2010

O fim do humanismo e a tarefa do pensamento

por Oswaldo Giacoia Junior

Resumo

Um artigo publicado por Martin Heidegger,  em 1959, no jornal Neuer Zuricher Zeitung, nos proporciona pontos de apoio para uma reflexão acerca de problemas e desafios com os quais nos confrontamos hoje, de modo cada vez mais urgente.

Em primeiro lugar, ele nos fornece indicativos importantes para uma concepção não instrumental e não antropocêntrica da moderna racionalidade tecnocientífica. A esta, não seria adequado tomá-la como meio em si mesmo neutro e indiferente, passível de usos e destinações diversas, cuja legitimidade seria determinada pelos fins a que se prestam.

Em segundo lugar, a concepção instrumental do moderno desenvolvimento tecnológico revela, a cada dia, suas insuficiências e seus limites. Por um lado, a sobrevivência e o futuro das sociedades ocidentais passam a depender da atualização de seu potencial tecnológico, o que transforma as tecnociências numa das mais relevantes forças produtivas. Com isso, a dialética entre a aquisição de novos poderes e capacidades técnicas (ou vantagens técnicas) e a possibilidade de sua utilização tem que se realizar sob a forma da coerção ao aproveitamento, em escala industrial, dos avanços do saber-poder técnicos. Como todo movimento coercitivo, o progresso técnico inverte a promessa originária de emancipação, a que sempre esteve ligado, como dominação técnica da natureza.

Compreender a essência da técnica num horizonte pós-metafísico poderia permitir uma re-apropriação da essência da técnica. O acesso a essa essência seria possível unicamente numa relação pensante, não operacional e calculatória, que comprometeria, por seu turno, a própria essência do homem como ser pensante. Esse pensamento descortina uma modalidade compreensiva para além dos limites antropocêntricos do humanismo e da racionalidade instrumental, o que nos permitiria, por sua vez, apreender a imbricação entre técnica e metafísica, ambas inscritas no horizonte histórico e destinamental do esquecimento da pergunta pela verdade do ser, em sua correspondência com a essência do homem. Essa meditação sobre a essência da técnica manifesta os perigos inerentes ao desenvolvimento autonomizado da tecnologia em nossas sociedades.

Os desenvolvimentos mais recentes da tecnociência, que subvertem nossa autocompreensão como seres no mundo, ainda não foram conduzidos à consciência de sua própria historicidade. Sendo assim, nem uma condenação reacionária e maniqueísta da tecnologia, com a ameaça escatológica de terrores irracionais, nem o ingênuo deslumbramento pelas virtualidades prometeicas do transumanismo, pós-humanismo e sobrehumanismo permitem um discernimento essencial da técnica, na medida em que não brotam de uma meditação sobre o ser do homem, em sua condição de ser pensante, menos ainda de um compromisso com seu destino.


Num sábado, 26 de setembro de 1959, o jornal Neuer Zuricher Zeitung publicava um artigo, de autoria do filósofo Martin Heidegger, em que este dizia:

Numerosos são aqueles que hoje parecem defrontar-se com a dificuldade de encontrar uma concepção de história adequada ao domínio da técnica moderna e da ciência com a qual esta se identifica. Tal concepção permitiria ordenar o estado do mundo determinado por esse domínio e apreendê-lo de modo compreensível. Mesmo que uma tal tentativa tivesse êxito, a técnica moderna e a ciência, que a ela pertence, permaneceriam desconhecidas quanto à sua essência. Sem nenhuma dúvida, o efeito seria bem diferente se a própria essência da técnica anunciasse e esboçasse, por antecipação, a face do destino em cuja pertença toda coisa recebe o quinhão que lhe compete. Para revelar tais possibilidades, deveríamos, de início, aprender a pensar a partir de sua essência aquilo que “propriamente” (eigentlich) já adveio, e a guardá-lo continuamente num pensamento que rememora (andenkend).

No início do ano, a propósito de um foguete espacial russo, o presidente do conselho soviético declarou: “Nós somos os primeiros no mundo a ter impresso no céu, da Terra à Lua, uma trajetória de fogo”. O editorial de um dos grandes jornais da República Federal da Alemanha, em sua primeira frase, comentou isso da seguinte maneira: “Ninguém pode refutar a jactância de Nikita Khrouchtchev – o fato de que a União Soviética conseguiu imprimir no céu, da Terra à Lua, uma trajetória de fogo”.

O autor do editorial tem razão de pensar que “ninguém pode refutar” essa pretensão. Porém, o que significa aqui refutação? Antes de tudo, torna-se necessário, para nós, pensar o conteúdo da declaração de Khrouchtchev, no qual, em verdade, ele próprio não pensa: não existe mais nem “a Terra”, nem “o Céu”, no sentido da habitação poética do homem sobre essa terra. A exploração realizada pelo foguete é a concretização, há três séculos, daquilo que se acha disposto (gestellt), sempre mais unilateral e deliberadamente como sendo a natureza, e que, no presente, foi instalado (bestellt) como fundo de reserva universal, interestelar. A trajetória dos foguetes lança brutalmente no esquecimento “Terra e Céu”. Os pontos entre os quais ela se desenrola não são nem uma nem o outro. O artigo em questão deveria começar assim: não há senão um pequeno número de homens – e eles não dispõem de poder -, que têm hoje a capacidade e a resolução para pensar, e para fazer pelo pensamento a experiência de uma mudança do mundo, que “não inicia uma nova era”, mas conduz uma época já estabelecida em direção de seu extremo acabamento[1].

Em formulação recente, o filósofo Slavoj Žižek retomou um problema similar, atualizando-o relativamente aos desdobramentos técnicos das pesquisas biomoleculares:

A principal consequência dos avanços da biogenética é o fim da natureza: ao conhecermos as regras de sua construção, os objetos naturais se tornam objetos disponíveis e manipuláveis. A natureza, humana e inumana, é assim “dessubstancializada”, privada de sua impenetrável densidade, daquilo que Heidegger chamou de “terra”. A biogenética, com sua redução da própria psique humana, a um objeto de manipulação tecnológica, é portanto efetivamente uma espécie de instância empírica do que Heidegger via como o “perigo” inerente à tecnologia moderna[2].

A mutação de que hoje somos autores e também testemunhas ultrapassou o assombro produzido pela trajetória das naves espaciais. Nela discernimos outros sinais indicativos do domínio planetário da cibernética – essa figura destinamental e pós-moderna da metafísica. Atualizando a advertência de Heidegger, seria preciso motivar um certo número de homens e mulheres com capacidade, disposição e resolução de pensar e de fazer, pelo pensamento, uma experiência não mais agora lastreada na trajetória dos foguetes, mas na extensão e aprofundamento exponencial do domínio intergalático da tecnologia e da ciência que a ela pertence: na pós-modernidade, quando as antropotécnicas desenham a figura do pós-humano e do transumano, é preciso que o pensamento recoloque a pergunta pela virtualidade do real. Nesse sentido, o artigo de Heidegger, assim como a reflexão recente de Žižek, nos confrontam com problemas e desafios cada vez mais urgentes: a essência da técnica e os limites do humanismo.

A ESSÊNCIA DA TÉCNICA E OS LIMITES DO HUMANISMO

Em primeiro lugar, eles nos fornecem indicativos importantes para uma concepção não instrumental e não antropocêntrica da moderna racionalidade tecnocientífica. Esta, não seria adequado considerá-la como meio, em si mesmo neutro e indiferente, passível de usos e destinamentos diversos, cuja legitimidade seria determinada pelos fins a que se presta.

Esse tipo de abordagem pressupõe a validade e vigência da relação meios-fins, e, como resultante necessária, um entendimento da técnica – dependente dos modos de aproveitamento de seus efeitos planejáveis, sempre sob a condição de um controle racional possível, a ser exercido em vista de valores; por exemplo, a consolidação do domínio humano sobre as forças e recursos da natureza, com vistas à organização racional da sociedade (humanização das relações entre os homens e a natureza; humanização das relações dos homens entre si), assentada em bases jurídico-políticas, as quais permitiriam fazer desaparecer as modalidades historicamente conhecidas de opacidade e opressão.

