2013

O medo do acaso

por Newton Bignotto

Resumo

Ao longo dos séculos muitos foram os filósofos que se dedicaram a estudar o lugar que a contingência ocupa na natureza e no mundo dos homens. Aristóteles reconhecia sua parte nas ações humanas, e muitos autores medievais atribuíam ao futuro uma natureza contingente. Com isso queriam significar que os acontecimentos futuros se definem pelo fato de que podem ser ou não ser, embora estejam submetidos às leis naturais e divinas. O filósofo grego não abordava o problema do acaso do mesmo ponto de vista de seus sucessores medievais, pois não entrava em suas considerações a onisciência divina, mas, como eles, não pretendia negar que essa questão era essencial para a consideração da natureza das ações humanas. Com o nascimento das ciências modernas foi grande a tentação de suprimir a contingência das análises do mundo natural e dos números a tal ponto que Pascal anunciava em 1654 ser possível falar de uma “geometria do acaso” sem cair em contradição. É óbvio que não se pretendia com isso estender sem mediações essas teses ao mundo dos homens, mas a união com os métodos estatísticos pareceu, a partir do século XIX, em particular nas ciências sociais nascentes, fornecer uma chave para a explicação de fenômenos que de outra forma pareciam ceder um lugar importante para o acaso. Se o desenvolvimento das ciências naturais ao longo do século XX serviu para reavivar as discussões sobre a relação entre necessidade e acaso, a percepção da evolução histórica seguiu outro rumo. O cientificismo, que dominou os regimes totalitários, acabou por gerar, segundo Hannah Arendt, um verdadeiro horror, nas massas galvanizadas, à ideia de acaso. Na arena política o terreno foi sendo ocupado pela imagem do líder, que desvela aos olhos de seus comandados o sentido da história e de seus destinos e evita assim a angústia diante do indeterminado. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, muitos pensadores se deram conta de que o progresso dos conhecimentos científicos havia gerado não apenas a evolução de muitos ramos do saber, mas também a dominação da vida cotidiana pelo que parecia ser o fruto necessário desse processo, isto é, a técnica. Desde Heidegger, vem-se tomando consciência de que se vive a era da técnica. Se não é possível tomar os acontecimentos totalitários como síntese da contemporaneidade, também não é possível negar que, diante do caos ameaçador das sociedades atuais, as certezas oriundas da dominação progressiva da vida cotidiana pela técnica e pelo discurso das ciências parece ser a barreira adequada para o medo gerado pela presença da contingência como elemento central de constituição de nosso futuro. Por isso a importância de examinar as consequências políticas da recusa à contingência. Para tanto, é preciso – a partir de Arendt – examinar o problema à luz das condições atuais de prevalência de um discurso sobre a inexorabilidade dos caminhos gestados pelos progressos das ciências e da técnica. Cabe também avaliar de que maneira a associação feita por pensadores do passado – Maquiavel em primeiro lugar – entre liberdade e contingência pode ajudar a pensar os desafios da atualidade.


No dia 10 de março de 1937 morreu em Paris o escritor russo Eugênio Zamiatine. A solidão e a pobreza em que se encontrava podem sugerir que se tratava de mais um dos membros da intelligentsia russa que, desgostoso com a Revolução de 1917, havia tomado o caminho do exílio. Zamiatine, nascido em Lebedian em 1887, havia sido, ao contrário, um adepto da Revolução e mesmo um militante bolchevique, o que lhe valeu a prisão em 1905. Formado em engenharia e matemática, foi com olhos esperançosos no futuro que ele viu os acontecimentos de 1917 varrerem a paisagem política e social da Rússia. Antes dessa data, ele já havia feito sua estreia na literatura com textos que satirizavam tanto o puritanismo inglês – fruto de sua estada como engenheiro naval na Inglaterra -, como a vida no exército russo, o que lhe valeu mais um processo em 1914. Sua vida, portanto, estava muito mais próxima daquela dos muitos intelectuais que se entusiasmaram com o fim da monarquia russa do que do destino dos que seguiram para o estrangeiro com a destruição do mundo de privilégios que caracterizara a sociedade russa. Nos anos que sucederam à Revolução. Zamiatine se ligou ao grande poeta Blok, a Biély e, sobretudo, a Gorki, que anos mais tarde, quando ele era objeto de uma forte campanha difamatória, o ajudou a obter o visto que lhe permitiria chegar a Paris como exilado[1].

Zamiatine fez parte de uma brilhante geração de escritores russos que, tendo saudado as transformações pelas quais passava seu país, cedo compreendeu que o futuro que ali se construía pouco tinha a ver com os ideais que tinham levado à militância política nas duas primeiras décadas do século XX. Em 1922 começaram a circular discretamente em seu país algumas cópias manuscritas de um livro – Nós[2] – que seria proibido pelas décadas seguintes. Tratava-se de seu romance mais importante, que influenciaria de forma decisiva autores que, como George Orwell, também se preocuparam em imaginar o futuro que se desenhava nas sociedades contemporâneas afetadas tanto pelos eventos revolucionários como pelo desenvolvimento das ciências e das técnicas.

