2005

O minuto e o milênio ou Por Favor, professor, uma década de cada vez

por José Miguel Wisnik

Resumo

Na música comercial-popular brasileira dos anos 70 dois modos de produção diferentes coexistiam (e, muitas vezes, se interpenetravam): o industrial, que cresceu nos anos 70 graças às gravadoras e das empresas que controlam os canais de rádio e TV, e o artesanal, que compreende os poetas-músicos criadores individualizada.

Críticos da chamada “cultura de massas” afirmam que a implantação da indústria cultural imprime nos “produtos de arte” a marca da repetição e da estandardização, suprime a margem de operação estética pessoal, ao mesmo tempo em que programa mercadologicamente a imagem individual do artista. Mas existe uma espécie de “artesão canoro” que continua a desenvolver uma poética carnavalizante, onde entram aqueles elementos de lirismo, de crítica e de humor: a tradição do carnaval, a festa, onon sense,a malandragem, a embriaguez da dança, e a súbita consagração do momento fugidio que brota das histórias do desejo que todas as canções não chegam pra contar.

Outro capítulo importante do tema do “vazio cultural” na música brasileira dos anos 70, e que acompanha o da indústria cultural, chama-se “censura”. O crítico Gilberto Vasconcellos, em seu livro De olhos na fresta,afirma que que a tradição da malandragem na música popular, especialmente aquela que atravessa a história do samba, instrumenta-a para contrapor à ordem repressiva um contradiscurso, mesmo que cifrado.

A música popular está enraizada na cultura popular: a simpatia anímica, a adesão profunda às pulsações telúricas, corporais, sociais que vão se tornando linguagem. Na conjuntura de repressão dos anos 70, a música popular desses poetas compreendeu talvez mais do que nunca a especificidade da sua força, e ela vem do prazer.

No Brasil a tradição da música popular, pela sua inserção na sociedade e pela sua vitalidade, pela riqueza artesanal, pela sua habilidade em captar as transformações da vida urbano-industrial, não se oferece simplesmente como um campo dócil à dominação econômica da indústria cultural que se traduz numa linguagem estandardizada. Aqui se formou uma linguagem capaz de cantar o amor, de surpreender o quotidiano em flagrantes lírico-irônicos, de celebrar o trabalho coletivo ou de fugir à sua imposição, de portar a embriaguez da dança, de jogar com as palavras em lúdicas configurações sem sentido, e de carnavalizar na maior (subvertendo-a em paródia) a imagem dos poderosos.

Os maiores nomes da música popular brasileira nos anos 70 vieram da década anterior e já tinham um passado. Assim, são artistas que, mais ou menos intensamente, viveram o fim de 1968 como um trauma, alguns deles enfrentando prisão e exílio. A sua música contém um comentário disto, e, afinal, congratula-se com o fato de ser ela mesma uma força, uma fonte de poder, de extrair de seus próprios recursos uma capacidade de resistência. Poderíamos dizer que essa música comporta mais do que uma resistência: algo como um resgate.


Continua em vigor na música comercial-popular brasileira a convivência entre dois modos de produção diferentes, tensos mas interpenetrantes dentro dela: o industrial, que se agigantou nos chamados anos 70, com o crescimento das gravadoras e das empresas que controlam os canais de rádio e TV, e o artesanal, que compreende os poetas-músicos criadores de uma obra marcadamente individualizada, onde a subjetividade se expressa lírica, satírica, épica e parodicamente.

Especialistas europeus e críticos da chamada “cultura de massas” afirmam que a implantação da indústria cultural imprime nos “produtos de arte” a marca da repetição e da estandardização, suprime a margem de operação estética pessoal, ao mesmo tempo em que programa mercadologicamente a imagem individual do artista.

Mas à primeira vista já dá pra saber que existe uma espécie de “artesão canoro” (como já se disse com intenções pejorativas) que continua a desenvolver uma poética carnavalizante, onde entram aqueles elementos de lirismo, de crítica e de humor: a tradição do carnaval, a festa, o non sense, a malandragem, a embriaguez da dança, e a súbita consagração do momento fugidio que brota das histórias do desejo que todas as canções não chegam pra contar.

O segundo capítulo do tema do “vazio cultural” na música dos anos 70, e que acompanha o da indústria cultural, chama-se “censura”. Esta vestiu-se a rigor ao longo desses tempos; no momento usa traje esporte. No entanto, sustenta o crítico Gilberto Vasconcellos, em seu livro De olhos na fresta[1], que a tradição da malandragem na música popular, especialmente aquela que atravessa a história do samba, instrumenta-a para contrapor à ordem repressiva um contradiscurso, mesmo que cifrado. E exemplifica a autoconsciência desse processo com a música Festa imodesta, feita por Caetano Veloso para o disco Sinal fechado, de Chico Buarque. Filigranando a sua apologia imodesta do compositor popular com citações de Assis Valente e de Noel Rosa, a letra canta: “Tudo aquilo / que o malandro pronuncia / que o otário silencia / passa pela fresta da cesta / e resta a vida”.

Salve o prazer e salve-se o compositor popular: ele passa um recado, que não é propriamente uma ordem, nem simplesmente uma palavra, e nem uma palavra de ordem, mas uma pulsação que inclui um jogo de cintura, uma cultura de resistência que sucumbiria se vivesse só de significados, e que, por isso mesmo, trabalha simultaneamente sobre os ritmos do corpo, da música e da linguagem.

O conto O recado do morro, de Guimarães Rosa, apresenta um mito que, além de bonito, oferece um modelo figurado que serve para interpretar melhor isso que estou falando agora: ali, há um “recado” ouvido por um eremita, recado que vem do fundo da terra, de “debaixo do barro do chão”, e que passa de boca em boca de forma ininteligível por sete personagens marginais (visionários, crianças, débeis mentais), o sétimo dos quais lhe dá a forma acabada de uma canção — é o cantor popular. Graças à progressiva transmissão do recado, que passa dos estágios de fragmentárias intensidades dionisíacas até sua apolínea forma final, o herói toma consciência de que está sendo vítima de uma cilada, e se salva da morte.

Não conheço descrição melhor. A música popular é uma rede de recados, onde o conceitual é apenas um dos seus movimentos: o da subida à superfície. A base é uma só, e está enraizada na cultura popular: a simpatia anímica, a adesão profunda às pulsações telúricas, corporais, sociais que vão se tornando linguagem.