Afinal de contas, a postura dominante na história da civilização ocidental considera que todo o âmbito das interações do homem com o mundo extra-humano – caracterizado como o domínio do fazer e produzir, isto é, da techne – é eticamente neutro, tanto do ponto de vista objetivo quanto do subjetivo. Relativamente ao objeto, a intervenção técnica do homem sobre a natureza poderia apenas produzir efeitos de reduzidas dimensões, não sendo o caso de gerar danos irreversíveis sobre a totalidade da ordem natural. Subjetivamente, pois o âmbito do fazer técnico está ligado ao reino das necessidades e do trabalho, da produção e da reprodução da vida – portanto não ao domínio de autocompreensão, que sempre foi tido como ligado à essência, à destinação principal do homem, para cuja efetivação este empreende seu máximo esforço e empenho, a saber: à vida política, ao agir virtuoso como indivíduo e cidadão, à praxis orientada por princípios, normas e valores vinculantes.

Pode-se considerar que, para o conjunto da tradição, apenas a relação do homem consigo mesmo e com os outros homens era portadora de significação e relevância ética; ou, em outras palavras, toda ética tradicional é antropocêntrica. Para o agir, nessa esfera de efetividade, a condição fundamental do ente homem e sua essência eram considerados uma constante, jamais constituída, ela mesma, um objeto da intervenção transformadora da techne.

Ademais, a concepção instrumental do desenvolvimento tecnológico moderno revela, a cada dia, suas insuficiências e limitações teóricas bem como, no fim das contas, uma inconsistência cada vez mais patente. Por um lado, a sobrevivência e o futuro das sociedades ocidentais passam a depender da atualização de seu potencial tecnológico, o que transforma as tecnociências nas mais relevantes forças produtivas. Com isso, a dialética entre a aquisição de novos poderes e capacidades técnicas (ou vantagem técnica), e a possibilidade de sua utilização tem de realizar-se sob a forma da coerção ao aproveitamento, em escala industrial, dos avanços do saber-poder técnicos. Como todo movimento coercitivo, o progresso técnico inverte a promessa originária de emancipação, a que sempre esteve ligado como dominação técnica da natureza.

A interpretação tradicional da ciência e da técnica modernas, que as considera, ao mesmo tempo, produtos do fazer humano e agenciadores dessa mesma capacidade produtiva, é de inequívoca extração humanista – cega, por sua vez, para o enredamento histórico-cultural entre técnica e metafísica, sobretudo entre humanismo e metafísica. Pois, segundo Heidegger:

[…] Todo humanismo ou funda-se numa metafísica, ou ele mesmo se postula como fundamento dela. Toda determinação da essência do homem que já pressupõe a interpretação do ente, sem a questão da verdade do ser, e o faz sabendo ou não sabendo, é metafísica. Por isso, mostra-se – e isso no tocante ao modo como é determinada a essência do homem – o elemento mais próprio de toda metafísica, no fato de ser “humanística”. De acordo com isso, qualquer humanismo permanece metafísica[3].

Compreender a essência da técnica num horizonte pós-metafisico poderia talvez permitir uma reapropriação da essência da técnica, que não se confunde com as propriedades dos objetos técnicos, com artefatos ou maquinários. O acesso a essa essência seria possível unicamente numa relação pensante, não operacional e calculatória, que comprometeria, por seu turno, a essência do homem como ser pensante. Esse pensamento descortina uma modalidade compreensiva para além dos limites dos antropocêntricos do humanismo e da racionalidade instrumental. Em vez disso, ela nos permitiria apreender a imbricação entre a técnica e a metafísica, inscritas ambas no horizonte histórico e destinamental do esquecimento da pergunta pela verdade do ser, em sua correspondência com a essência do homem. Essa meditação sobre a essência da técnica manifesta os perigos ínsitos ao desenvolvimento autonomizado da tecnologia em nossas sociedades – de modo algum dócil ao controle racional de indivíduos, grupos ou Estados.

Ao contrário, ele se desdobra numa escalada compulsiva, em espiral infinita que nos impele, cada vez mais, para a beira do abismo, da catástrofe – ecológica, por exemplo -, colocando em risco as condições de possibilidade de uma autêntica vida humana no planeta Terra. Essa dinâmica revela que as tecnociências não se deixam submeter ao controle e planejamento por parte das modalidades tradicionais de poder social, econômico-político, evidenciando, antes, um imenso potencial para colonizar e tornar dependentes de si as diversas formas, até hoje conhecidas, de organização da sociedade.

Mas, uma vez que toda reprodução coercitiva é também sintoma de dependência, de perda de controle, assim também um credo essencialmente moderno – a crença na resolução de todos os macroproblemas humanos pela intensificação da marcha progressiva da tecnociência (formal, natural ou humana) – revela-se como delírio de onipotência e, desse modo, converte-se no contrário da própria postulação, ou seja, em impotência e desgarramento, como dificilmente reversível perda da capacidade de autarcheia.

Heidegger nos confronta, pois, com a necessidade de despertar dessa hybris, de conquistar, pelo pensamento, uma potência de segundo grau: a capacidade de subtrair-se à compulsão, que nos impele à repetição cega do mesmo, a percorrer sempre os mesmos caminhos que, em vez de salvação, potencializam o perigo, enredando-nos mais profundamente na alienação.

Os desenvolvimentos mais recentes da tecnociência, que subvertem nossa autocompreensão como seres no mundo, ainda não foram conduzidos à consciência da própria historicidade. Sendo assim, nem uma condenação reacionária e maniqueísta da tecnologia, com a ameaça escatológica de terrores irracionais, nem o ingênuo deslumbramento pelas virtualidades prometeicas do transumanismo, pós-humanismo e sobre-humanismo permitem um discernimento essencial da técnica, na medida em que não brotam de uma meditação sobre o ser do homem, em sua condição de ser pensante, menos ainda de um compromisso com seu destino.

O horizonte desse comprometimento só pode ser o pensamento – e só pode ser divisado a partir de uma relação pensante entre o ser do homem e a essência da técnica. Pensamento avesso, irredutível à divisão compartimentada da racionalidade, determinada ela própria pelo domínio técnico do pensamento; um pensar reverente, refratário ao ativismo político e ao falatório estéril dos saberes insulares, que resgata as ligações entre o conhecer, o sentir, o imaginar, o lembrar, o cuidar e o esperar.

Evocamos, com isso, uma postura meditativa a ser descrita em vários registros: a sobriedade, como resgate prudencial da lucidez, alcançada a partir de um exercício permanente de autorreflexão e autocrítica, zelosa das circunstâncias e condições em que se desenrola a vida dos seres intramundanos em comum, uns com os outros, nas dimensões do passado, presente e futuro. A liberdade em relação aos ofuscamentos em que estamos enredados. A modéstia em relação à nossa capacidade de prever as consequências de ações tornadas possíveis por nosso próprio saber-poder- o que implica um discernimento a respeito de nossa posição subjetiva nesse processo: se agentes ou agidos na dinâmica autonomizada da configuração técnica do mundo.

A capacidade de renunciar à tentação do uso compulsivo do poder tecnológico, a abertura para dimensões de responsabilidade que ultrapassam o âmbito das relações inter-humanas – e que só pode ser entrevisto a partir de uma retomada do pensar como correspondência à verdade do ser, o que não se reduz a um intensificado avatar da operatividade humana.

Recuperar esses desafios, que se projetam para além dos humanismos tradicionais, sem incorrer nas fantasias tecnológicas de onipotência do homo faber; recuperá-los, tanto para repensar suas virtualidades quanto para atualizar seus limites, pode ser de grande utilidade para a colocação do problema filosófico que, mais do que nunca, nos concerne: afinal, o que estamos fazendo de nós mesmos, num tempo em que só as mutações são permanentes?

Não estariam enraizadas no mesmo solo das éticas antropológicas e humanitárias tanto as fantasias cyberfuturistas dos “parceiros da criação” como também a nostalgia fundamentalista, que defende a qualquer custo a intangibilidade da vida e da natureza humana? Pois, não estabelecem todas elas como o fim supremo o progresso, o bem-estar do gênero humano – meta para a qual deve concorrer principalmente a tecnologia moderna como poderoso meio auxiliar, como uma virtualidade inesgotável posta à disposição e sob o controle da capacidade operativa do homo faber?