O livro de Zamiatine se passa num futuro distante, depois de uma guerra de duzentos anos, que a seu final isolou, por meio de um “muro verde”, as populações urbanas do caos representado pela natureza selvagem em cidades especiais, construídas de vidro e concreto. O personagem principal, que como todos os outros é identificado apenas por um número, R-503, é o construtor de um engenho espacial chamado Integral, cuja função é a de conquistar os espaços infinitos, para “submeter ao jugo benfazejo da razão todos os seres desconhecidos, habitantes de outros planetas, que se encontram talvez ainda no estado selvagem da liberdade”[3]. Desde o início do romance fica claro que a vida regrada da cidade contrastava como o que fora o tecido urbano no começo do século XX, com seus bulevares “cheios de gente, de rodas, de animais, de cartazes, de árvores, de cores, de pássaros…”[4]. O personagem, em deslumbramento com seu tempo, que o levava a exclamar: “Que regularidade grandiosa e inflexível”[5] estranhava o fato de que mesmo pensadores como Kant não haviam conseguido “estabelecer um sistema de ética científica, baseado em operações aritméticas”[6]. Para ele, “o ideal, é claro, só será atingido quando nada mais acontecer. Infelizmente … Vejam, por exemplo, eu li hoje no Jornal Nacional que a festa da justiça será celebrada em dois dias, na praça do Cubo. Alguém atrapalhou a marcha da grande Máquina do Estado, um acontecimento imprevisível, incalculável aconteceu!”[7].

De que tem medo o construtor de uma máquina destinada a conquistar o universo? R-503 tem acesso às mais sofisticadas teorias científicas, mas parece o tempo todo temer algo que ele mesmo não sabe nomear. É verdade que no romance de Zamiatine o aparecimento de l-330, uma bela mulher que exporá nosso cientista aos perigos do amor, e mais tarde da sedição, quando o levará a contestar e a quase trair o Benfeitor, ocupa um lugar importante e decisivo. Mas é sobre um fundo contínuo de medo que a experiência amorosa e política de R-503 se desenvolve. Esse medo de que algo ocorra, que o mundo se abra ao inesperado, contém uma das chaves para a compreensão do romance, mas, sobretudo, de nosso próprio tempo.

MEDO E NATUREZA HUMANA

O homem é um animal que teme. Baseado nisso Hobbes tentou pensar a construção do Estado como uma resposta a esse dado da natureza. Para ele, o medo, principalmente da morte, está na raiz de nossos comportamentos básicos, e somente uma estrutura de poder que leve em conta esse dado é capaz de arrancar-nos da condição deplorável na qual estamos imersos no estado natural. Tememos todos e somos temidos, e isso cria uma situação sem saída para nossas vidas miseráveis[8]. O Estado em sua forma hobbesiana não extingue o medo, mas submete-o à razão e permite que façamos escolhas que nos liberem do sentimento constante de que nossas vidas estão ameaçadas. É tentador pensar que o medo é a paixão primeira dos homens e que, se o compreendermos, estaremos perto de entender não apenas a natureza do homem, mas também a origem das sociedades. Esse caminho foi seguido pela filosofia no começo da modernidade e depois pela psicologia em várias de suas correntes. Sem negar que se trata de uma abordagem rica e fecunda, pretendemos seguir aqui um caminho um pouco mais nuançado.

Se o medo está ancorado na própria natureza humana, podemos também dizer, na esteira dos trabalhos de Jean Delumeau, que ele possui uma história e que ela nos fala das épocas e dos lugares tanto quanto do próprio homem[9]. Tememos a morte, mas não a tememos sempre da mesma maneira, e isso nos ensina tanto sobre nossa condição quanto sobre nossas sociedades. Como nos alerta o historiador, não se trata de tentar reduzir as épocas apenas a seus medos[10]. Isso seria fazer má história em nome de uma metafísica fundada na ideia da morte e no medo da finitude. Essa última pode até ganhar corpo no interior de uma filosofia da existência, mas, ainda assim, ela não substituiria uma investigação da forma como os medos de uma época são plasmados pelas forças sociais e econômicas, pelos saberes e pelo imaginário religioso.

Descobrir os medos de uma época é, portanto, um dos caminhos para ampliar sua compreensão. Podemos entender essa sugestão se olharmos, por exemplo, o papel que o medo da peste negra teve na Europa desde o final da Idade Média até o século XIX . Uma das maiores obras da literatura italiana, o Decamerão, teve sua origem no grande medo que varreu a cidade de Florença com a eclosão de peste em 1348, doença que dizimaria a população da cidade que, então, devia contar com algo próximo de 55 mil habitantes[11]. Logo no início ele declara: “Na cidade de Florença, nenhuma prevenção foi válida, nem valeu a pena qualquer providência dos homens. A praga, a despeito de tudo, começou a mostrar, quase ao principiar a primavera do ano referido, de modo horripilante e de maneira milagrosa, os seus efeitos”[12]. Bocaccio passa em seguida a descrever de maneira minuciosa não apenas os sintomas da doença, mas também o comportamento dos habitantes da cidade. Marcada pelo medo, ela viu nascer em seu seio um grupo que o escritor chamou de “exclusivista”, “pessoas que julgavam que o viver com moderação e o evitar qualquer superfluidade muito ajudava para se resistir ao mal”[13]. No polo oposto, relata o escritor: “Outras pessoas, levadas a uma opinião diversa desta, declaravam que, para tão imenso mal, eram remédios eficazes o beber abundantemente, o gozar com intensidade, o ir cantando de uma parte a outra, o divertir-se de todas as maneiras, o satisfazer o apetite fosse de que coisa fosse, e o rir e troçar do que acontecesse, ou pudesse suceder”[14].

A eclosão do grande medo não apenas revelou a insegurança reinante, a crença na incapacidade humana de deter a natureza e a ira de Deus, mas também dissolveu os laços existentes, abrindo espaço para comportamentos que de outra forma nunca veriam o dia. “Entre tanta aflição e tanta miséria de nossa cidade, a reverenda autoridade das leis, quer divinas, quer humanas, desmoronara e dissolvera-se”[15]. O grande escritor italiano não se atreve a dizer quais eram as razões para o surgimento da peste, mas compreende perfeitamente seus efeitos na comunidade dos homens. O medo transforma não somente a psique, mas também os comportamentos coletivos. Esse fenômeno esteve longe de estar associado unicamente às epidemias de peste negra. Como mostra de forma muito detalhada Jean Delumeau, a história europeia do século XIV até o XVIII foi marcada pela irrupção de medos que abalaram profundamente as diversas nações. Ora, o medo de uma época revela não apenas a percepção que ela tem do presente, mas também como enxerga o futuro. Os laços temporais são tecidos pelos fatos e pela imaginação. O medo da morte, ou do desconhecido, ou da diferença são todos fatores que constituem o rosto de um momento e a maneira que a comunidade dos homens vê a si mesma no futuro.

