1990

O fogo escondido

por Adauto Novaes

Se as paixões se excitam no olhar e crescem pelo ato de ver, não sabem como se satisfazer; o ver abre todo o espaço ao desejo, mas ver não basta ao desejo. O espaço visível atesta ao mesmo tempo minha potência de descobrir e minha impotência de realizar. Sabemos o quanto pode ser triste o olhar desejante.

Jean Starobinski, L’oeil vivant.

Acontece com os afetos e desejos o mesmo que acontece com a liberdade: uma prodigiosa desatenção, perda de intensidade, um estado de perturbação provocado pela imaginação delirante. Apesar disso, uma força estranha conduz o espírito a desafiar o obscuro, o dissimulado e o ausente. O desejo é parte desse percurso do pensamento que, com Os sentidos da paixão e O olhar, procura apreender aquilo que nos escapa: da mesma maneira que o olhar, o desejo fascina, quer dizer, faz brilhar o fogo escondido. Procuramos, pois, dar resposta a algumas interrogações: Por que, muitas vezes, o objeto do desejo confunde-se com a embriaguez do próprio desejo? O que leva os homens a desejar a dominação como se fosse a liberdade? Por que somos mais sensíveis à sedução dos objetos do que aos desejos naturais e necessários? Além do grande olho inquisidor, que se interioriza a ponto de não o vermos mais como uma potência separada, preparando assim o império do terror, quais os mecanismos que impedem a satisfação do desejo e a realização do prazer? Por fim, que afetos diminuem a nossa potência de pensar e de agir?

Os textos de O desejo têm um duplo movimento: primeiro, reconhecem que os sentimentos e condutas humanas são coisas naturais, que “seguem as leis ordinárias da Natureza” e, portanto, tão dignas de serem compreendidas como qualquer outra coisa: como força impulsiva, o desejo não pode ser ridicularizado como contrário à Razão; segundo, os ensaios do livro procuram conhecer a origem ou causa dos desejos porque os homens, conscientes das suas ações e dos seus desejos, podem “ser ignorantes das causas que os determinam a desejar algo”.[1]

Reconhecemos que, muito além do furor que censura porque vê nos afetos, com virtuoso cinismo, desrazão e ilusão, e do furor que deseja, levado apenas pelas inclinações de poder, está o trabalho do pensamento, não como pura e descarnada reflexão, mas como força dos afetos nascidos da Razão. Os olhos nus, que revelam a eloquência das paixões, exigem apenas uma renúncia do desejo: a de que ele jamais se torne mestre e senhor do próprio desejo.

Se desejamos mais do que aquilo que os olhos dizem e do que prometem as paixões é porque existe um movimento vivo e secreto do desejo que nenhum pensamento revela inteiramente: “Para mim”, escreveu Henry Miller, “os artistas, os sábios, os filósofos parecem muito ocupados em polir lentes. Tudo isto não é senão uma vasta preparação tendo em vista um acontecimento que jamais se produziu. Um dia, a lente será perfeita; e neste dia perceberemos claramente a espantosa, a extraordinária beleza deste mundo”. Isso quer dizer que, contra a preguiça do olhar imediato e dado, está o trabalho; mas, se Henry Miller nos convida à paciência da reflexão, ele nos induz também a desconfiar dos reflexos de uma lente mal polida, que nos dá uma visão não apenas deformada mas principalmente imaginária da realidade. O que aconteceria com o desejo diante de um mundo imaginário? “De fato, tudo se passa como se o mundo fosse muito estreito para a presença simultânea da consciência desejante, do objeto desejado e do testemunho severo. Seu afrontamento provoca um mal-estar intolerável. É preciso que um dos três se dissimule, transforme-se ou desapareça. Graças ao recurso da imaginação, graças à docilidade do desejo, as soluções possíveis são numerosas”.[2]