Não permanecem elas, portanto, em termos heideggerianos, outras tantas variantes do humanismo e, por causa disso, da metafísica, se é verdade que a metafísica provê o fundamento de todos os humanismos? Ao pressupor, pois, uma interpretação da sua natureza do homem como animal racional, ela entifica essa essência e, portanto, não a reflete no horizonte de um pensamento que medita sobre a essência do homem, vinculada à diferença ontológica originária entre os entes e o Ser – esquecendo-se, portanto, que a determinação essencial do homem, sua Bestimmung, não se deixa apreender em sua verdade, senão em sua correspondência pensante para com a verdade do Ser. Para Heidegger, a condição de animal racional não desvela a verdade da essência do homem; ao contrário, ela o remete a uma diferença abissal em relação àquilo que constitui essa essência; a saber, o apelo e a correspondência ao chamado do Ser; o pôr-se, a cada vez, a caminho da verdade do Ser, que se dá como destinamento na história, e à qual, em sua essência, o homem corresponde pelo pensamento, ao habitar a linguagem, a casa do ser.

A meu ver, é positiva a resposta à questão acima formulada. E, se isso é verdade, então nenhuma dessas posições em debate meditou com suficiente profundidade e cuidado sobre a verdadeira essência da técnica moderna – pois esta só se deixa apreender pelo pensamento no horizonte historial da verdade do Ser. Não se trata, portanto, de desídia, incúria, falta de engenho, ou déficit da racionalidade lógica; porque, para tanto, seria antes necessária uma reflexão sobre a história da própria metafísica, a ser feita a partir do diálogo com os pensadores essenciais – de Platão a Nietzsche.

Por isso mesmo, e a despeito de serem posteriores às análises de Heidegger, a maior parte das teorias modernas sucumbem ao veto heideggeriano de curta compreensão da essência da técnica, pois passam ao largo de uma realidade que não mais podemos negar: o “perigo” embutido na dinâmica autonomizada da dominação tecnológica da natureza talvez não possa ser conjurado por nenhuma das modalidades conhecidas de organização sociopolítica. Isso pode ser constatado tanto pelo que ocorre no liberalismo capitalista ocidental, quanto pelo que ocorreu historicamente na experiência do assim chamado “socialismo real”.

Já nos referimos a uma situação de extremo perigo. Perigo de que exatamente?, caberia perguntar. Perigo de permanecer submerso no esquecimento do ser que caracteriza a história da metafísica, inebriado pelo delírio de onipotência acerca das possibilidades do fazer humano, de modo que o pensamento filosófico não mais se coloque à altura da tarefa de refletir de modo originário sobre a essência e a verdade da técnica. Esta, para Heidegger, não possui, ela mesma, nada de técnico, nem se confunde com artefatos tecnológicos.

Para Heidegger, a técnica é, fundamentalmente, em sua acepção originária, uma modalidade de producere [de her-vor-bringen]. De acordo com isso, produzir é, portanto, trazer à luz ou conduzir à frente, desvelar, des-ocultar – acepção que não corresponde às noções recorrentes da técnica, considerada como meio para um fim (concepção instrumental), ou como incremento do poder-fazer humano (concepção antropológica). Para Heidegger, a técnica não é meio, nem uma amplificação da capacidade humana de produzir; a técnica é, essencialmente, um modo de desocultar, de desvendar, de retirar o véu, mostrar alétheia.

O que tem a essência da técnica a ver com Des-ocultar? Resposta: tudo. Pois no des-ocultar se funda o pro-ducere. Mas este reúne em si os quatro modos da causação – a causalidade – e os domina. Ao domínio desses modos pertencem fim e meio, pertence o instrumental. Este vale como o traço fundamental da técnica. Se perguntamos, passo a passo, o que seria propriamente a técnica representada como meio, então chegamos ao Des-ocultar. Nele repousa a possibilidade de toda fabricação disponibilizadora.[4]

A respeito dessa essência, observa Heidegger,

muito se escreve, mas pouco se pensa. A técnica é, em sua essência, um destino ontológico-historial da verdade do ser, que reside no esquecimento. A técnica não remonta, na verdade, apenas com seu nome, até a tékne dos gregos, ela se origina ontológico-historialmente da tékne como um modo do alethúein; isto é, do tornar manifesto o ente. Enquanto uma forma da verdade, a técnica se funda na história da metafísica. Esta é uma fase privilegiada da história do ser e a única da qual, até agora, podemos ter uma visão de conjunto[5].

Ora, se história da metafísica é também a história do esquecimento do ser e de sua substituição pelo ente, só um pensamento que ultrapassou a metafísica pode abrir-se para a rememoração do sentido do ser e, portanto, para pensar originariamente a essência da técnica como um acontecer destinamental (Geschick) da história da verdade do ser. Justamente disso o humanismo, em qualquer de suas modalidades, é incapaz, pois ele é essencialmente metafisico; portanto, só compreende a técnica em chave antropológica e instrumental, ou, dito modernamente, como vontade de poder – isto é, como potencialização da capacidade humana de produzir.

Desse ponto de vista, faria sentido considerar Nietzsche, quanto ao essencial, como o pensador por excelência da técnica moderna – pois, de acordo com Heidegger, Nietzsche pensa a vontade de poder como a essência do ente, na chave aristotélica da dynamis entlechia, como um principio metafisico. O eterno retorno constituiria, na era da dominação planetária da tecnologia, a figura do ente, o aspecto representacional da existência dos entes bem como da sua totalidade, cuja essência é determinada como vontade de poder. A doutrina do eterno retorno seria o equivalente metafisico do cálculo como potência, asseguramento e objetivação, para fins de manipulação e controle, de reprodução infinita do mesmo – a saber: transformação do ser, dos entes em sua totalidade em variáveis de cálculo, da natureza em fundo de reserva de energias, disponibilizadaspara apropriação tecnológica.

De acordo com Heidegger, consuma-se na filosofia de Nietzsche o acabamento da metafísica; esta se realizaria historicamente como mobilização total, captura de todos os entes nos circuitos tecnológicos de produção, consumo e desgaste. Essa objetivação tecnicocientífica da natureza engloba tudo num único processo de aproveitamento, valorização, fabricação e desgaste, que tudo reduz à condição de variável de cálculo: “Agricultura é agora indústria alimentar motorizada; em essência, o mesmo que a fabricação de cadáveres em câmaras de gás […] o mesmo que a fabricação de bombas de hidrogênio”[6]. Em condições tais, o humanismo, como toda metafísica, estaria também fechado para uma modalidade não objetivante e reificadora de relação com o ser dos entes; também o humanismo não se apresenta como alternativa histórica para corresponder, pelo pensamento, à essência originária da técnica moderna. Aliás, “metafísica alguma, seja ela idealista, seja materialista, seja cristã, pode, segundo sua essência, e de maneira alguma apenas nos esforços despendidos em desenvolver-se, alcançar ainda o destino, isto significa: atingir e reunir, através do pensar, o que agora é do ser, num sentido pleno”[7].

Na época de sua realização sob a forma de mobilização total, a metafísica – a despeito de todas as “boas intenções humanitárias” -, leva adiante a completa objetivação da natureza, inclusive da humana, transmudando a essência e a destinação do homem que, de “pastor do ser”, preocupado com o cuidado dos entes, torna-se a mais importante matéria-prima a ser consumida no desgaste (Vernutzung) universal do ente. Aliás, o humanismo aprofunda esse processo, na medida em que, com ele, toda ética permanece intra-humana, incapaz de voltar-se para o extra-humano, para o desocultar-se das coisas mesmas, inclusive do homem em sua relação com o sentido do ser, com seu ser no mundo como ex-sistência finita, como transcendência e ser-para-a-morte.

