2010

O espírito recusa a habitar sua obra

por Adauto Novaes

O ser exige de nós criação para que dele tenhamos experiência.

Maurice Merleau-Ponty

Ao analisar a desordem do mundo provocada pelas grandes transformações e mostrar que se tornou impossível deduzir das coisas passadas prováveis imagens do futuro, Robert Musil escreve sobre aqueles que se recusam a enfrentar o novo mundo: “eles acreditam que se pode curar a decadência”. Uma época que não compreendeu sua novidade, conclui Musil, fica apenas na triste lamentação daquilo que imagina ter perdido sem se dar conta de que muitas das construções, “fundadas sobre frágeis estruturas intelectuais”, desabaram, deixando escombros. Ainda assim, muitos insistem nas velhas construções. Mas, como diz Claude Imbert no seu texto aqui publicado, ninguém é habilitado a desprezar sua época. Lembremos também do protesto de Maurice Merleau-Ponty: temos apenas as palavras da filosofia de ontem, nada para hoje nem para amanhã. Musil, Paul Valéry, Karl Kraus, Merleau-Ponty; Wittgenstein e outros pensadores citados neste livro nos convidam, pois, a pensar o que acontece com o pensamento. Comecemos, segundo Musil, pela própria filosofia, para fugirmos das reflexões mecânicas presas ao espírito da antiga especulação. Este é o espírito geral dos ensaios de A experiência do pensamento.

Depois de expor as novas configurações do mundo e depois de especular sobre a condição humana, ou o lugar do homem neste novo mundo, temas dos livros anteriores, chegamos ao terceiro movimento das mutações com as perguntas: como pensar o mundo dominado pela tecnociência? Como fugir da visão apocalíptica que afirma que o verdadeiro fim do mundo está no aniquilamento do espírito, como anuncia Kraus?

Tendemos a dizer que as mutações, por terem a tecnociência, a biotecnologia e novas formas de comunicação como eixos dominantes, dão-se no vazio ou à revelia do pensamento. É certo que o espírito produziu uma aventura para a qual nem ele mesmo consegue definir limites e abrir espaço para o trabalho do pensamento. Se tomarmos como exemplo outra prodigiosa mutação que foi o Renascimento, a relação da revolução que vivemos hoje com o pensamento torna-se evidente: o Renascimento apontava ao mesmo tempo para o futuro e para o passado, verdadeira paixão pelo novo e paixão pelo antigo. Seus eruditos, escreve o filósofo Alexandre Koyré,

exumaram todos os textos esquecidos em velhas bibliotecas monásticas: leram tudo, estudaram tudo, tudo editaram. Fizeram renascer todas as doutrinas esquecidas dos velhos filósofos da Grécia e do Oriente: Platão, Platino, o estoicismo, o epicurismo, os pitagóricos, o hermetismo e a cabala. Seus sábios tentaram fundar uma nova ciência, uma nova fisica, uma nova astronomia; ampliação sem precedentes da imagem histórica, geográfica, científica do homem e do mundo. Efervescência confusa e fecunda de ideias novas e ideias renovadas. Renascimento de um mundo esquecido e nascimento de um mundo novo. Mas também: crítica, abalo e, enfim, destruição e morte progressiva das antigas crenças, das antigas concepções, das antigas verdades tradicionais, que davam ao homem a certeza do saber e a segurança da ação.

Nada disso vemos hoje, era da mutação tecnocientífica, a não ser a morte de algumas das antigas crenças e o elogio dos fatos e dos acontecimentos técnicos, e, principalmente, o elogio do presente eterno, sem passado nem futuro. Tudo se torna veloz, volátil e efêmero. Podemos dizer com Fernando Pessoa que assistimos a tudo como a um “espetáculo sem enredo feito só para divertir os olhos – bailado sem nexo”. Antes, uma das virtudes era o desejo de duração das obras de arte e das obras de pensamento. Como lemos em Valéry, “entre as crenças que estão morrendo, uma delàs já desapareceu: a crença na posteridade e seu julgamento”. Sem os ideais de posteridade e julgamento não há trabalho do pensamento.

Novas experiências podem levar a novos pensamentos: “A filosofia está em todo lugar, até mesmo nos ‘fatos’ – e ela não tem nenhum lugar de domínio no qual esteja preservada do contágio da vida”, escreve Merleau-Ponty de maneira desafiadora em Signes. Resta, pois, à filosofia a “prospecção do mundo atual”, justamente “porque estamos no mundo, porque nossas reflexões nascem no fluxo temporal que procuram captar”. Ao falar de “fatos” e de “mundo atual”, Merleau-Ponty antecipava a crítica à ciência que se basta com suas experimentações, suas provas e axiomas, liberada das questões “arcaicas” da origem, do fundamento e da experiência do pensamento. O desenvolvimento das ciências tende a enfraquecer a noção de saber. Ou melhor, assistimos à ruína ,da “nobre arquitetura” construída com os dois pilares da ciência e do saber diante da convicção moderna de que qualquer saber que não traga na sua estrutura um poder efetivo tem apenas importância “convencional”: “Qualquer saber só tem valor se for descrição ou receita de um poder verificável” – escreve Valéry. “Desde então uma metafisica e mesmo uma teoria do conhecimento, quaisquer que sejam, encontram-se brutalmente separadas e distanciadas daquilo que é tido, mais ou menos conscientemente, por todos, por único saber real […] Da mesma maneira, ética e estética se decompõem por si mesmas em problemas de legislação, estatística, história ou fisiologia[…] e em ilusões perdidas.” A nova realidade proposta pela tecnociência força-nos a voltar ao pensamento, a repor a velha arquitetura ciência-saber.