Sabemos que os desejos alimentam-se de imagens, caminham em direção ao imaginário como se trafegassem por entre a “representação que os seduz e a tendência da qual eles emanam”.[3] A origem errante e a natureza ambígua da relação desejo-imagem produzem a ilusão de que nossos desejos não são naturais, sendo, portanto, estranhos ao nosso corpo e à nossa alma. Essa ilusão concebe o homem da Natureza como “um império no império”. A relação desejo-imaginação é um modo acidental de que se serve o supersticioso para ordenar o próprio desejo. Dá uma extrema mobilidade à alma humana: ela se dispersa, faz voltar tristezas desaparecidas, projeta-as para o futuro. E, temor dos temores, deseja e imagina uma vida eterna, desejo errante com enorme poder de antecipação. “Ficção ativa”, diz Marx, ao comentar o acaso e o representável do método próprio à consciência que imagina “e que não faz outra coisa senão bater-se contra a própria sombra; o que é a sombra depende da maneira pela qual ela é percebida e pela qual o objeto que reflete recolha nela seu próprio reflexo”.[4]

Pascal nomeia a imaginação de soberba potência. Montaigne descreve-a como erro e desordem que entram no espírito e tumultuam o corpo, um alimentando o outro. Nos Ensaios, este narra de maneira minuciosa a força da imaginação: “Sou desses sobre os quais a imaginação tem grande domínio. Todos são atingidos por ela, mas alguns há que ela derruba. Ela me persegue e eu me esforço por fugir da impossibilidade de lhe resistir. Viveria sempre, de bom grado, na companhia de pessoas sadias e de bom humor; a vista das angústias alheias influi fisicamente em mim de maneira penosa, e não raro sofro ao sentir que alguém sofre”.[5] Para Merleau-Ponty, a imagem apenas resume certo trabalho de pensamento, ou traz referências simbólicas a certos objetos de pensamento. Pergunta: Como a imagem pode se deixar utilizar pelo pensamento, entrar em relação com ele? O que significa em um sujeito a predominância da vida imaginária? Qual é o sentido do ato de imaginar na vida do homem? “Para saber isso, é preciso uma análise que nos mostre, por exemplo, que a imagem é, por princípio, algo que não é observável, ainda que pretenda ser. Há uma espécie de impostura essencial da imagem.” Para ele, a imagem é, pois, uma pretensão infundada da presença de uma ausência, uma “evocação do objeto no sentido que se diz de evocar os espíritos. Bachelard aponta uma distinção entre imagem percebida e imagem criada como duas instâncias psiquicamente diferentes e cita Novalis: “Da imaginação produtora devem ser deduzidas todas as faculdades, todas as atividades do mundo interior e do mundo exterior”.

A passagem, pois, da imagem à imaginação traz uma diferença fundamental para a questão do desejo. No livro II da Ética, de Spinoza, temos uma definição precisa dessa passagem: “Chamaremos imagem das coisas as afecções do corpo cujas ideias representam os corpos exteriores como presentes embora não produzam as figuras das coisas. Quando a alma contempla os corpos por esse processo diremos que imagina”. A imaginação é ideia imaginativa, como escreveu Marilena Chaui: “A imagem tem uma origem corporal (imago) e uma réplica anímica (imaginatio) — é uma afecção do corpo e uma representação dessa afecção. Quando imagina, a alma não tem ideia da imagem; simplesmente possui uma representação da imagem, razão pela qual ‘reproduz figuras das coisas’. A imaginação não é imago nem figura, é ideia imaginative”.[6] Entendemos, então, o que Alain quis dizer quando afirmou que a imaginação triunfa e morre no seu contrário. “Quando escuto o suposto ladrão atrás da porta, escuto sua respiração através da fechadura, essa respiração é a minha. Mas o ladrão que não escuto é o mais temível.”[7]

