2005

O fim do mundo finito [Valéry]

por Michel Déguy

Resumo

No poema em prosa Le vent du Nord, do final do século XIX, Paul Valéry declara o  começo do mundo finito. Para Michel Déguy não estamos no começo do mundo finito e sim no fim pois esse “tempo do mundo finito” acabou.

Denominamos esse fim “mundialização”. A globalização tanto destrói quanto recompõe o todo. Paul Valéry inventa em prosa poética o que será teorizado quase um século depois. Há, contudo, uma diferença pequena e radical entre o tempo de Valéry e o nosso. A civilização mundial é a dita “mundialização” em certos aspectos antecipados por Valéry, mas noutros não, na medida em que o debate não é mais entre cultura e civilização mas entre as culturas no plural.  A questão é saber se o “multiculturalismo”, ou diversidade das culturas no cultural (heterogeneidade apaziguada pelo mercado) produzirá “civilização” (mundial). Valéry dizia que as civilizações eram mortais: talvez a questão tornou-se a de saber se a civilização (do cultural) é mortal…

Paul Valéry focaliza a “antropomorfose”, o devir do homem. O homem não conservará o nome de homem. Valéry não concede ao homem o nome de “super-homem” (pois ele não pensa em Nietzsche; talvez porque não pense em termos de valores). O encadeamento é rápido: reconhecimento do ser nada e a bifurcação possível entre o desaparecimento e a substituição normal, a clonagem imortal de sua onipotência.

Se Valéry sabe prever o “fenômeno futuro” do fim do homem, ainda assim ele pertence ao mundo moderno, isto é, ao “pré-pós” moderno.


VENT DU NORD-EST

L’homme n’a pas encore commencé son travail: il en est encore à préparer ses outils. Quand le temps sera venu, à peine gardera-t-il ce nom d’homme…

(Le grand vent qu’il fait, qui crie dans la cheminée, me souffle des insanités.)

— Quelle acquisition, la mémoire!…

Quand l’homme aura reconnu qu’il n’est rien, alors cela pourra commencer. Alors l’intelligence pourra ou disparaître, ou tout remplacer? Elle commencera à bâtir.

Les questions, les énigmes nécessaires auront été avalées. Naître, souffrir, mourir ne feront plus de difficultés. Il y aura longtemps que l’énergie, les matières, les êtres vivants auxiliaires seront à disposition. Le commerce, l’industrie, ne seront plus. Il y aura une seule science et elle sera presque innée.

La terre ne sera qu’une ville. Rien ne se fera plus naturellement — c’est-à-dire aveuglément.

Paul Valéry,

VI, 255 [1916], em Poésie perdue,

Paris, Gallimard, 2000, p. 118.

VENTO DO NORDESTE

O homem ainda não começou seu trabalho: está ainda preparando suas ferramentas. Quando chegar o momento, dificilmente conservará o nome de homem…

(O grande vento que faz, que assobia na lareira, me sopra insanidade Que aquisição a memória!…

Quando o homem tiver reconhecido que é nada, então poderá começar. Poderá a inteligência ou desaparecer ou substituir tudo? Ela começará a construir.

As questões, os enigmas necessários terão sido rebaixados. Nascer, sofrer, morrer não serão mais dificuldades. Haverá muito que a energia, os materiais, os seres vivos auxiliares estarão à disposição. O comércio e a indústria não mais existirão. Haverá uma única ciência e ela será quase inata.

A terra será apenas uma cidade. Nada mais se fará naturalmente — isto é, às cegas.

Paul Valéry

__________

De Paul Valéry há uma leitura, não redutora, mas acadêmica, mundana, rotineira e acima de tudo enfraquecedora, e uma leitura feita a partir de sua extremidade, que não o faz entrar na paisagem como uma velha colina, ponto de referência, que não o submete à erosão, se quiserem, mas torna a aguçá-lo, renova sua complexidade. A primeira introduz Paul Valéry nos manuais, e a segunda, para exemplificar com o nome de um pensador contemporâneo, eu diria que é a de Jacques Derrida, cujo estudo, desde o título, intriga: “Qual Quelle”.

Ao tornar-se célebre, uma obra entra em nosso cenário institucional, ou, como se diz hoje, no “patrimônio” (o patrimônio “cultural”), e ela é antes visitada do que lida, perde sua atualidade, não se conta mais com ela para modificar o presente, para compreender o acontecimento ou, pelo menos, para figurar como uma força do presente. Ora, evidentemente, o que me pergunto é por onde Paul Valéry poderia ainda ser “de atualidade”…

A leitura de Paul Valéry que chamei acadêmica, erosiva, seleciona na obra (de fato, é a leitura por “trechos seletos”) o que seriam as “causas” do reconhecimento público crescente e inelutável do “grande escritor”; é uma leitura conservadora, se quiserem, cujo efeito de perspectiva é estabelecer a autoridade de um autor; a outra leitura, a que renova, se dedicará antes a “fazer viver” o autor, como se diz — mas reavivando suas contradições, sua complexidade, sua obscuridade, suas próprias salmodias.