A derrota do pensamento tem também outra origem: manipulamos objetos técnicos que fazem operações sem que tenhamos o mínimo conhecimento do seu funcionamento. Eles são capazes de responder a complicadas questões sem que possamos seguir a lógica mais elementar. A neurociência penetra nos arcanos do cérebro e põe, a cada dia, novos problemas para a percepção e novas questões sobre a natureza do homem. Mas, além da inércia e das lamentações dos intelectuais, predomina a impotência do espírito para voltar-se sobre si mesmo e criar potências que se oponham ao espírito científico. A situação hoje certamente não é a mesma de quando o espírito podia exercer a função crítica: na modernidade, o espírito crítico estava em todas as áreas da atividade humana: crise da política, crise da ciência, crise das mentalidades, crise da crise etc. Suspeitamos que o saber e o poder criados pela razão e pela racionalidade técnica, que resultaram na tecnociência – esta nova realidade do conhecimento-, estejam dificultando o trabalho do espíri­ to. É preciso, pois, emancipar o espírito de sua própria criação. Hoje, quando a mutação toma o lugar da crise, o espírito sente-se à deriva. Como observa Paul Valéry; “aquilo que nós mesmos criamos conduz-nos para onde não sabemos e para onde não queremos ir”. A sensação é a de que o espírito perdeu o controle e o poder de operar e de saber. Uma das teses centrais de Valéry é: Je ne sais que ce que je sais faire. O verdadeiro conhecimento consiste, pois, não em compreender as coisas, os pensamentos e os seres apenas, mas em fabricá-los, experimentá-los. A experiência opera sobre os dados da natureza, da sociedade e do próprio pensamento.

Diante da desordem e da banalidade do mundo, somos convidados a repensar conceitos como espaço, tempo, velocidade, afetividade, natureza, costumes, experiência, vazio, informação, esquecimento, memória, crença, tradição etc. Interroguemos, pois, sem aguardar respostas decisivas.

Mas atenção: não nos sentimos muito confortáveis neste novo mundo. Sentimos que pouca coisa pode estar certa nele, mas é preciso andar com o seu tempo. Procurar um pensamento diferente da força criadora da tecnociência – criação superficial, por certo – e da teimosia estéril de pensamentos que nada têm a ver com o seu tempo. Mais: as mutações são incontornáveis e, com elas, entre coisas positivas e negativas, temos aquilo que Musil define como destronização da ideocracia: “E se Arnheim tivesse podido ver alguns anos à sua frente, teria visto que 1920 anos de moral cristã, milhões de mortos de uma terrível guerra e uma floresta alemã de poemas bradando sobre o pudor feminino não conseguiram adiar uma só hora o fato de um dia as saias e cabelos das mulheres começarem a encurtar; e teria visto as jovens europeias despindo-se de proibições milenares como bananas que se vão descascando, nuas”. Ora, o que Musil quer é evidenciar a impotência de uma civilização morta diante de nova ordem comandada por “alfaiates, moda e acaso”. É mais ou menos, conclui Musil, “como taparmos um buraco vazio com uma cúpula vazia: o vazio superior apenas aumenta o vazio vulgar, e, assim, nada é mais natural do que, a uma época de culto à personalidade, suceder outra que não dê valor algum à responsabilidade e grandeza”. Ele fala também da existência de uma “democracia dos fatos” que nenhuma síntese consegue mais organizar a partir de agora. Jacques Bouveresse amplia as ideias de Musil com um comentário mais radical: acrescentemos, diz ele, uma “democracia das ideias” e entre elas nenhuma, e principalmente as da ciência, pode mais ser autorizada a impor às outras sua superioridade, sua autoridade, sua lei. Vivemos, pois, segundo Bouveresse, a indefinição: nem a ideocracia, nem o predomínio dos fatos que acabam gerando a gigantesca superficie dos modismos.

Paul Valéry, um dos autores de referência para Merleau-Ponty, começa assim o Prefácio às Cartas Persas: “uma sociedade eleva-se da brutalidade à ordem. Como a barbárie é a era dos fatos[ … ] a ordem exige a ação de presença de coisas ausentes, e resulta do equilíbrio dos instintos pelos ideais”. Mais adiante, Valéry esclarece que por era dos fatos ele queria dizer domínio dos fatos científicos e definia os “ideais” como coisas vagas – a teoria, a metafisica, as metáforas, as artes, as crenças -, enfim, lá onde a liberdade do espírito torna-se possível. Sem as coisas vagas, os fatos estarão sempre submetidos às normas do conhecimento científico. Mas, ao lado das coisas vagas, Valéry sugere também que o mundo dos fatos não é apenas fonte de ilusão ao se imporem eles como naturais que se cristalizam em hábitos e fórmulas; o mundo dos fatos pode e deve ser visto como uma possibilidade de reflexão. Por exemplo, a passagem do mundo natural e individual dos fatos – que deixam as coisas e os indivíduos isolados, atomizados – ao mundo público dá-se através da reflexão política, abrindo espaço à constituição do mundo refletido e não do mundo dado naturalmente. Podemos traduzir também da seguinte maneira o que diz Valéry: tudo o que é historicamente um fato pode ser “desobjetivado”, reconstruído, retomado a partir do acúmulo de sentidos que cada fato histórico contém e pede para vir à expressão, experiência temporal indeterminada e obscura não reificada ainda. Esta é uma das maneiras de retomada do passado; a experiência individual, que é modelada pela estrutura cultural e política, alarga-se, inscrevendo-se em uma “vasta rede de sentidos”. Como escreve Benjamin, a experiência constitui menos os dados isolados, “rigorosamente fixados pela memória, do que dados acumulados, muitas vezes inconscientes, que se reúnem nela”. O sujeito universaliza-se através da experiência. A experiência histórica pode transformar-se em energia do espírito como potência de transformação contra o “tempo petrificado” da modernidade. Este movimento leva à convergência da experiência do mundo com a experiência do pensamento e cria, ao mesmo tempo, o redobramento do pensamento sobre si mesmo. Enfim, dois movimentos: junção da experiência com o pensamento e condução da experiência em direção à inteligência de seu próprio sentido. A modernidade que, segundo Valéry, levou ao esquecimento as duas maiores invenções da humanidade, o passado e o futuro, produziu também a degradação da experiência ou, como escreveu Benjamin, instituiu o “caráter medíocre e raso da experiência”, próprio da época do Iluminismo. Vivemos o presente eterno, ou melhor, o presente vive sem a mediação das origens. Nos tempos atuais – continua ele -, “a experiência é reduzida de alguma maneira ao ponto zero, ao mínimo de significação”. Relembremos aqui o prefácio de Hannah Arendt ao ensaio Entre o passado e o futuro, no qual ela diz que a questão central está no “acabamento” que todo o acontecimento vivido precisa ter: sem este acabamento pensado após o ato, escreve Arendt, sem a articulação realizada pela memória, simplesmente não sobra nenhuma história que possa ser contada:

Não há nada de inteiramente novo nessa situação. Estamos mais acostumados às periódicas erupções de exasperação apaixonada contra a razão, o pensamen­ to e o discurso racional, reações naturais de homens que souberam, por experiência própria, que o pensamento se apartou da realidade, que a realidade se tornou opaca à luz do pensamento, e que o pensamento, não mais atado à circunstância como o árculo a seu foco, se sujeita, seja a tornar-se totalmente desprovido de significação, seja a repisar velhas verdades que já perderam qualquer relevância concreta.