Na conjuntura de repressão dos anos 70, a música popular desses poetas portadores do recado compreendeu talvez mais do que nunca a especificidade da sua força, e ela vem do prazer, diz a Festa imodesta, de Caetano, e da força indomável, diz O que será (À flor da pele/ À flor da terra), de Chico Buarque (essa música é talvez a forma mais completa do recado da música popular como captação das forças erótico-políticas, dionisíaco-apolíneas).

Os pedaços do recado que procuram maior explicitação política ficam embargados na alfândega da Censura, ou logram passar com uma ironia camaleônica pelo seu bico estreito. É o caso de Corrente, samba de Chico Buarque, verdadeiro exercício da chamada “dialética da malandragem” aplicada ao confronto com a ordem proibidora da Censura. Nessa música, ele faz aparentemente um “samba pra frente” em que finge um mea culpa pelo seu famoso e censurado Apesar de você, aderindo ironicamente à “corrente pra frente” que era um slogan do “milagre brasileiro” (já abalado à altura do lançamento do disco Meus caros amigos). Mas a (falsa) palinódia é subvertida pelo drible do corpo, e a letra é cantada de trás pra frente, com deslocamento do ritmo e da melodia que altera a ênfase, e daí a sintaxe e o sentido das frases. “Talvez precise até tomar na cara / pra ver que o samba está bem melhorado”, “talvez precise até tomar na cara / pra confessar que andei sambando errado” (onde a entoação a princípio sugeria que o poeta se compenetrava da melhora do estado geral de coisas, a ênfase revela de repente os constrangimentos da força e do arbítrio). A contra-corrente é contra-ideologia passada de mão em mão. No final dessa música, o verso “Isso me deixa triste e cabisbaixo” aponta pra duas direções, uma melancólica e outra auto-irônica: “não ver a multidão sambar contente”, mas “fazer um samba bem pra frente”. O humor crítico deixa o poeta cansado do elaborado malabarismo necessário para dar trânsito à ambígua mensagem, trânsito este que permanece cifrado e duvidoso. Canção acabada, obra aberta, corrente fechada.

No seu livro, Gilberto Vasconcellos centra a atenção na dupla Chico e Caetano, e é realmente nesses dois artistas que a tensão poética em jogo atinge a sua parada mais alta. As correspondências, afinidades e diferenças entre Chico Buarque e Caetano Veloso precisam ser acompanhadas de perto, porque elas contêm as correlações mais significativas. Não é à toa que frequentemente um é jogado contra o outro: sabe-se que são realmente duas forças. No entanto, temos a mania maldita de só enfrentar a complexidade da cultura brasileira na base da exclusão, de Emilinha ou Marlene a Mário de Andrade ou Oswald de Andrade, e daí a Chico Buarque ou Caetano Veloso.

POR MAS DISTANTE QUE POSSA APARECER

Uma década é isto: o planeta girando dez vezes. Sempre foi, mas desta vez ficou mais visível. Tudo de novo ao redor do Sol. Pela TV. Ver a Terra da Lua e estar lá e estar aqui. Mas como?[2]

A viagem pra fora da Terra alterou a nossa consciência, como se uma parte desta se desprendesse do planeta e nos visse ao longe, e ouvisse no espaço o nosso eco ecológico. Caetano cantou em cima do lance: “Quem esteve na Lua viu / quem esteve na rua também viu / quanto ao mais é isso e aquilo / e eu estou muito tranquilo / pousado no meio do planeta / girando ao redor do Sol” (A voz do vivo, 1969). Embora não o diga nesse momento, essa música foi feita depois de Caetano ter se encontrado “preso na cela de uma cadeia”, em fins de 1968 e começo de 69, de onde ele vê “as tais fotografias / em que apareces inteira / (…) Terra / Terra / por mais distante / o errante navegante / quem jamais te esqueceria” (como ele diria dez anos mais tarde, no disco Muito, 1978).

As duas músicas estão ligadas por um arco, e entre o oculto óbvio do fim dos anos 60 e o óbvio oculto do fim dos 70 estão dez voltas de história.

Mas só quem entende que o tempo se faz de cruzamento de tempos é que pode compreender este símbolo: um homem encerrado numa prisão descobre a Terra como uma mulher, e estando dentro dela, excessivamente dentro, está de fora e a vê inteira. Estando preso está desgarrado, numa espécie de lugar nenhum que é o chão de todas as utopias muitas vezes sonhadas de dentro das cadeias, e eis que se redescobre este chão concreto: é a carne em que viajamos todos (no nada: ponto-de-fuga do espaço-tempo), a carne do planeta e a nossa. O desgarramento da Terra, lançado por uma ficção-científica real, é acompanhado de um novo enraizamento nela (uma nova necessidade de dar-lhe carinho), um desprender-se que é acompanhado de uma pregnância, palavra que também quer dizer gravidez: a Terra é um ovo, e vem a ser fecundada de novo por esta viagem. Um ovo que se leva na palma da mão, como uma chama. (A gente vai levando). Chico e Caetano: Terra e Cio da terra.

Tudo isto é algo mais do que uma história individual. São símbolos para os quais “contribuem” acontecimentos de várias ordens: o AI-5, a tecnologia espacial, o vértice aflorante da consciência ecológica. Se o AI-5 que leva o cantor à cadeia é o acontecimento intestino que vai viabilizar a férrea política de “desenvolvimento e segurança” dos anos seguintes, enquanto isso a Ciência dos centros desenvolvidos chega ao seu momento de devaneio, essa espécie de passeio no espaço, essa aventura que, entre cara e gratuita, nos coloca cara a cara com o enorme e o ínfimo, e a consciência ecológica, que irá passar pela via da contracultura e da negação da ideologia desenvolvimentista, prepara o desdobramento (morte e renascimento) de seus sonhos. A percepção poética trabalha com a multiplicidade dos tempos, e a sua riqueza vem daí.

Por mais distantes que possam parecer, na música Terra cruzam-se a Bahia e a Índia, o minuto e o mito, a década, o milênio e a hora do Brasil.[3]

SOCIOLOGIA DO OUVIDO – TOCADA DE OUVIDO (I)

Não é possível ir falando em canção comercial popular como se ela tivesse um uso puramente estético-contemplativo, como se ela fosse um objeto de arte exposto num museu ou executado sobriamente numa sala de concerto. Uma das dificuldades de se falar sobre ela é levar em consideração a multiplicidade dos seus usos, que corresponde à multiplicidade dos modos como ela é escutada. Acrescenta-se a essa dificuldade o fato de que a música não é um suporte de verdades a serem ditas pela letra, como uma tela passiva onde se projetasse uma imagem figurativa; talvez seja mais frequente, até, o caso contrário, onde a letra aparece como um veículo que carrega a música.