Como sabemos bem, no caso de Paul Valéry, o retrato oficial — que pode evidentemente ser bem pintado e de boa fatura — acompanha-o da Agência Havas  à Academia,  da Nouvelle Revue Française aos frontões do Palais de Chaillot, dos discursos e comendas oficiais aos funerais nacionais, da poesia neoclássica à predileção ainda muito recente por certas adaptações teatrais burguesas, com Pierre Fresnay como Fausto! O outro interesse (o outro culto) volta-se para a lucidez anterior à aurora, os Cahiers [Cadernos] do despertar “antes de todo o mundo”, a filiação mallarmeana, a poética do Collège de France engendrando a revista Tel Quel há quarenta anos, ou para pesquisas formais como as de Gérard Genette, a diversidade dos livros publicados — e também para a erótica secreta e aquela parte maldita cuja publicidade os herdeiros, naturais desta vez, gostariam de adiar. Buscando, pois, responder  a uma questão simples  do tipo  “Paul  Valéry hoje para nós”, permito-me evocar furtiva e modestamente o que ele foi para mim, um encontro: meu pai — que nasceu quando Valéry tinha 35 anos — tinha um culto por Valéry e por Alain. Possuía belas edições de La Jeune Parque [A Jovem Parca] e do Cemitério [O cemitério marinho] com os comentários de Émile Chartier (Alain). Não se cansava de citar o incipit de Monsieur Teste, “a estupidez não é o meu forte”, ou o do discurso pronunciado por Gabriel Hanoteaux ao receber Valéry na Academia Francesa: “Senhor, nascestes em Sète”; folheava mentalmente o Album de vers anciens [Álbum de versos antigos], conhecia Les colonnes [As colunas], Narcisse [Narciso], Les pas [Os passos], ou declamava La Jeune Parque, que aprendera de cor: “Qui pleure là sinon le vent simple à cette heure” [Quem chora ali senão o vento simples a esta hora]; Regards sur le monde actuel [Olhares sobre o mundo atual] era para ele um oráculo (“o tempo do mundo finito começa”)… E, do Panteão de Valéry, Leonardo [da Vinci] e Edgar Poe, ele fizera o seu. Mantinha ele próprio seus cadernos — que conservo comigo. E não duvido de que foi por imitação de seu mestre. Eu poderia citar outros traços, inclusive o da superioridade “masculina” que reduz “a mulher” ao “doce clamor de um ombro bastante puro, nada detestável de ver despontar entre dois pensamentos”.

Paul Valéry, essas quatro sílabas, esse grande significante francês, faz parte de minha infância… como dizer?… misturado aos anos de ginásio na Paris da guerra, às ruas que percorri; nos plátanos parisienses de minha memória há o de Valéry, “tu penches beau platane…” [inclinas-te belo plátano]; havia entre nós, “bons alunos” clássicos, uma disputa, uma competição entre partidários do verso livre ou do verso claudeliano e, de outro lado, os defensores da prosódia clássica, opondo-se “Au sujet d’Adonis” [Acerca de Adônis] contra as “Positions et Propositions” [Posições e proposições] de Paul Claudel, como outrora Corneille contra Racine, toda uma encenação da Querela dos Antigos e dos Modernos em cujo ritmo vive há tantos séculos a literatura e que nos preparávamos para herdar: essa espécie de prosopopeia da literatura em que consiste a literatura.

Foi por isso — já que os filhos contestam os pais para se emancipar da imitação, no que obedecem fatalmente à lei — que minha própria recusa filial da herança me fez “esquecer” Valéry. Em que momento? Quando meus estudos de filosofia e meu próprio “devir poeta” (se ouso dizer) me fizeram descobrir Kant e Mallarmé, ou Heidegger e o Surrealismo, entre tantos outros nomes e possibilidades que pareciam aos estudantes mais decisivos que Valéry. Com esses nomes lançávamos à cara dos pais nosso não.

E aconteceu-me, na universidade, de pensar que se deveria poder mostrar em quê, com precisão, o poema de Valéry, que em seu tempo foi tido por obscuro (cf. Alain), é menos forte e menos belo que seu modelo mallarmeano reverenciado…

Nem a poesia nem a filosofia, mas nem o romance nem uma ciência, conseguem monopolizar Valéry. Espírito infinitamente crítico, “cético”, ele não reserva a nenhuma, a nenhum, uma afeição privilegiada, buscando antes separar-se para questionar, provocar, às vezes escarnecer, reduzir-lhes a “pretensão”. Ele está à parte e em toda parte — em toda parte à parte.

De que seria ele então, para nós, um herói, um tipo? E seu nome o epônimo de quê? Talvez da literatura, e francesa. (Imagine-se hoje esta glória precoce que levou Valéry, no começo do século XX, a queixar-se nestes termos: “Vejo diariamente antigos amigos venderem o que eu lhes escrevera confidencialmente […] esses meus papéis são negociados, oferecidos a domicílio, aparecem nas vitrines, são reproduzidos nos catálogos […]!”).

Promotor de uma espécie de herói, “Monsieur Teste”, ele tornou-se um tipo. Sua vida “para nós” virou “lenda” que se mistura à sua obra. Sonhador de uma “comédia do intelecto”, cujos personagens semifictícios chamavam-se Poincaré ou Degas e tantos outros, e entre eles o autorretrato parcial de um asceta que “havia matado a marionete” (Teste), ele tornou-se para nós um de seus próprios personagens, filho do cogito e da Terceira República.