E assim ocorre que, encerrada na dimensão instrumental e antropológica da técnica, a dinâmica compulsivamente autorreprodutora do progresso tecnocientífico ameaça converter as promessas da ética humanista em seu contrário. No que diz respeito às esperanças do humanismo esclarecido, as pesquisas e realizações biogenéticas recentes tornam disponível e manipulável a base somática da personalidade, que pode então ser instrumentalizada para fins incompatíveis com o ethos que, até aqui, constituiria o espaço de habitação do homem no mundo, o horizonte em que se abria sua autocompreensão essencial. Desinibidas fantasias estéticas sobre as novas possibilidades técnicas de consumo mercantil do homem por si mesmo forneceriam uma réplica cínica para a crassa formulação heideggeriana, acima citada, acerca da equiparação entre agricultura, câmaras de gás e bombas de hidrogênio. Vista sob uma ótica heideggeriana, a fúria desencadeada desse hedonismo reificador poderia muito bem figurar como a realização macabra da ética humanista – o projeto de domínio integral da racionalidade técnica, alegadamente promovido em fomento de fins humanos, tê-lo-ia reduzido à monstruosa condição de artefato tecnicamente fabricado. Em vez de fomentar o delírio de onipotência tecnológica, a sóbria diretiva de Heidegger preconiza o abandono do pretenso privilégio humano incondicional sobre todas as criaturas. O tipo de pensamento proposto por ele não se deixa dominar pelo humanismo. “Certamente não, enquanto o humanismo é metafísico. Certamente não, se for o Existencialismo e defende a frase que Sartre exprime: Précisément nous sommes sur un plan ou il y a seulement des hommes […] Em vez disso, pensando a partir de Ser e Tempo, dever-se-ia dizer: Précisément nous sommes sur un plan où il y a principalement l’Être”[8].

Isso não significa, no entanto, que sejamos compelidos a “anatemizar” toda perspectiva humanista de reflexão a respeito desses problemas e desafios. Fixar limites éticos para a liberdade de investigação científica, levando em consideração razões de ordem “humanitária” (mesmo depois e a despeito de Heidegger), exige, antes, impor-se a tarefa de uma reflexão profunda sobre a essência da técnica moderna, que não se deixe extraviar pelo tradicional ufanismo autossuficiente, pelo delírio infantil de onipotência da produção tecnológica. Exige, isso sim, que nos reapropriemos de uma sabedoria ancestral implicada na continência prudente e na humildade – exige que recuperemos uma postura de meditação permanente, lúcida e responsável, para a qual, talvez, um olhar retrospectivo não seja despropositado.

OS LIMITES DE UMA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL: O RETORNO DA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

Sem levar em conta, em nossos dias, a crítica heideggeriana do humanismo e sua correlata filosofia da técnica, todo nosso esforço de reflexão, a despeito das melhores intenções “humanitárias”, permanecerá superficial e de curto alcance. Talvez tenha sido precisamente esse desafio que mobilizou os esforços de Peter Sloterdijk. A despeito do estilo cínico e provocativo de sua entrée na cena filosófica mundial, As regras para o parque humano foram concebidas, antes de tudo, como resposta (a se julgar ainda se bem-sucedida ou não) à Carta sobre o humanismo de Martin Heidegger.

Num panfleto incendiário datado de julho de 1999, Peter Sloterdijk respondeu publicamente à Carta sobre o humanismo de Martin Heidegger. Nessa resposta, Sloterdijk reconhece o vigor e a profundidade da crítica heideggeriana ao humanismo: com ela prenuncia o fim do humanismo tradicional, o solapamento das bases metafísicas de sua ingênua má consciência. Mas, para Sloterdijk, o fundamental parece consistir nos limites e nas insuficiências práticas e teóricas da crítica heideggeriana, que não faz senão balbuciar, ou simplesmente emudecer, em face das virtualidades e das urgências do tempo presente – pós-iluminista, pós-moderno e pós-humano.

Ironizando as célebres imagens analítico-existenciais da clareira (Lichtung), da habitação, da vizinhança, como metáforas da linguagem, a ser entendida por Heidegger como a “morada do ser”; referindo-se aos enigmáticos proferimentos a propósito de um pensar meditativo que, em silêncio reverencial, se coloca à escuta dos destinamentos do ser, Sloterdijk se pergunta como tais obscuras diretivas provenientes do desvelamento (alétheia) do ser permitiriam a construção de uma “sociedade de vizinhos do ser”. Para ele, esta não poderia ser senão uma eklesia invisível de reverentes e silenciosos indivíduos isolados.

Sendo assim, tanto a ontologia fundamental do Dasein quanto a filosofia que rememora a história da verdade do ser teriam necessidade, sobretudo, de uma fundamentação antropológica. E, assim, uma decidida ocupação do pensamento com o homem, com o humano da história, passaria necessariamente por uma reflexão mais terra a terra, que buscasse o contributo da antropologia, ainda que para tanto fosse necessário exumar um gênero desacreditado em nossos dias, a antropologia filosófica.

É ocioso ingressar aqui mais de perto no caráter criptocatólico das figuras da meditação de Heidegger. Decisivo é agora apenas que, através da crítica heideggeriana do humanismo, propagou-se uma mudança de postura, que remete o homem a uma ascese meditativa, que aponta para muito além de todas as metas humanistas de educação. Somente por força dessa ascese poderia se formar uma sociedade de [homens OGJ.] meditativos, para além da sociedade humanístico-literária; essa seria uma sociedade de homens que retirariam o homem da posição central, porque teriam compreendido que só existem como vizinhos do ser – e não como obstinados proprietários, ou como senhores instalados em locações principais indenunciáveís.[9]

Em vez daquela bucólica pastoral ontológica que Heidegger prescreve como alternativa ética para o humanismo, Sloterdijk opta por um caminho que conduz à reflexão de volta para o domínio concreto e eficaz da história e da política, reinterpretando a Lichtung (clareira) heideggeriana de um modo que exige o concurso incontornável de contribuições da Antropologia. Recorrendo à Antropologia, Sloterdijk despacha a pretensa liquidação heideggeriana do humanismo e coloca em questão, a seu modo, o sentido e o papel da educação humanista na história do Ocidente. Para fazê-lo, recorre ao léxico suspeito em que até então se formulara o problemático binômio domesticação (Zithmung) e seleção (Zuchtung), entendidas como cruzamento fundamental no processo antropológico de autoconfiguração da humanidade.

Para Sloterdijk, a história cultural do Ocidente foi marcada pela tensão entre as técnicas de cultura seletiva (Zuchtung) e as forças civilizatórias de amansamento e domesticação (Ziihmung) do “bicho homem”. Para ele, o humanismo – insuficientemente fulminado pela desconstrução heideggeriana da metafísica – constitui, em verdade, um longo e importante capítulo dessa história; com ele se empreende uma colossal tarefa de amansar as forças selvagens e domesticar o homem por intermédio da escola e da leitura: de acordo com sua posição, é em chave antropológica que se deve complementar a Lichtung (clareira) heideggeríana, entendida como abenura para a transformação do homem em anímàl doméstico (Haustier).

A clareira (Lichtung) encontraria, portanto, seu espaço de pertinência antroplógica no contexto civilizatório da criação e regulação da vida humana em casas e cidades.

A clareira é, ao mesmo tempo, uma praça de combate e um lugar de decisão e seleção. Em relação a isso nada mais se pode reparar com formulações de uma pastoral filosófica. Onde se erguem casas, aí tem de ser decidido o que deve ser dos homens que as habitam; decide-se, de fato e pelo fato, que espécies de construtores de casas vêm a prevalecer. Na clareira, fica demonstrado por quais empenhos os homens combatem, na medida em que aparecem como seres que constroem cidades e impérios[10].

Para Sloterdijk, de modo inteiramente outro que para Heidegger, Nietzsche foi também um mestre contemporâneo do pensamento perigoso, um dos filósofos que mais longe e claro enxergou no domínio das relações entre a antropologia, a ética e a política. Para o autor de Assim falou Zaratustra, o homem moderno seria sobretudo um selecionador bem-sucedido: ele teria conseguido transformar o bicho homem em “último homem”; isto é, no animal domesticado, útil e dócil, uniforme, comprazendo-se no próprio rebaixamento e mediocridade.

Compreende-se por si que isso não pode acontecer apenas com meios humanísticos de domesticação, direcionamento e ensino. Com a tese do homem como criador seletivo do homem, rompe-se o horizonte humanista, na medida em que o humanismo jamais pode, ou está autorizado, a pensar mais adiante do que até agora a questão da domestifiéação e da educação. O humanista apresenta-se ao homem, e então aplica a ele seus meios domesticatórios, disciplinadores, formativos – convencido, como ele o está, da conexão necessária entre ler, assentar e abrandar[11].

O mérito de Nietzsche consistiria em ter pressentido, corno o apóstolo Paulo e Charles Darwin antes dele, por detrás desse pacífico e sedentário horizonte escolar de formação um cenário mais sombrio.

