1999

O mito do bom selvagem

por Sergio Paulo Rouanet

Resumo

Existente desde a Antiguidade, o moderno aparecimento do mito do bom selvagem coincidiu com o período das grandes navegações. É oportuno, portanto, rastrear sua gênese e refazer seu itinerário.

Foi sem dúvida Colombo o primeiro a relançar o antigo mito, ao reencontrar o bom selvagem no Novo Mundo. Num cenário paradisíaco, com árvores luxuriantes, mel em abundância e revoadas de pássaros canoros, entre os quais ele reconheceu o rouxinol europeu, Colombo encontrou homens naturalmente bons. São simples e honestos, generosos ao extremo, porque dão tudo o que lhes pedem, amam o próximo mais do que eles mesmos; em suma, trata-se de um povo “amável e sem cobiça […] a melhor gente em toda a terra […] com sua fala suave, mansa e risonha. Tanto homens e mulheres andam nus”.

Como a famosa carta de Caminha permaneceu inédita até 1817, há que se destacar Américo Vespúcio, cuja obra foi publicada, em numerosas edições, desde o século XVI. Em 1502, escreve o navegador que os índios “são desprovidos de fé e lei, vivem segundo a natureza, desconhecem a imortalidade da alma, não carregam com eles bens próprios, pois tudo é comum. Desconhecem também fronteiras de reinos ou províncias, o poder de um rei ou qualquer forma de obediência; assim, cada qual é senhor de si mesmo”.

Mas o mito do bom selvagem só se consolidou mesmo graças ao franciscano André Thévet e ao calvinista Jean de Léry, que escreveram livros baseados em suas experiências na França Antártica, colônia francesa fundada por Villegagnon no Rio de Janeiro.

Em Singularidades da França Antártica, publicada em 1557, Thévet enxergou nos índios, junto a muitos defeitos, grande virtudes, como a hospitalidade e a coragem, que inspirava nos condenados à morte um estoicismo admirável. Foi, aliás, Thévet que inaugurou a tradição de criticar a cultura europeia comparando-a com os costumes indígenas. No que se refere, por exemplo, à fé, os índios ao menos acreditam na imortalidade da alma e na existência de um ser supremo – Tupã –, motivo pelo qual “essa pobre gente, por maior que seja o seu erro ou ignorância, é, sem comparação, muito mais tolerável do que os condenáveis ateístas dos tempos atuais”. A comparação com hábitos do Velho Mundo e da Antiguidade clássica é especialmente frequente quando Thévet descreve práticas indígenas chocantes, como a antropofagia e a promiscuidade sexual. A intenção de inocentar os índios ou de relativizar sua culpa é evidente. Por abominável que seja – escreve ele –, não se deve esquecer que “os antigos turcos, mouros e árabes eram também canibais”, assim como os citas. É certo, também, que o hábito do indígena de entregar sua filha ao primeiro que aparecer é muito censurável. Mas nisso não é o único, já que Sêneca e Estrabão nos informam que os lídios e armênios tinham o costume de enviar suas filhas às praias, para que se entregassem aos primeiros passantes. “Possivelmente existem, em França, muitas moças, tidas como pias e virtuosas, que procedem do mesmo modo, ou ainda pior, e ademais sem permuta de oferendas ou votos” – encerra Thévet.

Também Jean de Léry, em sua História da viagem à terra do Brasil (1578), desculpa o que parecia chocante nos costumes indígenas. A antropofagia, por exemplo, não é pior do que a prática da usura, na Europa, já que os usurários “sugam o sangue e a medula, e por conseguinte comem vivos as viúvas, os órfãos e outros infelizes. Seria melhor lhes cortar a garganta de uma vez do que os abandonar a uma morte lenta. Esses agiotas são portanto mais cruéis do que os selvagens”. Depois, há antropofagia também entre os civilizados. O próprio Léry assistiu a uma cena de canibalismo durante o cerco de Sancerre, na época das Guerras de Religião, quando uma jovem foi devorada pelos pais. Além disso, em sua viagem de volta à França, os víveres faltaram tão completamente que por pouco os tripulantes do navio escaparam da necessidade de recorrer ao canibalismo.

Mas não se trata apenas de desculpar os costumes indígenas, mostrando que os costumes europeus são iguais ou piores. É preciso reconhecer que sob vários aspectos a cultura indígena é superior à europeia, e que desse ponto de vista é a Europa que precisa se justificar diante da América.

Exemplar, nesse sentido, é um velho Tupinambá que pergunta a Léry por que os europeus querem ficar ricos. Para legar essa riqueza aos seus filhos, responde Léry. O velho ri da resposta, porque os índios sabem que a mesma terra que os alimentou alimentará também os seus descendentes.


O mito do bom selvagem existe desde a Antiguidade (Lovejoy, Boas), mas seu reaparecimento moderno coincidiu com o período das grandes navegações. É oportuno, portanto, rastrear sua gênese e refazer seu itinerário, neste momento em que comemoramos os quinhentos anos da descoberta do Brasil.

Foi sem dúvida Colombo o primeiro a relançar o antigo mito, reencontrando o bom selvagem no Novo Mundo. Num cenário paradisíaco, com árvores luxuriantes, que nunca perdiam suas folhas, flores e frutos maravilhosos, mel em abundância e revoadas de pássaros canoros, entre os quais ele reconheceu o rouxinol europeu, Colombo encontrou homens naturalmente bons. São simples e honestos, generosos ao extremo, porque dão tudo o que lhes pedem, amam ao próximo mais que a si mesmos, magnum erga omnes amorem prae se ferunt, em suma, são um povo “amável e sem cobiça […] a melhor gente em toda a terra […] e têm a fala mais suave do mundo, mansa, e sempre risonha. Andam nus, homens e mulheres, como sua mãe os pôs no mundo” (Colombo, p. 7; Holanda, p. 15). Não surpreende, assim, que Colombo tenha julgado localizar o paraíso terrestre no Novo Mundo – mais precisamente, no golfo de Pária, na foz do Orenoco.

Pero Vaz de Caminha não chega a esse ponto, mas não fica longe disso. A natureza brasileira é pródiga, cheia de árvores sem fim, e, como sabe todo colegial brasileiro, “a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados […] Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-as aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem” (Caminha, p. 240). Mas a maior riqueza é a gente. Como sempre, o que mais impressiona esses navegantes sexualmente frustrados é a nudez do gentio. Os índios “andam nus, sem cobertura alguma” (ibidem, p. 204).

Mas é uma nudez inocente, em contraste com a nudez lasciva das mulheres europeias. “Não fazem o menor caso de encobrir suas vergonhas, e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto” (ibidem, p. 204). Uma índia tinha “suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia vergonha alguma” (ibidem, p. 219). Outra recebeu um pano para cobrir-se, quando assistia à missa, “porém ao se assentar não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto à vergonha” (ibidem, pp. 238-9). Tão inocentes eram esses corpos, que tinham o poder de inocentar os olhares. Ver se tornava tão inocente quanto ser visto. Caminha demonstra essa tese em passagens de uma crueza quase ginecológica, o que explica por que em nossas aulas de história do Brasil raramente tivemos a oportunidade de ler em sua totalidade a carta do escrivão. Ele se maravilha com “três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha” (ibidem, p. 210). A frase é uma notável formação de compromisso, no sentido de Freud: os voyeurs de além-mar podiam olhar as intimidades das moças sem vergonha, isto é, sem culpa, porque o sexo das índias, sendo fechado (o que eles aparentemente consideravam um prodígio anatômico, próprio das regiões tropicais), não era de molde a inspirar-lhes pensamentos libidinosos. Mas não era só essa inocência que fazia dos índios seres puramente naturais. Em geral, sua índole era bondosa, era “gente boa e de boa simplicidade” (ibidem, p. 233), vivendo numa idade de ouro, anterior à expulsão do Paraíso: “Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Não comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam” (ibidem, pp. 233- 4). Estava construída a figura do bom selvagem brasileiro: boa índole, manso e pacífico, vivendo em estado de inocência, e isento de cobiça e ganância, graças à simplicidade de seus meios de subsistência e à modéstia de suas necessidades materiais.