Que tipo de consumo se produz?, é a pergunta que fazemos diante da massa sonora que transborda por todos os lados com o avanço da indústria cultural nos últimos anos, e que inclui o agigantamento das gravadoras e do volume de sua produção, das rádios como excitadores do mercado musical, da televisão e do efeito de ressonância mercadológica que ela extrai da utilização da trilha sonora como jingle do produto novela, e da novela como chamada para o produto trilha sonora em disco.

Em primeiro lugar, é evidente que se trata de um complexo industrial-ideológico que procura explorar ao máximo a força penetrante que a música tem: o extraordinário poder de propagação social que vem de sua própria materialidade, do seu caráter de objeto/subjetivo (está fora mas está dentro do ouvinte!), simultâneo (vivido por muitas pessoas ao mesmo tempo), e do enraizamento popular de sua produção no Brasil.

De um lado, sabemos que esse “tratamento” industrial-capitalista tende a conferir à canção os traços da mercadoria produzida em série, que tem como horizonte a estandardização, isto é, a subordinação da linguagem a padrões uniformizados de vendabilidade. O pensador alemão Theodor W. Adorno, por exemplo, afirma que, no interior desse tipo de produção para o lucro, a mercadoria engana o ouvinte ao seduzi-lo com a promessa do valor-de-uso da sua fruição, quando a única coisa que ela realmente oferece é seu prestígio consumível, o fantasma de um valor musical intrínseco que ela não tem. Assim é que os apelos dessa música “regressiva”, segundo ele, excitam e não satisfazem, agradam pela “novidade” do prazer que frequentemente parecem oferecer, e decepcionam permanentemente pelo fundo de redundância e mesmice que abrigam e frequentemente escondem. O fantasma da “aura” de arte que às vezes as cerca, ou do atrativo que suas “embalagens” sonoras prometem, seria desse modo tão ilusório como nas ilhas grã-finas das propagandas do cigarro: um valor-de-uso falsificado ou imaginário que encobre, vicariamente, o valor-de-troca.[4]

Trocada em miúdos, essa tese sustenta a ideia de uma “regressão da audição”, onde a escuta musical deixa de ser escuta, e o uso que se faz da música não é um uso musical, passando a ser ora pose de “consumo-de-cultura”, ora relax, distração fantasiosa, exercício muscular técnico-ginástico.

A má vontade para com a música popular em Adorno é grande. Podemos entendê-la num europeu de formação erudita. Por um lado, o uso musical para ele é a escuta estrutural estrita e consciente de uma peça, a percepção da progressão das formas através da história da arte e através da construção de uma determinada obra. Por outro, o equilíbrio entre a música erudita e a popular, num país como a Alemanha, faz a balança cair espetacularmente para o lado da tradição erudita, porque a música popular raramente é penetrada pelos setores mais criadores da cultura, vivendo numa espécie de marasmo kitsch e digestivo (aliás, nos países europeus, o que trouxe de volta a grande vitalidade da música popular, quando foi o caso, foram os meios elétricos e o rock).

Ora, no Brasil a tradição da música popular, pela sua inserção na sociedade e pela sua vitalidade, pela riqueza artesanal que está investida na sua teia de recados, pela sua habilidade em captar as transformações da vida urbano-industrial, não se oferece simplesmente como um campo dócil à dominação econômica da indústria cultural que se traduz numa linguagem estandardizada, nem à repressão da censura que se traduz num controle das formas de expressão política e sexual explícitas, e nem às outras pressões que se traduzem nas exigências do bom gosto acadêmico ou nas exigências de um engajamento estreitamente concebido.

NO, NO, Y NO

Aqui seria preciso levar sempre em consideração certas características da prática musical brasileira, e entre elas: no Brasil, a música erudita nunca chegou a formar um sistema onde autores, obras e público entrassem numa relação de certa correspondência e reciprocidade. Lamente-se ou não esse fato, o uso mais forte da música no Brasil nunca foi o estético-contemplativo, ou da “música desinteressada”, como dizia Mário de Andrade, mas o uso ritual, mágico, o uso interessado da festa popular, o canto-de-trabalho, em suma, a música como instrumento ambiental articulado com outras práticas sociais, a religião, o trabalho e a festa. Com a urbanização e a industrialização, esse uso ganhou uma amplitude ainda maior na caixa de ressonância das grandes cidades, com o advento do rádio, do disco, e do carnaval moderno. Sobre o batuque coletivo do samba foi se desenhando o melos individual do sambista que canta com malícia e altivez a sua condição de cidadão precário, entre a “orgia” e o trabalho, numa dialética da ordem e da desordem.[5] Assim também é que muito da música sertaneja foi tomando características urbanas, e Luís Gonzaga veio a cantar para o Brasil inteiro.

Foi se formando uma linguagem capaz de cantar o amor, de surpreender o quotidiano em flagrantes lírico-irônicos, de celebrar o trabalho coletivo ou de fugir à sua imposição, de portar a embriaguez da dança, de jogar com as palavras em lúdicas configurações sem sentido, e de carnavalizar na maior (subvertendo-a em paródia) a imagem dos poderosos.

Tudo isso constitui um artesanato que foi se desenvolvendo nas dobras e nas sobras, nas barbas e nas rebarbas do processo de modernização do país; ao mesmo tempo em que a música popular mais se tornava mercadoria, convivia com chuvaradas de música estrangeira, e se difundia por meios elétrico-industriais.

O fenômeno da música popular brasileira talvez espante até hoje, e talvez por isso mesmo também continue pouco entendido na cabeça do país, por causa dessa mistura em meio à qual se produz: a) embora mantenha um cordão de ligação com a cultura popular não-letrada, desprende-se dela para entrar no mercado e na cidade; b) embora deixe-se penetrar pela poesia culta, não segue a lógica evolutiva da cultura literária, nem filia-se a seus padrões de filtragem; c) embora se reproduza dentro do contexto da indústria cultural, não se reduz às regras da estandardização. Em suma, não funciona dentro dos limites estritos de nenhum dos sistemas culturais existentes no Brasil, embora deixe-se permear por eles.