A conversação, a missiva, o elogio, o escrito de circunstância, e a “redação” no sentido do ministério e do secretariado (talvez  como um avatar distante dos “notários” do rei da Sicília), são traços que fizeram dele o intelectual moderno, buscando toda manhã, com a pena, “o que ele pensa”, submetido ao “controle do acontecimento”, mais visionador que visionário de um declínio do Ocidente, e me pergunto se, nascido naquele momento do século em que Baudelaire anatematiza o “burguês”, ele não salva essa figura, um tipo possível, uma bela  singularidade,  uma  espécie  de  “maestria”.  Talvez se pudesse associar ainda essa figura, a do grande burguês letrado, ao grande protótipo “estoico”, pois é de uma sabedoria que se trata, e acaso há outra na Europa que não seja estoica?

Eis aí o homem mediterrâneo sob o sol romano (“falta clamorosa”) ou erguendo os olhos (é a Jovem Parca) a esses “todo-poderosos estranhos inevitáveis astros”, o que “não depende de nós”, diriam os filósofos do Pórtico, ou sozinho com seu corpo, como Epicteto, ou como Monsieur Teste adormecendo em combate com a dor, medindo toda a extensão de seu corpo — um corpo na banheira do sono, como Arquimedes, sopesando ali a gravidade do mundo — ou “vendo-se ver”, buscando a linha divisória entre o que depende de si e o que não depende de si. Filho de Epicuro e de Virgílio, de Arquimedes e de Sêneca, sabendo que morre (e sabendo até que morre “sem dar-se conta disso”, segundo a fórmula de Platão), mas filho de toda a “tradição” e da partilha leibniziana da Razão em racional e razoável.

Há outra sabedoria além da estoica, pergunto, para aquele que rejeita Blaise Pascal e a aposta, a apologia da religião cristã e a dobra analógica da Bíblia, do Livro, sobre si mesmo, segundo a “figuratividade” do Antigo ao Novo testamento?… E que inimigo mais íntimo (lembramo-nos disso e nos espantamos a cada leitura) esse Pascal para Valéry em Valéry, Pascal que é no entanto o homem dos pensamentos e da retórica e das matemáticas!

Se literato não fosse um termo carregado, estranhamente, de conotação mesquinha (desvio semântico a que resistem melhor literatura e literário), reapresentar “nosso herói”, tal como em “VALÉRY” seus livros o transformaram, como herói da literatura não seria injusto; e sublinho rapidamente, agora, dois motivos insistentes dessa inventiva força “literaturológica”.

Se Valéry não dá crédito à filosofia, antes suspeitando dela e a acusando, é que a filosofia, ele repete, não se conhece como literatura, ignora sua “causa material”, isto é, não sabe suficientemente que ela se escreve e em que sentido é “escritura”.

Ele, Valéry, como materialista (no sentido aristotélico a que me referi), inventa uma teoria da recepção da literatura, toma-a pelo lado do leitor, se posso dizer, enquanto relação mutável e contingente entre livro e leitura, prefigurando certas abordagens inovadoras atuais da sociologia e da teoria da literatura (Jauss). E isso numa terminologia que se poderia supor marxista e pós-moderna, a da produção/consumo… se não soubéssemos que Valéry não é marxista e não percebêssemos que, em suas lições no Collège de France, ele não emprega “consumo” no sentido da economia atual…!

O tipo de “literato” que evoco é feito dessa liga em que o escritor e o intelectual são indivisos e distintos, sobrepondo-se e rivalizando, dialogando e desequilibrando-se alternadamente. Pois, em última instância, quais são os “instrumentos” desse intelecto agente do qual Valéry foi a prosopopeia? Parece-me que, considerando num grau muito amplo de generalidade, eles se reduzem ao seguinte: a) a língua “natural” materna, e b) a metaforicidade dissimétrica na qual se operam as transações entre a ciência e essa língua, e a transferência “unilateral” daquela, principalmente física e matemática, a esta. O pensamento de Valéry é datado pelas ciências de seu tempo, nisto ele é mais intimamente pascaliano do que supõe. E não existe nenhuma instância de “metalinguagem”, formal ou não, de onde possam ser por sua vez “criticados” esses dois “elementos”.

O pensar do escritor está para sempre endividado: seu pensamento toma um tríplice empréstimo: da língua vernacular, da situação da passividade corporal e de seu “esquematismo” (em suas fábulas e apologias), e, em terceiro lugar, da ciência e de seu progresso.

A literatura é a prosa desse endividamento.

O que ele diria hoje e pode ainda nos servir (se o fizermos falar para hoje)? É o que me proponho entrever.

Nossa situação, a “cultural”, se caracteriza pelo fato de muitas das palavras e locuções essenciais permanecerem as mesmas enquanto as coisas que se supõe elas denotam mudaram completamente: estamos em regime de homonímia sem sabermos (acreditando, por exemplo, que continuamos a falar de cultura ao falarmos do cultural…): transformadas em algo diferente mas  “idêntico”,  como numa história de  vampiros…

Valéry perceberia isso? Podemos supor que sim. O tempo do mundo finito… finda. Ele nos ajudaria a compreendê-lo? Certamente.

A estupidez não era o seu forte. Uma espécie de moral provisória pode ser tirada de seu texto e de sua lenda — a do indivíduo não bárbaro.