No tocante ao medo que nos interessa – o medo do acaso -, foi o desenvolvimento das ciências no começo da modernidade, e o posterior surgimento na contemporaneidade das sociedades tecnológicas, que o trouxe para o centro da cena pública. O que sustentamos é que ele é o retrato e o espelho de nossas sociedades. Sua presença no tecido social conforma nossa visão do presente e turva nossa percepção do futuro. É claro que podemos dizer que todos os medos de todas as épocas impactam a percepção do futuro. Por isso acreditamos que conhecer os medos que nos dominam ajuda-nos a entender o tempo presente e suas mutações. O medo do acaso abre a via para a compreensão das profundas transformações pelas quais passaram as sociedades industriais nas últimas décadas e da maneira com que elas passaram a lidar com os artefatos e comportamentos que as definiram como produtos de uma era na qual o futuro não é mais o que era.

O HOMEM EM FACE DA CONTINGÊNCIA

Para compreender a natureza desse medo e seus efeitos em nossas vidas, vale a pena recuar no tempo e investigar como ele veio a superar, na imaginação dos povos medos, como os da peste, ou das feiticeiras, que por muito tempo galvanizaram a atenção do Ocidente.

Pierre Aubenque, num livro clássico sobre a prudência em Aristóteles, mostrou que para esse pensador era impossível desprezar o domínio do contingente quando se quer compreender as ações humanas[16]. Em sua linguagem, o contingente é o que se opõe ao necessário e, por isso, não pode ser matéria do conhecimento teórico, que lida apenas com as coisas que não podem ser diferentes do que são. Como resume o estudioso: “Agir e produzir é de alguma forma se inserir na ordem do mundo para modificá-la; é, pois, supor que ele, uma vez que oferece essa possibilidade, comporta um certo jogo, uma certa indeterminação, um certo inacabamento”[17]. Por isso, completa Aubenque, no pensamento aristotélico “o caso da ação não difere fundamentalmente daquele da produção: ambos só são possíveis no horizonte da contingência”[18]. Aristóteles, ele mesmo, diz algo ainda mais radical: “A arte ama o acaso e o acaso ama a arte”, afirma citando um dito de Agatão[19]. Devemos ter cuidado para não identificar sempre acaso e contingência. O pensador grego, em vários de seus textos, procurou entender a natureza do acaso, a ponto de se interrogar se ele não seria apenas uma face do real, que os homens não conseguem apreender e que os ameaça e irrita. A natureza parece oferecer uma série de eventos dos quais conhecemos as causas e que, por essa razão, se tornam compreensíveis pela razão. Afirmar que há fatos que não podem ser remetidos a uma causa precisa não corresponde a afirmar que o mundo é povoado por mistérios insondáveis. Como mostra Aubenque, no pensamento Aristotélico, o acaso se define “pelo encontro, não de duas séries causais, mas de uma relação de causalidade qualquer e de um interesse humano, ou ainda do encontro de uma série causal real dotada de certa finalidade e de uma finalidade imaginária da maneira que ela poderia ser reconstruída retrospectivamente depois de um resultado”[20].

A filosofia de Aristóteles é cheia de nuances, quando se trata de abordar o problema do acaso. Não nos interessa seguir o trajeto complexo de suas reflexões. Para nós, importa lembrar que o acaso explicita o fato de que uma intervenção do homem no mundo abre as portas para o indeterminado. Nesse sentido, a existência do acaso implica, na lógica do pensamento do filósofo grego, que um mundo como o sonhado pelo personagem de Zamiatine é simplesmente impossível. Esse mundo seria de fato um mundo da ordem e da transparência, um mundo da pura ciência, mas, por isso mesmo, seria um mundo sem arte e sem lugar para a ação criativa dos homens[21]. Não é por acaso que a grande vilã da história do escritor russo é a imaginação e seus produtos. Na medida em que os homens quebram a ordem dos acontecimentos acreditando que poderiam existir de outra forma, eles se expõem a uma realidade que não mais controlam. Isso não quer dizer que todos os mundos são possíveis. A contingência do futuro não suprime as leis da natureza nem rompe inteiramente os fios que unem o passado, o presente e o futuro. A ação humana existe ao mesmo tempo sobre um fundo de contingência e de causalidade. A dimensão ontológica do acaso vai de par com uma antropologia que problematiza a relação dos homens com a natureza e com a liberdade. Fôssemos, como deseja R-503, apenas fruto da natureza e da ciência, talvez nem mesmo colocássemos o problema do acaso e não o temeríamos, apenas viveríamos como vivem as coisas inertes: sem dor e sem busca da felicidade.

Desde a Antiguidade a filosofia procurou lidar com a questão da contingência e do acaso. Os estoicos acreditavam que o sábio é aquele que compreende a necessidade do mundo e por ela se orienta. Em seu estágio máximo de sabedoria, ele aceita as coisas não porque elas são boas ou ruins para ele, mas porque seguem um caminho que não pode ser mudado. O que alguns intérpretes chamaram de submissão ao destino é no fundo uma submissão ao logos e à natureza. Podemos agir, e devemos agir, na cidade, mas nada disso muda o curso final dos acontecimentos. A contemplação é o modo de vida perfeito não porque toda ação seja inútil, quando olhada do ponto de vista dos acontecimentos particulares, mas porque nada pode quebrar a trama causal do universo. Por vários caminhos, o cristianismo herdou essa tópica do mundo antigo – que já estava presente em Aristóteles -, afirmando que o homem contemplativo é superior ao homem de ação, porque sabe buscar as verdades eternas ao mesmo tempo em que reconhece na providência divina a fonte de eventos, que, de outra maneira, parecem desafiar a compreensão humana.