Sendo assim, esse tipo de música não tem uma pureza a defender: a das origens da Nação, por exemplo (que um romantismo quer ver no folclore), a da Ciência (pela qual zela a cultura universitária), a da soberania da Arte (cultuada tantas vezes hieraticamente pelos seus representantes eruditos). Por isso mesmo, não pode ser lido simplesmente pelos critérios críticos da Autenticidade nacional, nem da Verdade racional, nem da pura Qualidade. Trata-se de um caldeirão — mercado pululante onde várias tradições vieram a se confundir e se cruzar, quando não na intencionalidade criadora, no ouvido atento ou distraído de todos nós.

É claro que uma tal zona do agrião se constitua num campo repuxado por todos os lados: pela redundância e pelos mais descarados (bem ou malsucedidos) expedientes comerciais; pelo crivo do bom gosto que quer filtrar alguns de seus setores e detê-los no bolsão de um padrão mais “alto” em contraposição a outras manifestações “inferiores”; pela vontade de se fazer passar por “autêntica” arte “popular”.

Mas o mais interessante é que um sistema aberto como esse passa periodicamente por verdadeiros saltos produtivos, verdadeiras sínteses críticas, verdadeiras reciclagens: são momentos em que alguns autores, isto é, alguns artistas, individualmente e em grupos, repensam toda a economia do sistema, e condensam os seus múltiplos elementos, ou fazem com que se precipitem certas formações latentes que estão engasgadas. Podemos apontar alguns, talvez os mais salientes desses mo(vi)mentos metacríticos: o nascimento do samba em 1917, a bossa nova, o tropicalismo, o pós-tropicalismo (como chamar a década de 70?).

  1. Pelo telefone (1917): Donga faz um oportuno aproveitamento dos elementos rítmicos sincopados que estavam em vigor desde o fim do século XIX, “plagia” um partido-alto que se ouvia na casa de Tia Ciata, tematiza os poderes da dança e da repressão conivente (“O chefe da polícia / pelo telefone / manda me avisar”) que faziam a matéria da “dialética da malandragem”, agora investida de um novo nível tecnológico (o telefone), grava tudo em disco e com isto torna-se “autor”. Estava “inventado” o samba, e para que isso acontecesse era preciso que se encontrassem a música negra, suas elaborações popularescas e urbanas, o telefone, o gramofone, o mercado musical incipiente, projetados sobre a ambígua e resvaladiça área de confluência entre a ordem do trabalho e a da festa na sociedade carioca. Pode começar o carnaval (dois meses depois do qual, como se sabe por aquela marchinha, Cabral inventou o Brasil…).
  2. A bossa nova (começo dos anos 60): como é sabido de sobra, reprocessa a batida do samba e a harmonia das canções com influxos do jazz e da música impressionista, torna as letras mais concentradas e dá um calafrio camerístico na tradição do canto em dó-de-peito; em suma, precipita sobre o mercado uma síntese em adensamento das linhas da canção de massa em vigor no Brasil, da canção erudita internacional do jazz, e cria um novo padrão de produção técnica, de uso da voz e do violão (João Gilberto), tendo como cor local o desenvolvimento juscelinista, e instrumentando toda uma geração surgida na década de 60. Em tempo: cria no interior da música popular um subsistema que compreende uma linha-de-exportação e uma linha-de-expressão intelectualizada que será o casulo de toda a floração “universitária” que atravessará de festivais a década de 60 (a bossa nova deixa mais à vista a espinha de classe média que sustenta a música comercial-popular de que estamos falando, e essa espinha ficará para sempre atravessada na garganta do crítico, aliás impressionante, José Ramos Tinhorão).
  3. O tropicalismo (fim dos anos 60): devolve a MPB universitária herdeira da bossa nova ao seu meio real, a “geleia geral brasileira”, foco de culturas. Caetano: contribuição milionária de todos os gêneros musicais, tanto na composição como na reinterpretação iluminadora, na releitura e na citação do cancioneiro. Mudança da textura do som, seja pela guitarra elétrica, pelos novos registros da voz, pela parafernália instrumental mobilizada por Rogério Duprat. Assim, o tropicalismo promove um abalo sísmico no chão que parecia sustentar o terraço da MPB, com vista para o pacto populista e para as harmonias sofisticadas, arrancando-a do círculo do bom gosto que a fazia recusar como inferiores ou equivocadas as demais manifestações da música comercial, e filtrar a cultura brasileira através de um halo estético-político idealizante, falsamente “acima” do mercado e das condições de classe. No fermento da crise que espalha ao vento, o tropicalismo capta a vertiginosa espiral descendente do impasse institucional que levaria ao AI-5.[6]

SOCIOLOGIA DO OUVIDO – TOCADA DE OUVIDO (II)

O sax da alta madrugada, as duplas caipiras tocam cedo porque os trabalhadores do campo começam cedo, a música-geral de acordar a cidade, os funcionários motorizados, os motoristas de táxi, o rádio o dia inteiro ligado da empregada, o rádio de pilha do operário da construção, a música de fundo das lojas, o som em frequência modulada, o quarto dos adolescentes, as sinfonias e quartetos depois das refeições. A música por todos os lados, uma espécie de hábito, uma espécie de habitat, algo que completa o lugar de morar, o lugar de trabalhar, seu uso constante num preencher dos hiatos do meio ambiente, do meio ambiente físico e subjetivo, a música distração, distrai o trabalho, distrai o lazer, faz contraponto cego com o que eu vou fazer, papel de parede, pano-de-fundo, ponto-de-fuga, acompanhamento em harmônico, agudo, da atividade viver, em toda parte, uma espécie de cenário, jardim portátil. A música assim ouvida: um tecido que passa por dentro de um corpo de diferenças, o tecido conjuntivo: serve à unidade do organismo ocupando todos os espaços livres de maneira a não deixar vazios, liga os diferentes órgãos entre si e os sustenta e os protege. Hermeto Magal, Soriano Veloso etc. Todo dia ela faz quase sempre igual, transborda pelo quotidiano, preenche parte das fraturas entre o real e o imaginário, matéria sonora, massa ora bem mais fina ora bem mais grossa. Assim agindo uma força conservadora: não. mais simplesmente uma força protetora. Como a religião: espírito de um mundo sem espírito?

O ORGASMO É O ÓPIO DO POVO – VIVA O COITUS INTERRUPTUS

O que acontece ao se calar a boca de um vulcão semi-ativo: desses que exalam há séculos um vapor contínuo? Um grito, um clamor que o tempo todo escapa entre o que se deseja e o que vive: talvez só seja possível entender o uso da música assim, perguntando da sua força, e da força da demanda que a sustenta no ar. Se toda a música usada por nós fosse calada de repente, talvez isso abalasse profundamente a ordem das coisas, pois, pelo menos por um momento, tornaria o insuportável insuportável.

