2004

O imaginário da crise

por Marcelo Coelho

Resumo

A ideia de uma crise geral da civilização e da Humanidade domina o imaginário de muitos escritores. Segundo Hannah Arendt, essa crise surge com a sociedade burguesa, quando os homens se isolam e perdem o sentido da responsabilidade pública, para culminar nos sistemas totalitários do século XX. Em A condição humana (1958), ela relaciona esse processo ao reino do artifício instaurado pela ciência (criação da vida e evasão da Terra), referindo-se a uma situação “sem precedente”. Mas outros já haviam usado antes a mesma expressão. Como Chateaubriand, em 1841: ao falar do descompasso entre avanços na ciência e na moral, ele diz que, diante de um globo esquadrinhado em toda parte, não restará senão “pedir à ciência o meio de mudar de planeta”. Com perspectivas opostas, e sem falarem de crise, Tocqueville e Marx também apontam o perigo de novas formas de despotismo nas sociedades modernas. Paul Valéry dirá, depois, que a desordem é inerente ao moderno e combina-se com a ordem (“uniformidade dos costumes, das maneiras e mesmo dos sonhos conquistam o gênero humano”), marcando o ponto comum dessas representações da crise, que é a clivagem entre indivíduos e potências anônimas. Mas será lícito considerar as mudanças de dois séculos para cá deixando em silêncio os combates pela conquista de direitos civis e políticos? E por que ver na multiplicação das relações entre os homens apenas sinais de degradação do espírito? Na dramatização de uma crise final não haveria um desejo de elevar-se acima do tempo e de rejeitar toda incerteza?


Há uma crise na civilização ocidental? É irrefreável o avanço da barbárie? Meu propósito, neste trabalho, é relativizar um pouco tais ideias. Comento alguns diagnósticos desse gênero, e de que modo os eventos de setembro de 2001 vieram recolocá-los em discussão.

1

Observou-se com frequência, a propósito dos atentados de 11 de setembro ao World Trade Center, quanto as cenas terríveis da dupla explosão correspondiam ao imaginário do cinema hollywoodiano. Com doses variáveis de cuidado e reverência aos milhares de vítimas, foi bastante lembrada a ideia de que aquele ato bárbaro não deixava de atender, de algum modo, a fantasias paranoicas e autodestrutivas presentes na sociedade norte-americana. As torres em chamas foram fotografadas e reproduzidas de todos os ângulos; não havia como dissociar tais imagens dos incontáveis trailers de filme-catástrofe produzidos pela indústria cultural.

Também se tornaram célebres — e são estas as imagens que eu gostaria de comentar inicialmente — as fotos do edifício já destruído, ao rés-do-chão, sendo que a única coisa ainda de pé era um resto da fachada com aspecto metálico, que formava uma série de arcos, ou melhor, de ogivas muito estreitas, numa óbvia lembrança de catedral, de ruína gótica entre os escombros.

Dentre as muitas fotos possíveis do cenário arrasado, estas se fixaram mais. Para fins de comparação, podemos lembrar outra foto bastante reproduzida naqueles dias, e não menos plena de simbologia: a de um caminhão de Coca-Cola coberto de pó, bem próximo ao epicentro do atentado. Essa imagem, porém, não suscitava efeito comparável ao da armação gótico-metálica. Era mais feia, prosaica em excesso, talvez até um pouco cômica; ademais, dada a presença de um ícone nacional em meio às cinzas, obviamente não tinha o condão de afastar dos Estados Unidos o perigo que se estava, ou se julgava estar, correndo. Mostrar o World Trade Center como uma igreja gótica era diferenciá-lo da “América real”. Se esta continuava viva nas fotos das equipes de salvamento, dos bombeiros, dos voluntários — que intencionalmente citavam as ilustrações de Norman Rockwell —, nas fotos “góticas” o WTC ia sendo jogado desde logo no vasto abismo da História, onde, como dizia Paul Valéry, há vagas para todo mundo.[1]

De forma paradoxal, tratava-se de marcar o ataque, imediatamente, como evento pretérito, como ato memorável, como acontecimento histórico — coisa que de fato era. Tratava-se, também, de realizar uma operação mágica, pela qual um edifício comercial, emblema inegável do processo de globalização da economia, se tornava, ao ser destruído, um templo, a sede de uma forma de vida espiritual, que cumpriria recuperar. Os casos famosos dos milionários americanos que adquiriam castelos “autênticos” da Escócia e transportavam-nos, pedra a pedra, para sua propriedade no Meio-Oeste — ou ainda toda a cultura da réplica dos monumentos europeus que faz a glória do Epcot Center ou de Las Vegas — eram agora substituídos por uma tragicidade real; o passado fake das Venezas artificiais no estado de Nevada era subitamente desfeito num presente de ruínas, num ready-made da Idade Média.

Um sentido de “historicidade”, portanto, começou a  emanar dos edifícios derrubados, quase com a mesma rapidez dos rolos de fumaça. O apocalipse, a crise final da civilização, tantas vezes previsto, desejado e temido nos filmes de ficção científica, associava-se à visão museográfica, passadista, dessa mesma civilização como  algo venerável e longínquo. O “presente” do atentado, obsessivamente repetido nos vídeos das redes de notícia, ganhava uma dupla face, voltando-se tanto para o imponderável futuro da ficção hollywoodiana, dos filmes-catástrofe e das invasões alienígenas, como para o passado da Europa cristã, para o culto romântico da Idade Média e de seu declínio. A catástrofe surgia ao mesmo tempo sob as tintas da iminência (o avião aproximando-se certeiro e punitivo) e  da recordação (o que restava do umbral do edifício, na inclinação típica das lápides de algum graveyard  abandonado). Tinha-se tanto o “bang” como o “whimper”, tanto a explosão como o suspiro, para lembrar os versos de T. S. Eliot em “The hollow men”.[2]

Se a concepção apocalíptica, “explosiva”, do fim da civilização corresponde a uma ameaça “externa” — invasão dos bárbaros, dos estrangeiros, dos comunistas, dos marcianos —, a concepção “declinante”, “suspirante”, da morte da civilização corresponderia à ideia de uma doença, de uma lenta queda na barbárie pelo esgotamento das forças, pela exaustão; poderíamos nesse caso pensar menos num ataque “externo” e mais numa patologia interna, a partir da qual o próprio acúmulo de civilização levaria a um processo de declínio.

Seriam certamente grandes os riscos de insistir numa tipologia assim tão demarcada. Os dois modelos de “crise da civilização” poderiam, de resto, combinar-se sem paradoxo: corroída internamente, a civilização em declínio se torna incapaz de resistir ao súbito ataque dos bárbaros. Invoco apenas esses dois modelos, a propósito das fotos mais marcantes do 11 de setembro, porque de alguma forma podem nos alertar, até pelo que têm de caricato, quanto aos perigos e ambiguidades de nossa discussão.

Do ponto de vista conservador, o ataque às torres gêmeas acentuou, sem dúvida, a ideia de que se esteja vivendo uma situação de ameaça, de “crise” na civilização ocidental; do ponto de vista da esquerda, a reação do governo americano ao ataque só fez mais pertinente a questão sobre se havia, afinal, algo de “civilizado” naquele Ocidente. Sem dúvida, os conceitos de “barbárie” e “civilização” há muito parecem confundir-se, e mesmo trocar de lugar, ao ponto de tornar-se quase um clichê a ideia de que “os bárbaros somos nós”, e ainda mais comum que a palavra civilização venha acompanhada de algum adjetivo restritivo ou dubitativo, do tipo “a assim chamada civilização”, a “suposta civilização” etc. E nossas próprias dúvidas com relação a quanto, afinal, é “civilizada” a nossa “civilização” poderiam ser apontadas por alguns conservadores como sintoma da crise, da decadência total dos valores que estaríamos vivendo.