Ao lado desse caminho que desemboca na obra de Agostinho, e forja uma das tópicas teóricas mais influentes da Antiguidade tardia e da Idade Média cristã, os romanos procuraram entender os sucessivos golpes que o passar do tempo nos reserva atribuindo à deusa Fortuna a origem daquilo que escapa a toda previsão. Essa maneira de compreender o surgimento do inesperado, a presença do acaso no mundo dos homens, teve uma faceta popular, ao dar origem a um culto à deusa, mas também uma face erudita, pois fez parte de muitas filosofias da Antiguidade até o Renascimento. Maquiavel ainda ecoa esses debates, quando afirma quase no final de O Príncipe que o livre-arbítrio governa metade de nossas ações e que a outra metade é governada pela fortuna[22]. Com isso, ele pretendia compreender por que em certas situações os homens são capazes de dominar as circunstâncias e atingir seus objetivos, e em outras são derrotados mesmo quando pareciam seguros de sua força.

A referência a Maquiavel serve para nos lembrar o quão complexo é o debate sobre a questão do acaso e da contingência no interior da história da filosofia. Ele evoca, por exemplo, a herança medieval ao falar do livre-arbítrio, o conceito cristão que aponta para a liberdade como algo interior, um fato da consciência, que pode escolher o que quiser, sem prestar contas a ninguém. Na tópica agostiniana, que dominou boa parte da Idade Média, a constatação da liberdade da consciência vai de par com a afirmação da providência divina como uma força determinante no rumo dos acontecimentos humanos. Assim, o homem é ao mesmo tempo livre e submisso a Deus. O secretário florentino inovou por ter combinado a menção ao livre-arbítrio com a ideia da fortuna, a deusa caprichosa que interfere na vida dos homens, mas não revela suas intenções. Se para um cristão os desígnios da providência divina podem parecer misteriosos, nada permite supor que eles sejam contrários à razão. Na disputa entre a liberdade e a vontade divina, o que se ressalta é antes a limitação da condição humana e nunca a irracionalidade da vontade divina. No caso de Maquiavel, também fica evidenciada a limitação dos homens para lidar com o fluxo dos acontecimentos, mas nada permite supor que a fortuna tenha um propósito determinado. O apelo à imagem romana serve para mostrar que o domínio da ação está sempre aberto à indeterminação e ao acaso, o que termina por afastar Maquiavel da herança cristã que tanto influenciava os homens de seu tempo.

Seria impossível fazer uma síntese de todos os percursos possíveis para tratar do problema da contingência ou do acaso ao longo dos séculos. Como vimos, as diversas tradições de pensamento se interpenetram e acabam gerando um conjunto extremamente variado de teorias a respeito do problema que nos interessa. De forma esquemática, podemos dizer que pelo menos três elementos foram mobilizados com frequência pelas diversas correntes de pensamento que se ocuparam do tema da contin­ gência ou do acaso: a natureza, a liberdade e Deus[23]. No caso da natureza, o que importa saber é se as leis que a regem comportam exceções ou se, ao contrário, quando algo acontece e não sabemos encontrar as razões que explicam o fato, isso revela a fraqueza de nosso intelecto, nossas limitações e não uma falha na estrutura causal do mundo. Em outra direção, que nos interessa de forma particular, podemos associar a contingência à liberdade dos homens. Trata-se, no entanto, na esteira do que dizia Maquiavel – e que em certa medida se relaciona com as reflexões de Aristóteles -, de mostrar que a ação humana rompe a cadência da natureza não por se opor a ela, mas por produzir, pela combinação de eventos que não se relacionam naturalmente, algo novo e inesperado. Essa característica humana, Hannah Arendt chamou de natalidade. A ela a filósofa associou diretamente a liberdade e a possibilidade de reconstruirmos o mundo mesmo quando ele parece arruinado para sempre[24]. Até aqui nos referimos à contingência e ao acaso quase de forma indiferenciada. De fato, muitos filósofos o fazem entendendo que são maneiras diferentes de abordar o problema dos acontecimentos que escapam à nossa compreensão ou que constituem o futuro. Como nosso interesse é medo do acaso e não o problema filosófico da contingência e sua oposição à necessidade, vamos a partir de agora deixar de lado as formulações mais abstratas da questão da contingência para nos concentrar no acaso, pensado como uma sequência de acontecimentos cujo nexo causal nos escapa. Num certo sentido, os homens sempre tiveram medo do acaso, pois sempre temeram o desconhecido. A novidade de nossa época não está, portanto, no temor à fortuna ou à ira de Deus, que por vezes nos parece enigmática, como pareceu para Boccaccio. O que emergiu com a modernidade foi o medo do acaso, num contexto no qual ele parecia poder ser superado pelo avanço das ciências, em particular pelo avanço das matemáticas e do cálculo, que tanto prazer dava ao personagem de Zamiatine. Essa crença na possibilidade de se superar para sempre o desconhecido parece ter nascido quando, no começo da modernidade, o cálculo de probabilidades ocupou um lugar central no desenvolvimento da ciência.

