em maio.

Tenho 33 anos e uma gastrite. Amo

a vida

que é cheia de crianças, de flores

e mulheres, a vida,

esse direito de estar no mundo,

ter dois pés e mãos, uma cara

e a fome de tudo, a esperança.

Esse direito de todos

que nenhum ato

institucional ou constitucional

pode cassar ou legar.

Mas quantos amigos presos!

quantos em cárceres escuros

onde a tarde fede a urina e terror.

Há muitas famílias sem rumo esta tarde

nos subúrbios de ferro e gás

onde brinca irremida a infância da classe operária.

Estou aqui. O espelho

não guardará a marca deste rosto,

se simplesmente saio do lugar

ou se morro

se me matam.

Estou aqui e não estarei, um dia,

em parte alguma.

Que importa, pois?

A luta comum me acende o sangue

e me bate no peito

como o coice de uma lembrança.

O leitor terá reparado na beleza sem enfeite da primeira estrofe, cujo tom coloquial afasta a possibilidade de retórica: na leiteria, entre utensílios, refletido no espelho, o rosto do poeta. São imagens que vínhamos encontrando ao longo de toda a poesia – os objetos e a figura do “eu”–, mas agora elas têm um sentido diferente. Não há o sentimento de separação dolorosa que havia antes, há uma espécie de integração natural, como se o “eu” fosse alguém entre coisas, uma pessoa entre outras – ainda o homem comum, que exerce o seu direito de estar no mundo. A imagem no espelho reflete um indivíduo deter­ minado, mas esse indivíduo identifica-se fundamente com os outros: “ter dois pés e mãos, uma cara / e a fome de tudo, a esperança”. E note-se que esta identificação surge de forma natural, como se um impulso de afetividade – e nunca algo exterior – colocasse o poeta diante do próprio rosto e o fizesse ver, refletidos nele, os amigos presos, as famílias sem rumo, a infância irremida da classe operária. Não há só retórica aí. Apesar de a imagem parecer um tanto banal e eloquente, percebe-se de imediato que ela nasce como o toque de emoção que perturba (talvez) o andamento despojado da linguagem, mas combina­se logo a seguir, de novo, com o coloquial que o texto vinha seguindo: “Estou aqui”. Na verdade, estamos longe do poema de tese, engajado a CPC. A voz política nasce de um sentimento íntimo, de um abalo que faz a adesão aos perseguidos surgir inteira, visão de mundo e subjetividade juntas. O poema seguinte também é de reflexão:

Agosto 1964

Entre lojas de flores e de sapatos, bares,

mercados, butiques,

viajo

num ônibus Estrada de Ferro-Leblon.

Volto do trabalho, a noite em meio,

fatigado de mentiras.

O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,

relógio de lilases, concretismo,

neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,

que a vida

eu a compro à vista aos donos do mundo.

Ao peso dos impostos, o verso sufoca,

a poesia agora responde a inquérito policial-militar.

Digo adeus à ilusão

mas não ao mundo. Mas não à vida,

meu reduto e meu reino.

Do salário injusto,

da punição injusta,

da humilhação, da tortura,

do terror,

retiramos algo e com ele construímos um artefato

um poema

uma bandeira

O início lembra Drummond, “A flor e a náusea”. É o mesmo coloquial forte, que organiza as palavras prosaicas numa cadeia de associação de imagens, da qual resulta o efeito poético. Também o despojamento, o modo desalentado de ir indicando sucessivamente, por acumulação, os problemas, lembra a técnica drummondiana. E ainda a força da resistência, o desejo de opor-se à injustiça, que ao final do texto agita no ar o emblema de desafio, sem entretanto qualquer traço da ingenuidade que vimos no Violão de Rua.