Contudo, não me parece fatal que tenhamos, em vista disso, de nos render ao relativismo e renunciar a qualquer conceituação positiva, não paradoxal, e por assim dizer sem aspas, a respeito do que seja barbárie e do que seja civilização. Tento sugerir algo nessa direção no final deste trabalho. Proponho enfocar, aqui, outro aspecto da questão. Parece-me que a ideia de “crise” vem sendo muito pouco problematizada — é bem raro o uso de aspas a acompanhá-la —, e que tanto a direita como a esquerda compartilham, sem muitos conflitos, o vocabulário do declínio, da decadência, do colapso. O potencial retórico dos diagnósticos pessimistas sobre crise da cultura, declínio da civilização etc. vai sendo apropriado de um modo um tanto confuso por setores políticos distintos, sem que, a meu ver, isso resulte em benefício para uma crítica concreta do mundo em que vivemos.

Que um vocabulário semelhante seja compartilhado por adeptos de concepções políticas opostas não é, por certo, sinal de muita coisa: alguém pode dizer que o momento atual se caracteriza pelo declínio total das ideias de ordem e hierarquia, como pode dizer que se caracteriza pelo declínio total das ideias de liberdade e de rebeldia. Mesmo assim, parece-me identificável hoje em dia um sentimento geral de receptividade, tanto à direita como à esquerda, a quaisquer diagnósticos pessimistas sobre o futuro e nostálgicos em relação ao passado.

Progressista: se algo está em franco desuso e parece pertencer ao passado é essa palavra, que durante tanto tempo foi apanágio da esquerda. A ideia de progresso está em declínio, e tornou-se bem mais desacreditada do que a de decadência. Tanto fascínio pela vocabulário da crise, da decadência, do declínio, merece a meu ver ser questionado. Nas páginas que seguem, discuto alguns textos representativos desse ponto de vista.

2

Por sua própria essência e planejamento, o atentado do 11 de setembro era — num sentido muito específico — “foto-gênico”, “vídeo-gênico”. Parte do trabalho que se seguiu à tragédia foi, como sugeríamos acima, o de classificá-lo como documento histórico, enquadrá-lo numa moldura memorável; mal tinha acontecido, o atentado começou a ser objeto de lembrança, a ser fabricado como coisa passada.

Curiosamente, ocorre aqui o mesmo procedimento retórico que está presente num recente, e bastante difundido, ensaio sobre a decadência da cultura ocidental, que é o livro de Jacques Barzun, Da alvorada  à  decadência.[3]  O  autor  inscreve-se  numa  vertente  explicitamente conservadora, como será fácil de verificar a partir das citações que faremos aqui. Se, quanto a isso, o livro não difere muito de outras obras do gênero,[4] vale destacar um traço estilístico do autor, que é o de relatar fatos contemporâneos como se fossem coisas do mais remoto passado. Citemos algumas frases, já no final do livro, nas quais Barzun se refere às diversões em voga no século XX.

As crianças, que facilmente ficam entediadas e irrequietas, ficavam horas a fio diante da tela da televisão pela razão paralela de que a escola lhes negava o senso de progresso no rumo do conhecimento […] [Já na publicidade] o ar estava denso com imagens de corpos seminus em poses sedutoras [e assim] os numerosos casos de gravidez precoce causaram desastres de toda espécie.[5]

Vê-se que o autor fala de tudo como se fossem fatos do passado, como se a civilização que está descrevendo já tivesse desaparecido.

É um procedimento bem semelhante ao de certos filmes de ficção científica, e podemos lembrar, também a propósito das imagens do 11  de setembro, as cenas finais de Planeta dos macacos, em  que uma Estátua da Liberdade soterrada transmite a ideia de uma Nova York arruinada, a perspectiva de nosso mundo como algo já extinto. O mesmo recurso de linguagem está presente em outro livro do campo conservador, neste caso mais voltado ao que se costuma chamar de “pensamento estratégico”: trata-se de O choque de civilizações, de Samuel Huntington. O autor parte do diagnóstico de que “a influência relativa do Ocidente está em declínio, com as civilizações asiáticas expandindo seu poderio econômico, militar e político; com o islã explodindo demograficamente […] e com as civilizações não ocidentais de forma geral reafirmando o valor de suas próprias culturas”. Num quadro rápido dos problemas e das ameaças experimentados pela “civilização ocidental” (conceito que não inclui os países latino-americanos, aliás, que se tornam dotados de uma civilização própria), vemos novamente o uso do tempo pretérito para descrever o presente:

Em meados da década de 1990, o Ocidente tinha muitas características […] de uma civilização madura à beira da decadência. Economicamente, o Ocidente era muito mais rico do que qualquer outra civilização, mas ele também tinha baixas taxas de crescimento econômico, de poupança e de investimentos, especialmente em comparação com as sociedades da Ásia oriental. O consumo individual e coletivo tinha prioridade sobre a criação da capacidade para futuro poder econômico e militar […] Muito mais importantes do que a economia e a demografia [entretanto] são os problemas de declínio moral, suicídio cultural e desunião política no Ocidente.

As manifestações frequentemente apontadas de declínio moral abrangem:

  1. aumento  de  formas  de  comportamento  anti-social,  como crime, uso de drogas e violência em geral;
  2. decadência da família, incluindo índices mais elevados de divórcio, ilegitimidade, gravidez de adolescentes e famílias de pai e mãe sozinhos;
  3. pelo  menos  nos  Estados  Unidos,  um  declínio  de  “capital social”, isto é, de participação em associações voluntárias e confiança entre as pessoas ligadas a essa participação;
  4. um  debilitamento  generalizado  da  “ética  do  trabalho” e aumento do culto à satisfação pessoal;
  5. diminuição no empenho pelo aprendizado e pela atividade intelectual, manifestado nos Estados Unidos por níveis mais baixos de realização acadêmica.[6]

O que não impede o autor, em outro curto-circuito cronológico, de considerar algumas páginas antes que

o Ocidente tornou-se uma sociedade madura que está entrando no que as gerações futuras, segundo o padrão repetitivo das civilizações, considerarão como uma “idade de ouro”, um período de paz decorrente, nos termos de Quigley, “da ausência de quaisquer unidades competidoras dentro do âmbito da própria civilização e do distanciamento, ou até mesmo da inexistência, de lutas com outras sociedades de fora”. É também um período de prosperidade que decorre “do fim da destruição pela beligerância interna, da redução das barreiras ao comércio interno, do estabelecimento de um sistema comum de pesos, medidas e moeda e de um extenso sistema de gastos governamentais associado com o estabelecimento de um império universal”.[7]

De modo que tudo o que temos a lamentar como sinais de decadência não impede que tenhamos saudades do que vivemos atualmente. Os gastos governamentais com vistas ao estabelecimento de um império serão sinal de que teremos vivido numa idade de ouro, mas o diagnóstico de decadência sugere que não são suficientes, que declinam de forma preocupante; e assim, em última análise, “o período de prosperidade” é nitidamente um período de “baixas taxas de crescimento econômico, de poupança e investimentos”… Não pode ser de outra maneira numa literatura que ao mesmo tempo celebra o status quo e joga com o fantasma de sua deterioração; que zela para que tudo permaneça como está, mas reitera que se tudo permanecer como está nos encaminharemos rapidamente para a ruína.