A VIRADA MODERNA

Pascal, numa carta datada de 1654 e endereçada à Academia Parisiense, afirma que até aquela data a questão de saber como deveriam se comportar os jogadores em jogos de azar, para que corressem o menor risco possível e evitassem as perdas, fora tratada como um problema da experiência e, por isso, não encontrara uma solução adequada. Nos anos anteriores, ele havia trocado cartas com Pierre de Fermat (1601-1655) sobre a questão e chegara a várias conclusões que, a justo título, fariam dele um dos fundadores do cálculo de probabilidades. Na carta referida, ele exclama:

De fato, os resultados da sorte ambígua são justamente atribuídos à contingência fortuita mais do que à necessidade natural. Eis por que a questão ficou sem solução até hoje; mas agora, tendo permanecido rebelde à experiência, ela não pode escapar ao império da razão. Graças à geometria, nós a reduzimos com tanta segurança a uma arte exata, que ela participa de sua certeza e progride de forma audaciosa. Assim, unindo o rigor das demonstrações da ciência à incerteza do acaso e conciliando essas coisas aparentemente contraditórias, ela pode, retirando seu nome das duas, se arrogar o nome surpreendente de A geometria do acaso[25].

Desde o início da investigação sobre a teoria das probabilidades, ficou claro que não se pode tratar de forma indistinta o problema em sua dimensão matemática, aquela na qual todos os elementos do problema são passíveis de ser isolados em sua simplicidade lógica, e o problema em sua dimensão empírica, quando constatamos o surgimento de efeitos surpreendentes e fora do que se pode calcular de forma simples. No primeiro caso, podemos falar apenas de probabilidade matemática, como no caso do exame dos jogos como a roleta ou do jogo de dados. O problema do acaso se torna complexo quando se trata de compreender como um determinado evento social, ou mesmo pessoal, foi possível, quando nada indicava anteriormente que ele poderia ocorrer. Nesse caso surgem várias possibilidades de análise; uma delas, sugerida por Augustin Cournot (1801-1877), é a de que todos os acontecimentos resultam do cruzamento de “pequenos mundos”, que podem ou não estar em contato. Para ele, todo evento possui certa individualidade, o que faz que a realidade natural não possa ser pensada como um absoluto, mas sim como uma formação de acontecimentos, que muitas vezes são o produto de realidades, que em geral existem de forma paralela. Não há lugar para mistérios, mas também não podemos acreditar num mundo da pura necessidade[26]. De certa maneira, o acaso, constatado no mundo empírico, é o que nos desafia até hoje e é o que suscitou um grande número de teorias e de controvérsias.

Voltando às origens da discussão no começo da modernidade, vale lembrar que, naquele mesmo ano de 1654, Pascal passaria por uma conversão religiosa, a segunda de sua vida, que o levaria a investigar outros assuntos e a se interessar pela condição humana e suas misérias muito mais do que pela matemática e pela “geometria do acaso”. Escrevendo em 1660 ao mesmo Fermat, com quem se correspondera anos antes sobre o cálculo de probabilidades e o acaso, ele afirma:

Pois, para falar-vos francamente da geometria, eu a reputo o mais alto exercício do espírito, mas, ao mesmo tempo, eu a acho tão inútil, que faço pouca diferença entre um homem que é somente um geômetra e um artesão hábil. Eu a chamo de mais bela profissão do mundo, mas, enfim, não é mais do que uma profissão; e eu digo com frequência que ela é boa para experimentar, mas não para guiar nossas forças: de maneira que eu não daria dois passos pela geometria[27].

O filósofo não desmente seu interesse anterior pela matemática e os resultados que alcançara, mas, ao colocar na balança o conjunto das atividades que dominaram sua vida, ele não reserva às suas considerações sobre o acaso um lugar especial no desafio de compreender a natureza humana e suas situações. O fundador do cálculo de probabilidades viu nisso um instrumento limitado, apesar de sua beleza intrínseca e do fato que tornava possível a solução de problemas que antes escapavam à compreensão dos homens. Mas, como ele mesmo afirma, um cálculo é apenas um cálculo, a vida e seus mistérios é algo muito maior e complexo.

A modernidade parece ter escutado a carta de 1654, mas não acompanhou as reflexões nuançadas e instigantes do filósofo sobre a condição humana. Tudo se passa como se a tentativa da matemática de dominar o acaso por meio do cálculo de probabilidades pudesse ser estendida a toda a esfera da existência. Já não se trata mais de discernir, em processos que comportam acontecimentos aleatórios, a conexão possível entre suas partes constitutivas, mas de erigir um mundo no qual a coerência das partes é a garantia da integridade da totalidade. As ciências sociais, desde o século XVIII, com os estudos de Condorcet sobre a mecânica dos votos, passaram a se servir dos instrumentos da matemática para alargar sua compreensão do funcionamento das sociedades complexas[28]. Isso deu origem a desenvolvimentos importantes nas ciências humanas cujos reflexos chegam até nós. O que importa, no entanto, não é fazer uma crítica das ciências, mas entender como em sua esteira se desenvolveram ideologias que estariam no centro das experiências trágicas da política no século XX. Se no plano das ciências o debate sobre o acaso se tornou ainda mais intenso com o surgimento, por exemplo, da mecânica quântica, no plano das ideias e das visões de mundo que inundaram os últimos dois séculos o acaso passou a representar um perigo, uma ameaça ao mundo que parecia poder ser construído depois que o domínio da natureza pelo homem tornou-se o programa central da modernidade ocidental. Do esforço para entender os eventos aleatórios e dos avanços feitos pela matemática nasceu a crença de que é possível extirpar o acaso para sempre de nossas vidas.