Parece, aliás, que a perda da ingenuidade, do otimismo excessivo (o “adeus à ilusão”, não a de que fala o texto, mas outra, a cepecista), é que confere este tom amargo e decidido, o qual modula o tema de modo politicamente tão convincente. Penso que a diferença entre o engajamento pós-64 e o anterior nasce, em boa parte, da própria experiência da derrota. Neste poema, por exemplo, não há um herói clarividente, todo-poderoso, destinado por princípio à vitória. Ao contrário, “fatigado de mentiras”, sufocado ao “peso dos impostos”, o poeta “responde a inquérito policial-militar” – e tal diminuição de tamanho corresponde a uma representação ajustada (infelizmente … ) ao âmbito da verdadeira realidade. Além disso – e insisto sobre este ponto – a identificação com os outros homens surge como que nascendo do íntimo, espontânea, e a sentimos como natural. Repare-se, a propósito, na quase imperceptível e no entanto decisiva passagem

– no antepenúltimo verso – da primeira pessoa do singular para a primeira do plural: “retiramos algo e com ele construímos um artefato”.

Eu diria, portanto, que além da linguagem coloquial e da visão política realista, o que mais caracteriza estes poemas é uma exploração intensa da subjetividade. Os acontecimentos exteriores – tais como a guerra do Vietnã, em “Por você por mim”, ou a morte do Che, em “Dentro da Noite Veloz” – são apresentados da perspectiva interior do poeta, tingidos pela sua afetividade. Gullar parece reconhecer assim, ao menos na prática poética, que tematizar as experiências do “eu” não implica, obrigatoriamente, cair no solipsismo subjetivista. É curioso, inclusive, que o passo seguinte seja um decidido mergulho na vivência subjetiva e na memória, pesquisa e redescoberta do tempo perdido, encontro comovido com a cidadezinha da infância – sem que por isso o Poema Sujo deixe de ser também a descrição de um lugar e de um tempo determinados, a captação de uma concretude social, que é a vida humilde da pequena-burguesia brasileira nas suas cidades pobres. E nesse caso creio que o processo se completa: a procura de si mesmo (que é o primeiro nível do texto) se dá dentro de uma realidade cultural (os hábitos de vida em São Luís do Maranhão) e acaba por nos oferecer a imagem de pelos menos uma parcela da sociedade brasileira. Ou seja: a identidade pessoal revela-se como uma identidade cultural, inserida dentro de uma mais ampla identidade nacional.

Não creio que seja necessário ir tão longe, como o faz Otto Maria Carpeaux, ao ponto de considerar o Poema Sujo como o “Poema Nacional”, que encarna “todas as experiências, vitórias, derrotas e esperanças da vida do homem brasileiro”[26]. Há um exagero apaixonado nessa afirmativa. Porém não há como negar que ao menos um extenso segmento da vida nacional está representado neste poema de tanto êxito. Sem nacionalismo e sem populismo, mas com uma segura atenção para os movimentos da interioridade; sem zelo dogmático de doutrinas, também, mas com uma liberdade enorme no uso dos processos poéticos, que compreendem a livre associação das imagens, o fluxo da consciência e o tratamento flexível e arbitrário do tempo.

Deixemos os vários outros aspectos de lado, e peguemos apenas o problema do tempo, para compreendermos a continuidade e a diferença que existem, neste particular, entre A luta corporal e o Poema sujo. No primeiro livro, como o leitor estará lembrado, o tempo era visto como destruição da beleza, como o demônio que desgasta as coisas, impedindo com sua erosão constante o momento de plenitude. Falamos inclusive (seguindo uma indicação de Lukács, em A Teoria do Romance) numa ferida que consistia no estado impotente da subjetividade diante do curso contínuo da duração, que destrói as coisas fora da consciência. Cada coisa tem o seu tempo próprio, alheio ao tempo das outras, e isso era sentido de maneira dolorida.