A imaginação, forma particular de conhecimento através de imagens é, para Spinoza, diferente do entendimento e fonte de ideias confusas; para Sartre, um “aspecto degradado do pensamento”.[8] As ideias falsas, as ficções e outras ideias semelhantes têm origem na imaginação, isto é, em algumas sensações fortuitas e isoladas ”que não são produzidas pela própria potência do espírito, mas por causas exteriores segundo os movimentos diversos que afetam o corpo”. A imaginação é algo errante, e a alma, no caso, passiva. Para distinguir os desejos naturais e necessários daqueles produzidos pelo acaso e pelos encontros fortuitos, é preciso, primeiro, compreender a diferença entre imaginação e entendimento. É essa diferença que Spinoza expõe em carta a Jean Bouwmeester:

Penso dar uma resposta satisfatória se demonstrar que se deve necessariamente ter um método pelo qual podemos dirigir e encadear nossas percepções claras e distintas e que o entendimento não é, como o corpo, submetido ao acaso. O que quer dizer que uma percepção clara e distinta ou várias percepções desse gênero ao mesmo tempo podem ser causa, absolutamente falando, de outra percepção clara e distinta. E mesmo todas as percepções claras e distintas que formamos só podem nascer de outras percepções claras e distintas que estão em nós e não admitem nenhuma causa exterior. De onde se conclui que as percepções claras e distintas que formamos dependem unicamente de nossa natureza e de suas leis determinadas e permanentes, isto é, de nossa potência absolutamente nossa: de nenhuma maneira elas dependem do acaso, isto é, de causas agindo segundo leis determinadas e permanentes, mas desconhecidas de nós e estranhas à nossa natureza e à nossa potência. Para as outras percepções, reconheço que elas dependem muito mais do acaso. Concluímos com clareza qual deve ser o verdadeiro método e em que ele consiste essencialmente: apenas no conhecimento do entendimento puro, de sua natureza e de suas leis. Para adquiri-lo é preciso, antes de tudo, fazer a distinção entre imaginação e entendimento, isto é, as ideias verdadeiras e as outras ideias fictícias, falsas, duvidosas e todas as que dependem apenas da memória.[9]

O que significa “nossa potência absolutamente nossa”? O que são “causas agindo segundo leis determinadas e permanentes, mas desconhecidas de nós e estranhas à nossa natureza e à nossa potência”? Isso significa que estamos permanentemente sujeitos ao erro porque permanentemente estamos em relação imediata com os corpos exteriores e com nossa própria alma nas formas de afecções e afetos; pode ser entendido também, em termos metodológicos, como a diferença entre substância e acidente: substância é o que se concebe por si e em si, isto é, aquilo cujo conceito não implica o conceito de nenhuma coisa; acidente é aquilo que está em outra coisa e se concebe através daquilo no qual está, o que torna manifesto que uma substância é, por natureza, anterior a seus acidentes.[10] A passagem do erro à verdade é mediada, pois, pelo entendimento; ou melhor, “a passagem do erro à verdade não é supressão da esfera afetiva e perceptiva, mas comprensão dela”.[11] Léon Brunschvicg mostra que este conhecimento de primeiro gênero (pela imaginação), isto é, conhecimento que provém dos objetos singulares, a partir da existência do homem considerado como indivíduo posto no meio das coisas individuais, é, inicialmente, contingente. Nesse caso, são as condições externas que determinam e limitam a duração do ser; porque depende da ordem comum da Natureza, o homem tem apenas uma ideia confusa da própria duração, “uma existência contingente e corruptível”.[12] Como demonstra Spinoza nos livros II e III da Ética, o homem, na sua relação com o universo, não é causa adequada ou integral, mas apenas causa inadequada e parcial. Uma vez que sua atividade é determinada pela atividade de corpos externos, ela deixa de ser pura atividade para tornar-se, antes, passividade. Os atos dos quais não somos propriamente autores não são ações, mas paixões. O homem está sujeito ao acaso e aos encontros fortuitos, o que, como lembra ironicamente Alain, leva a origem das riquezas ao acaso ou aos maus encontros porque o trabalho não enriquece sem o encontro da fortuna. Ele conclui: perguntar se a fortuna é justa é perguntar se a loteria é justa.