Há em sua obra um interpretável à espera, em reserva; algo de oráculo, de pítico (um “futuro vigor”, diria Rimbaud) — que ele próprio não teria compreendido como nós (“meus [pensamentos] têm o sentido que lhes atribuem”), mas que podemos “fazer falar”; e, buscando avaliar a diferença entre os dois (o sentido “para ele de [seus] pensamentos”, e o sentido que nós lhe “atribuímos”), compreendemos melhor a originalidade de nosso tempo, o caráter “sem precedente” do que nos sucede, nos submerge…

 

Eis a ficção: imagino que Paul Valéry retorna entre nós esta manhã. Após uma longa ausência: 58 anos. Ele toma conhecimento deste mundo e de seu curso: pelos periódicos, jornais, rádio e tevê — todas as news. Ele acredita que se fala das mesmas coisas porque encontra as mesmas palavras. Quando as palavras são novas para ele — por erosão, ou importações recentes, ou acronímia pululante —, ele percebe e descobre sua significação. Mas o extravio, como sempre, vem da homonímia. Muitas coisas importantes sofreram ou estão sofrendo mutação. O “fenômeno futuro” (Mallarmé), ou iminente, avança sem que se perceba.

A alteração e a mutação estão cobertas de velhos nomes. Valéry acreditaria compreender, ainda mais que habituado a, e saudado por, sua inteligência extralúcida. No entanto se enganaria, em primeiro lugar, com as homonímias, e perderia tempo fazendo a correção, reajustando as bússolas e referenciais para “se localizar”. Ele se localizaria?

Fala-se de anacronismo quando projetamos nossas significações (ideias ou coisas, representações ou semas, como preferirem) na máquina-de-remontar-o-tempo, fazendo-as preexistir antes de seu nascimento, por ignorância ou piada. “Catacrônico” seria o movimento inverso: fazer servir para nosso uso noções recentes, ou de outrora, a pretexto de uma terminologia inalterada. Nihil novi sub sole! E prossigamos! Valéry falava “já” dessa ou daquela de nossas coisas, de “nossos problemas”. A prova? Ele empregava as mesmas palavras! “Produção, consumo, mundo-finito, cultura, inconsciência, comunicação etc.” Sugiro colocar em exame (em acusação) essas homonímias: pelo contexto seria possível medir a distância entre o que ele pensou e o que pensamos sob (ou com) essas palavras. Medida de uma dis-semia (dis-seminação?) do que diz seu texto ao que dizem nossos discursos. Esse cálculo nos ajudaria a compreender nosso mundo, por derivação restituída.

Um sotaque se faz notar de saída, provinciano ou estrangeiro, atrasado ou arcaico. Se “retornasse”, teria Valéry um sotaque, como um cortesão de Luís XIV ou um camponês de Marivaux que anuncia seu tempo primeiramente por sua pronúncia? Dificilmente (mesmo se Kundera, em seu último livro, faz observar a seu personagem, de volta a Praga vinte anos depois dos “acontecimentos”, que ele parece não reconhecer de imediato as entonações tchecas). Um sotaque, talvez; mas as frases escritas não têm sotaque — ou melhor, elas teriam na cabeça do leitor silencioso o sotaque desse leitor. Qual é o sotaque semântico valeriano já datado?

Pois não somos contemporâneos. Sua lucidez é datada. Numa certa escala de historicidade, a da “grande duração”, diria Braudel, vivemos na mesma época. Numa outra escala, não. Quando ele passeia seus “olhares sobre o mundo atual”, o relógio geopolítico marca o final do século XIX: antes mesmo da Primeira Guerra Mundial!

Vale dizer: antes da modernidade? Pois ele declara “o começo do mundo finito” ao final do século XIX. E, portanto, ao término dos primeiros tempos modernos, os que iniciaram com as Grandes Conquistas e a mathesis universalis galileo-cartesiana (tempos que se prolongam, sob alguns aspectos, até os de Chaplin ou mesmo de Sartre. Pois as modernidades se sobrepõem. Que quer dizer “sobrepor-se”?). Mas para nós, do século XX, esse “tempo do mundo finito” que começava para Valéry (mesmo se havia começado quatro séculos mais cedo)… finda. Chamamos esse fim de “mundialização”. Um findar que não acaba de findar, como todo fim, é nosso problema: é algo que (re)começa bem, ou algo que acaba mal? A “globalização” tanto destrói quanto recompõe o todo. O que há de provável, e mesmo de certo, é que adveio o que terá sido imprevisível ao próprio Paul Valéry.

Mesmo quando diz o por-vir, seu pensamento vem “de antes”, sob muitos aspectos. E tanto mais enigmaticamente (é sempre a questão da “sobreposição”) quanto, embora ele “terá sido” contemporâneo até o fim de sua vida dos triunfos de Marx e de Freud (entre outros, para não falar do advento das ciências humanas), não faz disso seu elemento nem seu mel: nascido sob a primeira derrota (1871), sua juventude — se são de fato os anos da adolescência e da juventude, anos de estudo, que nos formam — se passa na França e num liceu mediterrâneo onde nem o hegelianismo nem a psicologia  científica  dominam… Quando, na Poética tardia (no Collège de France), sua lucidez lhe faz inventar o que será teorizado vinte anos depois como “recepção”, ele pensa em termos de consumo e de produção, mas essas palavras não têm o sentido que possuem hoje para nós, sentido que o marxismo e o consumismo lhes infundiram. Atenção para a homonímia! Essa vigilância seria por certo exercida com proveito no campo da egologia valeriana, onde os protótipos de ficção (Vinci, Teste, Descartes, Poe…) não ignoram evidentemente nem o sonho nem o inconsciente, embora não caminhem no “novo continente” psicanalítico. E em outros campos, estético, ético…, uma política de Valéry nos induziria ao anacronismo ou ao catacronismo?