Mas a carta de Caminha permaneceu inédita até 1817. Por isso quem mais contribuiu para a difusão do mito do bom selvagem foi Américo Vespúcio, cujas cartas foram publicadas, em numerosas edições, desde o século XVI. Em carta de 1502, diz o navegador que os índios “não têm fé nem lei alguma, vivem segundo a natureza, não conhecem a imortalidade da alma, não possuem consigo bens próprios, pois tudo é comum. Não têm fronteiras de reinos ou províncias, não têm rei, nem obedecem a ninguém: cada qual é senhor de si mesmo. Não administram justiça, que para eles não é necessária, porque em seu meio não reina a cobiça […] Vivem muito tempo, e não têm enfermidade nem pestilência ou malária e morrem de morte natural ou por sufocamento […] Não dão qualquer valor nem ao ouro, nem à prata, nem a joias” (Vespúcio, pp. 141-3). Mas o texto que teve mais sucesso em toda a Europa foi uma carta apócrifa, atribuída a Vespúcio, que é conhecida como “Mundus Novus” e foi publicada em 1503. O autor fala da “bondade e inocentíssima índole” dos silvícolas (ibidem, p. 151) e diz que se trata de “gente mansa e tratável”, com uma sexualidade livre e ardente (as mulheres são tão lascivas que fazem inchar os membros dos maridos com a mordedura de certos bichos venenosos), sem o tabu do incesto, porque os filhos se juntam com as mães, e sem propriedade privada. Além disso, não têm templos nem ídolos. “Que mais direi? Vivem segundo a natureza, podendo dizer-se mais epicuristas que estoicos” (ibidem, p. 195). Em suma, a combinação do estado de inocência em que vivia esse gentio com “os suaves odores das ervas e flores e com os sabores daqueles frutos e raízes” levam Vespúcio (ou seu falsificador) à conclusão de que “se o Paraíso terrestre fosse deste mundo não ficaria longe dessas regiões” (ibidem, pp. 141-96).

O mito do bom selvagem se consolidou graças ao franciscano André Thévet e ao calvinista Jean de Léry, que escreveram livros baseados em suas experiências na França Antártica, colônia francesa fundada por Villegagnon no Rio de Janeiro.

Em Singularidades da França Antártica, publicada em 1557, Thévet enxergou nos índios, ao lado de muitos defeitos, grande virtudes, como a hospitalidade e a coragem, que inspirava nos condenados à morte um estoicismo admirável (Thévet, p. 240). Foi Thévet que inaugurou a tradição de criticar a cultura europeia através do confronto com os costumes indígenas. Assim, ele diz que os índios ao menos acreditam na imortalidade da alma e na existência de um ser supremo, Tupã, e nisso “essa pobre gente, por maior que seja o seu erro ou ignorância, é, sem comparação, muito mais tolerável do que os condenáveis ateístas dos tempos atuais […] Esses ateístas deveriam ser tratados como bichos” (ibidem, p. 221). Ele louva, igualmente, o hábito dos selvagens que possuíam um objeto pertencente a outrem de o devolverem quando seu verdadeiro dono morria. “Quisera Deus”, diz o monge, “que muitos dentre nós tivessem semelhantes ideias […] Só assim se evitaria que tanta gente porfiasse em guardar o bem alheio, como hoje acontece, sem nenhum receio ou pudor” (ibidem, p. 223). Ele compara frequentemente os costumes locais com usos equivalentes na Antiguidade, o que é uma forma de dar cartas de nobreza aos índios, numa época em quer muitos hesitavam mesmo em considerá-los plenamente humanos. É o caso hábito indígena de fazer conselhos de guerra, na véspera de um ataque, conclaves em que muitos oradores fazem discursos e em que os participantes permaneciam sentados no chão. É assim que procediam os governadores de Tebas, explica Thévet. “Parece mesmo que tal hábito se apoia em um argumento prudente […] a saber, que estando o corpo assentado e em repouso, torna-se o espírito mais prudente e mais livre, por não estar ocupado com os movimentos físicos” (ibidem, p. 226). A comparação com hábitos do Velho Mundo e da Antiguidade clássica é especialmente frequente quando Thévet descreve práticas chocantes, como a antropofagia e a promiscuidade sexual. A intenção de inocentar os índios ou de relativizar sua culpa é evidente. A antropofagia é um hábito abominável, diz Thévet, mas não se deve esquecer que “os antigos turcos, mouros e árabes possuíam costumes quase idênticos” (ibidem, p. 233), e que os antigos citas também eram canibais (ibidem, p. 245). É certo, também, que o hábito dos indígenas de entregarem suas filhas ao primeiro que aparecesse é muito censurável, mas Sêneca e Estrabão nos informam que os lídios e armênios tinham o costume de enviar suas filhas às praias, para que se entregassem ao primeiro passante. Assim se comportavam também as virgens de Chipre, que faziam em seguida oferendas a Vênus. E numa estocada final, que cumpria a dupla função de diminuir a culpa dos índios e de criticar a moralidade metropolitana: “Possivelmente existem, em França, muitas moças, tidas como pias e virtuosas, que procedem do mesmo modo, ou ainda pior, e ademais sem permuta de oferendas ou votos” (ibidem, pp. 255-6).

Também Jean de Léry, em sua História da viagem à terra do Brasil (1578), sai dos seus cuidados para desculpar o que parecia chocante nos costumes indígenas. Assim, ele relativiza a antropofagia de várias maneiras. Primeiro, ela não é pior que a prática da usura, na Europa. Os usurários “sugam o sangue e a medula, e por conseguinte comem vivos as viúvas, os órfãos e outros infelizes. Seria melhor cortar-lhes a garganta de uma vez que abandoná-los a uma morte lenta. Esses agiotas são portanto mais cruéis que os selvagens” (Léry, p. 324). Segundo, existe antropofagia também entre os civilizados. O próprio Léry assistiu a uma cena de canibalismo durante o cerco de Sancerre, na época das Guerras de Religião, quando uma jovem foi devorada pelos pais (ibidem, p. 190). Além, disso, em sua viagem de volta à França, os víveres faltaram tão completamente que por pouco os tripulantes do navio escaparam da necessidade de recorrer ao canibalismo (ibidem, pp. 191-2). Terceiro, a antropofagia dos selvagens não se deve à gula, e sim a um sentimento nobre, o desejo de vingança (ibidem, p. 317). Nisso eles são superiores aos católicos, conforme Léry demonstra com grande sutileza teológica. Segundo o dogma católico da transubstanciação, o pão e o vinho, depois de consagrados, se convertiam literalmente no corpo e no sangue de Cristo. Para os protestantes, a relação desses objetos com Cristo era meramente alegórica: eles “significavam”, mas não “eram”, o corpo e o sangue de Cristo. Consequentemente, quando os católicos comungavam, segundo suas próprias crenças estavam devorando Deus, não no sentido figurado, mas no sentido literal. Nisso os canibais brasileiros eram mais civilizados, porque para eles a antropofagia também tinha um sentido alegórico, como para os calvinistas. O corpo devorado não era um alimento, mas um signo: o canibalismo “significava” a vingança. Em suma, a antropofagia tupinambá era mais espiritual, menos grosseira, que a teofagia católica, com o agravante de que os índios, ao menos, cozinhavam sua vítima, ao passo que os católicos a comiam crua (Léry, p. 116; Lestringant, p. 119). O paganismo dos índios também é visto com indulgência, em confronto com o ateísmo dos civilizados. Como Thévet, Léry diz que os selvagens acreditam na imortalidade da alma e até na ressurreição dos mortos, como é o caso dos índios do Peru. Por isso, compará-los aos selvagens seria fazer demasiada honra aos ateus, que nisso são mais selvagens que os Tumpinambá (Léry, p. 332). A sexualidade indígena também merece compreensão, à luz dos costumes europeus. É verdade que as mulheres andam nuas, mas essa nudez é menos provocante que o modo de se vestir das damas francesas (ibidem, p. 221). É verdade também que no Brasil reina a poligamia, mas as mulheres indígenas se entendem entre si, ao passo que essa harmonia seria inconcebível na França, onde até uma só esposa transforma a casa num inferno (ibidem, p. 349). É verdade que no Brasil a promiscuidade préconjugal é a regra, mas em compensação as transgressões da mulher casada são severamente punidas, o que está longe de ser a norma na Europa (ibidem, pp. 349-50). Até os hábitos alimentares dos índios se tornam menos estranhos, se comparados com os dos europeus. Por exemplo, as mulheres mastigam o milho para a fabricação do cauim, mas por que esse hábito seria mais repugnante que a técnica de pisar as uvas com que os camponeses europeus produzem o vinho (ibidem, p. 237)?