O problema desse gênero de pensamento é que o homem, depois de provocar a imaginação, não sabe como se livrar dela, e quanto mais pensa e deseja a partir dele mais alucina: esta é uma das origens da superstição do que afirma que o pensamento nada pode; todas as coisas fogem, mostram-se, escondem-se, e, apesar de tudo, esquece-se que a força da imaginação está por inteiro em nosso corpo. Ficamos perdidos para a realidade: ser governado por ela é a própria origem das tragédias porque a impotência já é reconhecida desde o início como fatalidade. De que maneira o homem, submetido ao acaso, pode governar seus sentidos? Um exemplo extraído por Alain da República, de Platão, mostra as ambiguidades das emoções elementares e de que maneira, sob a imaginação, horror e desejo andam juntos: “Um homem foi possuído pelo desejo de ver corpos de supliciados que estavam expostos nas muralhas; não podendo conter nem afastar esse odioso pensamento, correu em cólera em direção às muralhas gritando para seus olhos: ‘Ide, olhos meus, ide, pobres diabos, regalai-vos com esse belo espetáculo!’ “.

São, pois, as leis da imaginação que constituem esse tipo de conhecimento do primeiro gênero. A vida do homem entregue a esse conhecimento é uma vida de paixão. No princípio, é, pois, o efeito de um corpo sobre o nosso, e a constituição de ideias que representam o que chega até nós. Essas ideias são signos que afirmam a presença do corpo exterior, que podem ser tanto afecções atuais quanto a atualização ou presença de afecções passadas, vestígios que permanecem: o nosso corpo passa a ser, pois, “a morada dos deuses”.[13] A partir daí, ingenuamente, o corpo se priva da presença do mundo. Todo o problema está, portanto, não em como expulsar os deuses do nosso corpo, e sim em como entrar, com eles, no mundo. Ou seja, como ser senhor das nossas sensações, voluntariamente. Mas tudo depende do estado do nosso corpo, dos nossos sentidos: olhar e memória podem ser excitados por objetos presentes e ausentes, porém o que importa é que muitas vezes essa passagem sobre o corpo deixa marcas, presença de uma ausência. Muitas vezes, estabeleceu-se um doloroso contraponto entre o corpo, a alma e as coisas, sem que se possa definir claramente o que afeta o quê, uma vez que, no final das contas, são destinos associados que estão em jogo: se, de um lado, há coisas que nos tocam, de outro há a alma que contempla e interroga. Dois fragmentos de Proust, tirados de Les regrets, rêveries couleurs du temps, dão conta dessa relação:

O mar alegra nossa alma porque ele é, como ela, aspiração infinita e impotente, élan rompido sem cessar e quedas, lamento eterno e doce. Ele nos encanta também como a música que não traz como a linguagem a marca das coisas, que nada nos diz dos homens, mas que imita os movimentos da nossa alma. Nosso coração, enlaçando-se às suas vagas, caindo com elas, esquece assim suas próprias fraquezas, e se consola em sua harmonia íntima entre sua tristeza e o mar, que confunde seu destino com o destino das coisas […].A única realidade estava nessa luz irreal, e eu a invocava sorrindo. Eu não compreendia que misteriosas semelhanças uniam minhas penas aos solenes mistérios que se celebravam nos bosques, no céu e no mar, mas sentia que sua explicação, seu consolo, seu perdão eram ditos, e que era sem importância que minha inteligência descobrisse o segredo, porque meu coração o compreendia muito bem.