Arendt cita Tocqueville: “Desde que o passado deixou de lançar luz sobre o futuro, a mente do homem vagueia nas trevas”. Como vocês podem ainda existir, “vocês que cortaram suas raízes e deixaram as flores secarem?”, pergunta um personagem oriental que questiona o Ocidente dominado pela tecnociência em um dos mais belos textos de Valéry – Le Yalou:

Nosso império é tecido de vivos, de mortos e da natureza. Ele existe porque comporta todas as coisas. Aqui, tudo é histórico: certa flor, a leveza de uma hora que avança, o volume delicado dos lagos entreabertos pela luz,- um eclipse comovente[…] Acima destas coisas, os espíritos de nossos pais e os nossos se reencontram. Elas se reproduzem e, enquanto repetimos os sons que eles deram por nomes, a lembrança nos liga a eles e nos eterniza.

Por fim, uma crítica ao saber ocidental: vocês, que sabem tantas coisas, ignoram as mais antigas e as mais fortes e, ao desejar o imediato, “vocês destroem ao mesmo tempo pais e filhos”. Se tradição, origem, cosmogonias, mitologias são o primeiro tempo do espírito, é a partir dele que encontramos respostas e soluções provisórias – complementos de manobras incompletas. É indo além das ingenuidades imediatas que se constroem sistemas de pensamento. É assim que podemos ler os mitos primitivos que a antropologia estrutural trabalhou tão bem. Sem memória, como retomar o conceito de experiência, em oposição à experiência vivida ligada ao imediato? Benjamin compara seu método à “cisão do átomo, que libera forças imensas da história que estavam presas no ‘era uma vez’ da historiografia clássica. A história que mostra as coisas ‘tais como elas foram verdadeiramente’ tornou-se o mais poderoso ópio do século”. A metáfora da cisão do átomo nos induz a pensar que cada fragmento da intuição abre para novos horizontes que se descobrem sem cessar. Mais: ela nos conduz ao estudo das experiências cotidianas sem que sejam lidas como uma repetição circular dos acontecimentos. Mas eis o grande problema, ou a contradição: vivemos em um tempo fragmentado e ao mesmo tempo cercado de pobreza ou privação da experiência, momento da “perda da experiência histórica, a derrota da experiência”, como conclui Benjamin. Como ver o presente como momento de transição do vivido e do pensado para o não pensado ainda – ou da experiência vivida à experiência – se estamos privados da experiência histórica? Na era das mutações com o domínio da tecnociência – dominação desumanizada – e o enfraquecimento da ideia de trabalho humano, da ideia de classe universal e da própria ideia de singularidade humana, a experiência histórica tende a ser posta em questão. Eis a pergunta: como pensar a experiência histórica em uma época que abole tal experiência, ou, na melhor das hipóteses, torna os homens pobres em experiências e possibilidades? A perda do humano é proporcional ao avanço vertiginoso da tecnociência.

Não podemos recorrer a conceitos que precedam a experiência que pudessem dar sentido à pluralidade caótica dos novos acontecimentos por duas razões: primeiro, porque muitos desses conceitos já não dão conta da realidade; segundo, porque o esquecimento pode também trabalhar em sentido contrário na reflexão: no lugar de ir do conhecido ao desconhecido, na fase de pensamento puramente operacional que nos domina, corremos o risco de caminhar em sentido inverso, isto é, caminhar para desconhecer o já conhecido: “não sei mais o que sabia. O que eu superara é hoje um obstáculo”. Resta-nos a crença proposta por Benjamin com sua dialética: seguindo Goncourt, para quem se deve fazer história a partir dos restos da história, Benjamin vê, nos “fenômenos de decadência e de declínio, os precursores ou, por assim dizer, as miragens das grandes sínteses ulteriores”.

O título A experiência do pensamento pede alguns esclarecimentos. O que se entende por experiência? O pensamento clássico a define como a “mãe de todas as coisas”. Para o pensador sem sistema acabado, ela é paradoxal: a experiência é parte do universo das “impressões, hesitações e clareza; caminha em direção à produção de ações; trata da organização e da desorganização; das energias e das interdições; da passagem para estados sucessivos; do acaso, do acidental, do significativo, do adaptado, do acomodado”(Valéry). Para Benjamin, a filosofia repousa sobre o fato de que “a estrutura da experiência encontra-se na estrutura do conhecimento e só pode desenvolver-se a partir dela”. Para Foucault, a experiência é a “correlação, em uma cultura, entre domínios do saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade”. Configurar uma experiência consiste em pensar um problema: “Para isso”, escreve Foucault, “é preciso dar atenção às práticas reflexivas e voluntárias através das quais os homens não apenas se fixam regras de conduta, mas procuram transformar-se, modificar-se na sua singularidade e fazer de sua vida uma obra que traga certos valores estéticos e respondam a certos critérios de estilo”. Aqui, a ideia de experiência está ligada à história em relação a si mesma. A experiência é, pois, sempre invocada em momentos de crise da razão. Montaigne começa assim o ensaio Da experiência: “O desejo de conhecimento é o mais natural. Experimentamos todos os meios suscetíveis de satisfazê-lo, e quando a razão não basta apelamos para a experiência”. É evidente que Montaigne não estava pondo em questão a razão, mas o seu domínio sobre o trabalho do pensamento e as formas que ela adquire historicamente. O ensaio – cheio de exemplos políticos e jurídicos – mostra a existência não apenas do embate entre verdade e liberdade contra as normas irracionais, mas também a insuficiência e os limites das normas racionais. Ao escrever que “a autoridade das leis não está no fato de serem justas e sim no de serem leis, e nisso reside o mistério de seu poder” e que quem as obedece porque são justas cai em erro, Montaigne faz uma crítica que vai muito além das questões puramente históricas. Critica, na realidade, a ideia de crença na palavra, ou o poder da palavra, e isso é fonte da desrazão. Para alguns de seus comentadores, razão e “discurso” se equivalem. Ora, como escreve Bernard Sève no livro Montaigne – des règles pour l’esprit, para Montaigne, a razão é uma “faculdade” de segundo tempo porque trabalha sobre coisas que já estão aí, apoiando-se em prinápios que ela mesma não pôs.