Ele fareja um espaço no qual terão início combates inevitáveis sobre as direções da seleção humana – e esse espaço é aquele no qual se mostra a outra face da clareira, a face oculta. Quando Zaratustra caminha pela cidade na qual tudo se tornou menor, ele observa o resultado de uma política de seleção até então exitosa e indisputada: com auxílio de uma adequada vinculação entre ética e genética, os homens conseguiram – assim lhe parece – tornar menores a si próprios, por seleção. Eles se submeteram à domesticação e colocaram em marcha, para si mesmos, uma escolha seletiva na direção de formas de convivência entre ani­ mais domésticos. A partir desse discernimento, a crítica ao humanismo, própria de Zaratustra, surge como refutação da falsa inocuidade, com a qual se envolve o bom homem moderno[12].

Nesse ponto estratégico, percebe-se a importância que a crítica nietzschiana do humanismo, aquele ensaio de “antropologia filosófica” que se apresenta, por exemplo em Para a Genealogia da moral, adquire no ataque de Sloterdijk tanto a Heidegger quanto à tradição humanista. Segundo ele, Nietzsche denuncia justamente a falsa inocência dissimulada na pedagogia humanitária, a autoedulcoração de uma vontade coletiva de poder, responsável pela escolha seletiva de uma determinada figura do humano como normativa no Ocidente: a do homem bom, como animal doméstico e virtuoso. Com isso, dissimula-se, sob a capa de ensino e disciplina, uma “antropotécnica” de seleção, de cultura seletiva de um tipo humano. Cultura, escreve Nietzsche, é uma tênue pelinha de maçã envolvendo um caos incandescente.[13]

Somos concitados por Sloterdijk a romper justamente com a (auto)-mistificação humanista tradicional que o avançado grau de desenvolvimento tecnocientífico, especialmente os progressos alcançados no campo da biologia molecular, da genética e da medicina, nos habilita a tomar conscientemente em nossas próprias mãos a tarefa cultural da seleção e, dessa maneira – assim o pretende Sloterdijk – a reescrever as regras do parque humano.

É marca da era tecnológica e antropológica que os homens sejam mais e mais colocados no lado ativo e subjetivo da seleção, mesmo sem que tivessem voluntariamente ingressado no papel do selecionador. Devemos constatar: existe um mal-estar no poder da seleção, e em breve será uma opção pela inocência, se os homens explicitamente se recusarem a exercer o poder de seleção, que eles de fato alcançaram. Porém, desde que, num certo campo, estejam desenvolvidos poderes de conhecimento, os homens farão má figura se – como nos tempos de uma antiga impotência – quiserem deixar agir em seu lugar um poder superior, seja ele Deus, ou o acaso, ou os outros. Na medida em que a mera recusa ou abdicação costumam fracassar em sua esterilidade, importa assumir ativamente o jogo, no futuro, e formular um código das antropotécnicas. Um tal código alteraria retroativamente também a significação do humanismo clássico – pois, com ele, tornar-se-ia manifesto e registrado que humanitas não compreende apenas amiza­ de do homem para com o homem; ela sempre implica também – e com crescente explicitação – que o homem representa para o homem o poder superior[14].

Seria preciso atentar para essa condição sui generis do homem contemporâneo, a saber: poder incumbir-se deliberadamenteda tarefa de seleção biopolítica, exercendo um poder que, de fato, já foi conquistado. No grau de autodeterminação a que nos alçamos com a moderna tecnociência, já não poderiamos mais impunemente nos furtar a assumir ativamente o jogo, como postula Sloterdjik, deixando agir em nosso lugar um hipotético poder superior.

Ora, no cenário histórico-político contemporâneo, as atuais pesquisas biotécnicas com embriões e genoma viabilizam a possibilidade de produção tecnológica da vida, para além dos limites restritivos, determinados pelo interesse terapêutico de identificar, prevenir e/ou tratar convenientemente enfermidades causadas geneticamente, afetando indivíduos e populações. Com a possibilidade técnica de decifrar e recombinar a composição dos códigos e cadeias de genes, o homem talvez tenha transposto o limiar de uma nova clareira epocal.

Esse é o conflito fundamental de todo futuro, postulado por Nietzsche: o combate entre os cultivadores seletivos do homem para o pequeno e para o grande – poder-se-ia também dizer entre humanistas e transumanistas, filantropos e transfilantropos. Nas reflexões de Nietzsche, o emblemático Além-do-homem não é colocado para o sonho de uma rápida desinibição, ou de uma evasão para o bestial – como supunham os maus leitores de Nietzsche dos anos 1930, que calçavam coturnos. A expressão também não é colocada para a ideia de uma retrosseleção do homem para o status do tempo de animal pré-doméstico e pré-eclesiástico. Quando Nietzsche fala do Além-do-homem, ele pensa, então, em uma era do mundo profundamente além do presente. Ele toma medida em milenares processos retrojacentes, nos quais, até agora, foi empreendida a produção de homens, graças à íntima confrontação entre seleção, domesticação e educação – numa empresa que, em verdade, soube em grande parte fazer-se invisível, e que, sob a máscara da escola, tinha por objeto o projeto de domesticação[15].

PROMETEU E O SACRIFÍCIO NECESSÁRIO: SOBRE A VIOLÊNCIA E O SAGRADO

Meu interesse principal se instala numa perspectiva voltada justamente para milenares processos “pré-históricos”, para o que poderíamos considerar como o espaço conjuntural do humano como “animal pré-doméstico e pré-eclesiástico”. Sob essa ótica, parece-me que o convite de Sloterdijk para um resgate da antropologia filosófica, no contrapelo da analítica heideggeriana da finitude, pode adquirir novo sentido: pois que, por meio da antropologia, talvez possamos resgatar os rudimentos, os traços mnêmicos e biológicos nos quais se depositam os registros arquivários do processo de hominização, da aventura de autoconstituição do homem, que transfigura o hominídeo institivo em zoon politicon.

Concernidos pelo pensamento de Heidegger, e considerando com toda a seriedade o chamamento à reflexão nele contido, ousamos confrontar a abertura ontológica constitutiva do Dasein como ser no mundo, com uma tese antropológica despida das sugestões antropotécnicas de Sloterdijk. Voltamo-nos justamente para a pré-história do vir a ser homem, para a ‘brutalidade” do animal caçador e predatório que abandona as árvores para ganhar a totalidade do mundo.

Essa perspectiva pode parecer extemporânea num tempo em que tudo se perfila prospectivamente, em especial na direção indicada pela tecnociência, pela biologia molecular e pela genética, com suas promessas de iminente produção tecnoindustrial do humano. Pode ser anacrônica uma reflexão que inverte a direção do olhar voltado genética ou genealogicamente para as origens, para os primórdios da cultura. No entanto, considero mais premente do que a curiosidade ansiosa acerca do que podemos fazer tecnolo­gicamente de nós mesmos, mais urgente do que o pretenso golpe de morte em nossa autocompreensão ética – representado pela instrumentalização da base somática da personalidade – o cuidado reflexivo com as origens, o resgate de gap que nos distancia (e talvez nos aproxime decididamente) dos tempos primevos, que, de resto, de acordo com Nietzsche, estão presentes sempre de novo, a qualquer tempo[16].

A alusão a Nietzsche, nesse contexto, é feita para lembrar que aquilo que denominamos espírito e cultura superior, religião e civilização – tudo isso veio a ser, tem seus primórdios na pré-história do animal homem, e foram engrendrados a partir da interiorização e sublimação das telúricas forças pulsionais da agressividade, da destrutividade. Ora, isso enseja uma parceria, no pensamento contemporâneo, na antropologia filosófica de René Girard e de Walter Burkert, sobretudo levando em consideração as abissais diferenças entre as respectivas teorias e seus métodos. “Deve ser possível pensar o processo de hominização”, escreve Girard, sem a indigente necessidade de acobertar as dificuldades do empreendimento debaixo de imponentes circularidades do pensamento, “de modo realmente radical, a partir da própria animalidade e sem nunca recorrer às falsas especificidades da natureza humana”.

É possível mostrar que é a intensificação da rivalidade mimética, visível em toda, parte já no nível dos primatas, que deve destruir os dominance patterns e suscitar formas sempre mais elaboradas e mais humanizadas da cultura por meio da vítima expiatória. No momento em que os conflitos miméticos se tornam suficientemente intensos para impedir as soluções diretas é que resultam as formas animais de socialidade, e esta deve se desencadear numa primeira “crise”, ou numa série de crises, o mecanismo que engendra as formas “adiadas” simbólicas e humanas da cultura.