Na sua radicalidade, indo além dos limites dos tormentos das afecções mais delicadas, submetendo-se quase que por inteiro à lógica das emoções e à inteligência do coração, Proust é talvez o melhor exemplo da força dos corpos exteriores: “Se um outro se assemelha a mim”, escreve ele, “é porque eu sou alguém “. Chegou a dizer mais de uma vez em uma de suas sessenta cartas publicadas por Lucien Daudet: “Mamãe… não a diferenciava de mim (aliás, creio já ter dito isso a você muitas vezes)”. Completa subversão do argumento ontológico, afirma André Vial nos ensaios Proust, âme profonde e Naissance d’une esthétique: aqui, Proust inventa um novo cogito sem cogito; não o “penso, logo existo”, mas sim “assemelha-se a mim, logo existo”. Esse conhecimento delirante, genial em Proust porque consegue transformá-lo em obra de arte, é signo de uma potência externa: o que são as intermitências do coração senão o corpo sensível coberto de sombras ora alegres ora tristes, sucessivamente? O testemunho de Lucien Daudet é muito forte nesse sentido: “Marcel Proust dizia boa-noite à sua mãe, beijava-a com uma adoração infantil, lenta e apaixonada como se quisesse a cada noite retomar forças nos braços que o haviam embalado”. É irresistível aproximar, nessa incessante busca da identidade fora de si, estas duas potências da natureza que se fundem tão bem na língua de origem: mer-mère. Enfim, um desejo todo construído na imaginação, como encerra o próprio Proust: “Ela era, talvez, a insensível e inconsciente testemunha de sua própria graça. A sua mais real beleza estava, talvez, no meu desejo”.

No início, quase todos os nossos conhecimentos são misteriosos, e a história do pensamento é este esforço de descobrir coisas através das nuvens da imaginação. Esforço que envolve corpo e alma. Para isso, destacamos duas noções importantes expostas nos livros II e III da Ética, de Spinoza: a primeira é a doutrina do paralelismo corpo-alma; a segunda é sobre a relação erro-imaginação-saber. O paralelismo é a crítica à ideia, ainda hoje dominante, da separação corpo e alma e toda a visão moral que dela decorre e que afirma que o corpo sofre quando a alma age, o corpo não age sem que a alma por sua vez sofra. Ora, a doutrina do paralelismo propõe uma mudança essencial quando afirma que o que é paixão na alma é também paixão no corpo, o que é ação na alma é também ação no corpo.[14] Isto é, “a ordem das ações e das paixões do nosso corpo vai de par, por natureza, com a ordem das ações e das paixões do espírito”. Ora, se corpo e alma estão submetidos às paixões, à mercê dos encontros fortuitos, e uma vez que nossa condição natural nos determina a ter ideias confusas e inadequadas e, principalmente, sofrer a mais terrível das paixões que são as flutuações da alma,[15] como então chegar às ideias claras, aos desejos não-irracionais e como enfrentar a imaginação? Para Spinoza, o erro não está na imaginação:

Para esboçar a teoria do erro, gostaria que se observasse que as imaginações do espírito, consideradas em si, não contêm erro, isto é, que o espírito não erra porque imagina, mas apenas quando ele é considerado como privado da ideia que exclui a existência das coisas que ele imagina presentes. Porque se o espírito, imaginando presentes coisas que não existem, soubesse ao mesmo tempo que essas coisas não existem realmente, ele veria essa potência de imaginar como uma virtude de sua natureza e não como um vício; principalmente se esta faculdade de imaginar dependesse apenas de sua natureza, isto é, se a faculdade de imaginar do espírito fosse livre.[16]