Voltemos ao livro de Barzun. Nessa “história da cultura ocidental de 1500 a nossos dias”, conforme anuncia seu subtítulo, disponibiliza-se uma quantidade de fatos gigantesca, que permite todo tipo de generalizações pessimistas; torna-se fácil acumular evidências, portanto, de que a civilização está em crise. Falando da literatura moderna, ou dos “tempos demóticos”, para usar sua caracterização, Barzun observa que uma de suas características tem sido “a exibição de sujeira”, “a intenção de enojar”, o que fica evidente quando Joyce “preferia o ‘mar verde-muco’ ao Oceano azul de Byron”.[8] Mas lembremos que, décadas antes de Joyce, Rimbaud falava nos “ranhos de azul” em seu “Bateau ivre”; que a intenção de “enojar” é algo de que se pode acusar tanto Zola como Baudelaire e, se quisermos retroceder, até Rabelais, cem ou quinhentos anos antes. Barzun afirma, algumas páginas antes, que em nossos tempos predomina o desmazelo: “Quando se podia ir a uma loja e comprar os jeans já com nódoas e remendos, uma nova intenção era evidente… Parecer desleixado, mal-ajambrado e, para a coisa ser perfeita, com falta de banho, é o tom dominante de toda a era”.[9]  Ficamos aqui  no  domínio do mais concreto e grosseiro empirismo, mas é de perguntar se em alguma época da civilização ocidental se tomou mais banho do que nos tempos atuais…

Para grande escândalo de Barzun, criou-se o fast-food, e isso, diz ele, “deu origem a comer e beber em qualquer lugar, a qualquer hora. Lojas, repartições públicas, bibliotecas e museus tiveram que colocar o aviso: ‘Proibido comer ou beber’, com o objetivo de proteger as instalações contra acidentes e da necessidade de recolher lixo”. Claro está que Barzun se esquece de que até há algum tempo os cartazes diziam: “Proibido cuspir”, e basta lembrar os relatos de como eram as plateias de ópera nos tempos de Mozart ou de Rossini para saber que se comia e se conversava o tempo todo; podemos lembrar também que, em tempos menos decadentes, as pessoas talvez não comessem fast-food em todos os lugares, mas dedicavam-se ao hábito talvez mais desagradável de fumar em toda parte, sem que isso fosse proibido…

Da alvorada à decadência teve grande sucesso de vendas, também no Brasil, onde seu autor foi tratado com destaque por alguns órgãos de imprensa. Por diversos motivos, o apelo jornalístico desse tipo de considerações em torno do declínio cultural é muito grande: oferece-se uma interpretação fácil e “crítica” para tudo o que acontece, ou tudo aquilo de que não gostamos. Tipicamente jornalística, por outro lado, é a própria estrutura de obras desse tipo, que acumulam dados em sequência, como manchetes, como recortes de jornal, numa espécie de salada de frutas cultural que só a mesma cobertura — a palavra decadência — termina unificando. Um terceiro motivo, talvez, seja o de que tais obras correspondem à própria psicologia profissional do jornalista: ao mesmo tempo que constituem impositivos cartapácios (o de Barzun orça as novecentas páginas), são panorâmicos e superficiais. São impressionantemente eruditos e levianos. O jornalista, pressionado pelo cotidiano profissional, ressente-se do fato de que o hábito de ler vai desaparecendo de sua própria vida; torna-se assim presa fácil da ideia de que “os outros” não lêem mais, de que ninguém sabe mais nada etc. E o fato de ter lido, afinal, um livro como o de Barzun assegura-lhe, é claro, uma superioridade sobre as outras pessoas. Obras desse tipo oferecem a quem as lê, ipso facto, a senha para participar dos supostamente privilegiados e “exclusivos” círculos que estariam sob ameaça de invasão bárbara. Não deixa de ser irônico que um livro que reclama dos horrores da cultura de massas e da vulgaridade dos hábitos intelectuais médios da população anuncie, na capa da edição brasileira, o fato de ter constado da “lista de best-sellers do The New York Times e do Publishers Weekly”.

Ficou bastante claro, para mim pelo menos, a falácia desse tipo de diagnóstico quando li um longo artigo de George Bernard Shaw, na coletânea O teatro das ideias, em que refutava as ideias de um publicista  seu  contemporâneo, Max Nordau. Num livro chamado Degeneração, Nordau considerava que os impressionistas, a música de Wagner, o teatro de Ibsen eram sintomas claros de patologia mental. Diz Bernard Shaw, em 1905:

Já escutei tudo isso antes. A cada novo surto de energia na arte soa o mesmo grito de alarme; e, como esses alarmes, do mesmo modo que as profecias sobre o fim do mundo, sempre têm o seu público, não há nada de surpreendente no sucesso de um livro como esse, que poderia ter sido produzido por qualquer pessoa que pesquisasse nas velhas redações de jornais e nas bibliotecas públicas todas as críticas que durante os últimos cinqüenta anos anunciaram a chegada do bicho-papão e as reunisse num único volume.[10]

Bernard Shaw argumenta, de modo convincente, que os sintomas de degeneração que Max Nordau encontrava nos libretos de Wagner, nos poemas de Dante Gabriel Rossetti e de Swinburne eram igualmente identificáveis em Shakespeare:

Imaginemos um entusiasta da rima enlouquecido que comece a produzi-las como se estivesse lendo um dicionário de rimas. Você diz “vem” e ele retruca com “trem, Belém, ninguém, vintém”, e assim por diante. Os médicos dão o nome de “ecolalia” a essa enfermidade. […] Nordau chega ao absurdo, no caso das rimas, de afirmar que qualquer rima gratuita, definida como o que não transmite mensagem inteligível, condena o autor por sofrer de ecolalia. Nordau pode, desse modo, condenar como degenerado qualquer poeta de quem ele não goste. Basta simplesmente buscar uma rima gratuita, ou um jogo de palavras, ou o que se chama “bordão” nas baladas, apontando-os como sintomas de “ecolalia” […] Dessa maneira Shakespeare seria o exemplo maior de degeneração poética, pois Shakespeare era um trocadilhista incorrigível que adorava “bordões”, por exemplo, “with hey, ho, the wind and the rain” — o que satisfaz perfeitamente as condições estabelecidas por Nordau como sintomas de insanidade no caso de Rossetti […] [Mas] Nordau gosta de Shakespeare, assim como gosta de Goethe, e o tem como modelo de sanidade contra os poetas do século XIX. Portanto, Wagner é um degenerado porque fez jogos de palavras; e Shakespeare, que fez piores, é um grande poeta. Swinburne, com seus refrões sem sentido, por exemplo: “Small red leaves in the mill water” e “Apples of gold for the king’s daughter”, é um louco doente; mas Shakespeare com seu “In spring time, the only merry ring time, when birds do sing hey ding a ding ding” (se esse não for o pior caso de “ecolalia” do mundo, então o que é ecolalia?), tem a cabeça no lugar.[11]

Do mesmo modo, a pintura impressonista derivaria, para Nordau, de uma patologia na vista denominada nistagmo.[12]  Se de alguma deficiência visual se trata, contudo, talvez seria mais justo dizer que os teóricos da “degeneração” e do declínio constituem suas maiores vítimas. “Nunca se viu coisa igual” — é esta a senha, por certo, de todas as reações à modernidade. Estaremos abusando do paradoxo se dissermos que, com isso, é o conservador quem se encarrega de abolir o passado, ou de pelo menos apagar a memória mais nítida do que aconteceu. É certo, entretanto, que a todo diagnóstico de decadência se pode opor um “regresso ao infinito”, pelo qual, se aprofundarmos a pesquisa, o declínio da civilização já teria começado na Idade da Pedra.

O refrão conservador não se limita ao âmbito da cultura erudita, que se poderia considerar especialmente ameaçado nos nossos tempos. Versões enfáticas de nostalgia e pessimismo se abatem sobre os especialistas em cultura de massa; nada mais saboroso a esse respeito do que ver, nos dias de hoje, o elogio de figuras que anteriormente tinham o condão de irritar os críticos. Condenando a cultura de massa num artigo de 1953, o crítico Dwight McDonald lamentava sua perda de autenticidade, sua crescente dissolução no incaracterístico. Reclama, por exemplo, que uma atriz do cinema mudo como Theda Bara capitulava agora diante de Ingrid Bergman… “Comparem-se”, diz McDonald, “as histórias primorosas de Sherlock Holmes, escritas por Conan Doyle, com o intelectualismo espúrio de Dorothy Sayers”[13] —  autora,  por  sinal,  a  quem  Jacques  Barzun  presta  longa homenagem em seu livro.[14] Tampouco existem, insiste o autor, “críticos influentes tão terríveis como o foi, digamos, o falecido William Lyon Phelps. Em lugar deles temos criaturas cinzentas, como Clifton Fadiman e Henry Seidel Canby”.[15] Esse gênero de comparação é obviamente inconclusivo, pois é sempre possível dizer que, antes, tínhamos programas cômicos de alta qualidade na televisão, como I love Lucy, e hoje temos o péssimo nível dos reality shows; mas deveríamos lembrar, por exemplo, que “antes” tínhamos Os três patetas e agora temos Os Simpsons, ou rigorosamente qualquer coisa que pudermos pinçar em favor de nossa tese.[16]

3

O tom de um crítico como Jacques Barzun — ou Dwight McDonald, cinquenta anos antes, ou Max Nordau, cem anos antes — parece ser de um desespero bastante acusatório, ao qual não é estranho, igualmente, o típico alívio de ser uma ilha de resistência diante da catástrofe geral. O imaginário do declínio teria, nesse caso, o aspecto contemplativo, enobrecedor, romântico sugerido pela foto “gótica” a que nos referíamos no início do texto. Seu caráter de antecipação temporal exige uma tomada de distância diante dos fatos; de alguma forma, é como se o presente (que condenamos por vulgar, frágil, decadente etc.) só pudesse ser nobilitado ao ser visto, desde já, da perspectiva terminal para a qual aponta.