Mas acontece que ela não se cala: parece que há nela um filão que é da ordem daquilo “que não pode mais / se calar”, como diz certa canção de Caetano Veloso feita para Roberto Carlos (Muito romântico). Assim como o orgasmo do povo não pode ser promovido ou interrompido por um slogan, a necessidade de música também não se interrompe com palavras. O uso político da força musical está ligado a isso. É o que explica a perspectiva daqueles que, em nome de uma crítica radical da ordem social e do papel consolador da arte, e conscientes disso, gostariam que ela se calasse de vez. Por outro lado há a perspectiva daqueles que, já que ela não se cala, e já que é forte, que pelo menos falasse a verdade, dissesse a que vem, e se tornasse veiculadora de mensagens políticas. E isso de fato tende a acontecer, mas se nem sempre é possível, também nem sempre o conteúdo político é o desejo dessa força estranha, a música. Ela está em algum lugar entre o silêncio e as palavras. Há também uma perspectiva política diferente, que não quer nem que a música se cale como tal, nem que se cale para deixar que as palavras falem, mas que seja música, que exista como força, que seja assim mesmo uma estranha no campo de forças, e que atue como propulsora a seu modo próprio.

UMA ESTRANHA NO CAMPO DE FORÇAS

Os maiores nomes da música popular brasileira nos anos 70, aqueles consagrados, vieram da década anterior, já tinham um passado. Assim, são artistas que, mais ou menos intensamente, viveram o fim de 1968 como um trauma, alguns deles enfrentando prisão e exílio. A sua música contém um comentário disto, e, afinal, congratula-se com o fato de ser ela mesma uma força, uma fonte de poder, de extrair de seus próprios recursos uma capacidade de resistência. Poderíamos dizer que essa música comporta mais do que uma resistência: algo como um resgate.

Ao longo da década, várias composições marcantes de Milton Nascimento, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil vão indicando uma visão da música como poder, “poder psicológico, social, político, espiritual e mágico”. Esse poder advém de sua atuação sobre o corpo, e se desdobra numa figuração do corpo social. A primeira dessas músicas, que abre a série, e que se pode dizer que funda um caminho, é Águas de março, de Tom Jobim: nela não se vê mais a melancolia sem saída de Sabiá (parceria de 1968 com Chico Buarque), que adivinhava o exílio e o regresso à sombra de uma palmeira “que já não há”, nem a melodia requintada pela modulação contínua dessa música de uma espécie de maneirismo bossanovístico supermagistral. Em vez disso, uma melodia simples, pontuando ritmicamente as constatações mais concretas: “É / pau / é / pedra / é o fim do caminho”, fim do caminho que encerra um ciclo e inicia outro, ciclo histórico e ciclo natural. E a passagem não é esquemática, vive-se o momento de transição que é sempre fim e começo, simultaneamente o impasse e já a disponibilidade: o estrepe no pé, o carro enguiçado, o fim da picada, o fim da canseira, o queira ou não queira, as águas de março, as “promessas de vida em meu coração”.

Outro momento importante é o disco Construção, de Chico Buarque (1971). Na música que dá título ao LP, a queda do operário da construção busca ser recuperada no mosaico trágico, quero dizer, no mosaico mágico onde os estilhaços da construção poética formam a figura múltipla e ambígua de uma morte da qual se pode renascer, num novo corpo multiplicado. É por aí que o desencanto precoce (que vinha assediando muito de perto a música de Chico Buarque no fim dos anos 60) se transforma numa virulência incisiva (Deus lhe pague).

“Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada / agora não espero mais aquela madrugada / vai ter / vai ter / vai ter de ser / faca amolada / o brilho cego de paixão e fé / faca amolada” (Fé cega, faca amolada, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, 1975): reversão da canção de protesto dos anos 60, que prometia messianicamente o futuro, num engajamento para com o presente, tendo como instrumento e arma a “faca só lâmina” do brilho de luz — alucinação e lucidez. A poesia não se paralisa olhando o dia-que-virá. em vez disso, se põe inteiramente, e em movimento, no tempo em que está.

Essa música de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos era cantada no show dos Doces Bárbaros, que reunia em grupo Caetano, Gil, Gal Costa e Maria Bethânia (1976). Ela passa por ali como um elo a mais do recado que está também em Um índio e em Gênesis, de Caetano. São duas músicas meio proféticas, meio videntes. A primeira fala de um índio que descerá de uma estrela brilhante num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico. A segunda, de uma tribo que ainda vê, “quando tomam vinho”, na cara de uma jia (uma rã), o espírito original de tudo. Não se trata de profecias propriamente ao pé da letra, pois o índio que chegará (no momento em que for exterminada a última nação indígena) traz consigo tudo o que já existe, preservando em sua totalidade aquilo de vital que desaparece. O ponto de encontro dessas “profecias”, entre o extremo passado e o extremo futuro, entre o Atlântico e o Pacífico, no centro do tempo e do espaço, é o aqui e o agora, onde está o espírito de tudo e o sentido de tudo. oculto, soterrado, e, no entanto, cristalino e óbvio ao mesmo tempo, se se souber ver. Seja portanto num tom épico, como o do Indio, cantado por Bethânia, ou no tom de uma vidência abstrusa, primitiva e tecnológica, de Gênesis, as profecias falam do momento presente, e, ao contrário do que pode parecer de um certo ângulo, te colocam dentro da história, de uma história total, e não fora dela.

Em 1976, Chico Buarque capta o recado das vozes que sussurram na noite de uma realidade desconhecida, nas alcovas, no breu das tocas, nos botecos, nos mercados: as duas canções que recebem o nome de O que será (À flor da pele e À flor da terra) sugerem a convergência do erótico e do politico, subordinados a um só princípio. O que será que não tem descanso nem cansaço, esse inominável que se recorta no avesso do princípio de realidade (limite, sentido, certeza, tamanho, governo, censura, decência, vergonha), realidade que fica pairando como uma fantasmagoria castradora sobre a expansão da energia, ou, como chamá-lo?, libido, desejo, vontade de contato, amor. Podemos, sim, chamá-lo: o princípio, seja o que for, ou como for. E no princípio reside a espécie de atualidade mítica que percorre essas músicas: a força dos começos, da criação, da gênese, a força do princípio que habita tudo e que vive para sempre, e portanto, agora, nesse preciso momento. Há nisso uma superação mitopoética dos antagonismos: festa, dança, carnaval, alegria.