É possível pensar que a potência e a intensidade da imitação aumenum com o volume do cérebro em toda linhagem que conduz ao Homo sapiens. Nos primatas mais próximos do homem, o cérebro já é mais volumoso que em outros animais. Deve ser essa potência crescente que desencadeia o processo de homi­ nização, em seguida acelera esse crescimento, e contribui de modo prodigioso para a potência incomparável do cérebro humano[17].

O que somos hoje, devemos aos avatares de um desenvolvimento somático, em particular a um prodigioso aumento do volume do cérebro que favorece a intensificação da capacidade de imitação, da mimésis humano-animal. A renúncia à mimésis apropriativa, que faz desaparecer a imitação apropriativa de objeto, a qual inevitavelmente leva à guerra de todos contra todos, conduz às peripécias, às transformações e às sublimações das potências agressivas e destrutivas do animal humano – canalizadas para fora do grupo – para um terceiro, uma vítima expiatória, o cimento das relações de solidariedade e comunidade intragrupal.

Homo sapiens torna-se sapiens em função de sua transformação em animal caçador. A vítima expiatória constituiu a verdade de nosso princípio (no princípio era a ação, e a ação homicida), e talvez continue a ser nosso destino. Eis, portanto, a origem do rito e da religião, o grau zero do processo de hominização: o rito sacrificial. Bem como o mito que o mimetiza simbolicamente e o transforma em conteúdo religioso, repete ritualisticamente o sacrificio vicário que instituiu as primeiras ordens sociais; por isso é indispensável dar a ele uma forma cultural fixa e estável (o sagrado, a religião), de modo a poder retomá-lo sempre, tanto como memorial como renovação permanente do ato fundacional.

Há, portanto, uma parte de intuição verdadeira em Totem e tabu, e ela consiste em fazer remontar a humanidade a um assassinato coletivo. Aliás, não há mito fundador que não faça o mesmo, mas foi a genialidade própria a Freud que compreendeu (contra toda a futilidade de sua época e da nossa) que era preciso levar todas essas mensagens em parte fantásticas, mas concordantes em pontos essenciais, mais a sério do que a antropologia até então tinha sido capaz de fazer. Freud não conseguiu descartar elementos mitológicos que atravancam sua teoria. “Seu pai feroz é a última divindade da violência e é porque hoje ela está morrendo, com a religião psicanalítica fundada sobre ela, que podemos falar da maneira que falamos”[18].

A vitimação ritualizada constitui a canalização e a derivação de uma violência originária, desencadeada pela mimésis de apropriação que, se não for desviada de sua meta original – a saber, a destruição dos outros – por meio da concentração sobre o bode expiatório, destruiria toda e qualquer possibilidade de sociedade humana estável. Esta necessita da derivação desviada da violência de todos sobre uma vítima sacrificial, de maneira que a sociedade surge da agressão comum: “C’est la violence qui constitue le coeur véritable et l’âme secrete du sacré […] tout rituel religieux sort de la victime émissai­ re, et les grandes institutions humanies sortent du rite”[19].

De acordo com esse modelo, o mecanismo bode expiatório, que se encontra na base da antropologia filosófica de René Girard, constitui a autêntica condição de possibilidade de explicação da sociabilidade humana, que, sem reivindicar uma concretização ou verificação histórica, permite avançar relativamente às hipóteses metafísicas as quais, no limite, recorrem às falsas especificidades da natureza humana ou à ficção heurística do contrato originário – uma edulcoração pacificadora como mito fundador da sociabilidade humana. Walter Burkert também dedica seu trabalho antropológico à gênese do processo de hominização, apreendendo o desenvolvimento histórico da cultura humana de um modo mais concreto e verificável do que as teorias de Girard sobre a violência e o sagrado, de modo a formular hipóteses falsificáveis a respeito dessas origens.

Para tanto, ele recorre aos fundos e achados antropológicos que dão testemunho de como o homem fez-se tal, ao abandonar as árvores para, como caçador, conquistar a terra.

Já no Paleolítico, o homem é caçador bem-sucedido de grande caça selvagem; isso já é documentado, por exemplo, nos fundos de Chou Kou Tien, dos assim chamados homens de Pequim. Nesse processo, é pressuposto um complexo característico de equipagem física e modos de comportamento, que separam claramente o homem de seus parentes próximos, e com isso fazem-no homem: caminhar ereto e uso de armas, de modo que é possível o rápido caminhar sobre duas pernas, e as mãos permanecem livres; trabalho em conjunto em grupo com um correspondente sistema de sinais; emprego do fogo, na medida em que a lança de madeira, reforçada no fogo, constituiu a primeira arma efetiva; diferenciação dos sexos, indo os homens para a caça, deixando mulheres e crianças na proteção do fogo doméstico – isso não é natureza imodificável, no entanto, quem se contrapõe a isso, tem de se haver com uma tradição de cem mil gerações[20].

Diferentemente do que pensa Girard, a vítima sacrificial não é o bode expiatório para o qual se canaliza a violência comum, fundadora das primeiras sociedades. O sacrifício deve ser restituído, originariamente, à caça, à restituição à natureza do fundamento da vida morta para perpetuação e propagação da vida humana, da devolução ao fundo comum daquilo que teve que ser morto e dilacerado para a conservação da vida humana.

O caçador tem de matar para viver, e isso põe em cena um paradoxo em seus usos e costumes. Dessa maneira, pode-se tornar historicamente compreensível o paradoxo da vítima: não há que se perguntar como, então, matar e comer são introduzidos no culto dos deuses; isso sempre esteve lá; e, no entanto, que mesmo no necessário ato de matar, a gente se curve perante a potência da vida, isso é religião[21].

Sendo assim, se a sociabilidade humana tem como fons et origo a violência, então não o sacrificio expiatório, como pretendia Girard, mas o paradoxo do caçador: ter de restituir à natureza, ao fundo originário da vida, a vida sacrificada que torna possível a vida humana, ao fornecer-lhe o alimento ricamente proteico da carne. Mais uma vez, a violência e a agressão constituem a base fundacional do processo de hominização. Em ambos os casos, em Burkert e Girard, a combinação da biologia, da arqueologia, da paleontologia e da antropologia nos colocam frente a frente com o especificamente humano: a canalização, a domesticação e instrumentalização da violência sob a forma do sagrado, do rito e da religião.

Portanto, é disso que se trata quando nos propomos hoje a rediscutir a vexata questio da natureza humana – inclusive do ponto de vista da filosofia política. De certo modo, poderíamos dizer, contra loterdijk, que só existe humanitas porque um caçador predatório transformou sua ferocidade em Homo sapiens, tornando-se doméstico e eclesiástico – e o fez mediante o sacrificio vitimário, da ritualização da violência sacralizada. Tendo isso em vista, caberia plenamente a lembrança de Nietzsche, que também foi um dos mais implacáveis adversários de nossa moderna necessidade de edulcoração da pré-história da hominização. A respeito da consciência moral, da má consciência e de todos os atributos em que a tradição se obstinava em discernir a “marca do divino no humano”, Nietzsche via rupturas, as vertigens de saltos no abismo:

Pertence ao pressuposto dessa hipótese sobre a origem da má consciência que essa transformação não foi gradual, voluntária, e se apresentou como um crescimento orgânico em novas condições, mas como uma ruptura, um salto, uma coerção, uma fatalidade irrecusável, contra a qual não houve nem combate, nem sequer ressentimento. Em segundo lugar, que essa inclusão de uma população até então desprovida de inibição e forma em uma forma estável foi levada a cabo só com autênticos atos de violência, assim como ela teve início com um ato de violências, que, de acordo com isso, o mais antigo “Estado” surgiu e continuou a trabalhar como uma esmagadora e impiedosa maquinaria, até que uma tal matéria-prima de povo e semianimal finalmente foi não apenas amassada e tornada flexível, mas também foi conformada. Eu emprego a palavra “Estado”: compreende-se por si mesmo o que penso com isso – alguma horda de louros animais de rapina, uma raça de conquistadores e senhores, que, organizada para a guerra e com força para organizar, lança sem consideração suas terríveis garras sobre uma população talvez prodigiosamente superior, mas ainda desprovida de forma, errante. Sim, desse modo começa sobre a terra o “Estado”: penso que fica deposto aquele delírio que o fazia começar com um “contrato”[22].