Hannah Arendt soube como poucos ver como o medo do acaso, que aos poucos ocupou o centro das preocupações do homem contemporâneo, foi solidário com o surgimento das sociedades de massa e, depois, dos regimes totalitários. Em sua obra Origens do totalitarismo, ela observa que a propaganda, ferramenta indispensável para se chegar ao poder, foi o instrumento central para a consolidação de um novo tipo de regime político, que não podia mais ser compreendido com os conceitos que até então guiavam as análises da filosofia e da ciência política. Um dos pilares dessas formações políticas é a ideia de que o mundo pode ser compreendido em toda sua extensão, bastando para isso que sejam descobertas as maquinações e os complôs urdidos todos os dias com o propósito de esconder da população os fatos que, uma vez revelados, mudariam sua percepção da realidade.

A propaganda é assim ao mesmo tempo baseada em mistérios, que não são facilmente perceptíveis pelo homem comum, e no desvendamento de seus ocultadores, o que por si só parece garantir-lhe a existência. Um exemplo desse tipo de combinação de ocultamento e revelação são os chamados Protocolos dos sábios de Sião. Como muitos sabiam, eles eram um documento falso, produzido pela polícia czarista russa para acusar os judeus de terem se reunido numa organização secreta para dominar o mundo. Muitos sabiam que o documento era apenas uma grosseira falsificação produzida para fins de combate político. Por que então pôde servir de forma tão eficaz para a propaganda antissemita nazista? A resposta não se encontra na impossibilidade de desmascarar aqueles que deles se serviam, mas no fato de que eles contavam uma história que aparentemente era mais verdadeira que seu contrário. A propaganda totalitária inverte a ordem das coisas fazendo da coerência aparente da narrativa o critério último da verdade. Não se trata da coerência dos fatos, nem de sua exposição objetiva, mas da união entre uma visão de mundo totalizante e uma narrativa das conexões que aparentemente dominam o mundo dos homens.

Nesse universo dominado pela propaganda – que é, sobretudo, a de uma forma de ver o presente e suas conexões com o futuro – e pela ideologia, a ciência fornece o esqueleto de um discurso que se pretende verdadeiro. Não se trata evidentemente de culpar as ciências pelo desenvolvimento dos regimes totalitários, mas de observar que elas são o modelo de conhecimento que toma o lugar das crenças do passado no absoluto ou no transcendente. O que se desenvolve na contemporaneidade, ao lado dos saberes propriamente científicos, é uma ideologia cientificista, que passa a dominar as mentes de populações paulatinamente desenraizadas e expostas à solidão própria das sociedades de massa.

É nesse contexto que se desenvolve o medo do acaso. Solidário com o processo de destruição dos laços sociais e de classe, que constituem o apanágio das democracias modernas, ele opera a transformação definitiva das mentalidades numa era de domínio da técnica e de perda dos laços com a tradição. Como mostra Arendt: “O que as massas se recusam a compreender é a fortuidade de que a realidade é feita. Predispõem-se a todas as ideologias porque estas explicam os fatos como simples exemplos de leis e ignoram as coincidências, inventando uma onipotência que a tudo atinge e que supostamente está na origem de todo acaso. A propaganda totalitária prospera nesse clima de fuga da realidade para a ficção, de coincidência para a coerência”[29]. O medo do acaso é a forma contemporânea do medo da morte e, por isso, pode penetrar tão fundo na mentalidade do homem de nosso tempo. A imagem que fazemos das ciências e o fato de que elas se transformam no discurso da verdade por excelência, mesmo quando estamos no domínio das ideologias e não do saber científico, faz que tudo o que ameaça a coerência dos discursos seja vivido como uma ameaça à própria vida.

MEDO E ACASO NA CONTEMPORANEIDADE

O medo da morte continua sendo uma dimensão essencial de nossa humanidade, mas não a tememos da mesma maneira em todas as épocas. Num certo sentido, a busca de seus rostos faz parte de nossa esperança de que talvez possamos evitá-la, mesmo se no fundo vivemos na certeza de sua vitória final. Boccaccio viu seu rosto na doença horrenda que destruiu parte da população de sua cidade. Ele sabia, no entanto, que era impossível desvendar todos os seus caminhos e artimanhas e, por isso, viu em cada estratégia de sobrevivência adotada por seus contemporâneos apenas um paliativo para algo cujas razões últimas nunca podem ser inteiramente conhecidas. Nos dias de hoje, nós nos recusamos a acreditar que o poder da morte permaneceu intacto depois de tantos progressos da humanidade. A peste pôde ser paulatinamente domada, outras doenças passaram a ser curadas com facilidade. Por que continuar a aceitar que eventos fortuitos podem escapar ao poder de nossa razão? Como já mostrou Philippe Ariès, o progresso das ciências e a medicalização da vida cotidiana transformaram a morte em algo quase indecente. Chorar a morte de um ente querido deixou de ser aceitável, como se o luto fosse ao mesmo tempo uma acusação contra os que cuidaram do doente em seus últimos dias. “Agora – afirma o historiador-, as lágrimas do luto são assimiladas às excreções da doença. Umas e outras são repugnantes. A morte foi excluída”[30]. Tememos a morte como algo que sinaliza nossa fragilidade e finitude – sempre foi assim -, mas, em nossa época, tememos, sobretudo, o que ameaça ou denuncia os limites de nossos instrumentos para lidar com a morte. As ciências e as técnicas são ao mesmo tempo o símbolo de nossas vitórias sobre o indeterminado e a nova fronteira de nossos medos. Temer o acaso é a expressão de uma sociedade que acredita ter finalmente encontrado o caminho para derrotar a contingência. Por isso, R-503 repete sem cessar que a razão é o porto seguro do homem. Da mesma forma que ela nos dá segurança, deve impor-nos limites, para que o desregramento do desejo e da liberdade não estraguem um mundo finalmente domesticado pela ciência e pela técnica. “O trabalho da mais alta faculdade do homem, da razão – afirma o personagem -, é justamente consagrado à limitação contínua do infinito e à sua divisão em porções cômodas, fáceis de digerir, que chamamos de diferenciais”[31]. Mais adiante ele conclui: ”As matemáticas e a morte não se enganam jamais e não brincam”[32].