Pensemos, agora, nas imagens mais clássicas do atentado. A visão das torres no meio da fumaça, e de resto a própria palavra torre, certamente tem o significado bíblico da destruição da torre de Babel; a ideia de Nova York como a metrópole do capitalismo globalizado, a projeção de uma cidade como foco de cosmopolitismo e corrupção, como centro do império, não é estranha a ninguém. A esse propósito podemos lembrar um discurso também clássico em torno da decadência do Ocidente, o poema de T. S. Eliot “The waste land”, de 1922, que fala de torres sendo destruídas e nomeia as cidades arrasadas:

Fendas e emendas e estalos no ar violáceo
Torres cadentes
Jerusalém Atenas Alexandria Viena Londres…[17]

Essa sequência aterrorizante — Jerusalém, Atenas, Alexandria, Viena, Londres… —, um pouco como “chegará a sua vez”, é um procedimento retórico, ou uma figura literária, se quisermos, também presente em outro discurso sobre a decadência, a crise da civilização, que é o famoso texto de Valéry, já citado, “A crise do espírito”, em que o poeta começa afirmando que “nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais”, e continua:

Élam, Nínive, Babilônia eram belos nomes vagos, e a ruína total desses mundos tinha para nós tão pouca significação quanto a própria existência deles. Mas França, Inglaterra, Rússia… eis também outros belos nomes… e nós vemos agora que o abismo da história é suficientemente grande para todo o mundo.[18]

Há um crescendo discursivo nessa enumeração, uma espécie de frisson, um suspense na gradativa concretização da catástrofe, como se a própria frase fosse um avião aos poucos se aproximando do alvo a ser atingido. A ameaça detectada se transfere para o corpo da frase, quase que numa identificação com o agressor. Com efeito, há sinais no texto, a meu ver, de que o alarme de Valéry está singularmente temperado por uma espécie de comemoração. Logo no segundo parágrafo, após constatar a mortalidade das civilizações, Valéry afirma que já havíamos ouvido falar de

impérios que foram a pique com todos os seus homens e seu maquinário; que desceram ao fundo inexplorável dos séculos com seus deuses e suas leis, suas academias e suas ciências puras e aplicadas, com suas gramáticas, seus dicionários, seus clássicos, seus românticos e seus simbolistas, seus críticos e os críticos de seus críticos.[19]

É ainda o crescendo da frase que faz, aqui, a tragédia ter um sabor algo ridículo, como que denunciando, a partir das gramáticas, dos dicionários, dos críticos e dos críticos dos críticos, certa frivolidade de tudo o que havia ante o nada que estabelece.

É como se, em diversas passagens do texto, o autor se divertisse um pouco com a dissolução das certezas estabelecidas; e mesmo como se comemorasse, numa espécie de pesadelo da abundância cultural, o abismo que as fosse engolir. O mesmo pesadelo parece estar presente no seu texto intitulado “O problema dos museus”.

Diante do acúmulo de obras-primas que encontra num museu, Valéry exclama:

Que fadiga, digo a mim mesmo, que barbárie! Tudo isso é desumano. Tudo isso não é nem um pouco puro. É um paradoxo tal aproximação de maravilhas independentes mas adversas, e que são até mesmo as maiores inimigas uma da outra, quanto mais se assemelham.
Somente uma civilização que não fosse nem voluptuosa nem razoável pode ter edificado essa mansão da incoerência. Não sei que coisa de insensato resulta dessa vizinhança de visões mortas. Elas se tornam ciumentas e disputam o olhar que lhes traga a existência. De todas as partes, chamam a minha atenção indivisível […] o ouvido não suportaria ouvir dez orquestras ao mesmo tempo […][20]

A barbárie, aqui, está no acúmulo ininteligível de obras do espírito. É esse acúmulo que dá testemunho de uma civilização insensata. Há mais a crítica a uma superabundância de produção intelectual do que a constatação — que Valéry não deixa de fazer — de uma crise, de um declínio, de um iminente desaparecimento da civilização. Valéry nota que, durante a Primeira Guerra, “a Europa cultivada conheceu a revivescência rápida de seus inumeráveis pensamentos: dogmas, filosofias, ideais heterogêneos; as trezentas maneiras de explicar o mundo, as mil e uma nuance do cristianismo, as duas dúzias de positivismos […]”. A própria frase, a rigor, iguala as diversas correntes do pensamento ocidental numa espécie de indiferença, que não é propriamente a do cético, a do relativista, mas a de quem já não encontra, naquilo, valores a defender, e sim um refugo, uma sucata. Os escombros não nobilitam mais nada: há um alívio ao notar que tantos edifícios já não mais fazem sombra sobre nós. Um pouco mais adiante, Valéry afirma:

O que dá à crise do espírito sua profundidade e sua gravidade é o estado no qual ela veio encontrar seu paciente. Não tenho nem o tempo nem o poder de definir o estado intelectual da Europa em 1914. E quem ousaria traçar um quadro desse estado? O tema é imenso… mas tenho necessidade apenas da lembrança vaga e genérica daquilo que se pensava nas vésperas da guerra, das pesquisas que se faziam, das obras que se publicavam. Se faço assim abstração de todo pormenor, e se me limito à impressão rápida e a esse total natural que dá uma percepção instantânea, eu não vejo — nada! Nada, embora fosse um nada infinitamente rico. Os físicos nos ensinam que num forno levado até a incandescência, se nosso olho pudesse subsistir, ele não veria — nada. Nenhuma desigualdade luminosa se mantém e distingue pontos no espaço. Essa formidável  energia  concentrada   leva  à  invisibilidade,  à   igualdade insensível. Ora, uma igualdade dessa espécie não é outra coisa senão a desordem no seu estado perfeito. E de que era feita essa desordem de nossa Europa mental? Da livre coexistência em todos os espíritos das ideias mais dessemelhantes, dos princípios de vida e de conhecimento os mais opostos. Isso é o que caracteriza uma época moderna. Pois bem! A Europa de 1914 tinha talvez chegado ao limite desse modernismo. Cada cérebro de um certo nível era o cruzamento de todas as raças de opinião; todo pensador, uma exposição universal de pensamentos.