Sève cita Montaigne: “Il est bien aisé, surdes fondements avoués (admis), de bâtir ce qu’on veut car, selon la loi et ordonnance de ce commencement, le reste de pièces du batiment se conduit aisément […] Par cette voie nous trouvons notre raison bien fondée, et discourons à boule vue (en toute facilité). […] Car chaque science a ses principes présupposés par ou le jugement humain est bridé de toutes parts”. E mais: “notre raison est flexible à toute sorte d’images”. As palavras – ou o discurso – são estas imagens.

Assim, a razão depende sempre dos princípios que ela mesma deve admitir sem provas. A saída para o pensamento em Montaigne na interpretação de Sève está, portanto, não nos avanços da razão, mas no espírito, “potência” que trabalha ex nihilo, sem princípio anterior que o condicione. O espírito, conclui Sève, distingue-se da razão como uma operação “primeira” de uma operação “segunda”. Em síntese, se a razão é a norma, o espírito, como potência permanente de transformação, é invenção e tem fobia da repetição. O termo espírito deve ser tomado no sentido intelectual, e não religioso. Mas, se o espírito trabalha ex nihilo, como escreve Montaigne, nem por isso ele é descolado da realidade. Qual a realidade com a qual o espírito é convidado a lidar hoje? Ora, nossa realidade pode ser definida pela velocidade da reprodução técnica, o que leva o pensamento a estar sempre a reboque dos acontecimentos. Mas o espanto maior decorre da autonomia do “espírito” científico (fruto da cisão entre ciência e pensamento) que age independentemente da vontade do pensamento. Sabemos que tudo o que foi produzido – dos objetos técnicos às teorias – é fruto do trabalho do espírito, e o resultado dessa produção exerce enorme influência na vida social, cultural e política; mas notamos também que a eficácia técnica cria enorme barreira para o trabalho do pensamento. Mais: a falta de novos conceitos que acompanhem a revolução tecnológica criou aquilo que Jean-Pierre Séris, em seu excelente livro La technique, chamou de “pensamento choroso” ou lamentoso: “O conceito e a dialética deram lugar à ideia pré-fabricada, à pacotilha e ao gadget, ao discurso bem-pensante e ao pensamento choroso, doutrinariamente invertebrado e muitas vezes insignificante. […] O mais estranho é esta necessidade de falar de uma realidade que se ignora, de desqualificar em sã consciência a realidade que visivelmente se ignora mais ainda”. O que Séris quer dizer é que é preciso pensar, sem preconceitos, a forma que a ciência e a técnica deram ao mundo. A tarefa é bem mais dificil do que quando considerávamos que a civilização ocidental estava em crise apenas; o pensamento detinha ainda certos meios conceituais de análise. É certo que muitos conceitos foram uma “invenção mais ou menos cômoda”, e seu uso como explicação mecânica para tudo o que acontecia contribuiu para a derrota do pensamento. Tomemos como exemplo as palavras democracia ou liberdade. Elas não passam de generalidades e têm mais valor mercantil do que sentido. Para mostrar a insuficiência dos conceitos, Valéry cita como exemplo a palavra Universo: “A paixão do intelecto quer tudo abolir pelo ato de tudo reconstruir. O espírito inventa ‘Universo’ a fim de poder com um único golpe, uma só palavra, afrontar, aprisionar, e portanto consumir todas as coisas. Ele supõe a Unidade, do qual precisa como adversário bem definido. Procura resumir tudo em uma única ‘lei’, como aquele imperador que desejava que o gênero humano tivesse apenas uma cabeça. É o mesmo sentimento”. Esquece-se a “natureza transitiva”, instável e consistente, mas frágil, de cada conceito, que precisa ser reinventado a cada momento de mutação. O universo era “um Todo e tinha um centro. Hoje não há mais Todo nem centro. Mas continua-se a falar de Universo”. É o que diz o Fausto de Valéry a propósito da forma transitiva de todo conceito:

Le véritable vrai n’est jamais qu’ineffable

Ce que l’on peut conter ne compte que fort peu.

O que diz Valéry nos remete ao Nietzsche do ensaio Verdade e mentira no sentido extramoral, onde lemos que a arquitetura do mundo é feita de frágeis conceitos:

Pode-se muito bem admirar o homem como poderoso gênio da arquitetura que é: conseguiu erigir uma cúpula conceituai infinitamente complicada sobre fundações moventes, sobre água corrente. Na realidade, para encontrar um ponto de apoio sobre tais fundações, reconhece-se que se trata apenas de uma construção semelhante a uma teia de aranha tão fina que pode seguir a corrente do fluxo que a leva, tão resistente a ponto de não se dispersar com o vento. Como gênio da arquitetura, o homem supera em muito a abelha: esta constrói com a cera que recolhe da natureza; o homem, com a matéria bem mais frágil dos conceitos que é obrigado a fabricar apenas com os próprios meios.