Mas não se trata apenas de desculpar os costumes indígenas, mostrando que os costumes europeus são iguais ou piores. É preciso reconhecer que sob vários aspectos a cultura indígena é superior à europeia, e que desse ponto de vista é a Europa que tem que se justificar diante da América. Assim, um velho Tupinambá pergunta a Léry por que os europeus querem ficar ricos. Para legar essa riqueza a nossos filhos, responde Léry. O velho ri da resposta, porque os índios sabem que a mesma terra que os alimentou alimentará também os seus descendentes. “Portanto, essa nação que consideramos tão bárbara zomba dos que atravessam o mar […] para se enriquecerem com o pau-brasil. Além disso […] ela confia mais na natureza e na fertilidade da terra do que nós no poder e na previdência de Deus. Ela se levantará no dia do Juízo Final contra os conquistadores que se intitulam cristãos” (ibidem, p. 277). Outro exemplo: as índias amamentam seus filhos, ao passo que as mães europeias têm o costume de entregar a amas as crianças recém-nascidas (ibidem, p. 352). Os bebês europeus são enfaixados ao nascerem, a pretexto de impedir que suas pernas fiquem tortas, enquanto no Brasil esse costume bárbaro não existe, o que não impede as crianças de terem pernas inteiramente retas (ibidem, p. 352). Há uma grande concórdia dentro de cada comunidade indígena, por mais belicosas que elas sejam umas com as outras (ibidem, p. 356). Os selvagens são amistosos e leais com seus amigos e aliados, e por isso Léry diz que foi tratado mais humanamente pelos índios que por Villegagnon (ibidem, p. 130) e que se sentia em maior segurança vivendo entre eles do que se sentiria hoje “em muitos lugares de nossa França, povoada por franceses desleais e degenerados” (ibidem, p. 372).

Por tudo isso, Léry diz que lamenta não estar mais entre os selvagens, porque viu maior honestidade entre eles que entre vários homens que se intitulam cristãos (ibidem, p. 167). E conclui com um hino de júbilo e gratidão religiosa: “Todas as vezes que a imagem deste Novo Mundo, que Deus me permitiu ver, se apresenta ante meus olhos, quando considero a serenidade do ar, a diversidade dos animais, a variedade dos pássaros, a beleza das árvores e das plantas, a excelência dos frutos, em suma, as riquezas que ornam esta terra do Brasil, penso imediatamente no salmo 104: ‘Ó Senhor Deus, como tuas obras são maravilhosas no mundo inteiro! Felizes os povos que o habitam!””. Mas é preciso, acrescenta o piedoso huguenote, que “conheçam o autor e criador de todas as coisas” (ibidem, p. 293).

A aventura da França Antártica incendiou as imaginações na Metrópole. Assim que apareceu o livro de Thévet, em 1558, os poetas começaram a dedicar odes ao selvagem brasileiro. A mais conhecida é a do chefe do grupo da Pleiade, Ronsard, intitulada “Ode contra a fortuna”. O poema é um apelo a Villegagnon para que deixe os índios em paz, em vez de expô-los à influência corruptora da civilização. O índio “erra inocentemente, feroz e nu,/ Tão despido de roupas como de malícia./ Desconhecendo os nomes da virtude e do vício,/ De Senado e de rei; que vive segundo seu prazer,/ Impelido pelo apetite do seu primeiro desejo…/ Segundo sua natureza, dono de si mesmo,/ Sem com arados cortantes importunar a terra,/ A qual como o ar a todos é comum…/ Sem processos engendrados pela diferença entre o meu e o teu./ Por isso, deixa-os tranquilos… Eles vivem agora em sua idade de ouro…/ Vivei, povo feliz, sem trabalho e sem cuidado./ Vivei alegremente; também eu quisera viver assim” (Mello Franco, pp. 160-2).

Se com os autores da Pleiade o bom selvagem entrou na poesia, com Montaigne ele entrou na grande prosa e na filosofia universal. Não há dúvida de que Thévet e Léry estão entre as principais fontes do famoso capítulo XXXI dos Ensaios, intitulado “Dos canibais”, mas Montaigne alega ter obtido suas informações junto a um criado que passara doze anos na França Antártica. Era um “homem simples e grosseiro, condição que favorece um testemunho fiel” (Montaigne, p. 200), porque as pessoas cultas tendem a embelezar o que viram. Com isso, Montaigne já antecipa a tese que vai desenvolver no capítulo: o criado é uma espécie de selvagem francês, e como tal é mais fidedigno que os europeus de classe alta, cuja civilização se baseia no artifício. Graças a seu informante, ele se dá conta de que não há nada de bárbaro nas nações indígenas. Elas estão simplesmente sujeitas à lei da natureza, tal como a imaginaram os filósofos antigos. Não existe nelas “nenhuma espécie de comércio; nenhum conhecimento das letras; nenhuma ciência dos números; nenhum magistrado, nenhuma superioridade política; nenhum sinal de subordinação, de riqueza ou de pobreza; nenhum contrato; nenhuma sucessão; nenhuma ocupação que não seja ociosa; nenhuma roupa; nenhuma agricultura; nenhum metal; nenhum uso de vinho ou trigo. As próprias palavras que significam ‘mentira’, ‘traição’, ‘dissimulação’, ‘avareza’, ‘inveja’, ‘maledicência’, ‘perdão’, não existem” (ibidem, p. 204). Esse povo feliz tem necessidades mínimas, e não conhece a propriedade privada, e por isso os pais deixam a seus herdeiros a posse indivisa de todos os bens, sem outro título que o recebido da natureza, quando vieram ao mundo (ibidem, p. 208).

Algumas de suas práticas nos escandalizam, mas não há razão para isso. É o caso da antropofagia. Os índios não a praticam para alimentar-se, mas por vingança, como faziam os citas. Nisso eles são mais humanos que os europeus, também antropófagos à sua maneira, mas por fanatismo, como se viu nas Guerras de Religião. “Penso que há mais barbárie em comer um homem vivo que em comê-lo morto, em despedaçar por tormentos um corpo ainda capaz de sentir, em assá-lo aos poucos, em fazer com que seja mordido por cães e porcos […] que em assá-lo e comê-lo depois de morto” (ibidem, pp. 207-8). A guerra nesse país é nobre e generosa, e tão bela quanto pode ser essa “doença da humanidade” (ibidem, p. 208). Seu único fundamento é a glória, a virtude, no sentido antigo. Os prisioneiros têm uma coragem indômita, desprezam a morte, como os estoicos, e desafiam até o final os inimigos que vão abatê-los, dizendo ter comido os parentes dos que agora iam devorá-los: “Estes músculos, estas carnes e estas veias, são os vossos, pobres loucos que sois; não percebeis que a substância dos membros de vossos ancestrais ainda sobrevive neles; saboreai-os bem, encontrareis neles o gosto de vossa própria carne” (ibidem, p. 211). A poligamia também consterna os europeus. Mas por quê? Só os guerreiros mais valentes têm o direito de possuir muitas mulheres, e são as próprias esposas, ciosas da reputação dos seus maridos, que se encarregam de oferecer-lhe novas concubinas. De resto, a Bíblia está cheia de narrativas de esposas que põem suas servas à disposição dos maridos, como Lia, Raquel e Sara, e sabe-se que Lívia costumava fornecer mulheres a Augusto (ibidem, p. 211).

No conjunto, as instituições francesas são mais bárbaras que as selvagens. Podemos chamar as nações indígenas de “bárbaras relativamente às regras da razão, mas não relativamente a nós, que as ultrapassamos em todo tipo de barbárie” (ibidem, p. 208). Se é assim, não compete aos franceses julgar os índios, e sim aos índios julgar os franceses. É o que fazem três Tupinambá, levados a Rouen em 1562, onde conversaram com o jovem rei Carlos IX. Interrogados sobre o que mais tinham admirado no país, responderam duas coisas. Primeiro, tinham estranhado que tantos homens fortes e barbados obedecessem a uma criança, em vez de escolherem um deles como rei. Segundo, tendo observado que a sociedade francesa estava dividida entre homens riquíssimos e mendigos, não podiam compreender por que os segundos não degolavam os primeiros, nem incendiavam seus palácios (ibidem, pp. 212-3). Mais tarde Montaigne perguntou a um desses canibais, um cacique, que vantagem ele tirava de sua posição de chefe. Ele respondeu que tinha o privilégio de ser o primeiro a partir para a guerra. Em seguida Montaigne perguntou quantos homens o índio comandava, e ele deu a entender que eram tantos quantos cabiam num espaço que ele designou com um gesto – de 4 a 5 mil homens. Finalmente, nosso filósofo perguntou se em período de paz ele gozava de qualquer regalia, ao que o selvagem respondeu que sim – quando ia visitar as aldeias que dependiam dele, os homens abriam picadas para que ele pudesse passar na floresta (ibidem, p. 213).