Cometeríamos um erro de apreciação, no entanto, se creditássemos a utopia científica de Zamiatine apenas à sua imaginação. A cidade imaginada por ele, com suas transparências infernais que submetiam seus habitantes a um olhar contínuo de todos os outros, e que mais tarde iria reaparecer nas páginas inspiradas de Orwell, foi um grande projeto dos arquitetos construtivistas da União dos Arquitetos Contemporâneos, que imaginou a construção de “casas comuns” nas quais tudo seria partilhado, inclusive os dormitórios. Com isso ficavam suprimidos os espaços privados, até mesmo para o sexo, e ínstituído um habitat comum, que não devia permitir nenhuma expressão de individualidade própria às sociedades burguesas[33]. Segundo Figes, poucas dessas casas foram construídas, mas o mais importante é que Zamiatine soube compreender o caráter destrutivo e opressivo desse gênero de estruturação do tecido urbano.

Na mesma direção, o escritor conhecia o pensamento de Alexei Gastev (1882-1941), que esteve à frente do Instituto Central do Trabalho, criado em 1920. Como mostra Figes, as ideias de Taylor e Ford circulavam intensamente na Rússia bolchevique e contavam com a admiração de ninguém menos que Lenin[34]. Preocupados em recuperar o atraso da indústria soviética com relação ao Ocidente, desde o começo da Revolução alguns dirigentes se viram à caça de métodos de organização do trabalho que pudessem constituir no “paraíso proletário” uma cultura de trabalho compatível com o mundo que queriam construir. A aceleração no ritmo do trabalho, tal como recomendada pelos teóricos ocidentais, parecia-lhes o caminho adequado para tornar a Rússia uma potência industrial. Como lembra Figes: “O objetivo declarado de Gastev era o de transformar o trabalhador num robô humano (não é por acaso que a palavra deriva do verbo russo rabotat, ‘trabalhar’). Gastev julgava que as máquinas eram superiores aos seres humanos, ele estava convencido de que tudo isso melhoraria a humanidade”[35]. Por essa razão, no futuro da nação russa, as pessoas, como no romance de Zamiatine, não precisariam nem mesmo de um nome, pois apenas suas energias seriam medidas, nunca suas emoções. O próprio dia a dia das pessoas seria cronometrado para permitir o uso correto de suas forças e evitar o desperdício de tempo que, segundo ele, era uma marca da cultura de seu país. Em sua época, uma Liga do Tempo chegou a reunir quase 25 mil aderentes, que não apenas cronometravam seus dias, mas perseguiam os que desperdiçavam tempo nas usinas e escritórios[36].

Zamiatine seguiu em seu romance futurista a trilha aberta por Morus no Renascimento, que fez da utopia, ou da descrição de sociedades diferentes das nossas, uma arma poderosa para criticar sua época. Ele viveu intensamente as transformações pelas quais passava seu país, mas muito cedo percebeu a tragédia que se escondia numa sociedade comandada pela ilusão de que podemos nos livrar do acaso e viver no reino da necessidade se soubermos aliar nossas vidas aos progressos da ciência e da técnica. Zamiatine era ele mesmo um engenheiro, um homem de ciência, a par dos grandes avanços científicos de seu tempo. Por isso, não cabe pensar que sua obra é um grito desesperado de quem não compreendia a importância dos avanços que a ciência propiciava. O que o aterrorizava não eram os avanços da física e da matemática, mas a criação de uma ideologia cientificista, que desejava ocupar o lugar que a metafísica ocupara enquanto ciência dos primeiros princípios em vários sistemas filosóficos. Essa preocupação aparece, por exemplo, quase no final do romance, quando R-503 se encontra num banheiro público, num dia convulsionado, com seu vizinho, que ele observava cotidianamente através das paredes de vidro de sua casa. Esse homem, que ele nunca compreendera bem, lhe diz sem rodeios que havia resolvido um problema essencial da física.

Depois de muito estudar os problemas postos pela teoria da relatividade para a questão da finitude ou infinitude do universo, ele afirma: “Sim, eu o repito, o infinito não existe. Se o mundo fosse infinito, a densidade média da matéria seria igual a zero. Como ela não é nula, e disso estamos seguros, segue-se que o universo é limitado”[37]. O importante não são suas conclusões sobre um problema da cosmologia contemporânea, uma vez que sua solução fazia parte do repertório das ciências de seu tempo, o que interessa são suas conclusões no terreno da filosofia[38]. De forma exaltada ele conclui: “Você vê, tudo é finito, tudo é simples, tudo é calculável, e nós vencemos filosoficamente, compreende?”[39]. Suprimindo o infinito, suprime-se, na lógica do personagem, o acaso e instaura-se o reino da pura necessidade. A luta contra a liberdade encontra sua face definitiva na supressão sucessiva de todas as qualidades humanas que se abrem para o indeterminado: a liberdade e a imaginação em primeiro lugar.

De forma menos trágica, mas nem por isso menos ameaçadora para a liberdade, nossa sociedade também acredita que todos podemos ser identificados por meio de números, disfarçados em nossas identidades estatais, mas também nos portais da internet que, como mostrou Pariser[40], por meio de sistemas complexos de logaritmos, identificam nossos gostos de tal maneira que somos depois bombardeados por nossos próprios desejos de consumo travestidos em “conselhos”. Numa época de individualismo crescente, a técnica cria a ilusão de que finalmente vamos deixar para trás o tormento da contingência, para viver uma vida sem medos e ameaças. Nas trilhas da internet, que um dia nos pareceram infinitas, se infiltra o medo do acaso e, por isso, somos cada vez mais confrontados com nosso próprio rosto, na esperança de que isso destrua para sempre os efeitos do indeterminado e da surpresa que o diferente nos causa.