Vista da perspectiva de hoje, a confusão, o caos cultural dos anos que antecederam a Primeira Guerra desnorteia menos: os nomes de Freud, de Einstein, de Stravinski, de Picasso dão, àqueles tempos, uma fisionomia inconfundível, ainda que quiséssemos agregar à lista nomes heterogêneos e contracorrentes culturais. Em que sentido poderíamos concluir, a respeito daquele momento, que não  ocorria nada? A palavra, várias vezes repetida, parece mais um decreto do que um diagnóstico, mais uma condenação do que um necrológio. É como se Valéry, nessa passagem, estivesse sendo um incendiário da cultura que se apresenta como seu defensor. Certamente, seu texto lamenta menos o gradativo desaparecimento de uma forma de vida espiritual e mais a sua súbita perda de sentido, a explosão do sistema pelo superaquecimento de suas partes constitutivas. Mas não só isso. O excesso de veemência com que as escolas e teorias se afirmam individualmente não é apenas nocivo ao conjunto, mas também leva a uma desmoralização de cada uma delas em particular — tanto pelo ridículo que poderíamos chamar de “flaubertiano” explorado no texto de Valéry como pela inconsistência dos valores espirituais, se comparados à conjuntura prática concreta. Valéry nota, assim, a falência de valores tradicionais, como a diligência e a disciplina, ao dizer que tiveram péssimas consequências ao serem encarnados pelos alemães; “saber e dever, sois portanto suspeitos”. Há um certo ar de falsa ingenuidade nessa frase, pois não seria preciso esperar que o avião fosse inventado para perceber que a ciência e a técnica podem ter mau uso, nem seria preciso mais do que pensar nas guerras napoleônicas, ou no terror de Robespierre, ou na Inquisição, por exemplo, para notar de que modo ideias nobres podem ter maus fins.

Crises diversas combinam-se, portanto, no quadro traçado por Valéry; de um lado, porque sob o mesmo termo civilização se combinam conceitos como o progresso técnico, os valores políticos e morais, o conjunto de realizações espirituais e artísticas de determinada sociedade (a que, em outra acepção, poderia ser dado o  nome de “cultura”). De outro lado, porque o argumento do ironista — que vê princípios louváveis tendo resultado prático desastroso — é diferente do argumento da ofuscação — segundo o qual nada, nenhum princípio, se poderia deduzir do caos — e diferente da narrativa do empobrecimento, do mergulho na noite de uma nova Idade Média. Mas todos esses argumentos podem ser invocados ao mesmo tempo se servirem como arma de descrédito — quase como que num terrorismo da crise, ou numa performance em que o próprio texto assume o ritmo da “precipitação” no abismo; como um naufrágio em câmera corrida, um cataclismo de cinema mudo.

Todavia, esse tom de “precipitação”, com que parece quase ser festejada a crise da cultura europeia, é que é, na verdade, moderno, como enviesadamente, e a contragosto, sugere o próprio Valéry:

De que era feita aquela desordem da nossa Europa mental? — Da livre coexistência, em todos os espíritos cultivados, das idéias mais dessemelhantes, dos princípios de vida e  conhecimento mais opostos. Eis o que caracteriza uma época moderna. Não detesto o ato de generalizar a noção de moderno e dar esse nome a um certo modo de existência, em vez de fazer disso um simples sinônimo de contemporâneo. Há na história momentos e lugares nos quais poderíamos nos introduzir, nós, modernos, sem perturbar excessivamente a harmonia desses tempos […] Onde nossa entrada causaria o mínimo de sensação, é o lugar em que estamos quase que em casa. É nítido que a Roma de Trajano, e que a Alexandria dos Ptolomeus nos absorveriam mais facilmente do que muitas localidades menos remotas no tempo, porém mais especializadas num único tipo de costumes e inteiramente consagradas a uma única raça, a uma única cultura e a um único sistema de vida.[21]

Nada mais natural do que entender “moderno”, aqui, como sinônimo de “decadente” (a Alexandria dos Ptolomeus) — mas também como sinônimo de “civilizado”. O caos, a crise, poderiam ser menos assustadores se Valéry persistisse nessas acepções. O empenho de seu texto, contudo, é o de ser inquietante, insistindo na vertigem inédita de uma cultura ininteligível, babélica, estridente em seus balbucios sem sentido… isto é, “bárbara”.

Correndo o risco da obviedade, contudo, observo que o presente faz menos sentido do que o passado, por definição, já que não sabemos exatamente para onde vai; e que desse modo toda ideia de decadência, de declínio, é sedutora porque expressa essa gradativa (diríamos quase… essa progressiva) perda de sentido. Somente num quadro  de  certeza  quanto  ao  futuro,  de  previsibilidade  histórica muito positiva, aquilo que o presente significa e aquele ponto para o qual ele tende (as duas acepções do termo sentido) irão coincidir.

Mas do ponto de vista de Valéry é natural que, comparativamente ao que tínhamos antes, o excesso contemporâneo faça efeito de ser nada — a não ser que atribuamos a esse nada um novo sentido, o de ser prova, sintoma, de que antes tudo era mais satisfatório, isto é, inteligível.

É desse modo que a defesa incontrastada e radical do “presente”, do “moderno”, do “momento atual”, se faz ela mesma um ato de agressão ao passado, um ato de “barbárie”, nesse aspecto. É o caso, sem paradoxo, do “futurismo” de Marinetti. Quando, em 1909, seu Manifesto futurista afirmava que é preciso destruir os museus e as bibliotecas, ele estava sendo tão “bárbaro” quanto os ultraconservadores o acusavam de ser. Há uma espécie de desentendimento crônico nessa questão, por meio do qual o discurso moderno sempre se afirma ironicamente “bárbaro” e “selvagem”, numa performance da ruptura com o instituído, e encontra assim, por parte dos reacionários, uma interpretação literal: “Não vê? eles querem de fato destruir  a arte, destruir a civilização!”. Até porque, de fato, também os modernos consideram decadente, ou falsamente civilizada, a velha civilização europeia.

Vem a propósito a frase de Walter Benjamin, citada por Paolo Rossi em seu livro Naufrágios sem espectador, segundo a qual “jamais houve  uma época que  não se  sentisse  moderna, no sentido excêntrico do termo, e não acreditasse estar diante de um abismo iminente. A lúcida consciência de estar no meio de uma crise decisiva é algo crônico na humanidade”.[22] O grau de ironia com que isso se faz é que é, contudo, essencial.

O pavor de um Valéry diante de uma crise na qual a Europa “deixa de ser semelhante a si mesma” é simétrico à eufórica asserção modernista em que se afirma: “Sim, somos nós os bárbaros”. Mesmo em terras não tão radicais a frase ecoa, por exemplo, quando um Sérgio Buarque de Holanda afirma, em plena refrega de 22, que

Bárbaros, não são mais as multidões! Bárbaros são as elites. A palavra é um pouco forte.
Que querem? É preciso ser assim. Os revolucionários do século passado não aceitaram e consagraram o epíteto de “decadentes”?
Os futuristas, nossos contemporâneos, não abraçam sorridentes o de malucos?…
Somos bárbaros! Avante![23]

De alguma forma, portanto, “modernidade” e “barbárie” se identificam desde que não entendamos o termo barbárie ao pé da letra; simetricamente, civilização e decadência também serão conceitos que andam juntos — já que, nesse caminho, fazem sentido… faltando, a meu ver, apenas ironizar, isto é, não tomar ao pé da letra, o termo decadência.

4

Não é por acaso que Oswald Spengler, em seu Declínio do Ocidente, afirmava que a passagem da “cultura” à “civilização” era o próprio sinal da decadência.[24] A civilização, diz Spengler,

é o destino inevitável de uma cultura […] As civilizações são os estados mais exteriores e mais artificiais aos quais pode atingir uma espécie humana superior […] A passagem da cultura à civilização se completa, na Antiguidade, durante o século IV, e no Ocidente durante o século XIX. A partir de então, as grandes decisões espirituais já não acontecem mais, como no tempo do movimento órfico ou da Reforma, “no mundo todo”, onde não há, afinal de contas, nenhuma aldeia que seja absolutamente insignificante, mas em três ou quatro grandes cidades mundiais, que atraíram para si toda a substância histórica e diante das quais a paisagem inteira de uma cultura rebaixa-se ao nível da província […] Cidade mundial e província — esses conceitos fundamentais de toda civilização fazem aparecer um problema formal novo para a história […] Em vez de um universo, uma cidade, um ponto onde se concentra toda a vida de vastas regiões, enquanto o resto fenece; em vez de um povo de formas abundantes, que cresceu junto à sua terra, um novo nômade, um parasita habitando a grande cidade, puro homem das realidades, sem tradição, afogado na massa ondeante e informe, irreligioso, inteligente, estéril, odiando profundamente o campesinato (e a nobreza rural que é a suprema expressão desse campesinato) — que significa esse passo de gigante em direção ao fim? França e Inglaterra já o fizeram, a Alemanha está dando esse passo. Depois de Siracusa, Atenas, Alexandria, vem Roma. Depois de Madri, Paris, Londres, vêm Berlim e Nova York.[25]