Em suma, em algumas linhas os índios brasileiros demoliram o regime político da França, baseado na monarquia hereditária; sua organização social, baseada na divisão de classes e no sistema de privilégios; sua política religiosa, baseada na intolerância e no direito que se arrogava o rei de impor pela violência e pela fogueira uma religião de Estado; sua política externa, em que a guerra não visava mais à honra e sim à conquista de províncias, territórios e bens materiais; e a moralidade privada, baseada na família conjugal e na monogamia. Bom trabalho para simples canibais. Montaigne também pensa assim. Não está mal, diz ele, complacentemente. “Mas qual! Eles não usam calças!” (ibidem, p. 213).

Mas o bom selvagem não era só brasileiro. No mesmo século em que Thévet, Léry e Montaigne estavam idealizando os Tupinambá, o dominicano Bartolomeu de Las Casas estava louvando a doçura dos ameríndios sob domínio espanhol. É que os espanhóis estavam massacrando os índios, alegando que sua condição bestial os excluía da proteção das leis, e por isso Las Casas se propôs demonstrar que os aborígines eram infinitamente mais humanos e mais bondosos que seus carrascos. Referindo-se a uma tribo das Bahamas, Las Casas diz que “viviam realmente como os povos da idade de ouro, uma vida cujos louvores foram cantados por poetas e historiadores”. Ou ainda, a propósito de um índio: “Parecia-me ver nele nosso pai Adão, no tempo em que vivia em estado de inocência”. Por maior que fosse a variedade dos povos indígenas na América, todos tinham em comum a característica de serem “mansos e pacíficos”. Assim, “embora sob certos aspectos seus ritos e costumes sejam diferentes, numa coisa são semelhantes: são simples, pacíficos, amáveis, generosos e os mais pacientes de todos os descendentes de Adão”. Em outra passagem: “Todos esses povos foram criados por Deus extremamente simples, sem maldade nem duplicidade, muito obedientes e fiéis a seus senhores naturais e aos cristãos que servem, os mais humildes, os mais pacientes, os mais pacíficos e tranquilos do mundo, sem rancor e sem violência, sem ressentimento, sem ódio, sem desejo de vinagança” (Todorov, 1982, pp. 169-70). Todas essas qualidades são formuladas negativamente, como fez Montaigne ao descrever a idade de ouro em que viviam os indígenas brasileiros. É que não se trata de descrever etnograficamente a especificidade da outra cultura, mas de ver nela o avesso da própria cultura, para polemizar contra ela. Se invertermos as virtudes atribuídas aos índios, encontraremos os vícios europeus: rancor, dissimulação, espírito vingativo. Por exemplo, à veracidade dos índios corresponde a duplicidade europeia. Assim, segundo Las Casas, quando se perguntava aos índios se eram cristãos, respondiam que já o eram um pouco, porque sabiam mentir um pouco, mas que seriam mais cristãos quando tivessem aprendido a mentir mais (ibidem, p. 95).

Na Inglaterra, o bom selvagem teve menos sucesso que na França ou na Espanha. Com alguma boa vontade, seu primeiro aparecimento pode ser datado de 1688, quando a escritora Aphra Behn publicou a novela Oroonoko. O herói é africano, filho de rei, e é vendido como escravo nas Antilhas. Dotado de uma grande nobreza de caráter, o personagem nada tem de primitivo. A autora tem o cuidado de dizer que, apesar de africano, ele não tem traços negroides e teve o beneficio de uma excelente educação. No fundo ele se parece mais com um aristocrata tory que com um bom selvagem, o que é coerente com as opiniões políticas de Aphra Behn, que tinha simpatias pela causa dos Stuart e chegou a ser contratada para o serviço secreto de Carlos II. O livro pode ser visto como uma crítica à burguesia whig, que tinha interesses comerciais nas colônias e favorecia a escravidão dos negros (Kohl, pp. 33 ss.).

Por tudo isso, o primeiro bom selvagem inglês não foi verdadeiramente Oroonoko, e sim Sexta-Feira. Como se recorda, Robinson Crusoe salva o pobre nativo, que ia ser consumido num festim canibal, coloca-o a seu serviço e o converte ao cristianismo. Sexta-Feira é bom e fiel, e tendo renunciado à antropofagia graças à boa influência de Robinson, transforma-se num selvagem modelo. Se Oroonoko é um romance aristocrático, Robinson Crusoe é uma alegoria do colonialismo burguês, que agiu exatamente como Robinson agiu com Sexta-Feira – salvou a alma do selvagem e o escravizou. Em suma, Daniel de Foe produziu a versão whig do bom selvagem (ibidem, pp. 36 ss.).

No continente, o século XVIII trouxe de volta o bom selvagem, que depois do seu momento de glória no século XVI tinha entrado, no século XVII, numa fase de relativo eclipse. Mas agora o tema passou a funcionar numa perspectiva francamente revolucionária. A vida selvagem não era mais usada para servir de fundamento a uma utopia retrospectiva, com a idade de ouro situada no passado da humanidade, mas para uma crítica radical da sociedade presente, com vistas à sua transformação futura.

Como no século XVI, foram relatos de viagem que serviram de fonte, no século XVIII, à formulação filosófica do tema do bom selvagem. O Jean de Léry do século XVIII chamava-se Louis-Armand de Lahontan, mas em vez de descrever os índios brasileiros, ele descreveu os norte-americanos. Lahontan viveu vários anos no Canadá como oficial do Exército francês, aprendeu as línguas nativas e teve contatos prolongados com várias tribos indígenas. Em 1703 publicou em Haia o resultado das suas observações, Novas viagens à América setentrional. Os índios de Lahontan não tinham nem inveja nem ambição, porque ignoravam a propriedade privada, eram igualitários, porque não conheciam a moeda, e por isso mesmo eram livres, recusando qualquer forma de sujeição a uma vontade alheia. Os índios brasileiros também tinham muitos desses atributos, mas os autores das relações de viagem, quando queriam elogiá-los, viam neles cristãos potenciais. Os canadenses, para Lahontan, não são nem pagãos nem catecúmenos. São simplesmente deístas, isto é, acreditam num Deus único mas dispensam templos e rituais. Ou seja, têm uma religião baseada na razão, como os filósofos da Ilustração. Num certo sentido, esses selvagens já são a Ilustração realizada. Todas as suas instituições se baseiam na razão e na natureza. As europeias, pelo contrário, são irracionais e supersticiosas. No terceiro volume de suas Novas viagens, Lahontan publica diálogos entre o autor e um “selvagem de bom senso”, o huroniano Adario. Nesses diálogos, Adario representa a voz da razão natural, enquanto Lahontan assume o papel fictício de defensor do status quo metropolitano. O índio critica o despotismo, a desigualdade das riquezas, a crueldade da justiça, a opressão d s mulheres. Todos esses males têm uma só fonte, a propriedade privada. Em conclusão, Adario diz a Lahontan: segue meu conselho e faz-te huroniano (Kohl, pp. 63 ss.).

Rousseau não se fez huroniano, mas concordava com Adario em que a civilização europeia era mais corrupta que a dos selvagens. Contudo, o estado selvagem, para ele, não era a mesma coisa que o estado natural. Esse estado, que talvez nunca tenha existido, é o do homem pré-social, que acaba de emergir das mãos da natureza, “saciando sua fome debaixo de um carvalho, matando sua sede no primeiro riacho, dormindo ao pé do mesmo carvalho no qual fez sua refeição. E eis suas necessidades satisfeitas” (Rousseau, p. 41). Nessa fase, não se pode dizer que os homens fossem ou bons ou maus, porque não mantendo entre si nenhum tipo de relação moral não tinham nem virtudes nem vícios. Esse estado de natureza original era difícil de sustentar, porque o homem isolado não podia reagir aos ataques dos animais ou alimentar-se de uma forma estável. Mas o homem é dotado de uma qualidade desconhecida dos outros animais, a perfectibilidade, e, graças a ela, conseguiu ultrapassar esse estágio, passando para o estágio da horda, daí para o da família conjugal, e daí para o da sociedade nascente. Esta é uma fase de equilíbrio em que há um meiotermo entre qualidades positivas e negativas, entre a indolência característica do estado de natureza e a “atividade petulante” do mundo moderno. Ela foi a verdadeira idade de ouro, a juventude da humanidade. Era nela que estavam os selvagens, quando os europeus os encontraram, e dela nunca deveríamos ter saído (ibidem, p. 72). Nesse estágio, pode-se dizer que o homem seja realmente bom, pois “ninguém é tão manso como ele quando está em seu estado primitivo, quando, colocado pela natureza a igual distância da estupidez dos brutos e das funestas luzes do homem civil, ele se limita, pelo instinto e pela razão, a garantir-se do mal que o ameaça e é impedido por sua piedade natural de fazer mal a quem quer que seja” (ibidem, p. 72). Todos os progressos da humanidade além desse estágio foram na verdade passos em direção à decadência moral.