Podemos compreender, enfim, o que é desejo que nasce da razão: é aquele que tem sua origem em nós mesmos, e que, portanto, é a própria essência do homem. Agir através das paixões é agir pela virtude do outro, mas se o homem for conduzido pela razão jamais será levado a obedecer. A autonomia é, pois, a virtude primordial, força dos afetos nascidos da razão. Como foi exposto, o homem não nasce racional, mas pode tornar-se racional: tudo depende do esforço para combater o acaso, os encontros fortuitos, selecionando e organizando os bons encontros, isto é, no lugar daqueles que mutilam e diminuem nossa potência de pensar e agir (paixões tristes), selecionar aqueles que compõem conosco e nos inspiram paixões alegres, sentimentos que convêm à razão. Assim se forma o conhecimento do segundo gênero (as noções comuns), que são ideias adequadas e que se opõem ao conhecimento que depende da pura imaginação. 
A segunda ideia forte do texto de Spinoza refere-se à relação imaginação e saber. O saber não exclui a imaginação, mas dá a ela condições para conhecimento de si. Esse conhecimento de si da imaginaçãopode se expressar de duas maneiras: a primeira é através do conflito entre ideia e imagem: aqui, a ideia se sobrepõe à imagem, “visto ser ela potência de afirmação e conhecimento da origem e natureza da própria imagem”[17] a segunda relação se dá no interior da própria imaginação: há um conflito entre imagens fortes e imagens fracas, produzido pelos afetos originados da alegria e da tristeza. A alegria voluntariamente suscitada por uma imagem pode ser mais forte que uma sensação dolorosa.[18] Esse princípio já tinha sido invocado por Epicuro quando expunha de que maneira o sábio — a encarnação do saber — deveria se portar para ser feliz no meio dos sofrimentos: evocar imagens do passado que lhe são agradáveis e afastar as que lhe são penosas: “opondo um prazer a uma dor pelo jogo voluntário da sua imaginação, o sábio atinge a felicidade, da mesma maneira que, perturbando por uma operação inversa o bem-estar físico através dos vãos temores e ideias falsas, o vulgo se torna infeliz” .

 Notas

[1] Spinoza, L’Éthique, V, prefácio, in Oeuvres completes, Bibliothèque de la Pleiade, Gallimard, p. 488.

[2] Starobinski, Jean, Jean-Jacques Rousseau: la transparence et l’obstacle, Bibliothèque des Idées, Gallimard, 1971.

[3] Alquié, Ferdinand, Le désir d’éternité, Presses Universitaires de France, p. 48.

[4] Marx, Karl, Philosophie épicurienne, in Oeuvres III, Philosophie, vol. I, Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard, p. 805.

[5] Montaigne, Michel de, Ensaios, tradução de Sérgio Milliet, Biblioteca dos Séculos, Globo, 1961, p. 171.

[6] Chaui, Marilena de Souza, A nervura do real — Espinosa e a questão da liberdade, tese de livre-docência em filosofia, vol. II, pp. 503-4.

[7] No Système des beaux-arts, Alain estabelece uma relação entre a imaginação-memória e a falsa percepção. O mesmo tema pode ser encontrado também nos Propos , vols. I e II, Bibliothèque de la Pleiade.

[8] Sartre, Jean-Paul, L’imagination, Presses Universitaires de France, p. 9.

[9] Spinoza, Correspondance, in Oeuvres completes, op. cit., pp. 1194-5.

[10] Idem, ibidem, p. 1067.

[11] Chaui, Marilena de Souza, op. cit., p. 519.

[12] Brunschvicg, Léon, Spinoza, cap. V, Félix Alcan, 1894.

[13] Traduzo tombeau por “morada”, sugerindo uma passagem transitória dos deuses, isto é, dos afetos e afecções. Nosso corpo é a morada de tantos deuses quanto for a capacidade da imaginação. Como escreve Marilena Chaui, a imaginação indica mais a constituição do nosso corpo do que a natureza da coisa externa.

[14] Sobre a doutrina do paralelismo, ver Gilles Deleuze, Spinoza et le problème de l’expression, Minuit.

[15] Chaui, Marilena de Souza, op. cit.

[16] Spinoza, L’ Éthique , II, in Oeuvres completes, op. cit., p. 377.

[17] Chaui, Marilena de Souza, op. cit., p. 507.

[18] Brochard, Victor, “La morale d’Épicure”, in Etudes de philosophie ancienne et de philosophic moderne, Bibliothèque d’histoire de la philosophie, Vrin, 1974, p. 296.