Mais uma vez encontramos a fatídica sequência das metrópoles, num páthos diferente, contudo, do que vimos nos textos comentados até aqui. Não caberia compará-lo ao de um arrepio causado pela aproximação gradativa no rumo de um destino amedrontador, mas sim a um andar que antes parece submeter-se à disciplina de uma marcha fúnebre. Não nos deteremos, contudo, no famoso e infindável “esboço de morfologia da História Universal”, cujo primeiro volume Spengler publicava em 1917. Se a polêmica com Spengler seria tão extemporânea quanto a sua ressurreição, é contudo relevante notar de que modo seu pensamento está presente numa obra que é referência para toda a cultura da esquerda ocidental — a de Theodor Adorno. Publicado pela primeira vez em 1941, o ensaio de Adorno a respeito de Spengler abrese com a observação de que esse autor “foi esquecido com a rapidez da catástrofe em direção à qual, segundo a sua própria teoria, caminhava a história do mundo […] o percurso da história universal confirmou de tal maneira os seus prognósticos que as pessoas se espantariam, se ainda se lembrassem deles”.[26]

Sessenta anos depois, seria o caso de dizer que a atitude de pessimismo cultural protagonizada por Spengler disseminou-se — mesmo que a vitória dos aliados contra o nazismo pudesse ter sugerido, naqueles anos, alguma correção no rumo da catástrofe prevista. E disseminou-se a tal ponto que, hoje, não é correto dizer que as teses de Spengler foram esquecidas. Ao contrário, são lembradas, repetidas, vulgarizadas e aplicadas a qualquer circunstância, mas com um detalhe irônico: são atribuídas a Adorno. Com efeito, a adoção acrítica do páthos frankfurtiano tem levado a esquerda, no meu entender, para um neospenglerianismo que perde exatamente o sal da utopia que Adorno talvez (eis uma dúvida a ser tratada nas próximas páginas) já não tivesse em quantidade suficiente para distribuir.

Adorno cita aprovativamente a visão spengleriana a respeito do habitante das metrópoles mundiais:

A imagem do morador das cidades modernas como um segundo nômade merece ser ressaltada. Ela não apenas expressa a angústia e a alienação, mas também a a-historicidade crepuscular de uma situação na qual os homens ainda se sentem como objetos de processos intransparentes, não sendo mais capazes, entre um choque repentino e um brusco esquecimento, de uma experiência contínua. Spengler percebe a conexão entre atomização e tipo humano regressivo, que se revelaria inteiramente apenas com o advento do totalitarismo: “Cada uma dessas metrópoles suntuosas abriga uma miséria horrível, um embrutecimento de todos os hábitos de vida, que já está gerando, entre portais e mansardas, sótãos e quintais, um novo homem primitivo”.

Esta regressão torna-se evidente nos “acampamentos” de todos os tipos, que não conhecem mais a noção de “casa”.[27]

O que é verdadeiro como crítica à vida das massas urbanas, e dolorosamente vívido na experiência do intelectual alemão exilado nos Estados Unidos da década de 1940,  traz provavelmente  embutida, entretanto, uma idealização da vida aldeã, que em Spengler, como vimos, era explícita, mas que aqui, na citação de Adorno, ainda assim pode ser detectada na frase final. Aquele “não conhece mais a noção de ‘casa’” sem dúvida projeta um passado em que essa noção foi, de algum modo, conhecida. O regime temporal do “não mais”, do “não é mais assim”, é recorrente no texto adorniano. Só no trecho citado, vemos que os novos nômades “não são mais capazes […] de uma experiência contínua”, e “não conhecem mais a noção de casa”.

Por certo, é comum vermos um segundo movimento nas argumentações de Adorno, o qual trata de eliminar qualquer vestígio nostálgico nesse tipo de evocação. Adorno pode lamentar, por exemplo, o decréscimo da liberdade individual no século XX, em comparação com o período de ascensão da burguesia; logo em seguida terá de lembrar que, mesmo então, essa liberdade individual era suspeita.[28]Que sirva como exemplo dessa reviravolta fraseológica, como que numa contorção súbita daquilo que se ia concluir, o seguinte trecho de Minima moralia:

O que já foi bom e decente no modo de vida burguês, independência, perseverança, previdência, cautela, está corrompido até o mais íntimo. Pois, ao mesmo tempo que se conservaram as formas burguesas de existência, seu pressuposto econômico desapareceu. O privado passou totalmente a ser o privativo, coisa que secretamente sempre foi.[29]

Do mesmo ponto de vista, a velha autoridade paterna, antes detestável, torna-se comparativamente amena. Pois, segundo Adorno, o colapso da instituição familiar desfez “não somente a mais eficaz instituição burguesa, mas a resistência, que decerto reprimia o indivíduo, mas também o reforçava, se é que não o produzia pura e simplesmente”.[30] Salta aos olhos o aspecto retorcido, sem dúvida proposital, da sequência de autocorreções na frase adorniana. Estamos sempre diante da ideia de que o bebê foi jogado fora junto com a água do banho, para lembrar a frase que dá título a outro fragmento de Minima moralia. Naturalmente, não faz sentido ter nostalgia da água — e tampouco esperar que algum bebê nasça do ralo… Pois aquilo que a diacronia negou (antigas virtudes burguesas, por exemplo) já era negado sincronicamente no passado (nunca foram virtudes de fato); de modo que o presente vem apenas desvelar, tirar a máscara, daquilo que no passado já se percebia ser mentira.

Na mesma linha, Adorno diverge dos que consideravam Hitler o responsável pela destruição da cultura alemã: “O que Hitler erradicou em matéria de arte e pensamento há muito já levava uma existência dissociada e apócrifa, cujos últimos refúgios foram varridos pelo fascismo […] em toda a sua extensão, a cultura alemã, precisamente onde era maisliberal, estava ávida por um Hitler […]”.[31]

Vemos que, ao lado do “não mais” coexiste um “já era assim”: não mais temos aquilo que, inicialmente conotado como ruim (individualismo burguês, família tradicional), ainda assim era preferível ao que  temos hoje  (totalitarismo). Contudo, aquilo que não  mais temos já era, no fundo, aquilo que temos hoje. Revelar isso, entretanto, exige cuidado: tornar equivalente o passado e o presente é ignorar que o desvelamento é pior do que a mentira, na qual, pelo menos, havia uma esperança de que fosse verdadeira. Nesse resumo sumaríssimo do funcionamento da “dialética do esclarecimento” encontramos, contudo, uma espécie de pessimismo em segundo grau. Se nem mesmo a mentira ainda temos… é evidente que tudo piorou; mas esse pessimismo não vê na volta ao passado nenhuma solução.