No entanto, Rousseau reconhece que de nada adianta sonhar com a volta ao estágio selvagem. O paraíso perdido não pode mais ser recuperado. Nossa única chance é fugir para a frente, criando, pela educação, um Emílio moralmente bom, nisso superior a esse ser moralmente indiferente que é o mero homem da natureza, e instituindo, pelo contrato, uma nova sociedade, que combine a liberdade do estado de natureza com os limites exigidos pelo estado civil, limites que não podem ser vistos como coercitivos, porque são livremente escolhidos pela vontade geral.

Voltaire também não se fez huroniano, mas pôs em cena um huroniano num dos seus contos mais deliciosos, o “Ingénu”. O Ingênuo desembarca na Bretanha, é recolhido por uma família nobre, é batizado, e se apaixona por uma moça da família, mademoiselle de Saint-Yves. Um dia ele repele um ataque inglês, e é convencido a buscar em Versalhes o reconhecimento dos seus serviços. Em vez disso, ele vai parar na Bastilha, onde se torna amigo de outro prisioneiro, o jansenista Gordon. Enquanto isso, mademoiselle de Saint-Yves tenta obter a libertação do noivo, o que só consegue se entregando a um subministro. O Ingênuo é posto em liberdade, mas mademoiselle de Saint-Yves morre de desgosto e vergonha. O Ingênuo nunca mais se esquece do seu amor perdido, mas entra no exército, graças à proteção de um ministro, e, quando a história termina, tinha se tornado um excelente oficial, estimado por todos os homens de bem.

O Ingênuo cumpre conscienciosamente o papel subversivo que a tradição reserva ao bom selvagem. Ele quer possuir mademoiselle de Saint Yves, invocando apenas a lei da natureza, mas explicam-lhe que a lei positiva deve prevalecer, porque sem ela não haveria padres, notários e contratos. Vocês devem ser pessoas bem desonestas, reflete nosso herói, para terem necessidade de tantas precauções. Na prisão, ele completa sua educação com seu amigo jansenista, Gordon. Lê livros de história e se convence de que ela é um longo tecido de crimes. Informa-se sobre as disputas teológicas que fizeram correr tanta tinta e tanto sangue, e diz que os que se deixaram perseguir por aquelas tolices eram uns idiotas e que os perseguidores eram uns monstros. Faz progressos rápidos na geometria e nas ciências. Enfim, tem ideias claras sobre tudo, o que deve “tanto à sua educação selvagem como à têmpera de sua alma”. Pois “nada tendo aprendido em sua infância, não aprendera preconceitos. Seu entendimento, não tendo sido curvado pelo erro, não perdera sua retidão” (Voltaire, p. 283). Esmagado por tanta perspicácia, o pobre Gordon acaba reconhecendo que o Ingênuo tinha razão. No mesmo momento em que o Ingênuo vai se convertendo ao que existe de válido na cultura europeia, o jansenista vai se convertendo à filosofia natural do antigo selvagem.

Sem dúvida, o Ingênuo não é um revolucionário. Não pensa em incendiar os palácios dos ricos, como o canibal de Montaigne. Além disso, o antietnocentrismo do livro é apenas aparente, pois descobrimos que o Ingênuo não era um verdadeiro huroniano, e sim filho de franceses, adotado pelos selvagens. Não importa: com suas opiniões heterodoxas sobre o amor, sobre a religião e sobre a justiça, o Ingênuo entrou na galeria dos verdadeiros ou falsos selvagens que desde o século XVI estavam preparando a grande obra de demolição das instituições do Antigo Regime. Depois da América do Sul e do Norte, coube à Oceania abastecer com bons selvagens o imaginário europeu. Em sua Viagem em torno do mundo, publicada em 1771, o navegador Louis Antoine de Bougainville contou suas impressões do Taiti, onde tinha aportado em 1768, no curso de sua viagem de circunavegação. Bougainville julga encontrar uma sociedade idílica, hospitaleira, sem propriedade privada, sem diferenças de classe, sem violência e sobretudo sem nenhuma restrição sexual. Os índios iam ao encontro dos navios em suas pirogas,

cheias de mulheres que não eram inferiores, pelo rosto agradável, à maioria dos europeus, e que pela beleza do corpo disputavam com vantagem a qualquer uma o primeiro lugar. Em sua maioria essas ninfas estavam nuas, porque os homens e as velhas que as acompanhavam tiravam o pano com que habitualmente essas moças se vestiam […] Como reter em seu trabalho, diante de tal espetáculo, quatrocentos franceses, jovens, marinheiros, e que havia seis meses não tinham visto mulheres? […] Nossos esforços conseguiram controlar esses homens enfeitiçados; controlar a nós mesmos não tinha sido a parte menos difícil dessa tarefa […] Todos os dias nossos homens passeavam no país sem armas […] e eram convidados a entrar nas casas, onde recebiam alimentos. Mas a civilidade dos donos não se limitava a uma refeição ligeira […] eles lhes ofereciam moças […] A terra se juncava de folhagem e de flores, e músicos cantavam ao som de flautas hinos de júbilo […] Aqui a deusa da hospitalidade é Vênus […] Eu me acreditava transportado no jardim do Éden; percorríamos uma planura de relva, coberta de belas árvores frutíferas e entrecortada por riachos que alimentavam um frescor delicioso. Um povo numeroso desfruta aqui dos tesouros que a natureza lhe prodigaliza a mãoscheias. […] Em toda parte víamos reinar a hospitalidade, o repouso, uma alegria suave e todas as aparências da felicidade. [Bougainville, pp. 130-1, 138-9]

Mais tarde Bougainville foi informado de que não era bem assim: embora não houvesse canibalismo, como no Brasil, as guerras eram cruéis, os ladrões eram enforcados, havia hierarquias sociais, e a liberdade sexual era menos completa do que parecia. Bougainville não omite essas informações, mas a imagem que ficou em seus leitores deslumbrados foi a de que o paraíso terrestre tinha sido descoberto, e que ele ficava na Polinésia.

Diderot transformou o relato de Bougainville numa das reflexões mais sofisticadas que o século XVIII produziu sobre o tema do bom selvagem. Trata-se de um diálogo entre dois franceses, A. e B., intitulado Suplemento à viagem de Bougainville. O “suplemento” constava de dois fragmentos inéditos, que o navegante não teria ousado publicar em seu livro. O primeiro era o discurso de um velho taitiano, amaldiçoando os franceses por ocasião de sua partida. Bougainville é descrito pelo ancião indignado como um “chefe de bandidos”, que tentaram introduzir a distinção entre o meu e o teu na sociedade indígena, corrompê-la com uma civilização nefasta, e envenenar com doenças venéreas as mulheres que lhes foram generosamente oferecidas (Diderot, pp. 147-53). O segundo fragmento é um diálogo entre o capelão da frota e um taitiano, Orou. A conversa se inicia quando Orou oferece sua filha mais jovem ao padre, e este começa por recusar, alegando sua religião e sua condição eclesiástica. É a deixa para que Orou critique as normas europeias, na melhor tradição dos canibais de Montaigne. A fidelidade conjugal é estigmatizada como sendo contrária à natureza, que quer a mudança, e não a imobilidade. Um preceito tão irracional só serve para estimular a hipocrisia, levando as mulheres casadas a fazerem clandestinamente o que estão autorizadas a fazer segundo a lei da natureza (ibidem, pp. 159 ss.). Igualmente incompreensível é a castidade imposta aos padres e às freiras, “uma injúria feita à natureza”, e um povo que comete esse insulto “é mais bárbaro que nós” (ibidem, p. 176). Orou também critica o tabu do incesto. No Taiti, os filhos dormem com suas mães, “quando têm por elas muito respeito e uma ternura que os faz esquecer a disparidade de idade”. Do mesmo modo, os pais dormem com suas filhas, em geral quando são feias, e o fazem por dever e por carinho paterno, porque sendo pouco atraentes elas não são procuradas pelos outros homens. Sem esse ato de abnegação, elas não teriam chance de gerar filhos (ibidem, pp. 169-70). Pois é esse o cerne da moralidade taitiana: são boas as ações que contribuem para o crescimento da população, más as que não favorecem esse objetivo. Os jovens que fazem amor antes da idade núbil ou os velhos que continuam a ter relações depois de passado o seu período de fertilidade são malvistos. As mulheres estéreis ou idosas usam um véu negro. As que tiram esse véu são consideradas libertinas, os homens que erguem o véu são libertinos. Quando estão menstruadas, e portanto incapazes de conceber, as mulheres usam um véu cinzento. São libertinos os homens e mulheres que ignoram a proibição temporária indicada por esse véu (ibidem, p. 169). Essa ética “demográfica” tem por sua vez um fundamento que o século XVIII conhecia bem, o interesse coletivo. Orou fala como um utilitarista da escola de Helvétius. A “regra mais segura” é “o bem geral e a utilidade particular” (ibidem, p. 170), e desse ponto de vista não há nada mais importante que o aumento da população, porque o Taiti precisa de braços para a lavoura e de soldados para defender o país contra os vizinhos belicosos (ibidem, p. 174). Não foi por bondade que os nativos ofereceram suas filhas e esposas aos franceses, foi por interesse. Os taitianos no fundo estavam cobrando um tributo dos europeus, um imposto de sêmen, forçandoos a engravidar as mulheres nativas, para com isso enriquecer a população com filhos mais inteligentes que os da terra, produzidos por uma “raça melhor” (ibidem, p. 175). No final, o capelão se deixa convencer, e dorme sucessivamente com as três filhas de Orou e com sua mulher.