Podemos já presumir todo esse percurso numa figura, que engloba a tensão em que vive essa tradição da música popular: ao máximo divisor comum que baseia a divisão da sociedade de classes, a divisão entre capital e trabalho, a divisão entre força de trabalho e propriedade dos meios de produção, a música popular contrapõe o mínimo múltiplo comum da sua rede de recados (pulsões, ritmos, entoações, melodias-harmonias, imagens verbais, símbolos poéticos) abertos num leque de múltiplas formas (xaxado, baião, rock, samba, discoteca, chorinho etc. etc. etc.). Trata-se de recuperar permanentemente esse mínimo múltiplo comum como uma força que luta contra o máximo divisor comum.[7] Para que essa luta se sustente como uma tensão, e não se transforme em pura ideologia (que apresentasse afinal a sociedade de classes e a música popular como representantes de um interesse comum), é preciso que ela esteja investida da vitalidade “natural” dos seus usos populares, ou então que seja reconstruída e transfigurada continuamente pelos poetas-músicos conscientes do complexo de forças e linguagens que ela encerra. É o que acontece com essa linha de compositores de que estou falando.

Resta saber até quando e até onde será possível repartir esse salário mínimo múltiplo comum de cintilância.[8]

ROMÂNTICO, DEMASIADO ROMÂNTICO

A crítica não está preparada para falar de Roberto Carlos.

Bate com diferentes intensidades na mesma tecla: cantor comercial.

Cansa de dizer o óbvio: que vende cada vez mais discos.

Dança.

Esquece de pensar o oculto mais óbvio: que tipo de força o sustém no ar por tanto tempo. Por que ele?

Pedi à minha mulher que escrevesse sobre isso. Ela disse: voz poderosa, suave, louca, ele realiza melhor do que ninguém o desejo de um canto espontâneo, arranca matéria viva de si e entra em detalhes, coisas mal acabadas, células emocionais primitivas, momentos quase secretos de todo mundo (como as frases decoradas que a gente prepara para lançar ao outro na hora de partir e que não chega a dizer nem a confessar), uma qualidade romântica, ingênua e vigorosa, que unifica a sem-gracice, o patético, a doçura, o lirismo que há em todos, e fica forte, quase indestrutível, pois soma anseios, ilusões, ideais que também pairam por aí, mais além, estranhos à realidade quotidiana de muitos. Roberto assim é catalisador, antena, receptor de uma emissora poderosa de ondas frequentes e persistentes de desejos reprimidos, aos quais dá nomes: substantivos simples, que compõem cenas visíveis, coisas palpáveis, que confortam inseguranças e pensamentos incompletos e dão matéria viva ao sonho.

UMA COLCHA DE RECADOS

Talvez seja possível falar um pouco mais de Caetano Veloso a partir de Roberto Carlos, ele que fez nesses anos três canções para Roberto: Como 2 e 2, Muito romântico e Força estranha. Todas elas são metacanções que refletem sobre o ato de cantar, e que injetam algo de reflexão crítica nas veias dessa poderosa corrente de romantismo de massas do qual Roberto Carlos é o portador. Ao fazer isso, Caetano não destrói o que há de romântico em Roberto; ao contrário, potencia tudo isso (a ironia, aliás, é um dos expedientes românticos para acentuar a tensão entre o sentimento espontâneo e a mediação da mercadoria). A ironia consiste no deslocamento perpétuo que faz de toda interpretação uma versão entre outras: “Noutras palavras sou muito romântico” cantado por Roberto, cantado por Caetano com piano romântico, cantado por ele com um coral solene. Como a “criança irônica” de que falavam os românticos alemães (Novalis), o poeta é uma espécie de Eros cujas flechas saem de um arco tenso entre os polos da ingenuidade e da não-ingenuidade. O cantor refere-se ao fato de ser uni portador da voz, um porta-voz do desejo (a força que me leva a cantar o que pede pra se cantar), com a qual o sujeito se reconhece (sou o que soa) e se estranha (eu minto mas minha voz não mente). Minha voz me difere e me identifica; noutras palavras, sou ninguém que sou eu que é um outro — essas três canções são instantâneos de Roberto Carlos feitos por Caetano Veloso, instantâneos de Caetano Veloso feitos por Roberto Carlos através de Caetano Veloso.[9]

Caetano volta-se também para Jorge Ben, para comemorar-homenagear a força rítmica lírica, comemorar a espontaneidade prodigiosa, render graças, perguntar: como é possível, apesar de tudo, a espontaneidade, a técnica e a espontaneidade, lirismo e arte, qualquer coisa e joia, juntas.

Essa atitude de Caetano pode ser vista em pelo menos três níveis: uma poética da identidade como drama, no nível pessoal; uma procura da força da beleza pura e das forças elementares da cultura que sobrevém ao disco Araçá azul, ponto mais avançado da fragmentação das linguagens no roteiro de Caetano; uma interpretação do sistema da música popular como um campo de forças onde atua uma poética da vida brasileira desbordante, não centralizada, lugar da perda de uma pedra muiraquitã que passa de mão em mão num jogo desnorteante, uma pedra que não se fixa mais em um lugar, exatamente como a ideia de cultura nacional que brilha em toda parte, nenhuma num esplendor de fragmentos.

Se o tropicalismo é o sonho da abertura de um baú (que precede o fechamento político de 1968) que contém as quinquilharias, as traquitandas e as maravilhas acumuladas ao longo de uma história recalcada, a volta do exílio contém a consciência de que não há mais aquele baú a abrir, que o processo produtivo acelerou os signos culturais numa centrifugadora, e que os seus movimentos reais não podem ser percebidos em centros localizados, nem em linhas retas, mas em círculos abrangentes.

Caetano lê o destino através do labirinto de labirintos da linguagem, do labirinto de canções, ele sabe ir e voltar por esse labirinto; e ao voltar ao começo, solitário/solidário, indica o que existe lá. É assim que ele penetra fundo na existência.

Chico Buarque, artesão habilíssimo, lê as entranhas dos homens: sua lírica dramática é extremamente sensível ao corpo que sofre e que goza. Sua poesia-música está cheia de imagens de contundência e de intensidade corporal: ela capta a entranha sensível, e por isso é tão fina para o erótico, o social (lendo o futuro tal como ele se escreve nas vísceras dos que sofrem) e o feminino.