O mesmo problema se coloca no Poema Sujo, mas de outra forma. Também lá cada coisa tem a sua velocidade e o seu ritmo próprios, e todos estes diversos tempos estão combinados em sistemas, que têm cada um o seu centro. O dia que passa, por exemplo, tem uma velocidade diferente na quitanda de Newton Ferreira ou no estrépito da avenida, na cozinha ou na sala da casa, na circulação do tráfego, do dinheiro e das mercadorias, conforme o bairro e a classe. Mesmo no interior da pera que amadurece, os açúcares e os álcoois giram em diferentes ritmos, “compondo a velocidade geral / que a pera é”. No entanto, essa diversidade é vista agora como riqueza, e não mais como dor. A subjetividade, amadurecida, ganhou forças: se antes ela via no fluir da duração apenas o desgaste e a morte, ela vê agora a transformação e o fluxo da vida; se antes o poeta se desesperava por ver na existência de múltiplos tempos um indício da solidão de cada coisa, ao retornar aos dias perdidos da infância – ao tempo subjetivo, ido e vivido – e ao buscar recuperá-los pela memória, comove-se com essa mesma multiplicidade, que lhe aparece como um sinal concreto da pluralidade da vida, manifestando-se sob várias formas, articuláveis na lembrança.

Estamos longe, também aqui, do esquematismo abstrato do nacionalismo e da “cultura popular”. Para compensar, estamos mais próximos de uma representação concreta e aberta da realidade.

TRADUZIR O OBSCURO

Digamos assim: Rubem Fonseca vê no drama íntimo de Álvares de Azevedo o símbolo do drama maior do escritor brasileiro e, em plano ainda mais amplo, da literatura brasileira. Dos pequenos problemas amorosos até o defrontamento com a miséria do povo e com a força do imperialismo, tudo se articula para compor uma identidade sofrida e contraditória. Expô-la no poema é expor as suas determinações sociais – e isto equivale a reconhecer a própria condição do’ lirismo, que só fala da sociedade quando fala do mais fundo da subjetividade.

Esse é também o significado da trajetória poética de Gullar. Significado rigoroso, que a acompanha desde os tempos de A Luta Corporal até o último livro publicado. E que encontra uma espécie de explicitação muito bonita em dois textos desse mesmo livro, Na vertigem do dia. Um é o poema “Traduzir-se”, que usei como grande epígrafe deste ensaio: o poeta é simultaneamente todo mundo e ninguém; multidão e solidão; razão e delírio; rotina e espanto; vertigem e linguagem. Mas ser poeta é saber traduzir uma coisa na outra, a pulsão dionisíaca na forma apolínea, o indivíduo na coletividade.

O outro texto amplia o sentido dessa “tradução”:

Poema Obsceno

Façam a festa

cantem dancem

que eu faço o poema duro

o poema-murro

sujo

como a miséria brasileira

Não se detenham:

façam a festa

Bethânia Martinho

Clementina

Estação Primeira de Mangueira Salgueiro

gente de Vila Isabel e Madureira

todos

façam

a nossa festa

enquanto eu soco este pilão

este surdo

poema

que não toca no rádio

que o povo não cantará (mas que nasce dele)

Não se prestará a análises estruturalistas

Não entrará nas antologias oficiais

Obsceno

como o salário de um trabalhador aposentado

o poema

terá o destino dos que habitam o lado escuro do país

– e espreitam.

Por um lado, é evidente que se trata de uma consigna. Mas prefiro tomá-lo pelo outro lado: como a declaração de que o poema­murro, sujo como a miséria, surdo e obsceno, nasce da realidade brasileira. Vê-se aí, mais do que uma posição política – e acima dela – um traço fundo da poética de Gullar: sua insistência na sujeira, na podridão, na degenerescência orgânica, que vimos aparecer de forma clara desde A Luta Corporal (e que, aliás, está mais presente lá do que no próprio Poema Sujo). Que significam essas imagens constantes, de miséria e sofrimento?