Adorno reprova em Spengler não a descrição dos acontecimentos, mas a certeza quase militar com que se decreta como inútil toda tentativa de resistir a eles. “O prognóstico da morte iminente da força do pensamento culmina na proibição do pensar, que procura se legitimar  pela  inexorabilidade  do  curso  da  história.”[32]  Seria  de  esperar, então, que Adorno propusesse uma interpretação segundo a qual a resistência a esses acontecimentos é possível. A surpresa, para o leitor, decorre da ideia de que essa interpretação pareceria a Adorno otimista demais, conivente com a barbárie instituída. O que resta, então? A esperança numa espécie de inominável, de não-dado. A proximidade entre Adorno e Spengler é bem mais do que casual. Se Valéry, diante da cultura, via o nada, Adorno parece dizer que só no nada ainda há brecha para aparecer a cultura:

Para escapar ao círculo mágico da morfologia de Spengler não é suficiente difamar a barbárie e confiar na saúde da cultura — Spengler poderia sorrir com desprezo diante dessa confiança ingênua. […] Todos são testemunhas da coação e do sacrifício que a cultura impõe aos homens. Confiar nela e negar o declínio significaria apenas sucumbir ainda mais profundamente ao seu enredo mortal.[33]

A saída, para Adorno, está naquilo que foi ignorado por Spengler: “as forças que foram liberadas na queda”. Mas a identificação dessas forças é deixada propositalmente em suspenso, mesmo porque nomeá-las seria, no fundo, dizer que “nem tudo está perdido”, que há alguma confiança em algum processo empiricamente identificável. “O que se opõe ao declínio do Ocidente não é a cultura ressurrecta, mas a utopia contida, em um questionamento sem palavras, na imagem da que sucumbe.”[34]

Torna-se difícil entender qual o ponto “arquimediano” em que a pálida esperança, ainda presente nessa frase, pode coexistir com um diagnóstico tão fechado como o que citamos em seguida, de um ensaio de 1949:

A tenebrosa sociedade unitária não tolera mais sequer aqueles momentos relativamente autônomos e distanciados, aos quais outrora se referia a teoria da dependência causal entre superestrutura e infra-estrutura. Nessa prisão ao ar livre em que o mundo está se transformando, já nem importa mais o que depende do quê, pois tudo se tornou uno. Todos os fenômenos enrijecem-se em insígnias da dominação absoluta do que existe. […] Neutralizada e pré-fabricada, a totalidade da cultura tradicional acaba sendo hoje aniquilada: através de um processo inexorável, a sua herança […] tornou-se dispensável e supérflua em larga escala, um refugo para o qual os mercadores da cultura de massa podem, então, novamente apontar com um sorriso irônico, já que eles a tratam exatamente dessa forma [como um refugo]. Mesmo a mais extremada consciência do perigo corre o risco de degenerar em conversa fiada. A crítica cultural encontra-se diante do último estágio da dialética entre cultura e barbárie: escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas.[35]

Diante desse parágrafo célebre, seria o caso de indagar se suas teses não são passíveis das mesmas críticas que Adorno dirigia a Spengler; decretar a inexorabilidade do processo, o enrijecimento de todos os fenômenos, a superfluidade da herança cultural, pode ter um efeito retórico, mas é exatamente aquilo que tornava o pensamento de Spengler incapaz de apontar uma alternativa para a barbárie. É óbvio que o tom de Adorno não é cúmplice da dominação, coisa que em Spengler salta aos olhos; ainda assim, certamente, aqui se aplica outra frase de Adorno, segundo a qual “só o exagero é verdadeiro”.[36]

5

É ainda nesse sentido, o de que um exagero retórico pode ter quase o papel de invocação ao desconhecido, de esconjuração do presente, que poderíamos dizer que as avaliações de Adorno a respeito do “espírito do tempo” ou do “ponto a que chegamos de barbárie/de civilização” correspondem muito menos a um julgamento pessimista ou otimista da situação (mesmo porque as ideias de “espírito do tempo” ou “estágio a que chegamos” não fazem imediatamente parte de seu repertório conceitual) e bem mais a um raciocínio tático.

São considerações de ordem tática as que orientam, por exemplo, o raciocínio de Adorno a respeito da tradicional ideia marxista segundo a qual a cultura burguesa é simples ideologia. Considerar que o mundo da cultura burguesa encobre interesses materiais é sem dúvida correto, diz Adorno, e é um ponto de vista que aproxima, por exemplo, Nietzsche e Marx. Contudo, se tomássemos ao pé da letra, e integralmente, a denúncia da cultura, “extirparíamos também com o falso tudo o que é verdadeiro […] Identificar a cultura unicamente com a mentira é o que há de mais funesto no momento em que aquela está se convertendo efetiva e inteiramente nesta, exigindo zelosamente uma tal identificação, de modo a comprometer todo pensamento que pretenda resistir”.[37] Mas, do mesmo modo, é sobretudo do ponto de vista tático, e com certa dose de exagero, que Adorno poderá dizer, na Dialética do esclarecimento, que “falar em cultura foi sempre contrário à cultura”.[38] Creio notar, na nostalgia e no pessimismo cultural que hoje é exercido pela esquerda, uma tendência para fixar, imobilizar o que é raciocínio tático em Adorno numa espécie de permanente queixa contra a degradação cultural e a ignorância das novas gerações. Se a frase “Falar de cultura já é ser contra a cultura” surge como equivalente simétrico do “Pois bem, somos bárbaros” modernista, é curioso que agora se insista na ideia de que nossa velha e querida civilização esteja a caminho da barbárie — pouco importa, nesse caso, se pelas mãos de Bush, numa óptica de esquerda, ou se pelas mãos de Bin Laden, na óptica do Pentágono, ou se pelas mãos da cultura de massa, ou se pelas mãos da arte conceitual pós-duchampiana, pois há gostos ou, melhor dizendo, desgostos para tudo.

No “Falar de cultura já é ser contra a cultura”, e no “Pois bem, somos bárbaros”, há uma coincidência que parece ser justamente o contrário da lamentação conservadora de esquerda ou de direita, ou até mesmo da constatação entre alarmada e espirituosa de um Valéry ao dizer que antes da guerra a civilização europeia “não se reconhecia mais, deixava de parecer-se consigo mesma”.[39] O uso quase afrontoso do paradoxo, nos dois casos anteriores, é justamente uma aposta naquelas coisas que não mais “se parecem consigo mesmas”; e aproxima-os de outra frase sobre a barbárie bastante conhecida. Refiro-me à tirada célebre de Lévi-Strauss, segundo a qual “o bárbaro é, em primeiro lugar, o homem que acredita na barbárie”.[40]

Não é fácil evitar o desconforto diante desse raciocínio, que tão abertamente joga com a contradição. Correndo o risco de parecer simplório, cumpre observar que, a rigor, o próprio Lévi-Strauss mereceria então ser chamado de bárbaro, já que é necessário acreditar na barbárie para chamar alguém de bárbaro; e se Lévi-Strauss chama alguém de bárbaro, Lévi-Strauss acredita na barbárie, e se Lévi-Strauss acredita na barbárie, ele é bárbaro segundo sua própria definição. Claro que podemos entender seu raciocínio de outra forma, mais irônica. Lévi-Strauss não temeria estar sendo contraditório; sem dúvida, sabe que está sendo contraditório. E talvez se possa dizer que justamente será bárbaro, ou vive num estado de barbárie, aquele que ignora as próprias contradições, aquele cujo pensamento não tolera a contradição, ou que leva excessivamente a sério o peso, a literalidade das próprias definições. Será bárbaro aquele que, diante da contradição, não souber como conviver com ela; não souber superar, dissolver, deslindar a contradição; ou melhor, será aquele que só sabe lidar com a contradição destruindo-a, atacando-a violentamente.

Se adotarmos esse conceito, não será problemático, a meu ver, distinguir entre barbárie e civilização; pois o que me parece tipicamente civilizado — por maiores que sejam os crimes cometidos em nome disso — é a ideia de que cumpre lidar com a contradição de forma não violenta. Querer, nos termos que empreguei acima, “deslindar” uma contradição não equivale simplesmente a tolerá-la. Mas exige, sem dúvida, que tomemos com leveza as palavras e conceitos de que fazemos uso. Não significa dissolver as diferenças entre civilizado e bárbaro, mas saber que o civilizado trata de superar essas diferenças, e o bárbaro, de destruí-las.