E ASSIM SE PASSARAM DEZ ANOS

(E Milton e Gil e Jorge Ben e Gal e)

Outubro/Novembro de 1979.

25 anos depois:

O minuto e o milênio ou Por favor, professor, uma década de cada vez é um texto datado por definição, como avisa o título, jogando com as datas e com a dificuldade de datar. Até aí, nenhuma novidade. Na década de 70 a canção popular brasileira oriunda das transformações e dos estímulos poderosos da bossa nova ocupou um grande espaço nas rádios FM e dominou o mercado visível do disco. Que uma música tão incomum pudesse ter-se tornado algo como um bem comum é um fato que transpira e inspira positividade ao meu texto, em termos afins ao ethos e ao pathos das canções da época. Soprava um vento criador sobre a lenta saída da ditadura. Não vou retomar essa questão aqui, nem tentar me aprofundar sobre. Para manter mais teso o arco, a ponto de parti-lo, só quero reconhecer que, de lá pra cá, a adorniana “regressão da audição”, que eu refutava, avançou avassaladoramente. E que o Brasil permanece, para mim, não obstante, como um lugar de intensa e polimorfa criatividade musical. “Até quando e até onde?” são perguntas que se estendem e se comprimem ao longo desses tempos, e que estão no — a seu modo divertido — texto de 1979.

Mas eu preciso mesmo é falar de outra coisa. Num artigo publicado em 1998, “Democratização no Brasil 1979-1981 (Cultura versus Arte)”[10], Silviano Santiago inclui O minuto e o milênio entre os textos que operaram, durante esses três anos precisos, uma mudança de tom e de perspectiva no modo de se entender a cultura e a política no Brasil. No meu caso específico, tratava-se, segundo Silviano, da “primeira crítica severa à grande divisão (The Great Divide, segundo a expressão já clássica de Andreas Huyssen) entre o erudito e o popular”, opondo-se ao rebaixamento deste. Surpreendia, segundo o crítico, que o gesto, litigioso para a “minoria letrada”, envolvendo — entenda-se a entrelinha — um lance pioneiro de introdução da problemática dos Cultural Studies, viesse de “um jovem intelectual com formação na Universidade de São Paulo”. De maneira significativamente oposta, o filósofo uspiano Paulo Arantes havia visto no meu texto uma formulação da questão da música popular condizente com os termos analíticos próprios a um bom aluno de Antônio Cândido, seguida do que ele chamou de uma “debandada para a ideologia francesa”. O encaixe simétrico e antitético dos dois comentários diz muito, certamente, sobre a posição que eu tentava explorar. De fato, eu saía programadamente do perfil do us piano estrito (sem deixar nunca de ser, orgulhosamente, um us piano uspianista) e estava ao mesmo tempo longe de me enquadrar no modelo do desconstrutivista correto, como se verá.

Porque o ponto que interessa, pelo menos para mim, é um outro. Silviano diz que, “mais surpreendente ainda”, é que de mim “tenha partido a primeira leitura simpática e favorável do cantor Roberto Carlos, ainda que, para tal tarefa, o crítico [eu] tenha de se travestir pela fala da sua [minha] mulher, caindo literalmente numa gender trap” (o grifo é meu). Ele refere-se, como é fácil de supor, ao trecho intitulado “Romântico, demasiado romântico”, e, baseado no mesmo Huyssen, afirma que eu me vi incapaz de tratar do assunto Roberto Carlos e o deleguei para a mulher porque regredi à postura misógina que identifica o feminino com a cultura de massas, ambas supostamente incapazes da reflexão crítica. Entenda-se o raciocínio: para falar de Roberto Carlos tem que ser ela, e não pode ser eu, porque eu, o intelectual masculino, num dispositivo entre consciente e inconsciente, resisto a descer a tal ponto. Essa derrapada falocêntrica me incluiria, afinal, no “paradigma de rebaixamento do feminino pelo masculino”, que remonta ao caso Flaubert/Emma Bovary, tal como analisado por Huyssen.

Sei bem o quanto Silviano valoriza, com certo exagero, esse O minuto e o milênio, e sou reconhecido ao interesse que ele lhe dá como sintoma daquele momento de democratização. Mas voltemos ao ponto. Silviano supõe que eu sofra da incapacidade de falar de Roberto Carlos, depois de ter me proposto a isso, e que eu recue para preservar a superioridade intelectual masculina. Diz sobre mim: “O crítico se sente incapaz (o grifo é meu) de pensar o paradoxo do oculto mais óbvio. Será que isso é tarefa para mim?, deve ter perguntado a si antes de dar continuidade ao artigo. José Miguel cai na armadilha do gênero (…), incapaz (o grifo é meu) de responder à questão que é formulada pelo encadeamento orgânico do seu raciocínio analítico. Eis que pede ajuda à sua mulher [sic] (o sic é dele) para que responda e escreva sobre Roberto Carlos. A profundidade da escuta de Roberto Carlos só pode (o grifo é meu) ser captada por ouvidos femininos”.

Ora, a ideia de que eu esteja barrado interiormente para falar de Roberto Carlos, transferindo obrigatoriamente o assunto para a mulher e obedecendo às “trapaças” de um falocentrismo arraigado e recôndito, é uma aplicação de um esquema pré-pronto, colhido em Huyssen, que não tem qualquer base no meu texto. Silviano, aliás, não oferece nenhum vestígio textual da sua suposição. Eu falo de Roberto Carlos quando quero (inclusive na passagem citada), e escolho me deixar falar por outra fala porque o foco da questão — a música popular-comercial como um todo, e Roberto Carlos em particular — é dialógico por excelência. Em primeiro lugar, estou sendo livre (liberdade é poder fazer) e independente (independência é poder não fazer). Em segundo lugar, O minuto e o milênio ou Por favor, professor, uma década de cada vez é todo escrito, desde o título, em vozes múltiplas: ele passa pelo registro da dissertação acadêmica, pela paródia do jargão jornalístico, pela glosa do slogan político deslocado, por uma espécie de fluxo-da-consciência crítica insone, pelas barbas e rebarbas da linguagem poética, etc. O interesse que o próprio Silviano viu nele (assim como a “debandada” que Paulo Arantes chamou de “ideologia francesa”) é inseparável da vontade, que nele transparece, bem ou mal, de atacar por muitos lados e tons a complicada multiplicação desse objeto — a música popular-comercial e sua “avassaladora presença (…) no cotidiano brasileiro” — que exigia a ultrapassagem da tal grande divisória dos gêneros artísticos, engolfando junto com ela todo um mundo de divisórias discursivas e existenciais. Para, mim, essa polifonia é a verdadeira data do texto: o gesto, cheio de frescor e de ilusão — mas não de ingenuidade — daquele momento. Por isso mesmo é surpreendentemente inocente, num crítico como Silviano, a cena hipotética em que eu, suspendendo a pena, me perguntaria — “será que isso é tarefa para mim?” — “antes de dar continuidade ao artigo”. Esse anacrônico e imaginário “suspender da pena”, que interrompe por um momento a continuidade da escrita, não condiz com o regime plural e assumidamente descontínuo dela, todo o tempo. A plurivocalidade vem sendo trabalhada e conquistada pelo texto a cada movimento. Quando passo a palavra a “minha mulher”, não é porque não posso (escrever sobre cultura de massas), mas porque posso (passar a voz a outro). E porque posso travestir-me gozosamente em minha mulher.