Tendemos a pensar que conceito em Nietzsche resume não apenas a sobrevivência do homem, mas define também sua natureza. Para ele, o que diferencia o homem dos outros elementos da natureza é a palavra, isto é, a capacidade de formular e expressar conceitos para se defender, conservar-se e criar obras. Nietzsche mostra que, na origem, é a linguagem que trabalha na elaboração de conceitos; mais tarde isso passa a ser tarefa da ciência: “Como a abelha que constrói as células de sua colmeia e em seguida as enche de mel, a ciência trabalha sem cessar neste grande columbarium de conceitos, no cemitério das intuições, constrói sem cessar novos andares mais elevados, escora, limpa e renova as velhas células e esforça-se principalmente em encher este columbarium elevado até a desmesura e em introduzir nele a totalidade do mundo empírico […]”. Contra a intuição, a abstração do conceito. Existem, porém, momentos em que o homem não é mais guiado por conceitos, mas pelas intuições, ou melhor, momentos em que “o homem racional e o homem intuitivo estão lado a lado, um no medo da intuição, o outro no desprezo da abstração, e este é tão irracional quanto o outro é insensível à arte”. Poucos filósofos desconfiaram tanto da exatidão e da “força petrificante” do conceito quanto Nietzsche. Em quase toda a sua obra, ele mostra que “verdade” e “moral” são conceitos imaginados em oposição ao mundo real. “Verdade”, para ele, é apenas “um exército movente de metáforas, metonímias e antropomorfismos” de valor instrumental. Com isso, ele quer dizer que todo conhecimento é também instrumental. Em decorrência disso, sua visão do homem, por exemplo, fragmenta-se “em múltiplas imagens”, como observa Eugen Fink, demolindo todas as ilusões que o homem faz de si mesmo. No lugar do conceito, ele põe a ideia de criação, da qual depende o destino da essência humana: por criação ele entende não o trabalhador da sociedade industrial, “o produtor do nosso mundo tecnicizado – como lembra Fink -, mas o artista, o pensador, o poeta, o legislador e o herói que fundam uma cidade”. O homem, portanto, não é a sede da razão: o Iluminismo de Nietzsche se exerce contra o próprio Iluminismo “sem acreditar ingenuamente na razão, no progresso e na ciência. A ciência não é, para ele, senão um meio de questionar a religião e a metafísica, a arte e a moral”. Por fim, Fink fala de um ceticismo “radical e perfeito quando Nietzsche conduz o homem a uma ‘potência criadora anônima’, contra um vir a ser do mundo conceitualmente indefinível”. Talvez esta contradição seja resumida no que escreve Fink no seu ensaio Nova experiência do mundo: “O homem se perde no vir a ser universal, o mundo se concentra no homem[…] Os conceitos falsificam e alteram na medida em que, por seu esquematismo estático, soli­ dificam o movimento real”. Daí a escolha de Nietzsche pela “intuição”, pela multiplicação de imagens e pela volta da experiência do mundo.

Variations sur Descartes.

Parfois je pense; et parfois, je suis.

Mas devemos ficar atentos também às experiências cotidianas e repetitivas. Talvez fosse mais correto falar da perda da experiência diante do movimento circular dos acontecimentos: as novas tecnologias (computador, televisão…) nos levam a um mesmo procedimento mecânico. Isso nos remete à ideia de experiência em Walter Benjamin das Passagens e de Sobre alguns temas baudelairianos que ele identifica ao tédio. Os textos de Benjamin podem nos ajudar a entender a experiência do tempo hoje, muito diferente da experiência do tempo do século xx: vivemos uma radicalidade daquilo que ele chamava “tempo homogêneo e vazio”: como os operários do século passado em uma fábrica, repetimos em nosso cotidiano os mesmos gestos, só que em ritmo acelerado e louco nas ruas, nos escritórios, nas nossas casas. Os ritmos lentos dos processos naturais tendem a desaparecer, e com eles a experiência do olhar: a percepção é feita de maneira diferente. A sucessão rápida das imagens, a aceleração das comunicações, o ritmo da difusão das informações – apenas anunciadas e imediatamente esquecidas por outras mais espetaculares – anulam o paciente e lento tempo da reflexão, ou melhor, joga o tempo do pensamento para mais tarde. Mais: as coisas perdem a verdadeira velocidade de sua essência. Parar para pensar equivale a perder o bonde da história dos acontecimentos, da moda, das celebridades e, portanto, o tempo da “vida vivida”.

Duas citações de Montaigne sobre o trabalho do espírito: “Mais parce que, aprés que le pas a été ouvert à l’esprit, j’ai trouvé, comme il advient ordinairement, que nous avions pris pour exercice malaisé et d’un rare sujet ce qui n’est aucunement et qu’apres que notre invention a été échauffée, elle decouvre un nombre infini de pareils exemples[…]”. É uma busca sem fim do espírito e “ses inventions s’échauffent, se suivent, et s’entreproduisent l’une l’autre”. Mas é preciso dar o primeiro passo, como nos convida Montaigne.

Em tempos de racionalidade técnica e irracionalidades, voltemos à ideia de experiência do pensamento.

Na relação entre Ciência e Pensamento, muito se escreveu sobre as concepções puramente instrumentais das teorias. Valéry vê, por exemplo, uma transformação radical na maneira de pensar da ciência que tende cada vez mais a substituir o saber pelo aumento do poder. Ele escreve: “A entrada em cena da teoria da energia e daquela que fala da aplicação dos cálculos estatísticos à tisica marca uma época do espírito. Porque estas teorias consagram o abandono da pretensão de conhecer o universo tisico em si, e manifestam a resignação em trocar o saber pelo poder. Não se trata mais de penetrar o íntimo das coisas, mas de se limitar às suas manifestações finitas, isto é, sensíveis e tangíveis – ou numeráveis”. Com isso, ele não quer dizer que a ciência reduz-se a procedimentos positivistas apenas: é evidente que ela traz nela mesma muito mais do que o que vem à expressão. Ao renunciar a especulação dos mecanismos internos, que são os responsáveis, como observa Jacques Bouveresse, pela ocorrência e pela sucessão dos fenômenos que observamos, acabamos “por nos concentrar exclusivamente sobre a tarefa que consiste a se dar os meios de descrever, medir, calcular e predizer seus efeitos”. Com o predomínio da visão instrumental, a ciência perde sua significação profunda. Mas o pensamento perde muito mais ao se pôr a serviço da ideia de progresso científico e técnico. Nesse processo, o esclarecimento, no lugar de buscar a transparência do fundamento das coisas, acaba por ser­ vir a um fim que não é um fim em si, como escreve Wittgenstein:

Nossa civilização caracteriza-se pela palavra ‘progresso’. O progresso é sua forma, e o fato de ela progredir não define propriamente uma de suas propriedades. Ela é tipicamente construtiva. Aquilo que a torna ativa é o fato de levantar uma construção sempre mais complicada. E o próprio esclarecimento não faz outra coisa a não ser o de servir a este fim que não é um fim em si. O que me interessa não é construir um edifício, mas ter diante de mim, de maneira transparente, os fundamentos dos edificios possíveis.