Nossos dois interlocutores, A. e B., comentam esses diálogos. Concordam com as imprecações do velho, porque qualquer tentativa de “civilizar” um país extra-europeu leva à escravização desse povo. “Quereis ver um povo feliz e livre? Deixai-o em paz […] Desconfiai daqueles que desejam estabelecer a ordem. Ordenar significa dominar os outros […]” (ibidem, pp. 183-4). E concordam com Orou, porque as restrições impostas à sexualidade na Europa, o ciúme, o pudor, a monogamia, são efetivamente antinaturais. O amor físico, de “todos os prazeres o mais intenso, o mais suave, e o mais inocente, tornou-se a fonte mais fecunda de nossos males e depravações”. Por mais que os legisladores proclamem que “a fricção voluptuosa de dois intestinos” é um crime, o coração humano recusará essa norma absurda. Quanto ao casamento, foi “a tirania do homem que converteu a posse da mulher em propriedade” (ibidem, p. 182). Em geral, A. e B. concordam com o velho e com Orou na tese da superioridade do estado natural. “O taitiano, que se manteve escrupulosamente fiel à lei da natureza, está mais perto de uma boa legislação que qualquer povo civilizado” (ibidem, p. 178). A pergunta se seu interlocutor prefere o estado de natureza ao civilizado, e B. diz que não ousa pronunciar-se, mas sabe “que já se viu o homem das cidades despir-se e entrar na floresta, mas que nunca se viu um homem da floresta vestir-se e estabelecer-se na cidade” (ibidem, p. 184).

Para um defensor da teoria do bom selvagem, Diderot parece às vezes estranhamente conformista. Ele diz que é preciso reformar as “leis insensatas” sob as quais vivemos, mas que no meio tempo é melhor respeitá-las, pois “há menos inconveniente em ser louco com os loucos que em ter juízo sozinho” (ibidem, p. 186). Longe de “fazer-se huroniano”, Diderot diz que é preferível imitar o bom capelão, “monge na Europa, selvagem em Taiti” e que se deve “vestir a roupa do país para onde se vai, e guardar a do país de onde se vem” (ibidem, p. 186). Na verdade, o conformismo de Diderot é relativo. O que ele estava fazendo era renunciar à utopia espacial, que colocava o selvagem em países longínquos, trazendo-o de volta para o lugar que lhe convinha, a própria Europa. Ele sabia que seu Suplemento não tinha a ver com o Taiti, e sim com a Europa. Por exemplo, A. diz que o discurso do velho taitiano continha “ideias e expressões europeias” (ibidem, p. 151) e que a fala de Orou era “um pouco modelada à europeia” (ibidem, p. 177). Claro, porque não se tratava de uma descrição etnográfica do Taiti, e sim de um programa político para a França, destinado, justamente, a transformar suas “leis insensatas”. O Suplemento se dirigia a selvagens franceses. Diderot não diz quem, na Europa, encarnaria melhor esse selvagem revolucionário. Mas dá uma pista quando diz que entre as “circunstâncias extremas” que reconduziriam o homem à sua primitiva simplicidade estava a miséria (ibidem, p. 183). O verdadeiro selvagem europeu é assim o miserável. Consequentemente, a revolução que lhe cabe fazer é uma revolução social. O bom selvagem sai da geografia para entrar na história. Hic Rhodus, hic salta: é na Europa que o Tupinambá, o huroniano e o polinésia têm que dançar sua dança de guerra.

Através dos filósofos enciclopedistas, o bom selvagem ajudou a tomar a Bastilha, contribuindo para a formação da grande trilogia revolucionária: liberdade, igualdade e fraternidade (Mello Franco, p. 227), valores que traduzidos em língua de selvagem significam, respectivamente, ausência de leis, ausência de classes sociais e ausência de conflitos intracomunitários. São as características que desde Montaigne eram atribuídas às nações indígenas.

O bom selvagem ainda teve uma curta sobrevida no início do século XIX, no período romântico. O protótipo da literatura indigenista, que teria uma descendência importante nos Estados Unidos (com Fenimore Cooper) e no Brasil (com Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias e José de Alencar), foi evidentemente Chateaubriand. Mas comparado com seu irmão renascentista e iluminista, o bom selvagem de Chateaubriand é um tanto anêmico. Em parte isso se deve à falta de admiração do autor pelos indígenas, bons ou maus. Apesar de dizer no prefácio de Atalá que “pretendia escrever a epopeia do homem da natureza” (Chateaubriand, p. 3), ele desarma o leitor, logo em seguida, com a confissão de que não era, “como Rousseau, um entusiasta dos selvagens” e que, apesar de ter tantas queixas da sociedade quanto o genebrino, não acreditava que “a natureza pura fosse a coisa mais bela do mundo” (ibidem, p. 8). O fato é que seus índios, como Chactas e Atalá, têm pouca vida. Eles são heróis de Ossian, personificações de estados de alma, ou transfigurações autobiográficas, inspiradas na figura de Lucille, a irmã incestuosa, ou do próprio autor, que se retratou, melancolicamente, no personagem de René. Não é que se trate de um selvagem de convenção, saído diretamente dos salões parisienses (Todorov, 1989, p. 331), porque seus predecessores também o foram. Chactas é tão alegórico quanto Adario, o Ingênuo ou Orou. É que as alegorias de Lahontan, Voltaire e Diderot derrubaram um mundo. As de Chateaubriand ajudaram a restaurá-lo. Seus índios cristianizados, ilustrando as poéticas belezas da religião, concorreram para fortalecer a contrarevolução bonapartista, que pretendia reconciliar a França com o papado e restabelecer a religião em seu papel tradicional de sustentáculo da ordem.

De modo geral, o bom selvagem não fez uma carreira muito brilhante no resto do século XIX. Nesse século positivo, não havia muito espaço para personagens míticos. Ele não queria idealizar o selvagem, mas estudá-lo cientificamente. Foi a função da antropologia, o saber exato do Outro. No novo clima intelectual, dominado pela teoria do progresso, o selvagem foi transformado em primitivo, isto é, num retardatário, fixado num estágio arcaico da evolução. Não importava saber se esse primitivo era bom ou mau, e sim conhecê-lo em sua realidade empírica, em sua base material, em suas crenças, em suas regras de parentesco.

Mas a antropologia do século XX ressuscitou, de certo modo, a figura do bom selvagem. Foi o caso das escolas relativistas que se seguiram aos evolucionistas do século passado. Como para se penitenciarem pelas origens colonialistas e etnocêntricas de sua disciplina, essas correntes aceitam, “como novas bases para a tolerância, as formas de vida coexistentes e igualmente válidas, que a humanidade criou para si a partir dos mate riais brutos da existência” (Benedict, p. 278). O relativismo cultural acentua: a validade de todos os conjuntos de normas, para os povos que os possuem” (Herskovits, p. 31). Esse relativismo, tolerante e pluralista, permite fundar uma teoria antropológica do bom selvagem. Todo “primitivo” é necessariamente “bom”, desde que obedeça às normas de sua cultura, porque por definição essa cultura é válida, isto é, “boa”, e ele não tem acesso a nenhuma norma que possa ser considerada eticamente superior, já que pela lógica do relativismo não há padrões transculturais de julgamento moral.