Essa lembrança não é feita com vistas a uma demonização maniqueísta dos primórdios da vida política, pois com a internalização da violência sublimada principia, para Nietzsche, a aventura da conditio humana. Por outro lado, acrescentemos imediatamente que com o fato de uma alma animal voltada contra si própria, que toma partido contra si mesma, foi dado algo na terra tão novo, profundo, inusitado, enigmático, contraditório e pleno de futuro que o aspecto da terra alterou-se essencialmente com isso. De fato, foram necessários espectadores divinos para honrar o espetáculo que com isso se iniciou, e cujo final ainda não pode, de modo algum, ser avistado, um espetáculo demasiado refinado, maravilhoso, demasiado paradoxal para que ele pudesse se desenrolar, despropositadamente não percebido, sobre um ridículo astro qualquer! Desde então o homem conta entre os mais inesperados e excitantes lan­ ces de dados que a “grande criança” de Heráclito joga, chame-se ela Zeus ou o acaso – “ele desperta para si um interesse, uma tensão, uma esperança, como se com ele algo se preparasse, como se o homem não fosse nenhuma meta, mas apenas um caminho, um episódio, uma ponte, uma grande promessa”[23].

Se podemos pensar que o hominídeo se transforma em Homo sapiens quando se pacifica e unifica em torno da vítima sacrificial, ou então quando se torna caçador e comedor de carne, devendo devolver cultualmente à natureza a essência imperecível da caça a que deve sua nutrição e propagação, assim também a pudenda origo da consciência moral e organização socio­política que prosseguirá na polis é também ela da ordem da pilhagem, do assalto, da violentação – o rapto das sabinas se inscreve na saga de derivação e canalização da agressividade para o exterior. Um dos grandes equívocos da psicanálise foi pôr no mesmo plano a agressão e a sexualidade, como se o interdito do incesto fosse tão originário e ancestral quanto a necessidade de manter sob controle a violência.

Freud não vê que o controle das relações sexuais se inscreve na questão mais fundamental ainda da violência. Para compreender até que ponto essa questão é fundamental, basta invocar um seu aspecto completamente elementar. mas indubitável, que é a utilização da pedra e das armas. Muito tempo antes da aparição do Homo sapiens, a redução dos caninos até as dimensões atuais sugere que as pedras substituíram a dentição na maioria de seus usos, mesmo os combates dentro da espécie. Se os animais podem competir e combater sem chegar até a morte, é em razão de inibições instintivas que garantem o controle das armas naturais, as garras e os dentes. Não é possível acreditar que esse controle se estenda automaticamente às pedras e às outras armas artificiais no dia em que os homens começam a utilizá-la?[24]

Esse aceno teórico para a psicanálise pode nos oferecer também uma direção e um caminho do pensamento que nos ajudasse a levar adiante nossa exploração reflexiva do veto oposto por Sloterdijk à ontologia fundamental de Heidegger, com sua tentativa pós-metafísica de recuperar uma tarefa para o pensamento no fim da filosofia. Talvez a grande ousadia pós-metafísica do pensamento se inicie lá onde se trata de cauterizar a derradeira permanência fóssil e residual da transfiguração da violência em sagrado: refiro-me à sacralização da violência que tem a forma do direito, e que, se desde sempre rondou os primórdios da política no Ocidente, nos dias de hoje está a ponto de imantar toda e qualquer reflexão que se encarregue de tomar por objeto o destino da política e da vida.

Colocar em termos de direitos fundamentais, por exemplo, o problema dos limites normativos (ético-político-jurídicos) que devem ser instituídos para prevenir a transformação radical da autocompreensão ética da espécie humana pela iminência de uma instrumentalização tecnológica da base orgânica da personalidade implica reiterar o dispositivo metafisico da sacralização religioso-jurídica da vida humana. Eis presente uma dimensão da discussão atual sobre a técnica cujos desdobramentos podem propiciar um horizonte inteiramente inaudito para o pensamento sobre os avatares da natureza humana na história.

Isso, porque sacrare remete etimologicamente à separação, e consagrar significa subtrair juridicamente (por direito humano ou divino) algo ou alguém do livre uso e comércio. A esse respeito, Giorgio Agamben interpreta religio como derivando não de religare (da ligação e aproximação entre as esferas do humano e do divino), mas de relegere, indicando precisamente o contrário – ou seja, a distância, o escrúpulo, a observância de formas e fórmulas.

Religio não é o que une os homens e deuses, mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos. Por isso, à religião não se opõem a credulidade e a indiferença com relação ao divino, mas a “negligência”, uma atitude livre e “distraída” – ou seja, desvinculada da religio das normas – diante das coisas e do seu uso, diante das formas da separação e do seu significado. Em contraposição a isso, profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular[25].

Ora, sacrare, tornar religiosamente sagrado, realiza-se por meio, ou instrumentalidade, de uma operação ritual sempre minuciosamente estabelecida em seus procedimentos – o sacrifício. Entre consagração e sacrificio subsiste um vínculo antropologicamente indissolúvel: o rito sacrificial, ou seja, o conjunto de procedimentos cultuais diferenciados de acordo com a variedade das culturas, através dos quais opera-se a passagem da esfera do humano para a do divino, do profano para o sagrado, sendo o sacrificio o limiar entre essas distintas esferas; a zona de transitus que a vítima deve necessariamente percorrer para que se opere a separação religiosa.

O que pretendo sugerir com isso é também e sobretudo uma interpretação rigorosamente sacrificial do direito, como dispositivo que opera e assegura as separações que efetuam e constituem um dominium originário – a esfera sagrada do político. Assim sendo, há um elo indissociável entre a sacralidade do político e a instrumentalidade sacrificial do jurídico, sendo o direito o meio pelo qual se constitui o espaço político, separado como um âmbito próprio da existência humana, não natural, propriamente cultural.

Ora, se podemos entender, nesse sentido, sacrificialmente o direito, então podemos também estender ao jurídico a vinculação indissolúvel que une o sacrifício, o sagrado e a violência, pois – como uma constante antropológica – todo transitus sacrificial é inteiramente pervadido, desde as origens míticas, pela violência. A esse respeito, é pertinente a observação de René Girard:

Em numerosos rituais, o sacrificio apresenta-se de duas maneiras opostas: ou como “algo muito sagrado”, do qual não seria possível abster-se sem negligência grave, ou, ao contrário, como uma espécie de crime, impossível de ser cometido sem expor-se a riscos igualmente graves. É criminoso matar a vítima, pois ela é sagrada. Mas a vítima não seria sagrada se não fosse morta. Existe aqui um círculo que receberá um pouco mais tarde, conservando-o até hoje, o sonoro nome de ambivalência[26].

O direito promove e garante, de acordo com a interpretação que ora se propõe, a instituição dessa esfera ambivalente para a qual transitam sacrificialmente os súditos sob a insígnia do soberano, transição que não pode ser pensada senão por meio da institucionalização da violência. Nesse sentido, instituição do dispositivo jurídico cumpriria a mesma função arcaica do sacrifício, ou seja, a neutralização eficaz da violência.

No final das contas, o sistema judiciário e o sacrificio têm a mesma função, mas o sistema judiciário é infinitamente mais eficaz. Só pode existir se associado a um poder político realmente forte. Como qualquer outro progresso técnico, ele constitui uma arma de dois gumes, servindo tanto à opressão quanto à libertação. É sob este aspecto que ele se mostra aos primitivos que, neste ponto, têm sem dúvida um olhar bem mais objetivo que o nosso. Por mais imponente que seja, o aparelho que dissimula a identidade real entre a violência ilegal e a violência legal sempre acaba por perder seu verniz, por se fender e finalmente por desmoronar. A verdade subjacente aflora e a reciprocidade das represálias ressurge, não apenas de forma teórica, como uma verdade simplesmente intelectual que se mostraria aos eruditos, mas como uma realidade sinistra, um círculo vicioso do qual se pensava ter escapado, e que reafirma seu poder[27].