Quando se trata do pensamento, a crítica de Valéry é também radical: para ele, hoje, tudo, ou quase tudo na filosofia, tende a se reduzir ao uso de algumas palavras, ou melhor, aos recursos da linguagem. O ceticismo radical leva Valéry a esta imagem da filosofia: “Quanto às questões que atormentam a metafisica e a consciência […] elas se assemelham aos movimentos dos animais presos que andam indefinidamente da esquerda para a direita, da direita para a esquerda até caírem de fadiga. O pensador está na prisão e move-se indefinidamente entre quatro palavras”. Estas duas reduções criam um abismo profundo “entre as ambições e as realizações da ciência e da filosofia”, na avaliação de Bouveresse.

Mas ao falar de coisas vagas, Valéry não descarta os paradoxos e ambiguidades que estas duas palavras trazem. Ele nos conduz a dois mundos que o pensamento das coisas vagas deve especular: o mundo da verdade e o mundo da crença. No mundo dominado pelos fatos, tendemos a acreditar em tudo o que a ciência prescreve e explica, supondo que seja o mundo verdadeiro. Recorramos a Nietzsche: ele diz que o “homem de verdade[…] tal como a crença na ciência o pressupõe, afirma […] um outro mundo diferente do mundo da vida, da natureza e da história; mas, na medida em que ele afirma um ‘outro mundo’, da mesma maneira não deve ele justamente negar seu outro, este mundo, nosso mundo?”. Ao construir o mundo em torno da ideia de crença, corre-se o risco não apenas de fetichizar a ciência, mas também o de promover o retorno ao que Musil chamou de “nostalgia da crença”, entre elas a crença religiosa.

Tanto nos Cahiers quanto nos ensaios filosóficos e políticos, Valéry não cessou de dar importância a um termo que nos toca particularmente quando o tema em discussão é a experiência do pensamento em um mundo dominado pela ciência e pela técnica. Pode-se dizer que grande parte de seu pensamento gira em torno da ideia de fidúcia. Confiança; fiar-se. Esta palavra, como nos lembra Jean-Michel Rey; serve em Valéry para um conjunto de analogias, aventuras do pensamento sem direção preestabelecida, predisposta, portanto, à reflexão. Lemos, por exemplo, em um fragmento de um Cahier de 1939:

C’était fini de la métaphysique – de la mistique – de la société – de la partie naÏve de poésie et surtout de l’histoire et du roman, croyances!…

Tout ce fiduciaire s’évanouit…

Que restait-il? Les ‘sciences’ mais en tant que reduites à leurs opérations et pouvoirs.

Entenderemos melhor este fragmento se lermos outro, também dos Cahiers: “Toda minha ‘filosofia’ é dominada pela observação do caráter finito – por razão funcional – de todo ‘conhecimento’. Este caráter é real – enquanto todo não finito é fiduciário. Este finito é exigido pelo cíclico”.

Com o domínio da ciência como “operações e poderes”, certa positividade que confiança e crença – coisas vagas – podem trazer desfaz-se. O termo coisas vagas passa a ter outro sentido, o de crença apenas, novo “avatar” da ilusão religiosa. Mais: uma vez que hoje as religiões tendem a mobilizar mais do que a política, como nos alerta Zizek, devemos ficar atentos a uma questão mais delicada ainda que se avizinha: à junção neurociência e religião que promete produzir o que se denomina “neuroteologia”, “campo· de pesquisa em que, pela manipulação dos neurônios, tenta-se despertar no cérebro sensações de experiência religiosa”. “Neuroteólogos”, diz Zizek, “acham que, dentro de anos, teremos a experiência mais transcendental de Deus”. Seria, certamente, outra grande derrota do pensamento.

Mas o que nos assusta hoje é o pesadelo de um pensamento sem vínculos com o real e, ao mesmo tempo, a existência de uma realidade que se estrutura como bloqueio à expressão. Somos convidados não ao diálogo do pensamento com o pensamento, mas, a partir do novo mundo, propor a experiência de pensamentos. Retomar, em um só gesto, a origem do pensamento e a fundação, isto é, aquilo que jamais foi pensado. Por origem e fundação entenda-se o impensado, que é parte da tradição e que, no entanto, “abre-se para outra coisa”.

O que Merleau-Ponty diz nos leva a pensar, na tradição de Heidegger, que o pensamento do ser jamais está completamente separado do mundo que nos cerca: verdade ontológica e transcendência relacionam-se sempre com coisas particulares. Como podemos ler nas Teses de Heidegger sobre a verdade, de Jean Wall, “a transcendência da realidade humana é a condição deste pensamento do ser enquanto diferente do pensamento do existente e também enquanto ligada ao pensamento do existente”. Merleau-Ponty define assim o trabalho do espírito: gesto simultâneo de sair de si e entrar em si que se revela quando a experiência se abre aos segredos do mundo. “É à experiência que nos dirigimos”, escreve ele em O visível e o invisível, “para que ela nos abra ao que não é nós”. Esta é a maneira de fugir do pensamento idealista quando o ontológico se funda no transcendental.

Vivemos hoje uma situação paradoxal: uma mobilização permanente e sem fim no vazio, sem interioridade pessoal e sentido coletivo, portanto, na ausência de experiência, e, ao mesmo tempo, um não saber do mundo. Isso equivale à perda da experiência histórica. Traduzindo: vivemos sem história e sem as abstrações que dão sentido aos fatos históricos e à pluralidade caótica dos acontecimentos. Assim, ficamos impossibilitados não apenas de pensar as ruínas no momento mesmo em que elas se dão, mas também – o que é mais trágico – antes que elas aconteçam, como pedia Walter Benjamin? É como se estivéssemos cercados de imagens sem objeto ou habitássemos um mundo no qual as coisas ganhassem valor, mas perdessem sentido. Uma das origens deste mundo é certamente o domínio da ciência e da técnica. Tomemos, pois, como um dos pontos de partida a ideia proposta por Heidegger de uma cisão entre ciência e pensamento e sua célebre frase: “a ciência não pensa”. Para Heidegger,

a ciência não se move na dimensão da filosofia. Mas, sem o saber, ela se liga a esta dimensão. Por exemplo: a física move-se no espaço, no tempo, no movimento. A ciência enquanto ciência não pode decidir o que é o movimento, o espaço, o tempo. Portanto, a ciência não pensa; ela nem mesmo pode pensar neste sentido com seus métodos. Não posso dizer, por exemplo, o que é a física com os métodos da fisica. É que não posso pensar a fisica à maneira de uma interrogação filosófica. A frase: “A ciência não pensa” não é un reproche, mas simples constatação de uma estrutura interna da ciência: é próprio de sua essência que, de uma parte, ela dependa daquilo que a filosofia pense, mas que, de outra parte, ela mesma esqueça e negligencie o que aí se exija ser pensado.