Também a antropologia estrutural de Lévi-Strauss propõe uma visão do homem que se aproxima da teoria do bom selvagem. Lévi-Strauss se coloca explicitamente sob o patrocínio de Rousseau – “nosso mestre, nosso irmão” (Lévi-Strauss, p. 351). Como Rousseau, ele acredita que o estágio ideal da humanidade é aquele em que se encontram as sociedades “selvagens”, que não se situam mais num estado de natureza imaginário, nem estão sujeitas aos males da civilização moderna. É o estágio intermediário que hoje chamamos de neolítico, e do qual Lévi-Strauss, como seu mestre Rousseau, acredita que a humanidade jamais deveria ter saído. “Rousseau sem dúvida tem razão em acreditar que para nossa felicidade teria sido preferível que a humanidade mantivesse ‘um justo meio entre a indolência do estado primitivo e a petulante atividade de nosso amor próprio’; que esse estado era ‘o melhor para o homem’ e que para que ele tenha saído desse estado deve ter ocorrido algum ‘funesto acaso’, no qual se pode reconhecer esse fenômeno duplamente excepcional – porque único e porque tardio – que consistiu no advento da civilização mecânica” (ibidem, p. 352). Assim, embora todas as sociedades tenham bons e maus aspectos, não há dúvida de que para Lévi-Strauss as primitivas são menos corruptas que as modernas. Nossa civilização é a que mais se afasta do modelo do homem natural, e é sem dúvida a mais culpada, porque, se “o Ocidente produziu etnógrafos, foi porque devia estar atormentado por um poderoso remorso, obrigando-o a confrontar sua imagem à de sociedades diferentes, na esperança de que elas reflitam as mesmas taras ou o ajudem a explicar como as suas apareceram” (ibidem, p. 350). Em confronto com os homens dessa civilização culpada, os selvagens devem efetivamente ser considerados “bons”.

Para Lévi-Strauss, nenhuma cultura se aproxima tanto dessa bondade natural como a dos Nambikwara, que ele estudou em 1938. Eles são quase sempre “muito cordiais” (ibidem, p. 243), as meninas são “gentis” (ibidem, p. 243), todos revelam grande “boa vontade e vivacidade de espírito” (ibidem, p. 244), são sempre “alegres e risonhos” (ibidem, p. 246), têm “uma fortíssima afeição por seus filhos” (ibidem, p. 247), as mães catam carinhosamente os piolhos dos seus filhos pequenos, quando eles dormem (ibidem, p. 248), as crianças não são punidas (ibidem, p. 248), o espetáculo de uma mãe com seu filho é “cheio de alegria e frescor” (ibidem, p. 248) e, “reciprocamente, as crianças rodeiam sua mãe com uma ternura inquieta e exigente, velando para que ela receba sua parte do produto da caça” (ibidem, p. 248). Os casais se tratam com muito carinho, “adivinham-se neles uma imensa gentileza, uma despreocupação profunda, uma satisfação animal ingênua e encantadora, e, unificando todos esses sentimentos diversos, algo como a expressão mais comovente e verídica da ternura humana” (ibidem, p. 260).

Isso significa que os Nambikwara estavam em “estado de natureza”? Não, porque o estado de natureza é pré-social, e a vida social é inerente à condição humana. Mas não estavam longe disso. Sua sociedade era tão primitiva que se acercava daquele estado hipotético, onde só existiam homens, e não seres sociais. Em investigações etnológicas anteriores, recorda Lévi-Strauss, ele tinha procurado “um estado que, como diz […] Rousseau, não existe mais, talvez não tenha existido nunca, provavelmente não existirá nunca, mas do qual precisamos ter noções justas para bem julgar nosso estado presente. Mais feliz que ele, eu acreditava tê-lo descoberto […] numa das formas de organização social e política mais pobres que se possa conceber […] Eu tinha procurado uma sociedade reduzida à sua expressão mais simples. A dos Nambikwara o era a tal ponto que nela eu só encontrei homens” (ibidem, p. 284).

Lévi-Strauss ficava angustiadamente à espreita de qualquer sinal que prenunciasse a entrada do mal nessa sociedade inocente. Como bom rousseauniano, o mal para ele era evidentemente a ciência, que colocaria os Nambikwara no caminho funesto do progresso. Um dia, ele testemunhou uma cena que pareceu confirmar seus piores temores. Um chefe indígena fingiu que escrevia num papel, para com isso impressionar os outros índios e convencê-los de que ele participava dos segredos dos brancos. A escrita estava sendo usada, portanto, como instrumento de dominação. Felizmente os demais índios perceberam a tempo a manobra e repudiaram o potencial tirano. “Não se tratava de conhecer, reter ou compreender, mas de aumentar o prestígio e a autoridade de um indivíduo – ou de uma função – à custa de outrem […] Se minha hipótese é exata, é preciso admitir que a função primária da comunicação escrita é facilitar a sujeição […] Os que abandonaram seu chefe depois que ele tentara jogar a carta da civilização […] compreenderam confusamente que a escrita e a perfídia caminhavam juntas” (ibidem, pp. 264, 266, 267). Estamos em pleno universo rousseauniano. A escrita é a semente das ciências e das artes, cuja introdução, segundo Rousseau, privou o homem de sua liberdade natural, submetendo uns indivíduos a outros. Por isso ela é “pérfida”, como a serpente quê induziu nossos primeiros pais a provarem o fruto do conhecimento, provocando sua expulsão do paraíso.

Em retrospecto, podemos ver que em nenhum momento os europeus estavam interessados em seu Outro. Seu bom selvagem era alegórico, no sentido etimológico da palavra: dizer uma coisa para designar outra. Thévet exaltava os selvagens brasileiros para denegrir os protestantes, Léry, para difamar os católicos. Montaigne defendia a antropofagia dos índios para criticar as crueldades das Guerras de Religião. Em geral, podese dizer que o retrato que ele traçava dos indígenas correspondia aos valores de uma casta aristocrática com a qual o autor dos Ensaios se identificava, e que estava sendo marginalizada pela ascensão da monarquia absoluta. A virtude marcial que ele atribui aos Tupinambá, a ausência de motivações mercantis para as guerras, a preocupação com a honra, manifestada no caráter vingativo dos indígenas, o descaso, em geral, pelos bens materiais – tudo isso corresponde de perto à auto-imagem de uma nobreza que se sabia ameaçada (Kohl, p. 29). No século XVIII, o mito do bom selvagem continuou a ter como objeto a Europa, mas agora no interesse de outra classe, a burguesia. Não se tratava mais de transfigurar ideologicamente uma classe em declínio, voltando a uma idade de ouro situada no passado, mas de preparar o caminho para a construção de uma nova sociedade. O huroniano e o taitiano não representavam mais o homem antigo, mas o homem novo. O estado de natureza não tinha ficado para trás, ele estava na frente, como ideia reguladora e utopia revolucionária. Os selvagens encarnam filosofias europeias. O huroniano de Lahontan é deísta e revolucionário, o huroniano de Voltaire é deísta e reformista, o taitiano de Diderot é materialista e utilitarista. No século XIX, continua o foco europeu, com outro conteúdo. Se o bom selvagem renascentista encarnava uma reação aristocrática ao absolutismo nascente e o bom selvagem iluminista, uma utopia antifeudal de corte burguês, o bom selvagem romântico de Chateaubriand representava uma contra-utopia restauradora e contra-iluminista, na qual o índio convertido ilustrava a vitória da sensibilidade contra a razão dos filósofos, e do cristianismo contra o deísmo dos filósofos. A volta do bom selvagem, no século XX, não altera a perspectiva eurocêntrica. O mais universalista do antropólogos, Lévi-Strauss, deixa claro que o objetivo último do comparativismo etnográfico é desprender princípios genéricos de vida social que possam ser aplicados “à reforma dos nossos próprios costumes”, já que “só temos condições de transformar a sociedade a que pertencemos” (ibidem, p. 352).