Não se trata certamente de buscar o que Valéry não conheceu de seu tempo enquanto iluminava seu presente (de economia ou de filosofia, de linguística ou de fenomenologia, de cinematografia ou de dodecafonismo!) para apreciar, isto é, depreciar, uma singularidade e até mesmo uma estreiteza “bem francesa”, mas sim de apontar efeitos de catacronismo, que sua glória enorme pode provocar em seu leitor atual… em última instância para servir à compreensão do sem precedente de nosso tempo, dois séculos após o de seu nascimento.

 

Que pode um homem? perguntava Valéry…

A expressão “que pode um homem?” me faz pensar num ecce homo. Ela designa e mostra com o dedo “um homem”, como se pronunciada desde uma instância exterior, uma espécie de tribunal a que compareceria o réu, “o homem”, e no qual, descobrindo sua fraqueza, ele murmuraria num tom ansioso e irônico ao mesmo tempo: “mas que pode então o homem, este homem, o homem?!…”, com os pontos, todos os pontos, de interrogação, de exclamação, de reticência… E é como se ouvíssemos a resposta: nada. Um homem “não pode” nada, nem este homem nem, certamente, “o homem”. Não pode o quê? É o que veremos.

Eu disse “desde uma instância exterior”: ora, sabemos que não há nenhuma. Nenhuma outra senão a que se faz chamar precisamente o homem, ou a humanidade. Portanto, “nós mesmos” é que nos julgamos. A instância de que falo é a do julgamento, desse juízo final que a todo instante se exerce, e na maioria das vezes em silêncio. Essa capacidade de julgar, enigmática, já que caracteriza um ponto de vista ao mesmo tempo imanente e transcendente, ou, se preferirem, uma transcendência repatriada, reatribuída ao homem enquanto sujeito e sujeitado a “si mesmo”, uma quase transcendência, portanto, um modo de ser em como-se (isto é: como se o que ele concebeu acima dele, de exterior e de superior a si, chamemo-lo o teológico, lhe coubesse enfim), eis então que essa faculdade de julgar (Kant), essa potência, o define: o homem é juiz, juiz de si mesmo. Tudo cai sob seu julgamento, o ser e o ente, e ele próprio. Ele é um ser que é mais que ele mesmo, ou, para retomar os termos estranhos e belos de uma filósofa hispanófona recentemente desaparecida, Maria Zambrano (expressão vertiginosa em francês porque incorreta gramaticalmente): “o homem é o ser que padece sua própria transcendência”

VENTO DO NORDESTE

O homem ainda não começou seu trabalho: está ainda preparando suas ferramentas. Quando chegar o momento, dificilmente conservará o nome de homem…

(O grande vento que faz, que assobia na lareira, me sopra insanidades.)

— Que aquisição a memória!…

Quando o homem tiver reconhecido que é nada, então poderá começar. Poderá a inteligência ou desaparecer ou substituir tudo? Ela começará a construir.

As questões, os enigmas necessários terão sido rebaixados. Nascer, sofrer, morrer não serão mais dificuldades. Haverá muito que a energia, os materiais, os seres vivos auxiliares estarão à disposição. O comércio e a indústria não mais existirão. Haverá uma única ciência e ela será quase inata.

A terra será apenas uma cidade. Nada mais se fará naturalmente — isto é, às cegas.[1]

Não está aí uma peça, uma amostra de vidência extralúcida?

Com uma rara força de pré-visão para além do horizonte (não esqueçamos qual podia ser o horizonte nas primeiras décadas do século XX), Paul Valéry focaliza a “antropomorfose”, o devir-homem do homem, sapiens, sapiens-sapiens, sapiens-sapiens-sapiens — e é significativo que o último sábio (“philo-sophos”), ou que o racional (“luz”) em escala ontogenética (aquela em que se filosofa para sua própria salvação, como diz Alain), não é levado em conta, não conta em nada aqui. Mas um sábio-cientista considera o devir da humanidade em escala antropogênica: seu próprio objetivo, seus próprios fins desaparecem: a humanidade não é feita para (destinada a) se tornar sábia mas poderosa (Dominique Janicaud).

O homem não conservará o nome de Homem. Paul Valéry não lhe concede assim o de “super-homem” (pois ele não pensa em Nietzsche; talvez porque não pense em termos de valores).

O encadeamento é então fulminante: a) reconhecimento do ser-nada; b) bifurcação possível entre o desaparecimento e a “substituição total”, a prótese integral, a clonagem imortal de sua onipotência. Algumas palavras sobre essa ab-dicação, ab-stração da humanidade em termos de natureza ou de “criatura” que limitam: todos os atributos essenciais desaparecem (não apenas “a essência conforme a ideia em Deus” de Sua criação, mas os predicados de filosofia primeira, todas as determinações/negações, as definições, as “possibilidades” fixadas a uma “natureza”): logos ou mortalidade, ser-“político”, ou antropologicamente “vivíparo” etc.: pronto para a construção total de um “outro homem” (outro também como “novo” no estilo que será e terá sido nazista ou comunista). É algo próximo — parece — do pensamento heideggeriano da Técnica: haverá apenas ciência; “ela será inata”, quer dizer, talvez implantada — Energia, matéria e vida convertíveis (Einstein). “Lúcifer” terá triunfado; não haverá senão a velocidade da luz; a terra, uma única cidade, megalópole. Tudo será feito e reprodutível; a natureza terá desaparecido (como diz Mallarmé); a cegueira também: reinará somente a luz e sua “velocidade”.