É bom deixar claro: ninguém pode afirmar com seriedade que a humanidade em geral e os pensadores em particular criticam – ou lamentam – a contribuição da ciência para a descoberta de verdades reconhecidas. Duvidar, “por princípio”, do que afirma a ciência moderna e, ao mesmo tempo, “dar provas de receptividade assustadora em relação a teorias ou fenômenos que a ciência rejeita como inteiramente inverídicas” é uma das características mais marcantes da mentalidade “pós-moderna”, como afirma Jacques Bouveresse. Esta maneira de pensar conduz àquilo que aparece como seu contrário – isto é, o elogio das crenças religiosas e das superstições -, que rivaliza com o cientificismo dominante, mas que resulta sempre no mesmo ponto final: a derrotar o pensamento. Robert Musil, um dos ensaístas mais importantes do nosso tempo, mostra que o homem moderno vive na confluência de dois mundos que anulam o trabalho do pensamento: no ensaio em que faz o “retrato clínico do espírito aviltado pelos gozos prolongados da intuição”, espírito do nosso tempo, ele diz: “Que toda a riqueza do nosso tempo acabe finalmente nisso: que o essencial jamais pode ser dito ou tratado, que se mostre extremamente cético in ratione (isto é, precisamente contra tudo o que não tem outra virtude que não a de ser verdadeiro!), mas incrivelmente crédulo em relação a tudo o que passa pela cabeça, que se ponha as matemáticas em dúvida para melhor confiar nas próteses da verdade […]”. Em outro ensaio, põe em questão a ideia de ciência como crença quase religiosa. Pressionado pelo racionalismo do conhecimento tecnocientífico e pelo irracionalismo das crenças, vemos hoje o eclipse daquilo que Paul Valéry e Robert Musil chamaram de utopia da polidez do pensamento ou polidez do espírito. Se a polidez é a arte dos signos, como nos lembra outro filósofo, Alain, como nomear os signos que hoje dominam a vida social, cultural e política? Tudo é remetido à aridez dos números, à aspereza dos sentidos e à arrogância intelectual do imediato. Musil dirige-se em particular aos intelectuais quando escreve: “Há no mundo algo que nos deveria levar à polidez e à discrição mais extremadas (= a humildade indutiva), seja quando agimos ou quando nossos pensamentos referem-se a ele, e esta polidez deveria bastar para se deduzir dele todas as outras polidezes. Mas em geral isso jamais é levado em consideração”. Musil escreve ainda em O homem sem qualidades:

Se perguntarmos de maneira imparcial como a ciência assumiu a forma que tem hoje em dia – o que em si é importante, pois ela nos domina e nem mesmo um analfabeto está a salvo dela, pois aprende a conviver com incontáveis coisas de origem científica -, já temos dela outra imagem. Segundo tradição fidedigna, isso começou no século XVI, uma era de intensa mobilidade espiritual, quando já não se tentava mais penetrar os segredos da natureza, como se fizeram com dois mil anos de especulação religiosa e filosófica, mas nos contentávamos, de um modo que só pode ser chamado de superficial, com a pesquisa de sua superficie […] Podemos começar com a singular predileção do pensamento científico por explicações mecânicas, estatísticas, materiais, às quais se retirou o coração. Encarar a bondade apenas como forma especial de egoísmo; ligar emoções com secreções internas; constatar que o ser humano consiste em oito ou nove décimos de água; declarar que a famosa liberdade ética do caráter é um anexo mental da livre-troca, surgido automaticamente; atribuir a beleza à boa digestão e bons tecidos adiposos; colocar reprodução e suicídio em gráficos anuais que mostram como obrigatório aquilo que parecia vir de livre decisão; considerar o êxtase e a demência como aparentados; comparar como extremidades retal e oral da mesma coisa o ânus e a boca: esses tipos de ideias que revelam o truque que existe no teatro mágico das ilusões humanas sempre encontram uma espécie de preconceito favorável, para as fazer passar por particularmente cientificas.

Musil conclui este quadro tão atual, a era de domínio da explicação da biociência para tudo, que a voz da verdade tem um rumor secundário suspeito. É preciso lembrar o que diz a filosofia de Merleau-Ponty: o corpo humano possui um “outro lado”, um lado “espiritual”, lado escondido para sempre ou provisoriamente, intelecto como potência de transformação.

Ora, esta maneira de pôr o problema nos remete à discussão da essência da ciência e sua relação com o pensamento. Permite também entender me­ lhor o que Heidegger quer dizer com a ciência não pensa. É certo que, além de fincar raízes na essência da realidade humana, a ciência é também uma das possibilidades desta realidade: “isso equivale a dizer”, escreve Jean Wall,

que existem outras possibilidades, e dizer também que a ciência é ligada a outra coisa que não a ela mesma, isto é, ao pensamento do ser. A transcendência e o ato de transcender são de alguma maneira o outro que é suposto pela própria ciência. A ciência, qualquer ciência, estuda não o ser – isso é reservado à filosofia-, mas certo domínio do existente. Existe sempre um domínio particular do existente que é estudado pela ciência. Portanto, qualquer ciência é uma ciência particular, e é isso que distingue qualquer ciência da filosofia.

Diferente da ciência, que procura dominar o existente, o pensamento é o fundamento da existência do homem.

Pode-se dizer, portanto, que enquanto a filosofia busca o conhecimento do ser (através das várias formas: da ética, da política, das artes etc.), a ciência trabalha sempre no sentido do domínio e controle do que existe. Pode-se sintetizar com o embate ou diferença entre duas expressões: o mundo dos “fatos” e o das “coisas vagas”.