Não há nenhum paradoxo, nesse sentido, se dissermos que é bárbaro o regime talibã em comparação com a democracia norteamericana. O que não garante que o governante de uma democracia civilizada não fale ou se comporte como um bárbaro. A questão seria o grau de literalidade com que se entendem determinados princípios, valores, textos legais ou religiosos. A voz da “civilização” tenderá sempre a ser a voz da “decadência” e da “crise” quando se tratar de dissolver,  de uma crença, o seu vigor primevo, sua ingenuidade literal. Será também a tarefa de muitos “bárbaros” (no sentido não literal do termo) a de levar adiante essa estratégia dissolvente.[41]

Para citar uma última imagem relativa aos atentados do 11 de setembro, lembro um episódio curioso, o de um CD que ia ser lançado naqueles dias, de um grupo de rap chamado The Coup. O lançamento do CD teve de ser suspenso, pois sua capa mostrava justamente as torres gêmeas explodindo. No primeiro plano, um dos integrantes do grupo aparecia apertando o botão do detonador. O nome do CD era 5  milhões  de  maneiras  de  matar  um  executivo.[42] Assim  como  o verso de Carlos Drummond de Andrade, em que o poeta lamentava “não poder sozinho dinamitar a ilha de Manhattan”, tratava-se de uma hipérbole anticapitalista que não poderia ser tomada ao pé da letra. Mas, no clima imediatamente posterior ao 11 de setembro, a incapacidade geral de tomar as coisas num sentido irônico tinha se intensificado ao extremo. O mundo passava a entender cada imagem apenas em seu sentido literal; sem dúvida, “a América” tornara-se fundamentalista naqueles dias. E quando as fotos das ruínas do World Trade Center circularam como se fossem testemunhos de uma “civilização perdida”, como remanescentes arqueológicos envoltos na névoa do gótico tardio, o que havia de abuso metafórico naquela associação passara despercebido, ou melhor, era algo em que, sem ironia, as pessoas estavam dispostas a acreditar. Trata-se, como em toda lamentação sobre o declínio das coisas, algo a relativizar bastante.

[1] Paul Valéry. “La crise de l’esprit”. In: Variété. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1957, vol. 1,  p. 988.

   [2] T.S Elliot. .  Poesia.  Trad.,  introdução  e  notas  Ivan  Junqueira.  2a  ed.  Rio  de

Janeiro: Nova Fronteira, 1981

   [3] Jacques Barzun. Da alvorada à decadência. Trad. Alvaro Cabral. Rio de

Janeiro: Campus, 2002

   [4] Para uma lista razoavelmente ampla sobre o tema, apesar da argumentação muitas vezes superficial, ver   Herman. A idéia de decadência na história ocidental.

Trad. Cynthia Azevedo & Paulo Soares. Rio de Janeiro: Record, 1999

[5] Jacques Barzun, op. cit., p. 848.

[6] Samuel Huntington. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial (1996). Trad. M. H. C. Côrtes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, pp. 386-7

[7] Ibidem, p. 385

[8] Jacques Barzun, op. cit., p. 851

[9] Ibidem, pp. 840-1

   [10] Bernard Shaw. “Uma visão degenerada de Nordau”. In: O teatro das idéias.

Trad., prefácio e organização Daniel Piza. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 55.

[11] Ibidem, pp. 78-9

[12] Herman, op. cit., p. 136

[13] Dwight McDonald. “Uma teoria da cultura de massa”. In: B. Rosenberg; D. M. White (org.). Cultura de massa. Trad. Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix,1972, p. 83

[14] Jacques Barzun, op. cit., pp. 797-800

[15] Dwight McDonald, op. cit., p. 83

   [16] Para uma abordagem altamente polêmica das teses de McDonald e de outros críticos, ver Noël Carroll. A         philosophy of mass art. Nova York; Oxford: Oxford

University Press, 1998

[17] T.  S. Eliot, op. cit., p. 103

[18] Paul Valéry, op. cit., p. 988

[19] Ibidem.

[20] In: Paul Valéry. Pièces sur l’art. Oeuvres complètes, op. cit., vol. II, p.  1291

[21] Paul Valéry. “La crise de l’esprit”, op. cit., p. 992.

   [22] Paolo Rossi. Naufrágios sem espectador: a idéia de progresso. Trad. Álvaro

Lorencini. São Paulo: Editora da Unesp, 1999, pp. 130-1

[23] Maria Eugênia Boaventura (org.). 22 por 22: a Semana de Arte Moderna vista por seus contemporâneos. São Paulo: Edusp, 2000, p. 39

[24] Uma extensa literatura, em especial no âmbito alemão, contrasta o  mundo “orgânico”, “autêntico”, da cultura ao mundo “artificial”, “polido”, da civilização. Outros pares correlatos podem ser lembrados, que opõem o “espírito” francês à “alma” alemã, o “empirismo” britânico à wissenschaft germânica etc. É provável que toda cultura, mesmo a mais pragmática e materialista, tenha em seu próprio vocabulário termos para designar essa oposição; mesmo a “fria” e “analítica” e “corrosiva” (aos olhos do romantismo alemão) cultura francesa saberá distinguir, de modo  muito  francês,  o  esprit  de  géometrie  do  esprit  de  finesse.  Exigiria  muito tempo comentar essa distinção, que é mais um programa teórico do que uma ferramenta conceitual. Para uma crítica a toda diferenciação, ver Max Horkheimer e Theodor Adorno. Temas básicos da sociologia. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1978, pp. 93 ss., e Fritz Ringer. O declínio dos mandarins alemães. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo, Edusp, especialmente pp. 92-8

   [25] Oswald Spengler. Le déclin de l’Occident. Trad. M. Tazerout. Paris: Gallimard, 1948, vol. I, p. 44.

[26] Theodor Adorno. “Spengler após o declínio”. In: Prismas: crítica cultural e sociedade. Trad. Augustin Werner  &  Jorge  Mattos Brito  Almeida. São  Paulo:  Ática,1998, pp. 43-4.

[27] Ibidem, p. 46

[28] Veja-se a seguinte análise, publicada originalmente em 1944: “Outrora, a oposição do indivíduo à sociedade era a própria substância da sociedade. Hoje, o trágico dissolveu-se neste nada que é a falsa identidade da sociedade e do sujeito […]”. Entretanto, “o princípio da individualidade estava cheio de contradições desde o início. Por um lado, a individuação jamais chegou a se realizar de fato. O caráter de classe da autoconservação fixava cada um no estágio do mero ser genérico […] Ao mesmo tempo, a sociedade burguesa também desenvolveu, em seu processo, o indivíduo […] Mas cada um desses progressos da individuação se fez à custa da individualidade em cujo nome tinha lugar, e deles nada sobrou senão a decisão de perseguir apenas os fins privados”. Theodor Adorno; Max Horkheimer. Dialética do esclarecimento. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, pp. 144-5 (grifado no original).

[29] Theodor Adorno. Minima moralia. Trad. Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Ática, 1993, p. 28 (§14)

[30] Ibidem, p. 17 (§ 2)

[31] Ibidem, p. 49 (§ 35)

[32] Theodor Adorno. Prismas: crítica cultural e sociedade, op. cit., p. 52.

[33] Ibidem, p. 66

[34] Ibidem, pp. 66-7.

[35] Theodor Adorno. “Crítica cultural e sociedade”, ibidem, pp. 25-6

[36] A frase surge a propósito de um trecho de Sade, em Dialética do esclarecimento (op. cit., p. 111), e também como uma avaliação da obra de Freud, em Minima moralia (op. cit., p. 41, § 29).

[37] Theodor Adorno. Minima moralia, op. cit., p. 37 (§ 22)

[38] Theodor Adorno; Max Horkheimer. Dialética do esclarecimento, op. cit., p.

123.

[39] Paul Valéry. “La crise de l’esprit”, op. cit., p. 989.

[40] Claude Lévi-Strauss. Raça e história. São Paulo: Perspectiva, 1970, p. 238.

[41] Não tendem a outra conclusão os comentários de Jean Starobinski ao sugerir, como “valor mesmo que define uma civilização”, o de “uma civilização que suportasse em si sua própria crise permanente, incluindo em si a liberdade crítica mais desperta, a razão mais independente, as quais reconheceriam o mundo real de que procedem, isto é, a civilização como fato adquirido, à qual oporiam, contudo, de maneira polêmica, o projeto de uma civilização mais conforme à exigência de universalidade que sustenta a razão crítica em seu trabalho […]”. As máscaras da civilização. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 53-4

[42] Época, ano IV, n0 174, 17 nov. 2001, p. 28.

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