Zamiatine, que antevira o caráter repressor que nasceria de uma sociedade totalmente devotada a uma ideologia cientificista e à técnica, termina seu romance com uma nota profundamente melancólica. O Estado único, desafiado pela manifestação de oposição ao regime no “dia da unanimidade”, decide operar todos os habitantes para privá-los da imaginação. R-503 hesita, mas acaba sendo levado pela corrente para os centros de cirurgia cerebral, destinados a extirpar da sociedade os “inimigos da felicidade”, todos os que sonhavam com outro mundo, outras relações. Com seu “certificado de operação” na mão, ele diz: “Eu não tenho mais o delírio, não falo mais empregando metáforas absurdas, não tenho mais sentimentos. Exporei somente fatos. Estou com a saúde perfeita”[41]. Uma sociedade sem acaso, sem acontecimentos imprevisíveis, transforma-se numa sociedade de escravos. A novidade da obra do grande escritor russo está em ter visto que, na era da técnica, as relações sociais podem levar um povo aos antigos caminhos da servidão pela imposição de uma ideologia da transparência e da necessidade. Ainda ligado às correntes humanistas da poesia e da literatura russa, ele acreditava que isso só é possível por meio da destruição do corpo e da alma dos homens. A ciência, erigida em princípio de governo, converte-se, para ele, necessariamente num princípio do terror.

Zamiatine viveu o suficiente para ver o início dos expurgos stalinistas e a expansão dos campos de concentração pela Europa e pelo mundo. Sua utopia pode parecer, nesse sentido, quase ingênua, diante dos horrores do século XX. O que ele compreendeu, no entanto, de forma precoce, é que a barbárie pode ter várias linguagens e que nosso tempo pode falar pela violência dos aparatos repressores, mas também pela imposição de um discurso sobre a necessidade, que pretende extirpar de nossas vidas todas as indecisões, tristezas e hesitações, que são o apanágio de nossa liberdade.

Notas

  1. As informações referentes à vida do escritor foram retirada do verbete “Zamiatine”, escrito por Claude Kastler para a Encyclopaedia Universalis, versão digital 2007. 
  2. Eugène Zamiatine, Nous autres, Paris: Gallimard, 1971. 
  3. Idem, ibidem, p. 15. 
  4. Idem, ibidem, p. 20. 
  5. Idem, ibidem, p. 31. 
  6. Idem, ibidem, p. 27. 
  7. Idem, ibidem, p. 36. 
  8. Sobre o tema do medo em Hobbes, ver Renato Janine Ribeiro, Ao leitor sem medo – Hobbes escrevendo contra seu tempo, Belo Horizonte: UFMG, 1999. 
  9. Jean Delumeau. La peur en Occident. Paris: Fayard, 1978. 
  10. Idem, ibidem, p. 13. 
  11. Idem, ibidem, p. 135. 
  12. Giovanni Boccaccio, Decamerão, trad. Torrieri Guimarães, São Paulo: Abril, 1979., v. I, p. II. 
  13. Idem, ibidem, p. 13. 
  14. Idem. ibidem, p. 13. 
  15. Idem. ibidem, p. 13. 
  16. Pierre Aubenque, La prudence chez Aristote, Paris: PUF, 1986. 
  17. Idem, ibidem, p. 66. 
  18. Idem, ibidem, p. 68. 
  19. Aristote. Ethique à Nicomaque. v. I, 4, 1140 a 17, apud Pierre Aubenque, La prudence chez Aristote, op. cit., p. 68. 
  20. Idem. ibidem, p. 76. 
  21. Idem. ibidem, p. 68. 
  22. Niccolà Machiavelli, Il Principe, Turim: Eunaudi-Gallimard, 1997, v. 1, p. 187 (Opere). 
  23. Retomamos aqui uma observação feita por Bertrand Saint-Semin no verbete “Contingence'”, da Encyclopaedia Universalis, versão digital, 2007. 
  24. Hannah Arendt, Origens do totalitarismo, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 531. 
  25. Pascal, Adresse à L’Académie Parisienne, Paris: Seuil, 1963, p. 102-103 (Œuvres complètes). 
  26. A. A. Cournot Essai sur les fondements de nos connaissances et sur les caractères de la critique philosophique, Paris: J. Vrin, 1975. 
  27. Pascal, Lettre a Fermat, de Bienassis, le 10 août 1660, Œuvres complètes, p. 282. 
  28. Condorcet, Mathématique et société, Paris: Hermann, 1974. 
  29. Hannah Arendt, Origens do totalitarismo, op. cit., p. 401. 
  30. Philippe Ariès, L’homme devant la mort: La mort ensauvagée, v. 2, Paris: Seuil, 1977, p. 289. 
  31. Eugène Zamiatine, Nous autres, op. cit., p. 75. 
  32. Idem, ibidem, p. 109. 
  33. Orlando Figes, The whisperers: Private life in Stalin’s Russia, Londres: Penguin, 2007, p. 10. 
  34. Orlando Figes, La Révolution Russe – 1891-1924: la tragédie d’un peuple, Paris: Denoël, 2007. p. 913-914. 
  35. Idem, ibidem, p. 914. 
  36. Idem, ibidem, p. 915. 
  37. Eugène Zamiatine, Nous autres, op. cit., p. 226. 
  38. Jean-Pierre Luminet, “Les cosmologies statiques (1917)”, L’invention du Big Bang, Paris: Seuil, 2004, pp. 31-41. 
  39. Eugène Zamiatine, Naus autres, op. cit., p. 226. 
  40. Eli Pariser, O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você, Rio de Janeiro: Zahar, 2012. 
  41. Eugène Zamiatine, Nous autres, op. cit., p. 228. 

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