Mundo finito… ou mundo infinito?

A ser entendido talvez como “fim do mundo” (fábula baudelairiana) — como algo diferente; algo diferente de um “outro mundo” ou de “outros mundos”.

Pode-se considerar demasiado “otimista” essa ficção científica, essa utopia lúcida, terrível. Por que “otimista”?

Porque ele não fala da coerção aterrorizante — digamos, orwelliana — que deverá administrar (cibernetizar por semiótica social) a transição. Porque ele salta por cima dos conflitos por vir nessa perspectiva: a revolta da superstição ou, se quiserem, das seitas contra a ciência: o século XX será religioso… ou não será (André Malraux); as contrafinalidades (anti)ecológicas (uma das quais é que a megalópole se transforma em favela-necrópole). Ele não descreve nem a eliminação dos miseráveis (os genocídios), dos “incapazes” de entrar no programa, nem o genocídio “implicado” na desterrestração/reterrestração…

Restringindo porém o campo, gostaria de me concentrar num objeto enigmático, equívoco, o da cultura. “Valéry e a cultura” poderia ser o título de meu texto. Se Valéry, como acabamos de entrever num exemplo, sabe pré-ver (extralúcido por audácia) o “fenômeno futuro” do fim do homem, ainda assim ele pertence ao mundo “moderno”, isto é, “pré-pós” moderno!!!… “para nós”. Da não-vidência, ou improvisação por impossibilidade de “considerar” as eras sucessivas da tecnociência (e a nossa, do computador, da tevê, da comunicação — chamemos o século, ou a geração, de Bill Gates), eu gostaria de circunscrever um “aspecto”, o que ficou oculto para ele pela homonímia — e que ainda o é para nós, pela homonímia: o do  cultural.

Reportemo-nos agora a Valéry, isto é… atrás. Trata-se de uma página de 1934, extraída das Pièces sur l’art [Peças sobre a arte].

Não gosto muito dos museus. Muitos são admiráveis, mas nenhum delicioso. As ideias de classificação, de conservação e de utilidade pública, que são justas e claras, têm pouca relação com as delícias.

Ao primeiro passo que dou em direção às coisas belas, uma mão retira-me a bengala, um escrito proíbe-me de fumar.

Transido já pelo gesto autoritário e pelo sentimento da coerção, penetro numa sala de escultura onde reina uma fria confusão. Um busto deslumbrante aparece entre as pernas de um atleta de bronze. A calma e as violências, as ninharias, os sorrisos, as contraturas, os equilíbrios mais críticos me compõem uma impressão insuportável. Estou num tumulto de criaturas congeladas, cada uma exigindo, sem obtê-la, a inexistência de todas as outras. E nem falo do caos de todas essas grandezas sem medida comum, da mistura inexplicável de anões e gigantes, nem sequer desse resumo da evolução que nos oferece um tal conjunto de seres perfeitos e inacabados, mutilados e restaurados, monstros e cavalheiros…

Somente uma civilização nem voluptuosa nem racional pode ter edificado essa casa da incoerência. Um não sei quê de insensato resulta dessa vizinhança de visões mortas. Elas têm ciúmes umas das outras e disputam o olhar que lhes dá a existência. Chamam de todos os lados minha indivisível atenção; desnorteiam o ponto vivo que arrasta toda a máquina do corpo para aquilo que o atrai…

O ouvido não suportaria ouvir dez orquestras ao mesmo tempo. O espírito não consegue acompanhar nem conduzir várias operações distintas, e não há raciocínios simultâneos. Mas o olho, na abertura de seu ângulo móvel e no instante de sua percepção, vê-se obrigado a admitir um retrato e uma marina, uma cozinha e um triunfo, personagens nos estados e nas dimensões as mais diversas; além disso, deve acolher no mesmo olhar harmonias e maneiras de pintar incomparáveis entre si.

Assim como o sentido da visão é violentado por esse abuso do espaço que uma coleção constitui, também a inteligência não é menos ofendida por uma estreita reunião de obras importantes. Quanto mais belas são, quanto mais são efeitos excepcionais da ambição humana, tanto mais devem ser distintas. Elas são objetos raros que seus autores quiseram que fossem únicos. Este quadro, dizem às vezes, mata todos os outros ao redor dele…

Creio que nem o Egito, nem a China, nem a Grécia, que foram sábios e refinados, conheceram esse sistema de justapor produções que se devoram umas às outras. Eles não ordenariam unidades de prazer incompatíveis sob números de matrícula e segundo princípios abstratos.

Assim, eis o que Paul Valéry tinha a dizer quanto ao uso do Museu, esse artefato gigantesco, esse dispositivo central no núcleo de nossas cidades e no núcleo da vida cultural dos grandes números humanos cujos fluxos “turísticos” não cessam de crescer! Esse “testemunho” é “de um outro tempo”. Mas nós, pressionados por nosso tempo (em todos os sentidos do tempus nos urget de são Paulo), que temos a dizer?… E eu aqui, especialmente “pressionado” pelo tempo, como resumir? 1) Permaneço no exemplo: o caso do Museu tomado aqui como exemplar, isto é, permitindo tratar “metonimicamente” a situação, sob benefício de generalização; 2) vou “pintar” a mudança do tempo (isto é, a entrada na área do cultural numa geração) por uma anedota, uma breve narração, também ela tomada como exemplar; 3) responderei em três linhas à questão do “sentido da visita”, ou seja, do uso do museu hoje — do uso, da função do cultural  hoje.