Uma informação de caráter pessoal torna-se relevante aqui. A “minha mulher”, Lúcia, a quem me refiro no texto e de quem fiquei viúvo em 1982, foi uma aluna brilhante do curso de Letras, a quem jamais faltou, entre muitas outras qualidades, capacidade crítica e reflexiva. Quando fazíamos, como colegas na universidade, trabalhos em grupo, mais de uma vez professores acharam que a parte escrita por ela, pela qualidade que viam ali, tinha sido escrita por mim: em suma, caíam na mesma armadilha do gênero, essa sim, em que caiu o Silviano. Porque as anotações que ela fez, a meu pedido, sobre Roberto Carlos, incorporadas ao texto na forma de uma folha de caderno casual, são um pequeno conjunto de observações livres e originais sobre o tema: a ideia de que Roberto Carlos trabalha com “células emocionais primitivas”, correspondentes a “momentos secretos” de validade geral, com o que têm de inconfessável, vazadas em “substantivos simples”, “cenas visíveis” e “coisas palpáveis”, não tem nada de irrelevante, e, sabendo a que se destinava, foi trocada entre nós com amor/humor.

É que nossa formação pessoal desde a entrada na maioridade, nossa transa amorosa, nossa educação afetiva tinham sido feitas justamente pela música popular brasileira daqueles anos. A ideia de que à mulher restavam as posições subalternas já estava fora da nossa mais remota cogitação.

Afinal, está lá, no último parágrafo do texto de Huyssen, que “a emergência de novos tipos de mulheres” faz com que “a velha estratégia de representação de gênero tenha se tornado obsoleta”. Isso vale evidentemente para a crítica politicamente correta, que deveria analisar as estratégias discursivas em seu contexto, em vez de recorrer automaticamente a um suposto modelo de Emma Bovary. “A atribuição universalizante de feminilidade à cultura de massa sempre dependeu da exclusão real das mulheres da alta cultura e de suas instituições”. Ali onde essas exclusões se tornam “coisa do passado”, a velha retórica perde “seu poder de persuasão, porque as realidades mudaram”[11]. Nos anos 70.

Agosto de 2004

/comentário de José Miguel Wisnik /

Notas

  1. Gilberto Vasconcellos, Música popular: de olhos na fresta, Rio, Graal, 1977.
  2. “A Terra distante me faz lembrar das primeiras imagens do homem na Lua, o momento histórico presenciado pela TV. Os astronautas saltavam como cangurus e jogavam golfe. Pareciam felizes, encantados. Toda a teatralização dos locutores terrestres falando do maior feito da humanidade, da ciência e da tecnologia, todo o palavreado não conseguia desviar a minha atenção do que eu simplesmente via — os astronautas brincando num playground fantástico. Mas quando a câmera mostrou a face da Lua contra o firmamento escuro, o que eu vi foi inesquecível e incompreensível. Ali estava a Terra, do outro lado do vídeo, numa outra dimensão de realidade. Como era concebível que eu estivesse ali, estando eu aqui?!”, “Meditação diante de uma foto dez anos velha, e eterna”, de Paulo Neves, em Psicologia atual, Ano I, n°9. A leitura das canções se desprende naturalmente deste texto.Gilberto Vasconcellos, Música popular: de olhos na fresta, Rio, Graal, 1977.
  3. “Inspiração quer dizer: estar cuidadosamente entregue ao projeto de uma música posta contra aqueles que falam em termos de década e esquecem o minuto e o milênio”, dizia o Manifesto do Movimento Jóia (1975). “A década e a eternidade, o século e o momento, o minuto e a história”, dizia o Manifesto do Movimento Qualquer Coisa, do mesmo ano (ou semana, ou minuto ou hora).
  4. Theodor W. Adorno, “Sobre el caracter fetichista en la musica y la regresión del oído”, Disonancias, Madrid, Rialp, 1966.
  5. Esse tema é desenvolvido no livro de Gilberto Vasconcellos, com base no ensaio de “Dialética da malandragem”, de Antonio Cândido.
  6. Veja a leitura de Celso Favaretto, em Tropicália: alegoria alegria, São Paulo, Kairós, 1979.
  7. Esta sacada vem formulada em entrevista de Matinas Suzuki Jr., “Recuperando a dimensão mágica da música”, para o Folhetim, São Paulo, 28 de outubro de 1979.
  8. “Realce, uma maneira de dizer a luz geral. Denominar o brilho anônimo, como um salário-mínimo de cintilância a que todos tivessem direito”, Gilberto Gil, 1979.
  9. “(…) para entender alguém que, não obstante, só entende pela metade, é preciso entendê-lo primeiro totalmente e melhor que ele a si próprio, para, em seguida, só entendê-lo pela metade, exatamente como a metade de si mesmo”, diz Schlegel, um dos românticos alemães do século passado. Diz também: “A ironia é a consciência clara da eterna agilidade do caos infinitamente pleno”. Essas citações estão em O Romantismo, de vários autores, São Paulo, Perspectiva, 1978.
  10. In Antelo, Raul; Camargo, Maria Lúcia de Barros; Andrade, Ana Luiz; Almeida, Tereza Virgínia de (org.). Declínio da arte – Ascensão da cultura. Florianópolis, Abralic/Letras Contemporâneas, 1998, p. 11-23.
  11. Huyssen, Andreas. “A cultura de massa enquanto mulher – O ‘Outro’do modernismo”. Memórias do modernismo (traduçãoo de Patricia Farias). Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1997, p. 65.

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