É o próprio poeta quem nos sugere a interpretação. Ao escrever sobre Augusto dos Anjos, Gullar aproxima-o inesperadamente de Graciliano Ramos e João Cabral. Mostra-nos, em Augusto e Graciliano, a mesma necessidade de expor o real em sua abjeção e em seu mau-gosto, e sugere-nos que isto talvez seja um produto do ambiente nordestino; e mostra-nos que, em Augusto e João Cabral, “descendentes de famílias decadentes da oligarquia rural nordestina, dos engenhos, (…) testemunhas de um mundo que deteriora”, a presença da morte é obsessiva.[27]

Dir-se-ia que Ferreira Gullar fala de Ferreira Gullar – e certamente é isso mesmo, embora ele fale também de Augusto dos Anjos, de Graciliano Ramos, de João Cabral, “do próprio fenômeno da poesia brasileira moderna” e da “indigência da morte (e vida) nordestina”.[28]Assim acontece igualmente neste “Poema Obsceno”, que nasce do povo apenas porque nasce “do lado escuro do país” – onde o poeta também habita e espreita. Ainda é o movimento de traduzir-se.

Notas

  1. Sobre este roteiro, é preciso consultar o livro de Heloísa Buarque de Hollanda, Impressões de Viagem. CPC, Vanguarda e Desbunde: 1960/1970. São Paulo, Editora Brasiliense, 1980.
  2. Toda Poesia, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980 (cf. “Introdução”, p. 5). Todos os poemas serão citados de acordo com esta edição.
  3. Mário de Andrade, “A Volta do Condor”, in Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo, Editora Martins, s.d., p. 161.
  4. Ferreira Gullar, “Depoimento”, gravado na FUNARTE, Rio, 1980, datilografado, pp. 13-14.
  5. Ferreira Gullar, “Benevento”, Revista Isto É, São Paulo, 8/7/81, n 237, p. 8.
  6. Ferreira Gullar, Depoimento à Funarte, citado, p. 12.
  7. Ferreira Gullar, “Em busca da realidade”, in Cultura posta em questão. Rio, Civilização Brasileira, 1965, p. 123.
  8. Ferreira Gullar, “Em busca da realidade”, citado, p. 124.
  9. Ibidem, p. 104.
  10. Ferreira Gullar, “Função do Artista”, in Cultura posta em questão, Rio, Civilização Brasileira, 1965 (p. 23).
  11. Ferreira Gullar, “Morte Cultural d Arte”, in Cultura Posta em Questão, p. 60.
  12. Ferreira Gullar, Cultura posta em questão, p. 11.
  13. Ferreira Gullar, op. cit., p. 80.
  14. O anteprojeto do Manifesto do CPC e a “Nota Introdutória” ao volume III do Violão de Rua podem ser encontrados no livro Impressões de Viagem, de Heloisa Buarque de Hollanda (citado). O livro de Carlos Estevam foi publicado no Rio pela Tempo Brasileiro em 1963 (aí encontra-se também o anteprojeto do Manifesto, pp. 75-109).
  15. Vanguarda e subdesenvolvimento. Rio, Civilização Brasileira, 1969.
  16. Goethe, citado por Ferreira Gullar, op. cit., p.58.
  17. Ibidem, p. 59.
  18. Ferreira Gullar, ibidem, p. 66.
  19. Ferreira Gullar, ibidem, pp. 78-79.
  20. Ibidem, pp. 34-35.
  21. Cf. Arte em Revista. São Paulo, Kairós/Ceac, A. 2, n 3, 1980, p. 182 (os grifos são meus).
  22. Guita Grin Debert, Ideologia e Populismo, São Paulo, T. A. Queiroz, 1979 (a introdução constitui uma boa resenha crítica da bibliografia).
  23. Os três volumes da série , números “extras” dos Cadernos do Povo Brasileiro, foram publicados no Rio, pela Ed. Civ. Brasileira, em 1962.
  24. Sigried Khale, “Introdução” à Antologia do Moderno Conto Alemão (tr. brasileira). Porto Alegre, Globo, 1969.
  25. ln O Cobrador, 2 edição. Rio, Ed. Nova Fronteira, 1979.
  26. Otto Maria Carpeaux, citado em Toda poesia, p. 444.
  27. Ferreira Gullar, “Augusto dos Anjos ou Vida e Morte Nordestina”, in Augusto dos Anjos, Toda poesia. Rio, Paz e Terra, 1976, pp. 55-59.
  28. Ibidem, p. 59.

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