Descritivamente: eu gostaria de narrar (preterição, portanto) a fabulosa mudança da qual “eu” sou uma testemunha, na escala de quarenta anos, no emprego (meu, portanto, e de todos) deste museu: O LOUVRE. É exatamente o mesmo prédio, ou, digamos, a mesma localização (estação de metrô “Louvre-Palais Royal”). Eu levava até lá meus filhos nos domingos de manhã quando seu adro era um estacionamento e a metade de sua superfície pertencia ao Ministério das Finanças (?!), para que brincassem de amarelinha, ou de esconde-esconde, sim, entre os sarcófagos, “como se estivessem em casa”: queria que eles se acostumassem às obras-primas, à  “Arte”, sem prestar atenção nela, enquanto se divertiam, traçando em sua memória o caminho de uma visita recorrente, perene, “para sempre”. Não vou agora lhes descrever o monstro de hoje, as filas intermináveis, incessantes desde a entrada, para um tempo de  pausa médio de alguns segundos diante de algumas obras selecionadas pela visita guiada. É o mesmo em toda parte no mundo, Museu do Prado, Ermitage, National Gallery, Metropolitan…

Valéry não escaparia, nem tampouco Bernard Berenson ou aqueles grandes AMADORES, como os chamaram, cujo tempo de consideração das obras alimentava a “cultura”. Meu amigo, o poeta Marteau, decidiu dar atenção uma por uma a cada “peça” do Louvre: passou ali um ano.

É de outro uso que se trata. Então vou usar agora uma abreviatura sociológica, ou antropológica, para responder ao “de que se trata?”: Lenin perguntava: QUE  FAZER?

Nosso tempo responde de uma maneira que o surpreenderia — porque ele entende de outro modo a questão. Responde em termos de lazer e de consumo, diante da longevidade humana incessantemente aumentada (nas sociedades desenvolvidas, é claro, tidas como modelo da hominização).

Responde por outra revolução que não a técnico-científica.

Caricaturemos: que fazer dos 4 aos 25 anos, mais tarde dos 60 aos 100 anos na terra, isto é, nesta terra de abundância consumista?

(A cada um segundo seus desejos, não é mesmo?) Resposta: televisão em casa e viagens organizadas, ou seja: museu, visita ao patrimônio humano em exibição concorrencial no grande mercado mundial liberal, publicitário.

Há uma diferença pequena e radical (dissimulada na homonímia e em todo um parasitismo semântico de “comprimentos de ondas” vizinhas) entre o tempo de Valéry (diríamos, “a cultura de Valéry”) e o nosso, diferença que não podia não lhe ser imprevisível como uma “catástrofe” (no sentido neutro, matemático) que sua sensibilidade e sua inteligência, seus hábitos e sua lucidez podiam ainda menos antecipar por serem, precisamente, mais refinados.

Nós mesmos (a compreensão de si de uma época, se algo assim existe e pode ser inferido dos discursos de opinião, da “mídia”) temos dificuldade de discernir os homônimos como uma diferença exatamente no mesmo, e temos também dificuldade de avaliar a distância tomada em relação ao tempo-de-Valéry. Buscando compor com o “fenômeno humano” (título de Teilhard [de Chardin]) enquanto cultura e enquanto (muito recentemente) a cultura de hoje, esta se tornou, e é, a cultura do cultural. Expressão enigmática que tem na tautologia sua opacidade provisória.

A civilização mundial é a dita “mundialização” em certos aspectos antecipados por Valéry, mas noutros não, na medida em que o debate, ou mesmo o combate, não é mais entre cultura e civilização (problemática alemã) mas entre as culturas no plural — e a questão é saber se o “multiculturalismo”, ou diversidade das culturas no cultural (heterogeneidade apaziguada pelo mercado) produzirá “civilização” (mundial). Valéry dizia que as civilizações eram mortais: talvez a questão tornou-se a de saber se a civilização (do cultural) é mortal… Para avançar um pouco (um pouquinho?) nesse assunto, é preciso agora responder por alguns traços característicos à questão “O que é então o cultural?”. Faço-o na forma de uma hipótese, de uma conjetura (mesmo se o tom é axiomático), e com referências tomadas em nossa atualidade (portanto, colocando Valéry entre parênteses durante alguns minutos).

O cultural é um “fenômeno social total”, para retomar uma expressão famosa de Marcel Mauss.

A definição inteiramente técnica do cultural aparece em toda parte — mas singularmente, por exemplo, nesta passagem do Relatório Querrien para o ministro da Cultura [da França] (1983):

O patrimônio é o conjunto dos traços deixados, sob diversas formas, pelas mensagens genéticas que, de etapa em etapa, fizeram que nossa civilização fosse o que ela é. Pouco importa, desse ponto de vista, que os traços em questão estejam codificados em expressões arquitetônicas, em artes plásticas, em fabricações utilitárias, em atos solenes ou em linguagem corrente. Etc.

Tudo aqui requer um interminável comentário, que buscaria saber em que sentido essa noção, técnico-cultural, de patrimônio, difere do que se entendia por tradição… (ou por “patrimônio”). O patrimônio — palavra antiga mas coisa nova — é a mobilização contábil de tudo (tudo o que existe) como riqueza econômica potencial na “competição planetária”.

O que se tornou o valor?