O bom selvagem não exprime apenas uma atitude eurocêntrica, mas também egocêntrica. Não é só de sua cultura e de sua classe social que os autores não conseguem sair; eles não saem sequer de si mesmos. Montaigne diz desde o prólogo dos Ensaios que o objeto do livro era ele próprio: “c’est moy que je peins”. “Assim, leitor, sou eu mesmo a matéria do meu livro” (Montaigne, p. 9). Quem é esse moy? A resposta está algumas linhas adiante. “Se estivesse entre as nações que se diz viverem ainda sob a doce liberdade das primeiras leis da natureza, asseguro-te que com toda boa vontade eu me pintaria por inteiro, totalmente nu” (ibidem, p. 9). Esse homem “totalmente nu” se parece como um irmão gêmeo com o selvagem brasileiro, cuja perspectiva Montaigne parece assumir, na intenção aparente de olhar de fora sua própria sociedade. Mas é mesmo o selvagem que está tomando o lugar do moy? Tudo indica, pelo contrário, que é o moy que está usando o selvagem como porta-voz. O mesmo podemos dizer de Rousseau. Ele é o eterno banido, o exilado em sua própria cultura. Ele se segrega dos seus semelhantes: torna-se selvagem. Mais ainda, ele se coloca voluntariamente em estado de natureza, estado anti-social, no qual vivem homens isolados. Ele é selvagem, porque renunciou à cidade, e homem da natureza, porque é solitário. E é bom, só pensa no bem dos homens, apesar de todas as perseguições que sofre, desmentindo com isso a afirmação dos seus inimigos, que o difamam dizendo que os solitários são maus, méchants. Em suma, o bom selvagem de Rousseau parece ser em grande parte uma projeção do seu próprio Eu (Fink-Eitel, pp. 141 ss.; 194). Verificamos, em conclusão, que o bom selvagem é um animal europeu. Mas quando ele nasceu e qual seu habitat? Ele vem dos mitos antigos e das lendas medievais. Era um bom centauro, como Quiron, que cuidava dos feridos e dos doentes, e dirigiu a educação de Aquiles. Na Idade Média, era o Homo sylvestris, peludo e sensual, que habitava os bosques e vivia “segundo a natureza tinha ensinado, sem nenhuma preocupação, sempre alegre”, como diz uma balada do século XV (Bartra, p. 108). Com o período das descobertas, esses seres míticos foram reencontrados na América pelos navegantes e missionários. Eles viram o índio, e enxergaram o bom selvagem, sem se darem conta de que ele fazia parte de uma tradição europeia muito anterior a Colombo. Esse bom selvagem foi reimportado pela Europa, em vagas sucessivas. De volta à sua pátria de origem, conheceu três destinos.

Num deles, o bom selvagem permaneceu exótico. Foram o bom Tupinambá, o bom huroniano, ou o bom Nambikwara. A aculturação foi outro destino. O bom selvagem, já europeu pela origem, tornou-se europeu de fato, encarnando-se em indivíduos e grupos que por sua doçura, simplicidade, pureza ou valentia pudessem desempenhar a função crítica antes atribuída aos selvagens de além-mar. O século XVIII conheceu os meninos-feras, como o enfant sauvage do filme de Truffaut, criança que vivera sozinha num bosque francês, longe da corrupção civilizada, e que por isso mesmo foi objeto de uma experiência de ressocialização, segundo os princípios pedagógicos de Rousseau. O romantismo idealizou a boa criança (veja-se a Arte de ser avô, de Victor Hugo), pequeno bárbaro que ignorava o mal, por não estar contaminado pela depravação adulta. O romantismo criou também os mitos do bom campônio, homem rude e inocente, como nos romances de George Sand ou nos quadros de Millet, e do bom proletário, como Fantine e Cosette, nos Miseráveis, e as inúmeras grisettes dos romances e peças de teatro, bem como as sublimes cortesãs, do gênero da dama das Camélias, capazes de todas as ternuras e de todos os devotamentos. Bons proletários foram também, do ponto de vista do capital, os trabalhadores que travaram as batalhas da burguesia, morrendo em lugar dela, como em julho de 1830, e, do ponto de vista socialista, os operários com consciência de classe e disciplina partidária. No século XX, Foucault e a antipsiquiatria criaram a figura do bom louco, segregado pela razão oficial.

O terceiro destino do selvagem foi ser apropriado pela psicanálise. Freud fez uma espécie de etnografia da alma e pensou o homem moderno em sua continuidade com o primitivo. Em seu desenvolvimento psicogenético, todos os homens passam por um estágio canibal, ou oral (Freud, 1916, p. 436). Esse canibalismo é semelhante à antropofagia, pela qual os povos primitivos “acreditam que, ao ingerir partes do corpo no ato de devoração, apropriam-se também das propriedades que pertenceram a essa pessoa” (ibidem, 1912-3, p. 101). Ele é a reprodução, em cada indivíduo, do banquete totêmico, pelo qual os irmãos da horda primitiva devoraram o pai, “realizando a identificação com ele, cada qual se apropriando de uma parte de sua força” (ibidem, pp. 171-2). A superação do Édipo passa em grande parte pela identificação com o pai, num processo que reproduz individualmente esse crime filogenético. Em suma, a vida psíquica do civilizado continua sujeita a determinismos que vêm da condição selvagem do homem. O selvagem mora dentro do civilizado. Diderot já descrevera a coexistência antagonística, dentro do homem, do selvagem e do civilizado. “Quereis saber a história resumida de toda a nossa miséria? Ei la. Existia um homem natural: introduziram dentro dele um homem artificial; e surgiu na caverna uma guerra contínua, que dura toda a vida” (Diderot, p. 183). Já é, em essência, o conflito freudiano entre as instâncias psíquicas, entre a razão e a pulsão. O inconsciente é um “território estrangeiro interno”, na formulação de Freud. Esse território é o equivalente das terras exóticas, que os primeiros navegantes iam procurar nos confins do universo. O país exótico interno é habitado por maus e bons selvagens, como o externo. O mau selvagem é o inconsciente culpado, parricida e incestuoso, o caldeirão de bruxas do Id, e seu descendente, o Superego, instância sádica, “cultura pura da pulsão da morte”. Mas há também o bom inconsciente. É o inconsciente amável, livre e inocente, voltado para os prazeres do amor, produtor de belos sonhos, autor de trocadilhos engenhosos, injustamente reprimido pela censura. O bom inconsciente é a sensualidade sem culpa, como o insular dos mares do Sul, e a sabedoria sem livros, como o pele-vermelha de Lahontan.

O bom selvagem é um mero fantasma. Mas esse fantasma produziu males muito tangíveis. Do ponto de vista da Europa, onde o mito se originou, ele impossibilitou qualquer contato genuíno com o Outro. Os bons selvagens e seus descendentes de hoje são elogiados por seu calor humano, sua imaginação e sua sensualidade, e em seguida convidados a brincar em sua reserva ecológica. Do ponto de vista do Brasil, o efeito mais espantoso foi que reconstituímos, deste lado do Atlântico, a dualidade bom selvagem-mau civilizado, e assumimos sem pestanejar a identidade do bom selvagem. Passamos a ser exatamente o que Vespúcio, Caminha, Léry e Montaigne disseram que éramos: calorosos, alegres, cordiais, generosos, descontraídos – e nus. O conteúdo do mito é semelhante nos dois continentes, mas segundo outros mecanismos psicanalíticos. Na Europa, o mito envolve uma atitude de autodepreciação e de idealização do Outro. É aproximadamente a descrição da melancolia, segundo Freud (Freud, 1916, p. 431). No Brasil, a adesão ao mito do bom selvagem significa uma atitude de aviltamento da cultura alheia e de exaltação da própria cultura. É uma euforia agressiva, semelhante à excitação maníaca que ocorre entre dois acessos de melancolia (ibidem, p. 440). A expressão ideológica da primeira doença, a europeia, é o exotismo. A da segunda, a brasileira, é o nacionalismo. Ser nacionalista é devorar o exotismo do europeu. É o que fazemos quando nos apropriamos da ideologia do bom selvagem. Comemos um europeu fantasiado de índio – o bom selvagem – e nos transformamos nele. É um festim pobre em vitaminas, porque a mentira europeia não se converte em verdade só porque passou por nosso tubo digestivo. Uma identidade que se constitui na base de uma ficção é tão irreal quanto a própria ficção. Se o “brasileiro” é um bom selvagem, e se o bom selvagem é uma ilusão, o “brasileiro” também não existe. O devorador se revela tão inexistente quanto a coisa devorada. A cena de antropofagia se reduz a um banquete de sombras canibais devorando iguarias fantasmagóricas.

Temos que nos desfazer do mito do bom selvagem. O quinto centenário da descoberta do Brasil é uma boa oportunidade para fazermos esse exorcismo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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