Quando Merleau-Ponty escreve que “a filosofia está em todo lugar, até mesmo nos ‘fatos”‘, ele nos quer alertar para duas coisas: primeiro, que o pensamento exige de nós trabalho para que ele próprio seja revelado a partir dos fatos; segundo – o mais importante -, a distinção que ele propõe entre “fato” e pensamento. Podemos acrescentar ainda que os fatos científicos se dão hoje em excesso e propõem-se a uma “visibilidade” opaca. Além do mais, não são dizíveis, isto é, tendem a dificultar o trabalho do pensamento e sua expressão. Ora, Heidegger nos mostra que todo pensamento traz nele o impensado, e a tarefa da filosofia consiste em ir em direção a ele. Estes desvendamentos levam ao entendimento do ser. Repetimos, com este gesto de retomada permanente, “a experiência das grandes filosofias”. É neste sentido que devemos entender a ideia de Merleau-Ponty de que, em filosofia, jamais existe superação absoluta, mas retomada.

Eis a questão: o que está dificultando hoje o diálogo com o passado e, em consequência, a retomada do pensamento? Talvez a fé cega nos postulados da ciência – em particular a biociência – que pretende “inaugurar” tudo e a tudo dar uma resposta científica. Não podemos abrir mão dos grandes sistemas filosóficos porque o pensamento é uma retomada; um resultado científico pode ser substituído por outro porque seu trabalho é sempre parcial, enquanto o pensamento busca sempre o universal. Como nos diz Wall a propósito da ciência, “não é sua essência própria que está implicada na busca de uma verdade científica”, uma vez que ela opera sobre fatos, ou melhor, não existe essência científica. Diferente da filosofia, que jamais busca resultados, a ciência é um “conhecimento positivo, ocupando-se de um domínio determinado do existente […] A ciência procura esclarecer algo que é dado, a filosofia transcende todo dado”.

Por fim, algumas observações sobre as relações entre técnica, ética e política. Costuma-se dizer que, na visão antiga, a ação técnica era controlada e limitada no tempo e no espaço: ainda que modificasse o meio natural, em última instância deixava à natureza a função de totalidade. O máximo que se poderia dizer é que utensílios e máquinas eram extensões do homem; até mesmo, como escreve McLuhan, as mídias eletrônicas eram consideradas extensões do sistema nervoso. Ou seja, a técnica estava a serviço do prolongamento da “essência” humana. Mas não devemos esquecer que, desde o início, a ciência moderna sonha com o domínio da natureza tendo em vista melhorar as condições de existência e, com isso, chegamos enfim à manipulação genética, à cibernética, à informática etc. Aos poucos, a tecnociência foi ganhando autonomia não só em relação à natureza, mas também em relação à política e à ética. Mais: como nos lembra Gilbert Hottois, autor de Le signe et la technique (La philosophie à l’épreuve de la technique), as respostas aos problemas da civilização técnica, no lugar de serem políticas (ou éticas), tornaram-se elas mesmas técnicas: “Os males engendrados pela técnica seriam solucionados com mais técnica, com uma técnica avançada ou outra técnica (por exemplo: a telemática como remédio para o centralismo burocrático e industrial; a fusão controlada como remédio para a fissão; as bactérias manipuladas que tornam biodegradáveis os lixos ‘indigestos’ etc.)”. Em síntese, a tecnociência torna-se um sistema autônomo de tal sorte que o humano (individual e coletivo) “torna-se o vetor, não o mestre, do crescimento técnico”. O pensamento vem a reboque das decisões técnicas. Hottois dá outro exemplo: hoje, a informatização da sociedade é uma “indiscutível” necessidade. A decisão política, diz ele, consiste no máximo em curvar-se diante desta necessidade e a antecipação do que será a sociedade informatizada é extremamente vaga e incontrolável. Por fim, no percurso da mutação técnica, Hottois conclui que hoje a humanidade aparece menos “como uma natureza ou uma essência (formalmente definida se bem que a realizar e a se fazer) e mais como um nó insondável de possíveis que nenhuma teoria pode seriamente antecipar ou esclarecer”. É aqui que entra o papel essencial da ética e da política. A crítica nos mostra que o domínio da tecnociência cria problemas ao mesmo tempo para a ética e para a política. Se levarmos às últimas consequências os axiomas de que, para a tecnociência, “tudo é possível” e “é preciso fazer, experimentar, todo o possível”, entramos então em rota de colisão com as ideias de teoria, política e ética. Ora, a teoria trabalha nos limites do possível em sínteses provisórias que sabem que trazem nelas o impensado. Ela não tem a “evidência absoluta” da técnica que só se apresenta como “evidência” porque se recusa a penetrar no íntimo das coisas e se basta com as manifestações finitas, isto é, “sensíveis e tangíveis – ou numeráveis”. Em poucas palavras, trata-se cada vez mais da substituição do saber pelo poder técnico. Em breve ensaio sobre a relação entre técnica e ética, Hottois fala da “dupla desmedida” da técnica desenvolvida por J. Ellul no livro Le système technicien: ”A técnica é em si supressão dos limites. Para ela não existe operação impossível ou proibida: isso não é um caráter acessório ou acidental, é a própria essência da técnica[…] A autonomia (da técnica) manifesta-se em relação à moral e aos valores espirituais. A técnica não suporta nenhum julgamento, não aceita nenhum limite[…] ela se situa fora do bem e do mal”. A conclusão a que chegam Hattois e Ellul é que o domínio da técnica permite o surgimento concreto do desaparecimento da experiência moral em consequência de uma mutação do próprio homem. Ora, sabemos que o humano é o mediador da ética e se pudéssemos pensar uma ética da técnica só nos restaria uma hipótese de difícil sustentação: “promover unicamente os possíveis tecnocientíficos que não corram o risco de alterar gravemente ou irreversivelmente ou suprimir a capacidade ética da humanidade”. Cabe ainda defender o imperativo de Hans Jonas em seu famoso livro O princípio responsabilidade: “Aja de tal maneira que as consequências de sua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana sobre a terra”.

Por fim, uma brevíssima nota sobre técnica e política: sabemos que o simbólico é essencial no ordenamento político. Que seria da política sem a ordem simbólica? Ora, o advento da aliança tecnopolítica levou à irrelevância dos signos e símbolos. A tecnocracia, na medida em que é separada do campo simbólico, da cultura e da história, trata a política como um de seus objetos calculáveis e manipuláveis, técnica de canalização e controle do político.