O valor patrimonial do fundo genotípico das culturas como valor inestimável (isto é, no qual se fixa a diferença última na variedade humana de povos e sociedades) acumulado antes de toda “acumulação primitiva”, antes do trabalho operário, antes do capital, é hoje reconhecido e agregado “antes de valor de uso e de troca”, na e pela economia cultural que mundializa o mercado.

A questão é a do fundo, ou reserva, ou crédito… J.-M. Rey chama nosso tempo o tempo do crédito, fazendo-o começar em 1720, na primeira grande bancarrota europeia, a de John Law. Qual é essa reserva, quase infinita, convertível em “valor”, a montante de toda produção, de todo processo histórico? Resposta: o genótipo em geral, que serve de grande metáfora biológica para toda “avaliação” antropológica dos “fenótipos” culturais. Ou, para recorrer a outro binômio conceitual clichê, o do par inato–adquirido: a ideologia do cultural transforma todo o inato em adquirido, elevado ao “crédito” de um tipo humano que poderíamos dizer étnico-nacional. Assim como o “gênio da língua”, ou “a alma de um povo”, ou o folclore caracterizam, no século XX, a propriedade do grupo humano, sua identidade, aquela que, agora transformada em sua “imagem de marca”, faz sua diferença, sua unicidade inestimável, seu “preço”… oferecido, isto é, vendável, à curiosidade recíproca dos amantes de espécies humanas ou, se preferirem, ao turismo mundial, qual um “Produto da terra”, ou das “raízes”, idiossincrasia reconhecível “entre todas”, assim também tudo o que existe é relacionado a essa ou àquela genotipia cultural e assim transformado (“agregado”) em valor (in)apreciável enquanto expressão do fundo, ele mesmo (re)sintetizável (reabilitável, restaurável etc., como o centro histórico de uma velha cidade). Dito de outro modo e brutalmente: a contrafação é o futuro do típico original.

O Ocidente tem um exterior?

O cultural transformado em mundial, ou o mundial transformado em cultural, só tem de exterior a si (e por quanto tempo? E é daí que procede um risco de guerra?) poucos ecossistemas humanos religiosos diferentes, a saber: ou os últimos dos homens em via de extinção (amazônicos, novo-guineanos etc.), mas são os americanos que se ocupam de sua sobrevivência ou de sua “reserva”; ou os africanos negros descartados e abandonados pela “economia mundial”; ou os grandes conjuntos árabe-muçulmanos integrizados por sua resistência religiosa; ou a China, potência atômica a-religiosa para a qual a humanidade se divide em duas: chineses versus não-chineses.

Há lugar nesse dispositivo para algo que não seja o anglo-saxão, algo que sirva “localmente” ao que Alain Joxe, por exemplo, chama uma “versão francesa” da modernidade? Mas a versão francesa (V.F.) nunca é a boa, a V.O. (versão original) é americana.

P.S.: Este texto não considerou o tom, o “estilo” de Valéry, sua arte, que é escrever, sob o chamado aspecto da forma. Se fosse esse meu propósito, teria ido nessa direção: há os versos de Valéry, a prosa de Valéry, os cadernos e os poemas em prosa, ou o que deveríamos talvez chamar as prosas de Valéry, a forma breve (Florence Delay) em prosa: os prosemas.

Importa aqui uma observação, que aflorei há pouco. Parece-me que a partilha mais decisiva, a essencial discriminação para a atenção crítica, é a que concerne à diferença Mallarmé-Valéry. Num colóquio recente, ouvi Jean-Michel Maulpoix dizer (o que relato com esta precaução indispensável: não é impossível que minha audição não seja inteiramente fiel às frases ouvidas ou que digo ter ouvido) que a diferença interessante era a que existe entre Valéry e Rimbaud, ao mesmo tempo que qualificava Valéry de “príncipe do intelecto” (de fato, por que não?) e evocava o “tiritante Mallarmé”, sem levar em conta, portanto, a lareira, o fogo, os entusiasmos das Terças-feiras na rua de Roma [onde morava Mallarmé]. Penso que o outro de Valéry não é Arthur Rimbaud, mas Mallarmé.

O gênio de Valéry é combinatório; seu intelecto está às voltas com a possibilidade. Ao dedicar A Jovem Parca a Gide, ele chama seu poema “esse exercício”; matemático, o que ele busca determinar é “o grupo de transformação”. Em poética, é sempre a questão da perífrase que é decisiva. Seria interessante diferenciar a perífrase valeriana e a perífrase mallarmeana. Em Mallarmé a prosa devorou, ultrapassou o poema (falo do poema como poema versificado), Mallarmé não falaria de exercício. Ele não busca os possíveis, mas o melhor possível, o ótimo como definição; a verdadeira preciosidade não se satisfaz com uma perífrase visada entre “outras possíveis”, mas com a melhor, com a única ou perfeita; o lance de dados ganhando pela dupla negação “apodítica”. É arriscado, mais arriscado do que Valéry. O poema transfere-se à prosa: superpontuação, anacoluto, ambigüidades paradoxais por sobredeterminação. Em Valéry é mais frequente a descrição; em Mallarmé, a definição, que metamorfoseia o concreto (o percepto) em sua desaparição elocutória (“a dançarina não é uma mulher e ela não dança”). Ela se torna “metáfora” – presta-se a transformer-se em outras. “Reflexos recíprocos”. Isso interessa muito.

Tradução de Paulo Neves

Notas

[1] VI, 255 [1916], em Poésie perdue, Paris Gallimard, 200, p.118

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