A consagração, como princípio jurídico-constitucional, de um caráter como que sagrado da vida humana tornou-se, para nós, tão familiar a ponto de nos fazer esquecer sua total ausência entre as categorias fundamentais da filosofia ético-política e jurídica da Grécia. A Antiguidade clássica “na distinção entre a mera vida biológica (zoé) e as formas qualificadas de vida (bios) não reconhecia nenhum privilégio ou sacralidade da vida enquanto tal”.

Desse ponto de vista, talvéz possamos suspeitar que os direitos humanos – na acepção corrente de prerrogativas jurídicas “inalienáveis” do homem, o que lhes confere o estatuto de princípios cardinais das declarações de direitos nas constituições dos modernos Estados liberais – sejam uma sobreviviência do resíduo mítico de sacralização da violência na modernidade política[28].

Nesse sentido, talvez possamos identificar como uma de nossas tarefas mais desafiadoras, no plano do pensamento ético-político, aquela que consiste em ousar e levar a efeito profanação pensante do direito, como condição prévia para uma renovação dos quadros conceituais da política, sua liberação do confisco que lhe foi imposto no interior dos limites fixados pela organização jurídica do Estado. Trata-se de uma tentativa de desativação de procedimentos e comportamentos cristalizados, atrelados de forma rígida a uma finalidade inveterada, liberando-os para a invenção, necessariamente coletiva (vale dizer, política) de novos usos.

O sentido de um direito que sobreviveria, desse modo, à sua própria dposição como monopólio da violência, sendo profanado para um novo uso, poderia ser comparável ao que acontece à lei após sua deposição messiânica, à forma de direito numa sociedade sem classes – para citar os exemplos históricos do cristianismo paulino e do marxismo.

Não se trata, evidentemente, de uma fase de transição que nunca chega ao fim a que deveria levar, menos ainda a um processo de desconstrução infinita que, mantendo o direito numa vida espectral, não consegue dar conta dele. O importante aqui é que o direito – não mais praticado, mas estudado – não é a justiça, mas só a porta que leva a ela. O que abre a porta para a justiça não é a anulação, mas a desativação e a inatividade do direito – ou seja, um outro uso dele[29].

Talvez seja essa a seriedade do jogo, no qual brincaremos com o direito

como as crianças brincam com os objetos fora de uso, não para devolvê-los a seu uso canônico e, sim, para libertá-los definitivamente dele. O que se encontra depois do direito não é um valor de uso mais próprio e original e que precederia o direito, mas um uso novo, que só nasce depois dele. Também o uso, que se contaminou com o direito, deve ser libertado de seu próprio valor. Essa libertação é tarefa do estudo, ou do jogo. E esse jogo estudioso é a passagem que permite ter acesso àquela justiça que um fragmento póstumo de Benjamin define como um estado do mundo em que este aparece como um bem absolutamente não passível de ser apropriado ou submetido à ordem juridical[30].

No entanto, talvez isso não seja tão novo como parece – quem sabe se isso não seria o sentido profundo de uma profanação do direito e da própria política, contaminada por seu enquadramento no dispositivo jurídico-estatal da violência organizada como poder institucionalizado? Quem sabe se, desse modo, não estaríamos apenas resgatando uma ancestral ativação política da própria filosofia?

O problema que deve afrontar a nova política é precisamente este: como uma política que seria voltada à completa fruição da vida é possível nesse mundo? Mas não é esse precisamente, olhando bem, o objetivo mesmo da filosofia? E quando um pensamento político moderno nasce com Marcílio de Pádua, este não se define com a retomada com fins políticos do conceito averroísta de “vida suficiente” e de bene vivere? Benjamin, ele também, no Fragmento teológico-político, não deixa nenhuma dúvida quanto ao fato de que “a ordem do profano deve ser orientada em direção à ideia de felicidade”. A definição do conceito de “vida feliz” (que, em verdade, não deve ser separado da ontologia, porque do “ser nós não temos outra experiência senão viver”) permanece uma das tarefas essenciais do pensamento que vem[31].

Notas

  1. Neuer Zuricher Zeitung, 26 de setembro de 1959. 
  2. Ver S. Zizek, “A falha da bioética”. Folha de S. Paulo. São Paulo, 22 jun. 2003, Caderno Mais!, p. 4. 
  3. M. Heidegger, Sobre o “Humanismo”, trad. Ernildo Stein, in Coleção Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 351. 
  4. M. Heidegger, Die Frage nach der Technik, 5ª ed., Pfullingen: Neske, 1982. p. 12. As quatro modalidades de causação referidas são obviamente as causas material, formal, eficiente e final. 
  5. M. Heidegger, Carta sobre o Humanismo, trad. Ernildo Stein. in M. Heidegger. Conferências e escritos filosóficos, Coleção Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 361. 
  6. Apud R. Maurer, “O que existe de propriamente escandaloso na filosofia da técnica de Heidegger”, trad. Oswaldo Giacoia Júnior, in Natureza humana, vai. 11, n. 2, 2000, p. 406. 
  7. Ibid. 
  8. M. Heidegger, “Carta sobre o Humanismo”, trad. Ernildo Stein, in M. Heidegger, Conferências e escritos filosóficos, Coleção Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 357. 
  9. P. Sloterdijk, Regei fur den Menschenpark. Ein Antwortschreiben zum Brief úber den Humanismus, Frankfurt/M: Suhrkamp Verlag, 1999, p. 9. 
  10. ld., pp. 11 ss. 
  11. ld., p. 12. 
  12. ld., p. 13. 
  13. Cf. Fragmento póstumo de 1883, nr. 9[48], in F. Nietzsche, Samtliche Werke: Kritische Studienausgabe (KSA), vol.1O, Berlin/New York/Munchen: Ed. G. Colli und M. Montinari, de Gruyter, DTV, 1980, p. 362. 
  14. ld.. p. 14. 
  15. ld., p. 13. 
  16. Cf. F. Nietzsche, Para a Genealogia da moral. li, 9. in: Nietzsche. Sämtliche Werke, Kritische Studie­ nausgabe(KSA), vai. 5, Berlin/NewYork/Munchen: Ed. G. Colli und M. Montinari, de Gruyter, DTV, 1980, p. 537. 
  17. R. Girard, Coisas ocultas desde a fundação do mundo, trad. Martha Gambini, São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 118. 
  18. R. Girard, Coisas ocultas desde a fundação do mundo, trad. Martha Gambini, São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 121. 
  19. R. Girard, La Violence et le sacré, Paris, 1972, pp. 52 e 425. 
  20. W. Burkert, Anthropologie des religiosen Opfers: Die Sakralisierung der Gewalt, Munchen: Carl Friedrich von Siemens Stiftung, 1983, p. 25. 
  21. ld., p. 24. 
  22. F. Nietzsche, Zur Genealogie der Moral II, 17, ln: F. Nietzsche, Samtliche Werke: Kritische Studienausgabe (KSA), vol. 5, Berlin/NewYork/Munchen: Ed. G. Colli und M. Montinari, de Gruyter. DTV 1980, p. 324. 
  23. F. Nietzsche, Zur Genealogíe der Moral lI, 16, ln: F Nietzsche. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe /KSA), Berlin/New York/Munchen: Ed. G. Colli und M. Montinari, de Gruyter, DTV, 1980, vol. 5, p. 323 
  24. R. Girard, Coisas ocultas desde a fundação do mundo, trad. Martha Gambini, São Paulo: Paz e Terra. 2008. p. 111. 
  25. G. Agambem, Profanações, trad. Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p. 66. 
  26. Ibidem, p. 37. 
  27. É evidente que não procuro questionar a importância fundamental das declarações de direitos como garantia das liberdades públicas, sua função histórica de emancipaçao e resistencia ao arbítrio e à tirania. Pretendo apenas apontar o caráter bifronte que nelas se pode reconhecer, como em todo e qualquer acontecimento de efetiva relevância histórica e política. E, nesse sentido, aquilo que talvez falte no debate atual sobre direitos humanos e direitos fundamentais seja precisamente uma consciência mais apurada no tocante a essa relação entre direito e violência, soberania e estado de exceção. Quero dizer que, ao lado da função emancipatória, seria também indispensável perceber que as declarações de direito integram o dispositivo da vítima sacrificial. 
  28. G. Agamben, Estado de exceção, trad. lraci D. Poletti. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 97. 
  29. G. Agambem, Estadode exceção, Homo Sacer II, trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 98. 
  30. Disponível em: <http://geocities.yahoo.com.br/polis_contemp/polis_agamben.html> 

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